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Análise Psicológica

Print version ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.30 no.1-2 Lisboa Jan. 2012

 

Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia 1

Raquel Matos* e Carla Machado**

*Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica;

**Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Correspondência

 

RESUMO

Neste artigo, são analisadas as perspectivas feministas na criminologia, em particular, os discursos sobre criminalidade feminina e construção do género. Parte-se de uma visão ampla sobre feminismos e construção de conhecimento e apresenta-se uma revisão histórica da emergência e da consolidação das perspectivas feministas na criminologia. Discute-se em particular o argumento feminista de que a construção social do género pauta os percursos de vida das mulheres que transgridem, e se reflecte na resposta formal e informal a essas transgressões. São analisadas as principais críticas tecidas pelas autoras feministas ao que designam de ‘discursos tradicionais’ sobre mulher e crime e as propostas que apresentam de reconstrução desses discursos.

Palavras-chave: Criminalidade feminina, Género, Perspectivas feministas.

 

ABSTRACT

In this paper, we analyze the feminist perspectives in criminology, particularly, the discourses on women, crime and gender. It starts with a broad view of the feminist contributes to the construction of knowledge and then a historical review of the emergence and consolidation of feminist perspectives in criminology is presented. It discusses in particular the feminist argument that the social construction of gender has an impact on the life trajectories of women who commit crimes, and is reflected in the formal and informal response to such transgressions. Finally, it analyzes the main criticisms of feminist authors towards the traditional criminology discourses about women and crime as well as the feminist proposals for the reconstruction of such discourses.

Key-words: Feminist perspectives, Gender, Women and crime.

 

FEMINISMO(S) E CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO

A emergência de estudos científicos que conceptualizam a variável género e lhe conferem um papel de destaque, quer na criminologia quer noutras áreas de conhecimento, é indissociável do movimento feminista. Após uma primeira vaga, cujo início é geralmente situado na segunda década do século XX, o feminismo ressurge nos anos sessenta associado a movimentos sociopolíticos de libertação (Messerschmidt, 1995)2. É nesse contexto que jovens mulheres se indignam ao perceber que os seus companheiros de ‘luta libertária’ as vêm apenas como assessoras, quer de trabalho quer de prazer sexual. Essa indignação, associada às ideias de Simone de Beauvoir, que analisa no seu livro Le Deuxième Sexe (1952) o tratamento generalizado da Mulher como sendo o Outro, servem de inspiração para o (re)florescer do movimento feminista (Rafter & Heidensohn, 1995).

Perante a opressão exercida sobre a mulher na sociedade e a negligência das questões de género nas mais diversas áreas de conhecimento, o feminismo rapidamente se torna um movimento com fortes preocupações epistemológicas e políticas que se propõe, de forma genérica, terminar com a hegemonia masculina. Progressivamente, o significado de ‘feminismo’ começa a expandir-se, deixando de corresponder apenas à luta das mulheres pela igualdade. Como explicam Rafter e Heidensohn, “aquilo que começou por ser um movimento igualitário de ‘libertação da mulher’ expandiu para a inclusão do reconhecimento do género como elemento básico das estruturas sociais por todo o mundo” (1995, p. 4).

O movimento com preocupações epistemológicas e políticas acaba por dar lugar a uma multiplicidade de perspectivas que, se por um lado apresentam ideias centrais comuns, cujo exemplo fulcral é a postura crítica, de marcada oposição à subjugação das mulheres e outros menos poderosos nas sociedades patriarcais, por outro lado se posicionam de forma divergente relativamente a questões particulares, como a própria conceptualização da opressão da mulher ou a posição epistemológica assumida. Não será por acaso que nas inúmeras referências da literatura ao feminismo predominam designações como perspectivas feministas ou feminismos em detrimento do termo feminismo.

PERSPECTIVAS FEMINISTAS NA CRIMINOLOGIA

As perspectivas feministas na criminologia emergem da contestação face à ausência da mulher nos estudos da linha tradicional e face ao claro reducionismo biológico e psicológico patente nas primeiras tentativas de estudar a mulher que comete crimes. Ainda numa fase em que o termo ‘feminismo’ está ausente dos textos da criminologia, diversas autoras (e.g., Heidensohn, 1968, Klein, 1976, citados por Heidensohn, 1985) tocam já os pontos-chave da crítica feminista à disciplina, tecendo duras críticas aos erros fundamentais cometidos em relação à mulher. Por um lado, a sua quase ausência dos estudos criminológicos, onde é praticamente invisível como agressora, como vítima ou em qualquer outro tipo de relação com o sistema de justiça criminal. Por outro lado, a sua presença desajustada nos estudos da criminologia, através da distorção das suas experiências transgressivas de modo a enquadrá-la nos estereótipos dominantes.

É na segunda metade da década de setenta do século XX que, partindo das duas críticas fundamentais anteriormente descritas, se assiste a uma emergência gradual das abordagens feministas na criminologia. Progressivamente, cria-se na disciplina espaço para a realização de estudos que não só consideram a variável género como a conceptualizam, na perspectiva feminista, de forma mais adequada.

EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO DAS ABORDAGENS FEMINISTAS NA CRIMINOLOGIA

Segundo Heidensohn (1997), a abordagem à emergência dos estudos de género na criminologia implica recuar na história da disciplina até ao período da “pré-história do género e crime” (p. 762). Este período corresponde aos momentos em que se realizaram por um lado “ensaios vitorianos sobre a vulnerabilidade da mulher para cometer crimes face à sua posição social e moral” (idem) e, por outro lado, ensaios teóricos marcados pelo reducionismo psicológico e biológico, bem ilustrado nos trabalhos positivistas de Lombroso e Ferrero.

Após o período pré-histórico dos estudos de género na criminologia, o seu desenvolvimento moderno tem início nos anos sessenta do século XX como um dos produtos da segunda vaga feminista. É nessa altura que surgem os estudos feministas que Heidensohn (1997) designa por iniciais ou pioneiros e que consistem essencialmente na crítica aos objectos e métodos da criminologia tradicional ou ‘malestream3 e na definição de um programa de trabalhos para os estudos de género na disciplina.

As incursões feministas são facilitadas por mudanças fundamentais na criminologia, correspondentes à emergência do que podemos designar de ‘discursos de transição’ (Matos, 2008). Se a criminologia designada de tradicional, muito centrada na etiologia do crime e nos mecanismos de controlo, sempre marginalizou a teoria e a investigação feministas, assiste-se, a partir dos anos sessenta, a mudanças paradigmáticas correspondentes à emergência de novas perspectivas criminológicas, mais receptivas aos trabalhos feministas e suas influências. Trata-se de um “conjunto de movimentos teóricos críticos em relação à criminologia positivista”, incluídos na designação lata de criminologia crítica (Machado, 2000, p. 121). Cria-se assim um cenário mais favorável às incursões feministas na criminologia, apesar de, segundo Gelsthorpe (1997), só no contexto da criminologia dos anos noventa, mais aberto e diversificado do que o contexto dos anos setenta, se tornarem possíveis ligações mais sérias da criminologia ao feminismo.

Criado um contexto mais favorável para a emergência das perspectivas feministas no âmbito da criminologia, as suas contestações, interesses e movimentos iniciais acontecem sobretudo relativamente à vitimação, em particular sexual, da mulher4. E é na área da vitimação que as abordagens feministas alcançam os maiores feitos na criminologia, com um reconhecimento das necessidades das vítimas (ou dos menos poderosos), impensável na criminologia tradicional.

Importa, contudo, referir que na fase pioneira dos estudos feministas sobre o crime, algumas abordagens se centram já na mulher transgressora, na tentativa de desconstruir o argumento prevalecente na criminologia tradicional de que as mulheres, absoluta e incontestavelmente, cometem menos crimes do que os homens. A preocupação feminista de desconstrução deste argumento deve-se ao facto de se considerar que ele está na base da negligência em relação às mulheres na criminologia, um dos aspectos mais criticados pelas feministas nos estudos convencionais sobre o crime. Surgem assim diversas formas de chamada de atenção para os crimes cometidos pelas mulheres, com base no argumento de que a criminalidade feminina estaria a aumentar muito mais rapidamente do que a masculina. Nos anos setenta do século XX, os meios de comunicação social apresentam inúmeras histórias sobre uma nova realidade social, a ‘new female criminal’, associando a criminalidade feminina aos esforços para melhorar a posição política e económica da mulher. Presumivelmente inspirada pelo movimento feminista, a ofensora feminina procuraria igualdade (social, económica e política) no ‘submundo do crime’, tal como as mulheres mais convencionais perseguiriam os seus direitos em campos mais aceitáveis (Chesney-Lind, 1997)5. Ao longo da década de setenta, figuras associadas às instâncias formais de controlo reforçam a ideia de que o movimento de emancipação da mulher teria provocado uma onda de criminalidade feminina nunca antes vista e que, ao pretender emergir em campos dominados anteriormente pelo género masculino, as mulheres também se aproximariam dos homens na área da criminalidade. A relação estabelecida entre os movimentos de libertação da mulher e o aumento da criminalidade feminina é igualmente explorada por académicos, incluindo autoras feministas. Exemplos incontornáveis são os trabalhos de Freda Adler e Rita Simon, publicados em 1975, que exploram, numa perspectiva feminista, a ideia do efeito criminógeno da libertação da mulher. Ao relançarem este debate controverso, ambas Adler e Simon acabam por ser contestadas pelas próprias feministas, pelo risco que as suas ideias constituíam para o compromisso político do movimento.

As contribuições iniciais do feminismo na criminologia abrem caminho para uma explosão de estudos posteriores, numa fase que Heidensohn refere ser “de consolidação” (1997, p. 774). Após a publicação, em 1976, da obra de Carol Smart “Women, crime and criminology: A feminist critique”6, ao longo de vinte e cinco anos são realizadas inúmeras investigações em diversas áreas de intersecção entre género e crime, alargando o foco da mulher vítima para a inclusão da mulher que comete crimes, e também com a realização de estudos sobre a participação da mulher – como agente activo – nas instâncias formais de controlo. Estes novos estudos sobre a mulher na criminologia, realizados nas décadas de oitenta e noventa do século XX, podem ser categorizados em dois grandes tópicos: estudos sobre mulher e crime e estudos sobre mulher e justiça (Heidensohn, 1997). Os primeiros dizem respeito à investigação realizada sobre o género e a actividade criminal apresentando a perspectiva das mulheres sobre o seu envolvimento, quer no crime de um modo geral7 (e.g, Carlen, 1988), quer em formas específicas de desviância8: no tráfico e consumos de drogas (e.g., Mahler, 1997), na prática de violência em gangs (e.g., Campbell, 1984, Chesney-Lind, 1993, citados por Miller, 2001), ou na prostituição (e.g., Phoenix, 2000). Surgem também, nesta fase, estudos sobre criminalidade mais violenta por parte das mulheres, particularmente sobre terrorismo (e.g., MacDonald, 1998) ou sobre homicídio (e.g., Wilczynski, 1997). O outro tópico de investigação – mulher e justiça – refere-se à experiência da mulher nos sistemas de justiça criminal e penal. Estes estudos incidem sobretudo no modo como a mulher que comete crimes é percepcionada e tratada pelos agentes da justiça (e.g., Horn & Hollin, 1997), na experiência feminina no sistema prisional (e.g., Carlen, 1983, 1987) e, embora de forma menos representativa, na mulher enquanto agente de controlo social (e.g., Holdaway & Parker, 1998).

Os estudos feministas marcam também a criminologia a nível metodológico. Apesar de, no seu âmbito, se utilizarem múltiplas metodologias de investigação, privilegiam-se aquelas que possibilitam às participantes dar voz às suas experiências, sem determinar a priori o significado dessas experiências ou a forma de as categorizar para posterior análise (McDermott, 2002). Nesse sentido, nos estudos enquadrados pelas perspectivas feministas utilizam-se sobretudo as etnometodologias, com destaque para a observação e para as entrevistas em profundidade enquanto estratégias de recolha de dados. Exemplos incontornáveis são os trabalhos de Pat Carlen, em que não só é dada voz a mulheres que cometem crimes, como é estabelecida uma relação não hierárquica entre elas e a investigadora, por vezes co-autoras de trabalhos científicos (e.g., Carlen, Hicks, O’Dwyer, Christina, & Tchaikovsky, 1985). A questão central reclamada pelas feministas relativamente aos métodos da criminologia consiste na focalização nas experiências das mulheres, permitindo a sua visibilidade. As feministas propõem ainda que, no âmbito da criminologia, os investigadores sejam mais reflexivos e questionem mais as bases epistemológicas do conhecimento (Cain, 1990/1996).

DISCURSOS FEMINISTAS SOBRE CRIMINALIDADE FEMININA

FEMINISMOS E DESCONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER E O CRIME

Nos discursos tradicionais da criminologia, a mulher foi genericamente ignorada ou analisada com base nos estereótipos de género inerentes ao discurso social dominante. Especificamente no caso da mulher ofensora, as feministas têm criticado a conceptualização da criminalidade feminina com base, por exemplo, em factores biológicos ou em estereótipos de género (Brown, 1998). Diversas características que nos discursos convencionais são atribuídas à mulher que transgride (e.g., irracionalidade) e aos seus crimes (e.g., especificidade) têm sido criticadas pelas feministas, que propõem a desconstrução e reconstrução desses discursos. Analisemos algumas dessas características.

DUPLA DESVIÂNCIA

A mulher que comete crimes tem sido considerada duplamente desviante, por transgredir simultaneamente a lei e os papéis de género convencionais. Como refere Cunha (1994), a dupla desviância atribuída às mulheres deve-se ao facto de “a transgressão da legalidade que as conduziu à prisão ser de uma forma ou de outra concomitante com a negação das normas que definem a conduta feminina apropriada” (p. 24). Também Chesney-Lind (1997), numa revisão histórica sobre a mulher ofensora e o sistema de justiça norte-americano, revela que inicialmente as mulheres detidas eram consideradas mais ‘perversas’ do que os homens, por agirem em contradição com as expectativas sociais de género. A essas detenções estaria subjacente o princípio de que a mulher que transgride deve ser detida mais por necessitar de formação moral e protecção do que por constituir risco público (Rafter, 1990, citado por Chesney-Lind, 1997). Associadas a papéis domésticos e construídas simultânea e paradoxalmente como dependentes e responsáveis pelo seu ambiente familiar, as mulheres que cometem crimes tendem por um lado a ser protegidas mas, por outro lado, a ser mais punidas pelo sistema legal (Heidensohn, 1997). Subjacente à construção dupla da mulher desviante estará uma “visão dicotómica do feminino”, constituída por dois pólos: o da mulher “recatada, casta, doméstica e maternal” e o da mulher “frequentadora da esfera pública, devassa, descurando as responsabilidades familiares e domésticas” (Cunha, 1994, p. 24). Esta concepção dualista do género feminino é ilustrada pela descrição que Manuela Ivone Cunha faz do contexto da reclusão feminina no Estado Novo: “se por um lado as exigências que regulam a sua conduta o configuram moralmente superior ao [género] masculino, as mulheres tornam-se, uma vez caídas no mundo desviante, quase irredimíveis” (idem).

As autoras feministas são particularmente críticas face à construção de uma mulher duplamente desviante, chamando a atenção para as suas implicações na experiência feminina no sistema de justiça criminal. Ao serem consideradas e tratadas como duplamente desviantes, as mulheres acabam por ser também duplamente punidas e por sofrer particularmente pelo estigma associado à desviância (Heidensohn, 1985). As implicações da concepção de mulher duplamente desviante devem ser consideradas em duas vertentes fundamentais: por um lado, é socialmente menos esperado que uma mulher cometa crimes, o que poderá ter como consequência a maior punição de uma mulher que comete o mesmo tipo de crime que um homem. Por outro lado, se uma mulher transgride a lei, mas assegura os papéis de género que lhe são convencionalmente exigidos, como a maternidade, pode ser menos punida do que uma mulher que não o faça. Os estudos da linha feminista têm confirmado estas implicações dos estereótipos de género no tratamento da mulher pelo sistema legal, mostrando que a adesão das mulheres aos papéis familiares convencionais é crucial na sua experiência no sistema judicial (e.g., Carlen, 1983). Especificamente em relação à maternidade, um dos papéis fundamentais exigidos socialmente à mulher, estudos feministas mostram que a punição tende a ser maior quando a mulher que transgride a lei é percebida como má mãe (e.g., Carlen, 1983). Como argumenta Heidensohn, as mulheres podem ser tratadas pelo sistema de justiça criminal de forma mais dura por serem “mulheres desviantes que são desviantes como mulheres” (1987, p. 20).

ESPECIFICIDADES DOS ‘CRIMES FEMININOS’

Nas abordagens da criminologia tradicional, a criminalidade feminina tem sido reduzida a tipos específicos de crime, com base em estereótipos dominantes. A caracterização estereotipada dos crimes cometidos pelas mulheres contrasta assim com uma criminalidade masculina considerada não apenas mais frequente e violenta mas também muito mais diversificada. Este pressuposto tem levado a que os estudos tradicionais sobre a mulher foquem apenas determinados tipos de crime, cujas especificidades são associadas à figura feminina. Por exemplo Pollak, argumentando sobre uma significativa criminalidade feminina escondida, atribui à mulher sobretudo crimes como o aborto ilegal, os furtos em lojas, os furtos no domicílio por empregadas domésticas ou a prostituição (1961, citado por Heidensohn, 1985). Subjacentes a esta ideia da especificidade dos crimes cometidos pelas mulheres estão os argumentos das teorias positivistas da criminologia, que enfatizam os determinantes biológicos do comportamento feminino e os estereótipos associados ao género. A associação da mulher a tipos específicos de crimes contribui para a manutenção dos discursos sobre o carácter individual da transgressão feminina, negando a sua envolvente social.

Este argumento favorável à existência de uma ‘criminalidade tipicamente feminina’, delimitada de forma clara nos tipos de crime e motivações para a sua ocorrência, tem sido criticado pelas autoras feministas. Podemos referir, por exemplo, Carol Smart, que destaca a distorção no estudo da criminalidade feminina desde que lançou a primeira crítica à criminologia. Na sua opinião, essa distorção resulta da visão estereotipada da mulher e da rejeição de factores como a exclusão socioeconómica na análise do desvio feminino, que tende a ser atribuído a factores de ordem individual e não social (Smart, 1990/1996). A perspectiva distorcida sobre a suposta criminalidade ‘tipicamente feminina’ acarreta implicações negativas para a mulher, nomeadamente na forma como esta é tratada nas diversas instâncias formais de controlo quando comete crimes. As autoras feministas descrevem com preocupação a forma como a visão estereotipada da mulher desviante conduz a práticas de tratamento inadequadas no sistema de justiça criminal, reforçadoras de comportamentos estereotipados, principalmente nas jovens reclusas (e.g., Carlen, 1983, 1987).

O argumento da especificidade da criminalidade feminina tem sido desconstruído com base em estudos que permitem concluir acerca da heterogeneidade nas formas de transgressão da lei por parte da mulher (e.g., Matos, 2008) e estudos que mostram o envolvimento das mulheres em actividades desviantes tradicionalmente associadas aos homens, como por exemplo actos terroristas (e.g., Iles, 1985) ou violência em gangs (e.g., Campbell, 1984, citado por Heidensohn, 1987). Sugere-se, nestas abordagens, que as diferenças entre homens e mulheres residem essencialmente na frequência e severidade e não tanto no tipo de crimes cometidos. Autoras feministas têm também argumentado que, se as estatísticas mostram que as mulheres tendem menos a reincidir e a cometer crimes considerados graves ou violentos, é mais correcto atribuir essas diferenças a uma estrutura diferencial de oportunidades (com a restrição no acesso da mulher a patamares hierárquicos superiores), a diferentes formas de socialização e a um controlo social genderizado, do que a características inatas do(a) ofensor(a) (Heidensohn, 1987).

IRRACIONALIDADE E HETERODETERMINAÇÃO

A construção de uma mulher transgressora que não escolhe racionalmente cometer crimes surge nos discursos tradicionais da criminologia assente em duas ideias fundamentais: a irracionalidade da mulher que comete crimes, inerente às suas características bio-psicológicas, e a ausência de autodeterminação na criminalidade feminina, associada a uma suposta coacção sobre a mulher para a desviância.

Segundo as autoras feministas, a mulher que comete crimes tem sido representada e tratada como “instável e irracional” nas diversas abordagens da criminologia tradicional, que justificam a criminalidade feminina pela própria natureza biológica da mulher (Heidensohn, 1987). Relembremos as primeiras abordagens positivistas, com a proposta da mulher criminal atávica cuja natureza biológica justifica por si só os crimes cometidos (e.g., Lombroso & Ferrero, 1895/1996), e abordagens mais recentes, igualmente justificativas do crime das mulheres com base em argumentos biológicos, como por exemplo os efeitos da menstruação (e.g., Dalton, 1980, citado por Heidensohn, 1997). Estas tentativas de explicação da desviância feminina têm em comum a ideia da irracionalidade, excluindo qualquer hipótese de escolha racional pelo desvio por parte da mulher. Frequentemente, estas abordagens resultam num paradoxo, evidente quando, por um lado se justifica o desvio na mulher com base em características biológicas ou psicológicas que lhe são intrínsecas, mas, por outro lado, se considera pouco feminina a mulher que comete crimes. As abordagens centradas na patologização da criminalidade feminina, que excluem o desvio na mulher na ausência de patologia, escapam a este paradoxo mas não deixam de ser um exemplo de discurso constitutivo da mulher que não comete crimes de forma racional.

O argumento da heterodeterminação do comportamento criminal feminino tem também sido central nos discursos convencionais sobre a mulher ofensora. Considera-se nesta perspectiva que a mulher comete crimes não por escolha sua, mas coagida por outras figuras, sobretudo masculinas, que exercem poder sobre si. Este discurso tem emergido particularmente em relação aos crimes sexuais, através do argumento de que a mulher tende a cometê-los com um parceiro e por influência dele (cf., Motz, 2001); relativamente ao tráfico e consumos de drogas, através da negação de qualquer agencialidade das mulheres (cf., Maher, 1997); e também no caso da prostituição, através do argumento de que as mulheres são coagidas por figuras masculinas que exercem violência sobre elas (cf., Phoenix, 2000).

Face aos discursos sobre a mulher que comete crimes de forma irracional e heterodeterminada, as autoras feministas têm sido particularmente críticas, insistindo na importância de entender a desviância feminina como um fenómeno social e não individual. A sua preocupação estende-se até às implicações que esta concepção de desvio feminino tem no modo como a mulher que transgride a lei tende a ser tratada no sistema de justiça. A postura de Smart a este respeito é evidente, quando refere que os responsáveis pelas políticas criminais, “tal como muitos criminologistas, percebem a criminalidade feminina como um comportamento irracional, irresponsável e não intencional, como um desajustamento individual a uma sociedade consensual e bem-ordenada” (1977, citado por Heidensohn, 1985, p. 151). Outras autoras criticam também as teorias tradicionais por restringirem a compreensão da criminalidade feminina a aspectos biológicos e psicológicos, ignorando a realidade económica, social e política das mulheres que cometem crimes (e.g., Barcinsky, 2005). As feministas procuram então desconstruir os discursos da irracionalidade da desviância feminina através da exploração de factores de ordem social, como por exemplo a marginalização social e económica das mulheres, o poder patriarcal e os dispositivos informais de controlo do comportamento feminino.

FEMINISMOS E RECONSTRUÇÃO DOS DISCURSOS SOBRE A MULHER E O CRIME

Para além da crítica e desconstrução dos discursos tradicionais sobre a criminalidade feminina, as abordagens feministas na criminologia propõem a sua reconstrução através de discursos que têm origem em práticas metodológicas e posições epistemológicas distintas. Os novos discursos emergem a partir de estudos em que “as mulheres encontraram a sua própria voz, ou observadores apresentaram as perspectivas de mulheres que assassinaram os maridos, que se prostituem, que são membros de gangs violentos, que consomem cocaína ou que se envolvem em formas graves de criminalidade” (Heidensohn, 1997, p. 776). Trata-se de abordagens empíricas que, como referimos anteriormente, conferem à variável género um estatuto nuclear, e procuram dar à mulher que comete crimes um protagonismo impensável nos estudos da linha tradicional da criminologia. Para além das questões de género serem nucleares, outras variáveis como a classe ou a etnia são também consideradas neste tipo de abordagem (e.g., Mack & Leiber, 2005; Worcester, 2002).

Quanto às metodologias, tendo por objecto os processos de construção de identidades de género, nestes estudos assume um papel relevante a análise dos discursos construídos pelas mulheres transgressoras, olhando para o modo como os discursos dominantes são utilizados por elas para se auto-identificarem. Para tal, recorre-se com frequência às entrevistas em profundidade, e realizam-se observações participantes. Por vezes os trabalhos desenvolvidos combinam as observações e as entrevistas em profundidade com a análise de dados provenientes de outras fontes (e.g., documentos jurídicos). Importa ainda ressalvar que também se recorre à complementaridade entre dados recolhidos na comunidade e dados recolhidos em meio institucional. Alguns estudos, por exemplo sobre tráfico e consumos de drogas, incluem simultaneamente amostras de mulheres que estão na comunidade e institucionalizadas (e.g., Sommers & Baskin, 1997). Outra questão pertinente diz respeito ao facto de a esmagadora maioria das abordagens sobre criminalidade feminina e construção da identidade se centrarem em amostras reduzidas. Em síntese, embora as metodologias utilizadas sejam diversas, a maioria dos estudos mantém características essenciais comuns, das quais destacamos a ênfase nos discursos construídos, sobretudo pelas mulheres que transgridem, a componente etnográfica e a utilização de amostras pequenas.

(RE)CONTEXTUALIZAÇÃO DA CRIMINALIDADE FEMININA

Os diversos estudos enquadrados pelas perspectivas feministas possibilitam a recontextuali zação da criminalidade feminina nos discursos da criminologia. Percebe-se, desde logo, que os crimes cometidos por mulheres se relacionam na maioria das vezes com tráfico ou consumos de drogas (e.g., Almeda, 2003), e que estas mulheres, independentemente da idade, tendem a apresentar trajectórias de vida marcadas pela reclusão ou por outro tipo de institucionalizações (e.g., Carlen, 1987; Maher, 1997). Os contextos de origem das mulheres estudadas tendem a caracterizar-se por um nível socioeconómico desfavorecido e elas tendem a apresentar um nível reduzido de escolaridade (e.g., Maher, 1997). Outro dado emergente neste tipo de estudos diz respeito às diversas mudanças que, com frequência, ocorrem na estrutura familiar das mulheres transgressoras. Estas mudanças resultam, por exemplo, de saídas de casa por parte de prestadores de cuidados, ou de outro tipo de perdas de figuras significativas (e.g., Batchelor, 2005). Nestas abordagens constatam-se com frequência padrões de violência nos contextos familiares de onde as mulheres provêm, sendo comuns as histórias prévias de abuso, directo ou indirecto (e.g., Batchelor, 2005; Maher, 1997). Finalmente, os estudos revelam o frequente envolvimento criminal de familiares das mulheres desviantes, que apresentam também diversas ocorrências jurídicas e penais (e.g., Cunha, 2002; Maher, 1997; Matos, 2008; Matos & Machado, 2007).

(RE)SIGNIFICAÇÕES DA CRIMINALIDADE FEMININA

Não obstante a pertinência da caracterização anterior, as asserções sobre transgressão feminina e construção de identidades de género, emergentes da análise de discursos de mulheres que cometem crimes, constituem o grande contributo dos estudos de inspiração feminista para a reconstrução dos discursos sobre trangsressão feminina. Estas asserções emergem das significações que as protagonistas do crime lhes atribuem quando constroem discursivamente o seu próprio desvio.

Constrangimentos de género na transgressão feminina

Quando as mulheres dão significado às suas experiências transgressivas, emerge um significado comum que diz respeito a constrangimentos associados ao género feminino (e.g., Burman, Brown, & Batchelor, 2003). As circunstâncias genderizadas, que na perspectiva destas mulheres constrangem os seus percursos, actuam em diferentes contextos de vida. Dificuldades a nível laboral, de conciliação entre vida familiar e laboral, ou diversas formas de vitimação no âmbito de relações desiguais em termos de poder, são exemplos de circunstâncias que as mulheres associam simultaneamente à sua condição feminina e ao seu envolvimento no crime (e.g., Almeda, 2003; Burman, Brown, & Batchelor, 2003; Carlen, 1987). Estudos recentes realizados em contexto português revelam que há constrangimentos de género ligados à criminalidade feminina, mas na perspectiva de apenas algumas mulheres. Por exemplo, um estudo sobre trajectórias de jovens reclusas revela que, de entre quatro significações do crime distintas, em apenas uma delas as jovens associam os crimes que cometem ao facto de serem mulheres (Matos, 2008).

Racionalidade na opção pelo crime

Contrastando com as teses da irracionalidade, estudos com o novo enquadramento reclamado pelas feministas vêm chamar a atenção para o facto de, as mulheres poderem cometer crimes intencional e racionalmente. Na base das escolhas racionais da mulher pela desviância estarão constrangimentos quer a nível económico, quer a nível da complexa interacção entre padrões de dinâmica familiar, estruturas sociais patriarcais e factores culturais. Como exemplo podemos referir os estudos de Pat Carlen, no Reino Unido, que apontam no sentido de as mulheres, independentemente dos vários constrangimentos com que se deparam nos seus percursos de vida, optarem racionalmente e após ponderação pela via do crime (e.g., Carlen, 1983, 1987; Carlen et al., 1985). A escolha racional da mulher transgressora tem também sido evidenciada em estudos que se centram em tipos específicos de desviância, como tráfico e consumos de drogas (e.g., Maher, 1997), prostituição (e.g., Oliveira, 2002; Phoenix, 2001) e crimes violentos (e.g., Batchelor, 2005), ou em estudos sobre jovens reclusas (e.g., Matos, 2008). A racionalidade da criminalidade feminina assentará na ideia de que a mulher escolhe a via do crime de entre outras opções que se lhe afiguram menos razoáveis.

Em termos de perspectivação moral sobre o crime e o desvio e de auto-apresentação das mulheres, os discursos dividem-se entre o das mulheres que referem estar comprometidas com actividades desviantes, assumindo uma identidade criminal (e.g., Batchelor, 2005; Carlen et al., 1985) e o discurso da condenação moral do crime, que as mulheres asseguram cometer apenas por não haver outras opções possíveis (e.g., Almeda, 2003; Carlen, 1987, 1988). De assinalar que, situações específicas estarão na base da emergência de discursos particulares sobre o crime. Por exemplo, quando os crimes que as mulheres cometem têm como vítima um perpetrador de abuso, o significado associado ao crime é de justiça e de não arrependimento. Do ponto de vista das mulheres, através desse tipo de actos criminais adquirem o respeito e o controlo de que foram até aí privadas (e.g., Batchelor, 2005).

Globalmente, podemos considerar que os discursos emergentes em abordagens recentes à transgressão feminina, de enquadramento feminista, revelam racionalidade das mulheres que cometem crimes. Os seus discursos contrastam, contudo, com as narrativas tradicionais que ainda prevalecem sobre o fenómeno e também com a resposta típica ao desvio feminino. Como sugere Pat Carlen (2002), a resposta à transgressão feminina parece continuar a situar o fenómeno na irracionalidade da mulher, mais do que nas circunstâncias sociais que a rodeiam, não considerando que a mulher pode actuar de forma racional e activa face ao enquadramento social do seu percurso de vida, que lhe é desfavorável.

Entre a vitimação e o ‘empreendedorismo’

Finalmente, um outro argumento das abordagens feministas que contribui para a reconstrução dos discursos sobre a criminalidade feminina, diz respeito à apresentação das mulheres como empreendedoras ou como vítimas no desempenho de actividades criminais.

Comecemos pela vitimação, que tem sido um conceito fulcral nos discursos feministas sobre a mulher transgressora, muitas vezes construída como uma vítima que necessita de apoio e protecção. O discurso da vitimação acaba por ser amplamente utilizado nas perspectivas feministas, através da conceptualização do desvio da mulher como, pelo menos em parte, resultado de experiências prévias de vitimação (e.g., Carlen, 1983; Chesney-Lind, 1997), e dos sentimentos negativos que delas resultam (e.g., Batchelor, 2005). Nas perspectivas feministas, a construção discursiva da ‘mulher ofensora vítima’ é também sustentada por dados empíricos que sugerem que a maioria das mulheres a cumprir sanções penais, sobretudo por crimes cometidos na esfera doméstica, são, também elas, vítimas de abuso (e.g., Henning, Jones & Holdford, 2003; Swan & Snow, 2002). Estes argumentos são, no entanto, alvo de críticas e objecto de debate dentro do próprio movimento feminista. Snider (2003), ao estabelecer uma relação entre a conceptualização da desviância feminina e o contexto da punição da mulher desviante, conclui que o discurso da vitimação prévia tem um efeito triplo: patologiza, individualiza e retira poder à mulher. Também outras autoras criticam o discurso da transgressora vítima por este contribuir para a ideia, próxima das perspectivas positivistas, de que as mulheres que cometem crimes são de algum modo bizarras ou ‘anormais’ (e.g., Batchelor, 2005). Através desse discurso nega-se qualquer tipo de iniciativa e escolha por parte das mulheres que cometem crimes.

No que respeita a conceptualização da mulher como empreendedora na actividade criminal, após as primeiras propostas de Freda Adler e Rita Simon, em 1975, e de um renascido interesse pela ‘new female criminal’ nos anos noventa do século XX, surge posteriormente, entre as propostas feministas, um novo olhar para a mulher, que passa a ter mais poder e capacidade para autonomamente escolher a via do crime entre outras alternativas possíveis. Esta é uma mulher resistente, com capacidade para contornar, particularmente através do crime as adversidades com que se depara. Segundo Chesney-Lind (1997) estamos perante uma nova versão da ‘hipótese da emancipação da mulher’, específica dos “guetos desindustrializados dos anos 90”, em que não é a etnia ou o género mas sim a posição socioeconómica que conduz a mulher a alternativas que passam pelo crime. Na sua opinião, a desindustrialização contribui para a ‘desgenderização’ das relações e torna as mulheres mais capazes de cometer crimes violentos, tradicionalmente associados aos homens (Chesney-Lind, 1997). Também para outros autores, são mudanças sociais que permitem que as mulheres tenham oportunidades semelhantes às dos seus pares masculinos para se envolverem em determinados tipos de crime (e.g., Baskin et al., 1993, citado por Chesney-Lind, 1997). Ainda em relação à tese do empreendedorismo, a transgressão feminina é por vezes construída pela mulher como um desafio aos papéis de género tradicionais, através da procura de poder, violência e transgressão, normalmente considerados desajustados à vivência feminina (e.g., Carlen et al., 1985).

Considerando tipos específicos de crime, e começando pelo tráfico de droga, que representa uma grande fatia dos crimes que conduzem as mulheres às prisões portuguesas, sugere-se que mudanças na própria dinâmica do crime facilitam a maior abertura à participação das mulheres (e.g., Maher, 1997). Para além do tráfico, abordagens a outros crimes específicos sustentam a ideia do empreendedorismo da mulher na actividade criminal. Sobre o envolvimento em gangs tem sido referida a inadequação da representação típica da mulher que se envolve em actos de violência como inadaptada ou maltratada. Efectivamente, dados recentes reforçam a ideia da racionalidade e da iniciativa subjacente ao envolvimento das mulheres em gangs, que “constroem e negoceiam a sua vida diária” (Miller, 2001, p. 2). Estudos sobre transgressoras mais jovens, têm revelado que estas rejeitam o rótulo de vítimas, representando-se como pessoas que se apropriam das normas e valores sub-culturais para, através da violência, adquirirem respeito (e.g., Batchelor, 2005).

Apesar da aparente incompatibilidade de conceitos, alguns autores propõem a conciliação da vitimação e do empreendedorismo na análise da transgressão feminina, sugerindo que o envolvimento da mulher na delinquência constitui em si mesmo uma estratégia para lidar com a violência de que é vítima. Batchelor (2005), partindo de narrativas construídas por jovens que cometem crimes violentos, refere que estas podem ser simultaneamente consideradas vítimas, na medida em que o seu percurso é contextualizado por circunstâncias sociais adversas, e empreendedoras, pois a sua violência emerge como uma resposta racional a essas circunstâncias.

A par dos discursos constitutivos da mulher transgressora surgem discursos constitutivos da sua punição, ou seja, o modo como a mulher que transgride a lei é construída discursivamente tem implicações no modo como se pensa que ela deve ser punida (Snider, 2003). Nos discursos feministas, a construção da mulher que comete crimes de forma empreendedora revela-se paradoxal face aos objectivos das perspectivas feministas na criminologia. Ao contribuírem para a construção de uma mulher forte, resistente, consciente de si mesma e auto determinada, as perspectivas feministas parecem contribuir para a criação de regimes mais punitivos. Mas esta não é uma questão pacífica para as suas autoras, que pretendem ter um papel activo ao nível das políticas de justiça criminal em relação à mulher. Por outro lado, construir a mulher transgressora como vítima é representá-la e tratá-la como necessitando mais de protecção do que de punição. E podemos considerar que reclamar como principal benefício para as mulheres protecção e não tanto justiça se afasta dos discursos e ideologias feministas.

Entre as tentativas de dar resposta a este paradoxo, surgem propostas que apelam à rejeição de uma noção única da mulher que comete crimes, ultrapassando a dicotomia vítima inocente/ /criminosa resistente (Britton, 2000). Os diferentes estudos empíricos realizados junto de mulheres que transgridem a lei têm mostrado que os contextos dessa transgressão tendem a ser complexos. Por exemplo, a mulher que comete crimes pode apresentar uma trajectória de vida marcada por diversas formas de discriminação de género, e nesse sentido enquadrar-se no conceito de ‘mulher vítima’, mas optar com auto-determinação pela via do crime correspondendo à representação da ‘mulher empreendedora’. Como refere Britton (2000), ambos os conceitos estão interligados, pelo que só rompendo com a dicotomia vítima/resistente se poderá compreender a forma dessa interligação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as primeiras abordagens sobre criminalidade feminina, no contexto da criminologia ‘tradicional’, e após um longo percurso de transições epistemológicas e metodológicas no estudo do crime e das suas protagonistas, surgem na criminologia os discursos científicos sobre a trans gressão feminina que atendem ao género e que o conceptualizam como fundamental na abordagem a este fenómeno. A emergência desta nova conceptualização da criminalidade feminina coincide com as perspectivas feministas sobre a transgressão da mulher, sendo indissociável do movimento feminista em sentido lato. Como vimos, estas abordagens permitem a desconstrução dos discursos tradicionais sobre feminilidade e transgressão, nomeadamente do modo estereotipado como a mulher e o seu desvio têm vindo a ser representados. Possibilitam também a reconstrução desses discursos, abrindo caminho para que a mulher que transgride a lei deixe de ser considerada duplamente desviante e associada a crimes ‘tipicamente femininos’, resultantes da heterodetermi nação e irracionalidade da mulher. Do ponto de vista metodológico, há também um contributo fundamental das perspectivas feministas, na medida em que se dá voz (e poder) às mulheres na reconstrução dos discursos sobre a sua transgressão. Não podemos, contudo, terminar sem olhar de forma crítica para alguns aspectos das abordagens feministas, nomeadamente a por vezes excessiva centração no género, em detrimento de outras dimensões, como a etnia ou a classe social, que poderão ser igualmente importantes na compreensão da transgressão feminina. Ou o facto de se dirigir o foco apenas para as mulheres, excluindo as experiências masculinas do mesmo modo que são excluídas as femininas nas abordagens tradicionais da criminologia. Finalmente, pensamos que o compromisso político subjacente às abordagens feministas, quando excessivo, pode conduzir a uma compreensão enviesada da transgressão da mulher. Paralelamente às críticas às perspectivas feministas, salientamos a função dos outros discursos científicos construídos sobre a mulher e o crime, criticados pelas autoras feministas. Mesmo os ‘tradicionais’ ou positivistas, que assumimos como os discursos que mais se afastam da nossa própria leitura do fenómeno, são fundamentais no percurso até aos discursos feministas, que se afirmam e desenvolvem através das críticas que dirigem aos primeiros. Entre ambos, há “discursos de transição” (Matos, 2008), que constituem uma importante contribuição na abordagem científica da transgressão da mulher, pois é através das suas propostas de novas leituras do crime e dos seus actores (nomeadamente a passagem para uma visão do crime como normal ou ideal, ou a mudança de enfoque do crime para a reacção social) que se cria espaço na criminologia para a emergência das perspectivas mais críticas, em particular as feministas. Estas perspectivas de transição contribuem também com novas propostas metodológicas, nomeadamente as de cariz mais qualitativo e naturalista, que se desenvolvem e vêm a revelar fundamentais nas abordagens mais críticas da criminalidade da mulher.

Apesar do significativo percurso das perspectivas feministas na criminologia, ainda hoje, alguns olhares sobre a transgressão, feminina e masculina, a associam a factores individuais, de ordem biológica ou psicológica, insistindo numa leitura determinista do comportamento criminal. No caso feminino, esses olhares são ainda reforçadores dos estereótipos de género, razão pela qual a história das perspectivas feministas na criminologia se continua a escrever.

 

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Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Raquel Matos, Professora Auxiliar, Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto. E-mail: rmatos@porto.ucp.pt

 

NOTAS

1 Este texto resulta da adaptação de um capítulo de uma obra já publicada [Matos, R. (2008), Vidas Raras de Mulheres Comuns. Percursos de vida, significações do crime e construção da identidade em jovens reclusas. Coimbra: Editora Almedina]. A criação do texto original enquadra-se no desenvolvimento de uma tese de doutoramento (com apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – SFRH/BD/8664/2002). Para prestar homenagem à Doutora Carla Machado não poderia deixar de seleccionar um texto construído em estreita colaboração entre nós, naquela que foi a sua primeira orientação de doutoramento. Ao recordar a sua orientação, deixo o testemunho de uma grande lição e de um exemplo a seguir.

2 Embora a segunda década do século XX reúna maior consenso enquanto data da primeira vaga do movimento feminista, sugere-se que esta vaga tem início na década de trinta do século XIX com o movimento abolicionista no contexto norte-americano (Messerschmidt, 1995).

3 Designação proposta por autoras feministas para enfatizar o carácter masculino da criminologia tradicional (mainstream).

4 Tal deve-se, em parte, ao facto de o desenvolvimento das perspectivas feministas na criminologia incluir, para além dos contributos de académicos, contributos de não académicos, em particular grupos de combate à violência contra as mulheres, exemplo importante do activismo impulsionador do movimento feminista (Rafter & Heidensohn, 1995).

5 Estas ideias não constituiriam uma novidade após a primeira tentativa de relacionar a emancipação da mulher com a criminalidade feminina, já na primeira vaga do movimento feminista, na segunda década do século XX.

6 A publicação desta obra de Carol Smart é considerada um marco fundamental no reconhecimento dos desafios feministas à criminologia.

7 Estes estudos decorrem frequentemente no contexto prisional, ou quando há já um contacto das mulheres com o sistema de justiça criminal.

8 Os estudos focalizados em formas específicas de desviância tendem a decorrer nos contextos espacio-temporais da própria actividade criminal.

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