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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.30 no.1-2 Lisboa jan. 2012

 

O ‘problema da droga’: Sua construção, desconstrução e reconstrução

Olga Souza Cruz*; Carla Machado** e Luís Fernandes***

*Instituto Superior da Maia;

**Escola de Psicologia, Universidade do Minho;

***FPCE, Universidade do Porto

Correspondência

 

RESUMO

Representações negativas sobre a utilização de substâncias psicoactivas predominam desde há muito, em grande medida, pelo facto de esta prática continuar a ser analisada a partir de uma perspectiva problemática. Manifestações alternativas persistem, portanto, votadas a uma relativa ignorância, continuando a evitar-se o debate acerca das suas dimensões hedonísticas e dos padrões de consumo que são eficazmente conciliados com a vida convencional. Nos últimos anos tem-se assistido, todavia, a um aumento dos trabalhos académicos (sobretudo antropológicos e sociológicos) centrados em experiências que não se enquadram em padrões ‘problemáticos’ e que promovem um entendimento mais adequado sobre esta prática e os seus protagonistas. Tais trabalhos têm mostrado que, tal como foi construído como um problema, este fenómeno pode ser desconstruído e reconstruído em moldes alternativos, desafiando, assim, os discursos dominantes. É a este exercício de construção e desconstrução do ‘problema da droga’, assim como de reconstrução do fenómeno em moldes alternativos, que dedicamos o presente artigo.

Palavras-chave: Consumos ‘não problemáticos’, Consumos ‘problemáticos’, Utilização de drogas ilícitas.

 

ABSTRACT

Negative representations regarding the use of psychoactive substances have long been prevailing, because this practice continues to be analyzed from a problematic standpoint. Alternative forms of illicit drug use persist, therefore, doomed to relative ignorance. It continues to be avoided the debate about the hedonistic dimensions of illicit drug use and about the patterns of illicit drug use that are effectively conciliated with the ‘conventional’ life. However, in the last years there has been an increase of academic work (mainly anthropological and sociological) that focus on experiences of illicit drug use that do not fit in ‘problematic’ patterns and that provide a more proper understanding about this practice and about its protagonists. Such studies have shown that the use of illicit drugs, just as it was constructed as a problem, can be deconstructed and reconstructed in alternative ways, thus defying the dominant discourses. This exercise of constructing and deconstructing the ‘drug problem’, as well as reconstructing this phenomenon in alternative ways is the main purpose of the present article.

Key-words: Illicit drug use, ‘Non problematic’ use of illicit drugs, ‘Problematic’ use of illicit drugs.

 

A CONSTRUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

Compreender o processo de construção social da droga como um problema (de delinquência ou de doença) implica recuar ao século XIX para rever a emergência, na América do Norte, dos primeiros modelos de entendimento e controlo do seu uso, o político-jurídico e o médico-psicológico, que a partir daí se estenderam à globalidade do mundo ocidental (Barbosa, 2006; Romaní, 2003). De facto, até à segunda metade do século XIX o uso de substâncias psicoactivas era tido apenas como uma das muitas práticas sociais/culturais, não sendo encarado como um problema nem como um alvo de preocupação ou mediatização sociais e não sendo controlado pelos governos (Escohotado, 1996/2004; Ribeiro, 1995; Romaní, 2008; Szasz, 1992).

Apesar das suas particularidades, os referidos entendimentos evidenciam vários pontos de contacto, desde logo pelos seus intentos de erradicar as drogas/promover a abstinência e de operar como meios de controlo social (Barbosa, 2006; Romaní, 2003). Estes são, aliás, frequentemente criticados, por se considerar que resultam de uma construção social operada por grupos sociais poderosos, associados sobretudo à religião, à política e à indústria, em especial a que produz substitutos legais para as substâncias ilícitas (Becker, 1963/1973; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s/d). A ênfase, comum aos dois modelos, das limitações dos sujeitos, em detrimento de factores externos, para explicar o ‘problema das drogas’ (Humphreys & Rappaport, 1993) tem permitido identificar ‘bodes expiatórios’, nos quais se depositam temores e problemas sociais, e que legitimam o aumento do controlo estatal, social e médico. Ambos os entendimentos encaram o consumo como um afastamento em relação a uma norma (criminal, patológica ou uma combinação de ambas) e, apesar de usarem argumentos envoltos numa linguagem científica, são perpassados por conceptualizações morais (Romaní, 2003). Além disso, é frequente o cruzamento dos modelos politico-jurídico e medico-psicológico, quer pela sua alternância quer pela sua combinação, enquanto explicação dominante para as drogas (Barbosa, 2006; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s/d).

Discursos ‘tradicionais’: Modelo político-jurídico

O modelo politico-jurídico foi amplamente impulsionado pelo movimento social de ‘cruzada’ contra as drogas, dinamizado na América do Norte em finais do século XIX, onde, sensivelmente na mesma altura, se inaugurou a implementação de estratégias proibicionistas, a criminalização dos consumidores e a aprovação de diversas legislações que vieram alterar o seu perfil, passando a representá-lo como delinquente (Barbosa, 2006; Escohotado, 1996/2004; Romaní, 2003; Szasz, 1992). Norteada por uma apologia do puritanismo e da temperança, e por uma propensão para o etnocentrismo, a América do Norte impulsionou várias discussões sobre as drogas entre a comunidade internacional, para persuadir da necessidade de políticas proibicionistas (Fernandes, 2009; Romaní, 2003; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s/d).

A partir destes esforços, o entendimento político-jurídico, que enfatiza o binómio droga-delin quência e a relevância de medidas proibicionistas e de controlo e repressão sociais, manteve-se hegemónico, no mundo ocidental, durante todo o século XX (Barbosa, 2006; Romaní, 2003; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s/d).

Em Portugal o ‘problema da droga’ conta com cerca de trinta anos, não havendo, até então, preocupações de aniquilar as drogas, de diminuir o seu uso ou de intervir nas suas consequências sociais e sanitárias. Até por volta de 1980 as poucas legislações que existiam a este nível, decorrentes das convenções internacionais, visavam regular e inspeccionar o uso destas substâncias, e só com o Decreto-Lei nº 420/70 é que se inaugurou uma política criminalizadora (Barbosa, 2006). As duas primeiras campanhas públicas contra as drogas exemplificam o alarmismo social fomentado pelo governo português na ausência de dados justificativos. A utilização de tais campanhas pelo poder político pode, assim, ser entendida como uma forma de construir estas substâncias enquanto ameaça externa para, desse modo, condicionar os indivíduos em função dos interesses a defender e afastar responsabilidades pelo problema.

De facto, a preocupação social e o medo sobre as drogas, fomentado por certos grupos com poder, inclusive pela sua mediatização e pela potenciação de um sentimento de pânico moral, tem vindo a desempenhar um papel central na construção do ‘problema da droga’. Em períodos de poder político conservador, e em particular de tensão social, estas substâncias tendem a ser reprovadas e encaradas como um problema individual motivado por defeitos dos sujeitos (Humphreys & Rappaport, 1993). Todavia, é de notar que os mesmos grupos com poder que em certas ocasiões protagonizam acérrimas apologias do proibicionismo, noutras alturas promovem o consumo, como ocorreu em diversas situações de guerra nas quais os governos forneciam drogas aos soldados.

Globalmente, o espírito proibicionista de que temos vindo a dar conta persiste em todo o ocidente, sendo revitalizado mesmo depois de fases de perda de influência a favor de outros entendimentos.

Discursos ‘tradicionais’: Modelo médico-psicológico

As origens do modelo médico remontam ao final do século XIX, quando médicos ingleses e americanos principiaram o debate sobre a “‘doença’ da adição de droga” (Wilbanks, 1989, p. 409).

Este entendimento encara o consumo como um problema médico, o consumidor como um doente necessitado de ajuda externa e o recurso a estratégias terapêuticas, implementadas por profissionais de saúde especializados e destinadas a promover a abstinência, como a intervenção adequada. Esta explicação contribuiu para que, por volta de 1910, surgisse um modelo amadurecido da ‘doença da adição’ (Wilbanks, 1989) acompanhado de uma linguagem própria, com noções como dependência, craving, síndroma de abstinência e tolerância (Keene, 2001). Tais conceitos, ainda hoje amplamente usados, apontam para uma compulsão (psicológica e fisiológica) de consumo irrefreável, que ultrapassa a força de vontade do sujeito (Wilbanks, 1989). Adopta-se, assim, uma visão incapacitante dos consumidores, que são patologizados (Barbosa, 2006; Romaní, 2003), desresponsabilizados pelo seu consumo, tidos como pouco esclarecidos sobre o mesmo, como incapazes de o resolver sozinhos (Wilbanks, 1989) e como pouco aptos para tomar decisões, o que permite legitimar os tratamentos coercivos (Fernandes, 2009; Romaní, 2003).

A relevância deste modelo consagrou-se sobretudo a partir de 1956, quando a Associação Médica Americana começou a equiparar o alcoolismo à doença (Wilbanks, 1989), e o seu auge ocorreu durante a epidemia do VIH/SIDA, quando se constatou a ineficácia do modelo político-jurídico para lidar com tal problema (Romaní, 2003; Stevens, 2007). No âmbito desta conceptualização médico-psicológica e tradicional das drogas é possível englobar várias abordagens que, genericamente, agrupamos em neurofisiológicas e em psicopatológicas e psicológicas.

Neurofisiologicamente crê-se que as várias substâncias psicoactivas interferem com a troca de neurotransmissores, como a serotonina e a dopamina, largamente responsáveis pela regulação do prazer e dos estados de humor, sendo capazes de potenciar um estado reforçador de euforia e prazer, de um modo relativamente independente das circunstâncias psicológicas e sociais em que o consumo ocorre (Weinberg, 2002). Considera-se, assim, que um uso continuado pode provocar uma adaptação neurofisiológica reforçadora, que contribui para a tolerância das drogas e, consequentemente, para estados de anedonia e de sintomas de abstinência na sua ausência (ibidem).

Quanto às abordagens psicopatológicas e psicológicas, a psicanálise é comummente reconhecida como o berço das conceptualizações sobre a dependência, remontando ao final do século XIX as primeiras formulações sobre a mesma (Ribeiro, 1995). Apesar dos diferentes quadros de referência integrados nesta corrente, há certas dimensões que as perpassam, como a valorização de modelos compreensivos, que enfatizam o papel dos significados, das noções de regressão e identificação, e de aspectos relacionados com a biografia do consumidor (Agra & Fernandes, 1993). A perspectiva dos quadros clínicos destaca-se pelas suas preocupações nosográficas, procurando classificar os consumos em função de desordens psíquicas. A toxicodependência é, neste sentido, equiparada a perturbação mental, associada a quadros psicopatológicos e compreendida através de noções como dependência e escalada (Agra & Fernandes, 1993). Outra abordagem é a que procura reconhecer personalidades que predispõe para o uso de substâncias psicoactivas, e que se desdobra em três grandes vertentes: a das personalidades toxicofílicas (que tenta identificar uma estrutura da personalidade típica do consumidor e responsável pelo seu uso/abuso das drogas), a dos perfis border-line (que inaugura a valorização de diferentes perfis de personalidade, concretamente os dos estados-limite, e da compreensão do funcionamento dinâmico do sujeito e das suas especificidades psicológicas), e a da “investigação descritiva da personalidade” (que enceta o recurso a noções como autoconceito, auto-estima, autocontrolo e resistência à frustração para explicar o consumo e a dependência) (Agra & Fernandes, 1993, p. 59). A perspectiva comportamental, por sua vez, atribui o uso de drogas a um hábito do sujeito, que se tende a manter por ser mais reforçador do que outros (Wilbanks, 1989), tanto de forma positiva (e.g., para usufruir do prazer) como negativa (e.g., para terminar os sintomas de abstinência) (Skinner, 1953/1981). Por fim, as explicações cognitivistas enfatizam o papel das cognições, sobretudo das crenças irracionais dos consumidores que facilitam o uso de drogas, como a da baixa tolerância à frustração e a da dependência como forma de afastamento face aos problemas (Ellis, McInerney, DiGiuseppe, & Yeager, 1988).

A DESCONSTRUÇÃO DO ‘PROBLEMA DA DROGA’

Além dos discursos ‘tradicionais’, anteriormente analisados, têm vindo a ser desenvolvidos entendimentos alternativos que permitem um olhar mais abrangente sobre o consumo e a desconstrução do ‘problema da droga’, e que organizamos em dois grandes grupos, o dos discursos ‘alternativos’ e o dos discursos ‘críticos’.

Discursos ‘alternativos’: Antropologia e sociologia

Sob a designação de ‘alternativos’ agrupamos entendimentos sobre as drogas, provenientes da antropologia e da sociologia desenvolvida a partir da segunda metade do século XX, que realçam as limitações dos modelos politico-jurídico e medico-psicológico e que se afastam deles, quer pelos objectos e métodos de estudo que privilegiam quer pela sua tentativa de ‘normalizar’ o comportamento transgressivo.

Estas conceptualizações introduzem novidades para a compreensão das drogas, desde logo, ao considerarem que os seus usos e abusos não resultam directamente das dimensões farmacológicas das substâncias nem de características dos consumidores, dependendo de diversos condicionalismos, inclusive sociais, culturais, e pessoais, como os significados que lhe são outorgados e que são socialmente influenciados (Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008; Tinoco, 1999). Realçam, também, que os consumos se revestem de múltiplos significados e que têm de ser compreendidos no contexto temporal, espacial e social em que emergem (Young, 1971). Recusam, assim, explicações que o reduzem a um problema de delinquência ou de doença, encarando-o a partir da tríade substância-sujeito-meio. Deste modo, ao invés de uma postura reducionista, que olha somente para as dimensões negativas, tais abordagens admitem a existência de múltiplos tipos de utilizações e utilizadores, e consideram que o percurso do consumo é amplamente influenciado pela reacção social, que, por seu turno, é condicionada pelo pânico moral que sobre ele se foi construindo. O desvio é tido, portanto, como o produto de um processo de interacção social, e não como um atributo inerente ao comportamento, e, ao invés do foco causal e correlacional, privilegia-se a compreensão das especificidades do sujeito que usa as drogas, assim como um interesse naturalista, contextualizado, participante, descritivo e centrado nos significados que os próprios atribuem às suas acções (Agra & Fernandes, 1993; Moore, 2002).

Englobamos os contributos antropológicos nos discursos ‘alternativos’, desde logo, pela sua preocupação de partir das perspectivas dos próprios actores, mas sem descurar a análise das dimensões simbólicas das sociedades e culturas, recorrendo amplamente à comparação e ao método etnográfico. Estes ensinamentos removem o pendor problemático outorgado às drogas (Agra & Fernandes, 1993), inclusive ao mostrar que, do ponto de vista histórico, admitir-se a existência de consumos ‘não problemáticos’ não constitui grande novidade. Alertam, também, para a transversalidade do uso de várias substâncias psicoactivas ao longo da história da humanidade numa busca de estados alterados de consciência, assim como para os inúmeros significados e funcionalidades que o caracterizam, desde as mais instrumentais (e.g., auto-cuidado) às mais expressivas (e.g., práticas religiosas, prazer) (Escohotado, 1996/2004; Pallarés, 1995/1996; Ribeiro, 1995; Romaní, 2008). Outro contributo antropológico relevante prende-se com a conceptualização do consumo como fruto de um processo de aprendizagem que ao focar, entre outros, a sua perigosidade e necessidade de ponderação, potencia o seu carácter funcional e evita a sua disrupção. É, portanto, enfatizado o controlo informal, exercido tanto pela colectividade como pelos utilizadores, embora muitas vezes de forma inconsciente (Pallarés, 1995/1996; Ribeiro, 1995; Romaní, 2008).

Quanto aos ensinamentos sociológicos que ajudam a desconstruir o ‘problema da droga’ é de sublinhar, desde logo, o interaccionismo simbólico, por considerar que a sociedade é constituída por agentes sociais activos, o que exige atender ao nível micro, dos significados, símbolos e interacções (Blumer, 1969/1982). De salientar, também, o carácter significante que reconhecem ao comportamento humano e à vida social, assim como a valorização de metodologias que dão voz aos próprios actores e que permitem perceber o enquadramento situacional em que se inserem (ibidem). Neste sentido, considera-se que o consumo depende do sentido que este faz para o sujeito, dos significados que este lhe atribui e do modo como tal experiência é integrada na sua história (ibidem).

Realça-se, também, a new deviance theory, pela relevância que assaca aos modelos processuais da desviância, ao interaccionismo simbólico e à teoria da rotulagem, caracterizando o sujeito como activo, com capacidade reflexiva e responsável pelas suas escolhas, e a sociedade como fruto de uma pluralidade de valores, por integrar vários grupos com interesses distintos, que por vezes concordam e cooperam e por outras discordam e entram em conflito (Becker, 1963/1973; Young, 1971). Igualmente relevantes são as suas noções de que os consumos podem ocorrer por prazer e de que a desviância não é uma característica intrínseca ao comportamento (Becker, 1963/1973; Matza, 1969; Young, 1971). É, portanto, reconhecido o papel determinante da rotulagem, por se crer que uma conduta só é definida como desviante quando alguém, com certos valores, actua de certa forma e esta acção é rotulada como tal por grupos com valores distintos, poderosos e capazes de impor os seus valores, inclusive pelo controlo que detêm sobre mecanismos ideológicos e repressivos (Becker, 1963/1973; Young, 1971). A teoria da rotulagem afigura-se-nos igualmente central ao alertar para a possibilidade de a rotulação social actuar como uma profecia que se autocumpre, por constranger as possíveis escolhas futuras do sujeito. Isto porque o rótulo tende a reunir a atenção de terceiros no estatuto que promove e a dificultar a apreciação de outros estatutos e papéis sociais, facilitando a interiorização da ideia de incapacidade para se desvincular de tal etiqueta e da percepção de que a única opção é manter o comportamento, assim como a alteração na auto-percepção da desviância, pela sobrevalorização desta característica em detrimento de outras (Lemert, 1972, citado por Moore, 2002; Young, 1971). De acordo com a teoria da rotulagem, as imagens veiculadas sobre as drogas são distorcidas nos seus conteúdos e amplitude, em grande medida pela função amplificadora da comunicação social, promotora do pânico moral que, por seu turno, contribui para o incremento das estatísticas sobre o fenómeno (Becker, 1963/1973; Young, 1971).

No âmbito destes discursos ‘alternativos’ valorizamos particularmente as obras de Becker (1963/1973), Matza (1964, 1969) e Goffman (1963/1975), desde logo, por proporem modos alternativos aos tradicionais para analisar a conduta de indivíduos etiquetados como desviantes, tanto em termos conceptuais (ao alertar para o carácter construído da norma e do desvio), como metodológicos (pelo recurso à investigação etnográfica). Igualmente central parece-nos ser a sua perspectiva de que sujeitos normais e estigmatizados partilham valores idênticos, o que aponta para a ausência de uma ruptura abrupta entre eles, bem como de que o consumo tem de ser entendido como um processo, com fases distintas nas quais operam condicionalismos específicos (Becker, 1963/1973; Goffman, 1963/1975; Matza, 1964, 1969). Propõe, portanto, teorias processuais, que afastam preocupações causalistas e realçam as aprendizagens que o sujeito realiza na interacção com outros grupos (ibidem). Defendem, também, só haver uma carreira nas drogas quando o indivíduo progride nas várias fases do processo, realiza as aprendizagens necessárias e modifica a sua auto-imagem, interiorizando uma significação das substâncias como parte fundamental da sua vida, assim como uma identidade desviante (ibidem). Igualmente centrais parecem-nos ser os contributos de Matza (1964), ao enfatizar que o processo de se tornar desviante envolve algum determinismo e influência externa mas também a agência e capacidade de tomada de decisão dos indivíduos, e que a conduta transgressiva se reveste de alguma racionalidade, que capacita os indivíduos a adaptarem os seus valores convencionais para justificar a acção desviante e para facilitar o envolvimento na mesma.

Discursos ‘críticos’: Consumidores e outros defensores do direito ao consumo

Designamos de ‘crítico’ um discurso actual sobre as drogas que nos parece mais arrojado face ao estado da arte, tanto pelas ideias que veicula como pelos apoiantes que envolve. Trata-se, em geral, de colectividades constituídas por consumidores e não consumidores (inclusive pessoas que trabalham na área das drogas), que têm ganho algum poder e relevo social nos últimos anos, e que defendem que o consumo não é necessariamente problemático e que se inscreve no direito ao prazer, quando não acarreta prejuízos significativos (Fernandes, 2009; Stevens, 2007). Apoiam, portanto, a adopção de políticas de redução de riscos, o fim do proibicionismo, a descriminalização do consumo (sobretudo de canabinóides) e a sua regulação (ENCOD, 2010; Farr; 1990; Fernandes, 2009; Transform Drug Policy Foundation, 2009). Igualmente relevantes são os movimentos de apoio a populações indígenas, que reclamam o seu direito de liberdade religiosa, no qual enquadram o uso imemorial de certas substâncias alucinogéneas, considerando que as políticas proibicionistas o violam (Farr, 1990).

A RECONSTRUÇÃO DO FENÓMENO DA DROGA

Vários trabalhos recentes sobre as drogas, desenvolvidos quer pela comunidade científica (em especial nas áreas da psicologia e sociologia) quer por organismos oficiais (tratando-se, sobretudo, de estudos epidemiológicos), permitem reconstruir este fenómeno em moldes alternativos e mais adequados. Isto porque, desde logo, criticam a tendência generalizada de sobrevalorização dos aspectos problemáticos das drogas e de negligência das suas dimensões hedonísticas e do prazer enquanto motivo para o consumo (Agra & Fernandes, 1993; Fernandes & Carvalho, 2003; Rovira & Hidalgo, 2003; Smith & Smith, 2005; Stevens, 2007). Reconhecem, portanto, dimensões positivas nesta prática, mas não negam os riscos de todas as drogas, lícitas ou ilícitas (Carvalho, 2007; Gamella & Roldán, 1999; Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992). Globalmente, estes trabalhos sublinham a necessidade de uma compreensão holística e multidisciplinar do uso e abuso das drogas, que atenda a todos os seus condicionantes, inclusive farmacológicos, biológicos, psicológicos, socioeconómicos, culturais e relacionados com o tipo de consumo (e.g., substâncias usadas, quantidade, regularidade e modo de ingestão) (Agra & Fernandes, 1993; Figueiredo, 2002; Pallarés, 1995/1996; Torres, Lito, Sousa, & Maciel, 2008). Declinam-se, assim, concepções reducionistas, como as que atribuem os problemas com as drogas às suas propriedades farmacológicas (Gamella & Roldán, 1999; Romaní, 2008; San Julián & Valenzuela, 2009), ou as que veiculam uma ideia de escalada inevitável, tanto nas drogas usadas como no carácter problemático do consumo (Agra & Fernandes, 1993; Figueiredo, 2002; Pallarés, 1995/1996).

Tais trabalhos alertam para a existência de vários tipos de consumos e consumidores, inclusive os que não se enquadram nas tradicionais representações problemáticas (Calado, 2006; Galhardo, Cardoso, & Marques, 2006; Gourley, 2004; Hser, Longshore, & Anglin, 2007; Keene, 2001; OEDT, 2009; Pallarés, 1995/1996; Pilkington, 2006; Stevens, 2007; Taylor, 2008). Nesta lógica, os consumos costumam ser diferenciados a partir da sua regularidade (e perigosidade associada) – nomeadamente em experimentais, esporádicos, habituais, abusivos e dependentes –, embora se defenda que não há uma progressão inevitável (rejeitando-se a ideia de escalada) e que é possível permanecer num qualquer nível precoce e nunca experienciar dependência nem prejuízos significativos (Figueiredo, 2002; Pallarés, 1995/1996). Alguns estudos destacam que grande parte dos consumidores nunca desenvolve usos abusivos ou dependentes (Figueiredo, 2002; Frisher & Beckett, 2006; Keene, 2001; Pallarés, 1995/1996; Pilkington, 2006; Taylor, 2008), e que, para a sua maioria, esta prática não se mantém perenemente, caracterizando somente uma fase de experimentação ou de uso circunscrito à juventude (Hartnoll, 2002; Soellner, 2005). O fim dos consumos tende a ser associado à evolução do ciclo vital, nomeadamente a motivos laborais e familiares (Hartnoll, 2002), e o uso de cannabis emerge como o que mais costuma persistir até à idade adulta (Wadsworth, Moss, Simpson, & Smith, 2006). Além disso, vários trabalhos apontam para um número relativamente reduzido de utilizações regulares ou intensivas, que tendem a ser facilitadas por circunstâncias sociais como a oportunidade e a acessibilidade das drogas (Calafat, Fernández, Juan, & Becoña, 2005; Hartnoll, 2002; Pallarés, 1995/1996). Os usos juvenis, experimentais ou descontínuos são, também, frequentemente atribuídos à curiosidade sobre as drogas e a motivações lúdicas, sobretudo pelo prazer que proporcionam (Balsa, Farinha, Urbano, & Francisco, 2004; Becker, 1963/1973; Calafat et al., 2005; Pallarés, 1995/1996).

Portugal é o país europeu que mantém as mais baixas prevalências de consumo, excepto de heroína (IDT, 2010) e, à semelhança do que se verifica internacionalmente, são amplamente documentados padrões de policonsumo (Galhardo et al., 2006; Levy, O’Grady, Wish, & Arria, 2005; OEDT, 2009; Parker, Williams, & Aldridge, 2002).

Padrões de consumo ‘problemáticos’

‘Toxicodependente’ ou ‘junkie’ são algumas das denominações que se costuma aplicar a consumidores com uma falha na autonomia individual (Frisher & Beckett, 2006), que não se mostram capazes de controlar e gerir os consumos (Fernandes & Ribeiro, 2002; Quintas, 2006), tornando-se dependentes e experienciando prejuízos diversos (Pallarés, 1995/1996). Este padrão é tipicamente associado ao uso prolongado de heroína e ao consumo injectado, sendo outras substâncias, sobretudo cannabis e crack, relegadas para segundo plano (Fernandes & Carvalho, 2003; Keene, 2001; Pallarés, 1995/1996). O traficante é, em geral, a principal fonte de acesso às drogas (Balsa et al., 2004; Carvalho, 2007), e os consumos tendem a ocorrer em zonas urbanas degradadas e marginalizadas (Pallarés, 1995/1996).

Um relatório recente do IDT (2010) aponta para taxas de utilizações problemáticas, na população portuguesa em geral dos 15 aos 64 anos, entre 6,2-7,4 por mil habitantes, para uma maior procura de apoio formal pelos consumidores de opiáceos e para um intervalo de aproximadamente oito anos entre o início de tal consumo e o primeiro contacto com o tratamento (OEDT, 2009).

Este tipo de utilizações surge intimamente associado a recaídas (Figueiredo, 2002; Hser et al., 2007; Keene, 2001; Pallarés, 1995/1996), cuja compreensão se considera implicar a atenção a factores dos sujeitos e a outros externos, como os estímulos relacionados com as drogas (Torres et al., 2008). Os consumidores com experiências de tratamento tendem a justificar o fracasso das tentativas de deixar os consumos pela sua falta de motivação e pelo prazer que estes proporcionam, assim como a atribuir o seu sucesso à vontade pessoal e ao suporte familiar e terapêutico (Pallarés, 1995/1996; Torres et al., 2008). Além disso, usos mais intensivos ou problemáticos costumam ser associados a circunstâncias socioeconómicas desfavoráveis e a dificuldades pessoais, familiares e profissionais (Torres et al., 2008).

O consumo problemático é conceptualizado, em vários estudos, como um processo longo, que envolve várias fases, factores condicionantes e mudanças, e cujo auge se atinge com a consolidação de uma identidade e/ou de um estilo de vida em que a droga é o elemento central (Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008; Tinoco, 1999). As referidas mudanças verificam-se, entre outros, nos significados dos consumidores (sendo comum a atribuição de uma crescente centralidade às substâncias e ao papel de dependente), na sua percepção e gestão do tempo (que costumam tornarse dependentes do uso das drogas), nas suas interacções com os outros e com os próprios espaços (sendo habitual o seu progressivo estreitamento), na auto-gestão da saúde e nas suas relações laborais e condições económicas (em geral, cada vez mais deterioradas), nos relacionamentos com os sistemas de controlo formal (pois, habitualmente, aumenta a probabilidade de entrarem em contacto com sistemas terapêuticos e/ou legais) e na regularidade do consumo e quantidades usadas (que tendem a aumentar) (Pallarés, 1995/1996; Romaní, 2008).

Padrões de consumo alternativos aos ‘problemáticos’

Consumos alternativos aos ‘problemáticos’ são cada vez mais documentados, nacional e internacionalmente (Percy, 2008; Pilkington, 2006), sendo inclusive realçado o aumento da sua prevalência (Parker et al., 2002). A caracterização destes consumidores costuma realçar a sua capacidade de conciliar o uso das drogas com um estilo de vida convencional e de manter o ajustamento global, sendo frequentemente descritos como estudantes universitários ou como sujeitos inseridos no mercado de trabalho (Frone, 2006; Galhardo et al., 2006; Gourley, 2004; Parker et al., 2002; Smith & Smith, 2005). Vários trabalhos debruçam-se, ainda, sobre frequentadores de contextos de recreação nocturna, realçando a sua prevalência de consumo particularmente expressiva (Calafat et al., 2005; Deehan & Saville, 2003; OEDT, 2009; Parker et al., 2002).

Nestes padrões são comuns policonsumos, que tendem a envolver um uso regular de cannabis esporadicamente acompanhado pelo de outras substâncias, sobretudo cocaína inalada (Galhardo et al., 2006; Levy et al., 2005).

O autocontrolo dos consumidores é amplamente valorizado para a manutenção de consumos ‘não problemáticos’ (Carvalho, 2007; Kelly, 2005; Parker et al., 2002; Percy, 2008; Quintas, 2006; Rovira & Hidalgo, 2003; Whiteacre & Pepinsky, 2002), uma vez que estas regras e condutas autoimpostas, destinadas a regular várias dimensões do consumo (e.g., contextos, quantidades), promovem a minimização e gestão dos seus riscos (Cohen, 1999). Segundo alguns trabalhos, a maioria dos consumidores impõe diversos autocontrolos a esta sua prática, para a manter conciliada com as actividades convencionais, como se manifesta pelos ajustamentos que lhe vão fazendo em função da qualidade das suas experiências de consumo (Carvalho, 2007; Cohen, 1999), assim como pelos casos de remissões espontâneas (Soellner, 2005).

Igualmente valorizadas são as concepções de risco dos sujeitos, pelo seu papel central na minimização e evitamento dos potenciais prejuízos das drogas, e por orientarem as decisões sobre o consumo (Kelly, 2005; Parker et al., 2002). Em investigações recentes é comummente destacada a consciência dos utilizadores destas substâncias quanto aos riscos e danos que estas podem envolver (Deehan & Saville, 2003; Kelly, 2005; Levy et al., 2005; Parker et al., 2002; Romaní, 2008; San Julián & Valenzuela, 2009), assim como a dimensão social e cultural de tais concepções, cuja construção depende largamente de processos sociais que são condicionados pelos ambientes culturais (Gamella & Roldán, 1999; Kelly, 2005). Alguns estudos sugerem que são vários os sujeitos que, apesar de conscientes dos seus riscos, optam por usar drogas, o que aponta para a importância dos benefícios que lhes atribuem e para a probabilidade de estes serem mais valorizados do que os prejuízos antecipados (Kelly, 2005; San Julián & Valenzuela, 2009).

Para a manutenção de consumos ‘não problemáticos’ costumam ser, também, valorizados os cuidados de gestão desta prática, adoptados pelos indivíduos que, ponderando os riscos e benefícios das drogas, optam por as utilizar (Carvalho, 2007; Deehan & Saville, 2003; Fernandes & Ribeiro, 2002; Kelly, 2005; Parker et al., 2002; San Julián & Valenzuela, 2009; Whiteacre & Pepinsky, 2002). Um desses cuidados prende-se com a diferenciação das drogas que os consumidores tendem a estabelecer em função da distinta perigosidade que lhes associam e que os leva a optar pelas que consideram mais conciliáveis com a manutenção de uma vida convencional (sobretudo os canabinóides) e a rejeitar as que julgam ser mais danosas (em especial a heroína e o crack) (Calado, 2006; Carvalho, 2007; Figueiredo, 2002; Parker et al., 2002). Igualmente enfatizada é a importância de adquirir conhecimentos sobre as drogas, inclusive para desenvolver concepções de risco e para gerir estrategicamente o consumo, de modo a governar os seus potenciais perigos (Deehan & Saville, 2003; Kelly, 2005). As experiências com outros consumidores são também valorizadas, já que os sujeitos tendem a decidir sobre a experimentação destas substâncias e sobre o modo de as usar com base nos mecanismos de controlo social e nas suas aprendizagens em grupos de consumidores, onde se difundem normas que ajudam a gerir os consumos e a evitar más experiências (Becker, 1963/1973; Gourley, 2004; San Julián & Valenzuela, 2009). Salientam-se, do mesmo modo, cuidados de gestão da aquisição das drogas e a preferência, da maioria dos consumidores, de o fazer através das suas redes de interconhecimento, para tentar assegurar a sua qualidade (já que acreditam haver uma maior adulteração das substâncias quando são compradas a desconhecidos) e evitar problemas legais (pois consideram que, deste modo, se conseguem manter afastados de vendedores e locais de transacção que julgam mais propícios à ocorrência de problemas) (Carvalho, 2007; Deehan & Saville, 2003; Parker et al., 2002). Igualmente comuns são as referências a cuidados com a regularidade do consumo (Gourley, 2004; Parker et al., 2002; Pilkington, 2006), sendo enfatizada a relevância de ir interrompendo os usos regulares das substâncias quando se antecipam problemas a eles associados (Carvalho, 2007; Kelly, 2005). São também descritos cuidados referentes às quantidades usadas, realçando-se a necessidade de as moderar (Cohen, 1999; Gourley, 2004; Kelly, 2005; Parker et al., 2002) e de aprender quais as dosagens mais adequadas para o próprio (Carvalho, 2007; Figueiredo, 2002; Pilkington, 2006). As circunstâncias e os contextos do consumo são outras dimensões usualmente cuidadas pelos consumidores, que valorizam a importância de só usar as drogas (sobretudo outras além dos canabinóides) quando estão num estado psicológico favorável, acompanhados por pessoas de confiança e em locais apropriados (Calado, 2006; Carvalho, 2007; Cohen, 1999; Gourley, 2004). Espaços de recreação nocturna (Galhardo et al., 2006; OEDT, 2009; Parker et al., 2002) e residências privadas (Balsa et al., 2004) surgem, assim, como relevantes contextos de consumo. Por fim, encontram-se algumas referências a cuidados de ocultação do uso das drogas (Fernandes & Carvalho, 2003; Goffman, 1963/1975; Smith & Smith, 2005), o que ajuda a compreender a caracterização destes sujeitos como ‘populações ocultas’ (Calado, 2006).

REFLEXÕES FINAIS

Com este artigo procurou argumentar-se que o uso de substâncias psicoactivas não é um problema per si, mas uma prática transversal à história da humanidade, que assume diversas manifestações e funcionalidades. Defendemos que o consumo nem sempre foi encarado como um problema e que, da mesma forma como foi construído enquanto tal, pode ser desconstruído e reconstruído em moldes alternativos, se for encarado de um modo mais amplo, que não se detenha nas suas dimensões negativas.

Cremos, também, que o uso e o abuso de drogas dependem de vários condicionalismos, não resultando directamente das propriedades químicas das substâncias, e que a sua compreensão exige a análise do indivíduo e sua agência, da sociedade e sua estrutura, e das várias formas pelas quais se inter-influenciam. Acreditamos que um entendimento adequado implica, ainda, que o consumo seja encarado como um processo, e como um contínuo entre um pólo ‘não problemático’ e outro ‘problemático’, reconhecendo-se a multiplicidade de utilizações e utilizadores. O padrão ‘problemático’ costuma ser associado a prejuízos no ajustamento geral dos sujeitos decorrentes do consumo e, consequentemente, a mais pedidos de apoio formal. Tende, do mesmo modo, a ser relacionado com a falta de autocontrolo dos sujeitos e com situações em que as substâncias e o papel de consumidor se tornam hegemónicos, dificultando a conciliação do consumo com as actividades normativas. No extremo ‘não problemático’ encontram-se consumidores conscientes dos riscos das drogas e capazes de conciliar o seu uso com a preservação de um estilo de vida convencional, sobretudo pela adopção de cuidados de gestão dos consumos (ainda que muitas vezes de forma não consciente nem reflexiva).

Para terminar, interessa ressalvar que, na nossa opinião, o extremo que apelidámos de ‘não problemático’ deve ser entendido, mais precisamente, como ‘praticamente não problemático’, por crermos que o uso de qualquer substância psicoactiva, legal ou ilegal, acarreta sempre algum prejuízo, pelo menos para a saúde dos consumidores. Consideramos, ainda, que se se avançar ao longo do contínuo dos consumos proposto neste artigo, desde o pólo ‘praticamente não problemático’ para o ‘problemático’, vão aumentando os danos desta prática.

 

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Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Olga Sousa Cruz, ISMAI, Av. Carlos Oliveira Campos, Castelo da Maia, 4475-690 Avioso, S. Pedro. E-mail: D011379@ismai.pt / olgasouzacruz@gmail.com

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