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Análise Psicológica

Print version ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.29 no.4 Lisboa Nov. 2011

 

Uma abordagem qualitativa às motivações positivas e negativas para a parentalidade

Maryse Guedes*; Paula Saraiva Carvalho**; Raquel Pires*** e Maria Cristina Canavarro****

* Aluna do Programa Interuniversitário de Doutoramento em Psicologia Clínica – Temática Psicologia da Família e Intervenção Familiar da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa; Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/68912/2010);

** Departamento de Psicologia e Educação da Universidade da Beira Interior; Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/37685/2007);

*** Aluna de Doutoramento da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra; Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/63949/2009);

**** Professora Catedrática da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra; Coordenadora da Unidade de Intervenção Psicológica da Maternidade Doutor Daniel de Matos dos Hospitais da Universidade de Coimbra

Correspondência

 

RESUMO

A diminuição da natalidade e o adiamento do nascimento do primeiro filho têm evidenciado a importância de melhor compreender as motivações para a parentalidade. Atendendo à sua variabilidade sociocultural, este estudo qualitativo teve como principal objectivo conhecer as motivações positivas e negativas para a parentalidade numa amostra da população portuguesa. A amostra foi constituída por 24 participantes, recrutados entre os profissionais e utentes da Maternidade Doutor Daniel de Matos dos Hospitais da Universidade de Coimbra e por convite a participantes da população em geral. Foram realizados três grupos focais com utentes/participantes da população em geral e um grupo focal com profissionais. A análise de conteúdo revelou uma vasta constelação de motivações positivas e negativas; estas expressaram-se em dimensões emocionais/psicológicas, sociais/normativas, económicas/utilitárias e biológicas/físicas. As motivações positivas foram as mais frequentemente referidas; no entanto, foram menos referidas que as negativas na dimensão emocional/psicológica. Embora exploratórios, estes resultados tendem a apoiar a investigação existente, apontando, contudo, para algumas especificidades que importa aprofundar em investigações futuras. Evidenciam ainda a importância de avaliar as motivações para a parentalidade, especialmente entre as mulheres que revelem dificuldades emocionais.

Palavras-chave: Motivações negativas, Motivações positivas, Parentalidade.

 

ABSTRACT

The decrease of birth rates and the postponement of the first child have emphasized the importance of a better understanding of parenthood motivations. Given their sociocultural variability, this qualitative study aimed to explore positive and negative parenthood motivations among a Portuguese sample. The sample was constituted by 24 participants, who were recruited among the professionals and patients of the Maternidade Doutor Daniel de Matos dos Hospitais da Universidade de Coimbra and among participants of general population. Three focus groups with patients/participants of general population and one focus group with professionals were conducted. The content analysis revealed a vast constellation of positive and negative parenthood motivations; these were expressed in emotional/ psychological, social/normative, economical/utilitarian and biological/physical dimensions. Positive motivations were the most frequently reported; however, they were less reported than negative motivations in the emotional/psychological dimension. These exploratory results tend to be consistent with existing research; nevertheless, they tend to show some particularities that need to be explored in future researches. Furthermore they emphasize the importance of assessing parenthood motivations, especially among women who reveal emotional difficulties.

Key-words: Negative motivations, Parenthood, Positive motivations.

 

INTRODUÇÃO

A diminuição da natalidade e o adiamento do nascimento do primeiro filho têm sido tendências cada vez mais prevalentes nos países economicamente desenvolvidos, incluindo Portugal (OCDE, 2011). O seu impacto na sustentabilidade social e financeira e na capacidade reprodutiva dos casais (Wijsen, 2002) têm evidenciado a importância de melhor compreender as decisões reprodutivas contemporâneas. Estas têm sido essencialmente atribuídas às mudanças sociais, económicas e culturais que se têm verificado nas últimas décadas (OCDE, 2011). No entanto, esta abordagem tem apenas oferecido uma compreensão parcelar (Langdridge, Sheeran, & Connolly, 2005), negligenciando uma importante componente individual dos processos de tomada de decisão reprodutiva (Wijsen, 2002).

Os modelos de decisão reprodutiva têm valorizado as percepções acerca dos benefícios e custos de ter filhos (Fawcett, 1983; Hoffman & Hoffman, 1973), designados de motivações positivas e negativas para a parentalidade (Miller, 1994). Estas disposições para percepcionar favorável e desfavoravelmente a parentalidade e as suas consequências têm sido descritas como determinantes dos desejos, intenções e comportamentos reprodutivos (Miller, 1995). Têm, contudo, sido reconhecidas como complexas e sujeitas a variações socioculturais (Dyer, 2007). Em Portugal, são poucos os estudos acerca das motivações para a parentalidade; somente algumas investigações se têm interessado pelos significados (Martins, 2010) ou funções (Cunha, 2008) de um filho. Torna-se, por isso, importante clarificar a forma como estas motivações se expressam no contexto português actual. O seu conhecimento reveste-se de relevância clínica, dada a sua influência nas trajectórias de (in)adaptação dos casais à gravidez e parentalidade (Canavarro, 2001) ou a outros percursos reprodutivos, como a infertilidade (Cassidy & Sintrovani, 2008).

Compreensão das motivações para a parentalidade

A compreensão das motivações para a parentalidade tem-se baseado em investigações conduzidas em variados contextos, com recurso a metodologias qualitativas e quantitativas diversificadas (Dyer, Mokoena, Maritz, & Van der Spuy, 2008). Face à sua complexidade e à dificuldade em avaliar este domínio (Dyer, 2007), poucos têm sido os estudos junto da população em geral (e.g., Arnold et al., 1975; Langdridge et al., 2005; Miller, 1995). Grande parte das investi gações tem envolvido amostras de conveniência, especialmente estudantes universitários (e.g., Gormly, Gormly, & Weiss, 1987; O’Laughlin & Anderson, 2001). Porém, a inconsistência dos seus resultados tem conduzido os investigadores a privilegiar grupos clínicos que enfrentam experiências reprodutivas específicas, como sobreviventes de cancro (e.g., Shover, 2005) e casais inférteis (e.g., Cassidy & Sintrovani, 2008) ou indivíduos que decidem voluntariamente não ter filhos (e.g., Park, 2005). A natureza destas experiências tem facilitado a expressão das motivações para a parentalidade que permanecem, muitas vezes, latentes na população em geral (Dyer et al., 2008). No entanto, tem-se evidenciado a importância de uma abordagem compreensiva das motivações positivas e negativas na população em geral (Purewal & Van der Akker, 2007). Nesse sentido, a literatura tem recomendado o recurso a outros informadores, que possibilitem um conhecimento mais vasto destas motivações. Investigações recentes têm-se interessado pelas percepções que os estudantes da área da saúde desenvolvem no contexto das suas práticas profissionais; contudo, têm negligenciado a perspectiva dos profissionais especializados na área da gravidez e da parentalidade (Fraser & Hughes, 2009).

Não obstante a sua heterogeneidade e as suas limitações, as investigações referidas têm apontado para uma vasta constelação de motivações positivas e negativas. Globalmente, estas têm-se expresso em dimensões emocionais/psicológicas, sociais/normativas, económicas/utilitárias e biológicas/físicas, consistentes com as descrições dos modelos clássicos de decisão reprodutiva (Fawcett, 1983).

Motivações positivas para a parentalidade

No que diz respeito às motivações positivas para a parentalidade, as dimensões emocionais/ /psicológicas têm contemplado a relação de amor recíproco, única e especial com a criança (Langdridge et al., 2005). Outros aspectos desta relação, como a alegria e a felicidade (Cassidy & Sintrovani, 2008), o orgulho e estimulação (Arnold et al., 1975), a possibilidade de cuidar, ensinar (Miller, 1995) e reparar experiências com filhos anteriores (Siegel & Schrimshaw, 2001) têm sido descritos. Estas dimensões têm ainda sido relacionadas com o fortalecimento ou manutenção da relação conjugal e a realização pessoal (Van Balen & Trimbos-Kemper, 1995). Os laços familiares, como a companhia para outro filho (Bulatao, 1981), têm sido menos valorizados.

As dimensões sociais/normativas têm sido relacionadas com o cumprimento de expectativas sociais e familiares ou de preceitos morais e religiosos (Pezeshki, Zeighami, & Miller, 2005); têm ainda contemplado a afirmação do estatuto social/identidade de adulto, a continuidade familiar, imortalidade e preservação da espécie (Cassidy & Sintrovani, 2008; Van Balen & Trimbos-Kemper, 1995). A força de trabalho como forma de ajuda ao sustento económico da família e o apoio na velhice têm caracterizado as dimensões económicas/utilitárias (Miller, 1995).

As dimensões biológicas/físicas têm sido relacionadas com a concretização de um instinto ou “apelo” do relógio biológico (Inborn & Van Balen, 2002) e a afirmação da sua fertilidade (Shover 2005) ou masculinidade/feminilidade (Newton, Hearn, Yuzpe, & Houle, 1992). O desejo de viver a gravidez e o parto (Miller, 1995) e os laços biológicos (Miller, Millstein, & Pasta, 2008) têm sido igualmente contemplados.

Motivações negativas para a parentalidade

No que refere às motivações negativas, as dimensões emocionais/psicológicas têm sido associadas aos constrangimentos para a autonomia pessoal e conjugal, estilos de vida e carreira profissional (Carmichael & Whittaker, 2007; Langdridge et al., 2005; O’Laughlin & Anderson, 2001). As exigências dos cuidados parentais, as responsabilidades e preocupações com a criança (Arnold et al., 1975; Langdridge et al., 2005; Miller, 1995), a imaturidade (Gerson, Berman, & Morris, 1991) ou a inexistência de qualidades adequadas ser pai/mãe (Carmichael & Whittaker, 2007) têm ainda sido contempladas. Problemáticas familiares, como o desgaste com o papel de cuidador assumido com outros familiares, o receio da transgeracionalidade de problemas de saúde familiares ou de perpetuar experiências relacionais vividas com os pais, têm sido menos descritas (Connidis & McMullin, 1996; Shover, 2005).

As dimensões sociais/normativas têm contemplado preocupações demográficas (sobrepopu lação) e a responsabilidade social face ao estado actual do mundo (Pezeshki, Zeighami, & Miller, 2005). As restrições e despesas financeiras com a criança têm caracterizado as dimensões económicas/utilitárias (Arnold et al., 1975; Park, 2005).

Por fim, as dimensões biológicas/físicas têm sido relacionadas com as alterações negativas na imagem corporal feminina (Arnold et al., 1975), os desconfortos físicos da gravidez e do parto (Miller, 1995) e a inexistência de instinto parental (Park, 2005).

Variabilidade na frequência das motivações para a parentalidade

Esta constelação de motivações positivas e negativas tem sido descrita com mais ou menos frequência, em função do contexto socioeconómico e cultural (Arnold et al., 1975; Inborn & Van Balen, 2002), do género, da idade e da paridade (Gerson et al., 1991; Gormly et al., 1987; O’Laughlin & Anderson, 2001).

As motivações positivas têm sido mais valorizadas (Arnold et al., 1975; Bell, Bancroft, & Phillip, 1985), especialmente nas suas dimensões emocionais/psicológicas. Estas dimensões têm sido descritas de forma universal, independentemente do género e da paridade (Inborn & Van Balen, 2002); exceptuam-se a reparação de experiências (Siegel & Schrimshaw, 2001) e a com panhia para outro filho (Bulatao, 1981) que têm sido referidas pelos casais que já têm filhos. As dimensões sociais/normativas e económicas/utilitárias têm sido valorizadas nos países em desenvolvimento (Arnold et al., 1975; Inborn & Van Balen, 2002). A afirmação do estatuto social/identidade de adulto tem assumido especial expressão entre os mais jovens que ainda não foram pais, especialmente as mulheres (Gormly et al., 1987; Van Balen, 2005). As expectativas sociais e os preceitos religiosos, a ajuda ao sustento e o apoio na velhice têm sido valorizados nos meios desfavorecidos e com forte orientação religiosa (Van Rooij, Van Balen, & Hermanns, 2007). As dimensões biológicas/físicas têm sido destacadas pelos indivíduos que enfrentam desafios reprodutivos (Miller et al., 2008; Shover, 2005).

Ao nível das motivações negativas, as dimensões emocionais/psicológicas têm sido valorizadas nos países economicamente desenvolvidos (Arnold et al., 1975; Miller, 1995). Os constrangi mentos pessoais e conjugais, a imaturidade e a inexistência de qualidades adequadas para ser pai/mãe têm-se evidenciado entre os mais jovens, especialmente nas mulheres que ainda não foram mãe e que, frequentemente, não tencionam ter filhos no futuro (Carmichael & Whittaker, 2007; Langdridge et al., 2005; O’Laughlin & Anderson, 2001). As exigências dos cuidados parentais têm assumido especial expressão nas mulheres, tornando-se mais significativas à medida que aumenta o número de filhos (Bulatao, 1981). As dimensões sociais/normativas, económicas/ /utilitárias e biológicas/físicas têm assumido maior expressão nos países em vias de desenvolvi mento e nos meios economicamente desfavorecidos (Arnold et al. 1975; Pezeshki et al., 2005); as restrições financeiras têm igualmente sido mais valorizadas pelos homens (Arnold et al., 1975; O’Laughlin & Anderson, 2001).

Objectivos

Face às limitações da investigação existente e à escassez de investigações nacionais, torna-se importante desenvolver estudos que proporcionem uma abordagem compreensiva às motivações positivas e negativas para a parentalidade (Purewal & Van den Akker, 2007), no contexto sociocultural português actual. A dificuldade em avaliar este domínio na população em geral (Dyer, 2007) tem evidenciado a necessidade de considerar outros informadores que possibilitem melhor compreender as motivações para a parentalidade. Investigações mais recentes têm apontado o potencial contributo dos profissionais especializados (Fraser & Hughes, 2009), na medida em que interagem com casais oriundos de diversos contextos socioeconómicos e culturais.

Neste contexto, o presente estudo exploratório teve como principal objectivo conhecer as motivações para a parentalidade numa amostra portuguesa de profissionais e participantes da população em geral. De forma específica, este estudo procurou (1) descrever as motivações positivas e negativas para a parentalidade, nas suas diferentes dimensões e (2) identificar a frequência com que estas motivações são expressas.

MÉTODO

Participantes

A amostra foi constituída por 24 participantes, com idades compreendidas entre os 22 e os 62 anos (M=34.74, DP=10.09), na sua maioria do sexo feminino (75%), casados/unidos de facto (75%), com formação superior (95.8%) e nível socioeconómico médio (66.7%) (de acordo com a classificação de Simões, 1994). Os participantes foram recrutados entre os profissionais e utentes da Maternidade Doutor Daniel de Matos dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e por convite a participantes da população em geral.

Os utentes/participantes da população em geral foram divididos em três grupos focais, em função do seu género e paridade (G1, G2 e G3). Com efeito, a literatura tem evidenciado que as motivações para a parentalidade variam em função do género e da paridade (Gormly et al., 1987; O’Laughlin & Anderson, 2001), especialmente as motivações negativas que têm sido descritas como mais difíceis de avaliar (Purewal & Van den Akker, 2007). A homogeneidade dos grupos nestas variáveis foi, assim, considerada uma condição facilitadora da interacção dos participantes (Morgan, 1996). Foi ainda constituído um grupo focal de profissionais (G4), de modo a possibilitar uma compreensão mais vasta das motivações para a parentalidade (Fraser & Hughes, 2009).

O G1 (n=5) foi composto por duas mulheres grávidas, uma mulher com uma filha recém-nascida e duas mulheres sem filhos que não tencionavam ser mães no momento; com idades compreendidas entre os 22 e os 35 anos (M=28.20, DP=2.13), todas as participantes tinham formação superior e apresentavam um nível socioeconómico médio, sendo, na sua maioria, solteiras (60%). O G2 (n=6) incluiu dois homens à espera do primeiro filho, dois homens com filhos recém-nascidos e dois homens sem filhos que não tencionavam ser pais no momento; com idades compreendidas entre os 28 e os 35 anos (M=30.60, DP=2.97), a maioria dos participantes era casado/unido de facto (83.3%), tinha formação superior (83.3%) e apresentava um nível socioeconómico médio (50%). O G3 (n=5) foi constituído por cinco mulheres com filhos em idade pré-escolar e escolar; com idades compreendidas entre os 30 e os 41 anos (M=35, DP=4.53), todas as participantes eram casadas/unidas de facto e tinham formação superior, apresentando, na sua maioria, um nível socioeconómico elevado (80%). O G4 (n=8) incluiu três psicólogas, duas enfermeiras, uma assistente social, uma médica obstetra e uma educadora de infância; com idades compreendidas entre os 22 e os 62 anos (M=41.25, DP=14.11), todas as participantes tinham formação superior, sendo, na sua maioria, casadas/unidas de facto (75%) e apresentando um nível socioeconómico médio (87.5%).

Procedimentos

O presente estudo enquadra-se num projecto de investigação mais vasto, intitulado “Transição para a parentalidade em idade materna avançada: Adaptação individual, conjugal e cuidados parentais”, aprovado pela Comissão de Ética dos HUC.

A recolha de dados foi realizada através de quatro grupos focais. O recurso a grupos focais tem-se afirmado como uma metodologia privilegiada para a investigação aprofundada das motivações dos grupos (Krueger & Casey, 2009), coadunando-se com os objectivos deste estudo exploratório. O seu ambiente de interacção propício à discussão e reflexão tem sido considerado especialmente vantajoso para a exploração de temáticas complexas (Morgan, 1996), como as motivações para a parentalidade.

Com uma duração de cerca de uma hora e meia, os quatro grupos focais foram conduzidos na biblioteca da Maternidade Doutor Daniel de Matos dos HUC, uma sala livre de interferências sonoras, com condições propícias à interacção dos participantes. Foram moderados por um psicólogo clínico especializado na área da gravidez e parentalidade, com o apoio de um assistente, com a mesma formação, responsável pela gravação áudio e pelo registo de aspectos não-verbais, no decorrer da discussão.

Os participantes foram recebidos à entrada da maternidade, pelo moderador e encaminhados para a biblioteca da maternidade. Após a apresentação dos responsáveis pela condução dos grupos focais, o moderador procedeu a uma breve introdução acerca do tema em discussão, explicitando a natureza e os objectivos do estudo. Antes de iniciar a discussão, foram garantidos a confiden cialidade das respostas e obtido o consentimento informado dos participantes. Clarificados os aspectos éticos, o moderador solicitou aos participantes se apresentassem, indicando o seu nome, de modo a criar um ambiente favorável à interacção. De seguida, o moderador iniciou a discussão, com base no guião de entrevista semi-estruturada, desenvolvido para o efeito (cf. Instrumentos). No final da discussão, o moderador solicitou o preenchimento de uma ficha de dados sociodemográficos aos participantes.

Instrumentos

Além da ficha de dados sociodemográficos, foi desenvolvido um guião de entrevista semi-estruturada, que foi discutido por seis psicólogos especializados na área da gravidez e parentalidade. Este guião iniciou-se com uma questão geral acerca das motivações positivas para a parentalidade (“O que pensam que leva as pessoas a desejarem ter filhos?”). Foram subse quentemente formuladas questões específicas de modo a explorar cada uma das dimensões emocionais/psicológicas, sociais/normativas, económicas/utilitárias e biológicas/físicas (“Pensam que as pessoas podem desejar ter filhos por questões afectivas ou psicológicas/sociais/económicas/biológicas?”) das motivações positivas para a parentalidade. Uma estruturação semelhante foi utilizada para examinar as motivações negativas para a parentalidade (“O que pensam que leva as pessoas a não desejarem ter filhos?”) e cada uma das suas dimensões (“Pensam que as pessoas podem não desejar ter filhos por questões afectivas ou psicológicas/sociais/económicas/físicas?”). Por fim, foi dada aos participantes a possibilidade de fazerem comentários finais a respeito das questões debatidas, caso não tivessem tido essa oportunidade no decorrer da sessão.

Análise de dados

A análise de dados fundamentou-se num processo contínuo de recolha, redução, apresentação e verificação de dados (Huberman & Miles, 1994). Num primeiro momento, transcrevemos textual e integralmente (verbatim) os registos áudio dos grupos focais; as transcrições foram verificadas quanto à sua adequação para o tratamento de dados (Bloomberg & Volpe, 2008). Com auxílio do software QSR NVivo 8, procedemos à análise de conteúdo das transcrições, assumindo o tema como unidade de codificação (Bardin, 2004). De facto, a análise de conteúdo tem sido recomen dada para a análise de dados provenientes de grupos focais (Krueger & Casey, 2009), coadunando-se com os objectivos do presente estudo exploratório. Num primeiro momento, criámos as categorias superiores relativas às motivações positivas e negativas para a parentalidade e às suas dimensões emocionais/psicológicas, sociais/normativas, económicas/utilitárias e biológicas/físicas, com base no guião de entrevista semi-estruturada. De seguida, foram codifi cadas todas as unidades de sentido, de modo a identificar subcategorias emergentes (e.g., relação com a criança; expectativas sociais; apoio ao sustento; instinto biológico; exigências da parentali dade; alterações corporais negativas) que foram posteriormente analisadas e relacionadas. Os princípios da mútua exclusi vidade, exaustividade, relevância e objectividade das categorias foram considerados (Bardin, 2004). Após uma primeira codificação, os dados foram sistematicamente revistos e discutidos com outro codificador independente; com auxílio do software QSR NVivo 8, calculámos as percentagens de acordo inter-observador e os coeficientes Kappa de Cohen, de modo a avaliar o acordo entre os codificadores (Bloomberg & Volpe, 2008). Averiguámos ainda a frequência e extensão das respostas dos participantes, em conformidade com as recomendações de Krueger e Casey (2009); com auxílio do software QSR NVivo 8, calculámos o número total de referências, o número de referências por cada categoria/subcategoria e o número de participantes que mencionou cada categoria/subcategoria, em cada grupo e no conjunto dos grupos.

RESULTADOS

Descrição das motivações para a parentalidade1

A Figura 1 sumaria as motivações positivas e negativas para a parentalidade, descritas pelos participantes da amostra.

Motivações positivas para a parentalidade

Dimensões emocionais/psicológicas

A relação com a criança foi especialmente valorizada pelo G3, que a descreveu como uma relação recíproca de amor, única e especial:

Nas motivações para ter filhos, a parte afectiva é importante. É a possibilidade de gostar muito de alguém e ser recíproco, receber também. Não pode haver nada superior a isto, nem o “Amo-te” do marido. É um amor incondicional (Laura, 36 anos, mãe de dois filhos).

Além disso, os vários grupos referiram a reparação de experiências vividas com filhos anteriores, em casos de doença crónica ou morte. Valorizaram ainda a construção de um vínculo afectivo, que se distingue de outras relações afectivas:

Outra motivação para ter filhos é ter uma companhia, ter alguém que faz parte da nossa vida para sempre, que não está sujeito a laços que se desfazem como os de outras relações (Alice, 35 anos, grávida do primeiro filho).

Os G1 e G3 descreveram também a possibilidade de cuidar, educar e ensinar uma criança, orientando o seu percurso desenvolvimental e ajudando-a a crescer.

A relação conjugal foi especialmente valorizada pelo G4. A parentalidade foi descrita como uma forma de fortalecimento conjugal, de ter um fruto do amor e da união do casal, um projecto comum e um elo de ligação/proximidade:

Para os casais, ter um filho é uma forma de proximidade. É uma forma de os unir, de os tornar mais íntimos e próximos. Quase como que um fruto do seu casamento e da sua união (Sandra, 26 anos, psicóloga).

Este fortalecimento conjugal foi igualmente entendido como uma oportunidade de crescimento conjugal, um salto desenvolvimental que possibilita a evolução do casal para um patamar superior de maturidade. A parentalidade foi ainda considerada como uma forma de manter a relação conjugal e evitar a desagregação do casal; os vários grupos evidenciaram, contudo, o seu cepti cismo em relação aos benefícios desta motivação para a parentalidade para a díade conjugal.

Os laços familiares foram especialmente descritos pelo G3, como uma forma de fortalecer o espírito familiar e de unir as várias gerações da família alargada:

Não é só propriamente ter um filho ou ter um neto, é o tipo de coesão em termos de família, as pessoas estarem juntas. Pode ser um factor de coesão e aproximação da família alargada (Carlos, 35 anos, à espera do primeiro filho).

Os participantes apontaram ainda a possibilidade de proporcionar uma companhia a outro(s) filho(s), promovendo o seu desenvolvimento psicossocial.

A realização pessoal foi descrita como a consecução de um projecto de vida ou objectivo pessoal ou o preenchimento de um papel desejado; poucos participantes referiram a afirmação pessoal em relação aos seus pais ou a reparação de experiências negativas vividas na sua infância.

Dimensões sociais/normativas

O cumprimento de expectativas sociais foi especialmente valorizado pelo G2 e G4. Descre veram as normas socioculturais que enquadram a parentalidade como uma fase normativa do ciclo de vida e a pressão familiar explícita ou implícita:

Acho que ser pai é uma coisa normal, natural. Faz parte do ciclo de vida. E depois, eu noto, que os meus pais e os meus sogros estão constantemente a dizer que já está na altura. Acho que aí, há também um pouco a expectativa, ou a pressão (Tomás, 28 anos, sem filhos).

O cumprimento de preceitos religiosos foi um tema gerador de opiniões divergentes, especialmente debatido pelo G2 e G4. Foi descrito como uma motivação cada vez menos frequente, com expressão numa minoria de casais, oriundos de contextos socioculturais mais tradicionais. O seu valor enquanto motivação genuína foi, contudo, questionado no contexto actual; o G4 realçou a instrumentalização da religião como forma de justificar a desresponsabilização em relação ao planeamento familiar.

A afirmação do estatuto social/identidade de adulto foi especialmente discutida pelo G4. A parentalidade foi, assim, caracterizada como uma consecução socialmente valorizada que facilita o reconhecimento do casal enquanto família, a afirmação da identidade de adulto e a independência em relação à família de origem. Esta motivação foi descrita como específica dos casais mais jovens e oriundos de meios socioeconómicos mais desfavorecidos, associando-se frequentemente a dificuldades de adaptação à transição para a parentalidade:

No caso da afirmação da identidade de adulto, estamos a falar de mães novas, de crianças que têm outras crianças e, muitas vezes, têm um relacionamento com outra pessoa que também é uma criança. Inicialmente a maternidade é uma forma de sair de casa, dos pais aceitarem a relação. E depois, quando chegam a casa com o bebé, a realidade instala-se. Há uma série de responsabi lidades que têm de assumir e para as quais não estão preparadas (Andreia, 52 anos, enfermeira).

A continuidade foi especialmente valorizada pelo G4, que a descreveu como uma forma de preservação da espécie, de assegurar a descendência da família e a transmissão das heranças familiares. Os restantes grupos valorizaram essencialmente a continuidade dos valores, afectos e interacções familiares:

Ter um filho é a possibilidade de dar continuação a um padrão de relações familiares, um ciclo de interacções nos quais crescemos e que achamos que é um bom modelo para poder passar a outra pessoa que esperamos poder ajudar a crescer bem. Mas não tanto no sentido de preser vação da espécie ou de dar continuidade ao nome, eu acho que é dar continuidade às emoções e aos valores que nos unem enquanto família (Alice, 35 anos, grávida do primeiro filho).

Dimensões económicas/utilitárias

No que se refere à ajuda ao sustento económico da família, a percepção dos filhos como força de trabalho foi relegada para o passado. Contudo, uma nova forma de ajuda foi geradora de posições marcadamente divergentes. O G4 descreveu a obtenção de subsídios sociais como uma motivação cada vez mais presente no discurso dos casais mais carenciados:

A obtenção de subsídios até é verbalizada pelas pessoas. Quer em termos de subsídios decorrentes da maternidade, como outros subsídios eventuais, a que as pessoas têm direito e têm por base o agregado familiar (Inês, 49 anos, assistente social).

No entanto, os restantes grupos consideraram os apoios do sistema social português como insuficientes para se constituírem como uma motivação para ter filhos.

O apoio futuro na velhice e para outro filho doente foi um tema pouco consensual, especial mente debatido pelo G2. Foi, por um lado, descrito como uma motivação específica de determi nadas configurações familiares (por exemplo, famílias monoparentais). A sua pertinência foi, por outro lado, desvalorizada no contexto social actual e a sua discussão foi caracterizada por um marcado conflito de valores:

Até chegar a esse, há tantos pensamentos egoístas que se têm primeiro. Pensar na criança como um apoio futuro é uma forma cruel de condicionar uma pessoa passados uns anos (José, 30 anos, à espera do primeiro filho).

Dimensões biológicas/físicas

A concretização de um instinto biológico foi descrita por todos os grupos como uma necessidade básica, não racional e essencialmente feminina:

Por enquanto não sinto necessidade de ter filhos, ao contrário da minha mulher, que quase todos os dias me diz que quer ter um filho. Penso que, da parte das mulheres, deve haver ali um instinto, ou qualquer coisa em termos biológicos, para a maternidade que pode criar mais motivação nas mulheres do que nos homens (Tomás, 28 anos, sem filhos).

A afirmação da fertilidade e feminilidade/masculinidade foi referida pelos vários grupos, à excepção do G2. Esta motivação foi, contudo, descrita como especialmente relevante para os casais que enfrentam dificuldades reprodutivas.

A pressão do relógio biológico na capacidade reprodutiva feminina foi descrita pelos vários grupos, à excepção do G2. Foi considerada especialmente importante para as mulheres com forte investimento na carreira profissional:

Existem motivações específicas para as mulheres que têm uma vida profissional muito activa. Quando começam a chegar a um determinado patamar de idade, começam a pensar que têm uma data marcada para ter filhos: “Eu quero ter filhos porque sei que o meu prazo de validade está a terminar” (Sandra, 26 anos, psicóloga).

Motivações negativas para a parentalidade

Dimensões emocionais/psicológicas

As exigências da parentalidade foram valorizadas pelo G3, que as relacionou com o cansaço físico e emocional decorrente dos cuidados a uma criança pequena:

O meu primeiro filho deixava-me louca: não conseguia dormir, mamava de hora e meia em hora em meia, passava a vida com cólicas. Foi horrível. Noites e noites sem dormir, é extenuante. Estas exigências podem ser um motivo para não ter filhos para alguns casais (Margarida, 42 anos, mãe de cinco filhos).

O G3 valorizou ainda as responsabilidades e preocupações constantes com a criança. Consi derou, contudo, que a consciência destas exigências se desenvolve com a experiência de parenta lidade, sendo essencialmente femininas. Consequentemente descreveram-nas como determinantes do momento do nascimento do primeiro filho e do número de filhos que os casais decidem ter mais do que da decisão de ter ou não filhos.

Os constrangimentos conjugais foram menos valorizados pelos vários grupos. Foram relacio nados com a perda de autonomia para o casal e com o desgaste relacional decorrente das exigências da parentalidade:

Existem muitas pessoas que não querem ter filhos porque pensam que vão perder tempo e autonomia enquanto casal e até mesmo que o casal se pode desagregar (Alice, 35 anos, grávida do primeiro filho).

Ao nível dos problemas familiares, os vários grupos valorizaram os receios de transgeracio nalidade de problemas de saúde familiares ou de ter outro filho doente/portador de deficiência. O G3 descreveu ainda questões relacionais, como o desgaste com o papel de cuidador assumido com outros familiares (e.g., pais, irmãos ou sobrinhos) ou o receio de reproduzir modelos parentais negativos vividos na infância.

Os constrangimentos pessoais foram descritos pelos vários grupos. Evidenciaram as restrições para a autonomia pessoal, estilos de vida (viagens, lazer, vida social) e carreira profissional, especialmente no caso feminino:

Existem muitas motivações para não se ter um filho, por exemplo, a dificuldade em se abdicar de uma série de coisas que já se conquistaram. A possibilidade de viajar ou de ter um determinado estilo de vida, que, com uma criança muda (Alice, 35 anos, grávida do primeiro filho).

A preparação emocional e a imaturidade foram valorizadas pelos G1 e G2: Eu penso que uma outra motivação para não ter filhos pode estar associada ao facto de não se sentir preparado para a parentalidade. Eu tenho 28 anos e ainda não me sinto preparado. Quer em termos psicológicos, ao nível da maturidade, quer em termos das tarefas que vou ter de desempenhar (Tomás, 28 anos, sem filhos).

Dimensões sociais/normativas

Os vários grupos debateram apenas a responsabilidade social de ter um filho face aos problemas sociais (e.g., violência, trajectórias desviantes) e ambientais (e.g., poluição, catástrofes naturais) actuais. Todavia, este tema não reuniu consenso; a maioria dos participantes dos vários grupos considerou-o uma justificação socialmente aceitável para a decisão de não ter filhos, ao invés de uma motivação genuína.

Dimensões económicas/utilitárias

Os vários grupos, especialmente o G2, mencionaram as restrições e despesas financeiras decorrentes da educação e prestação de cuidados a uma criança. No entanto, os participantes consideraram que estas restrições não determinam a decisão de ter ou não filhos mas o número de filhos que os casais decidem ter.

Dimensões biológicas/físicas

O medo de sofrer complicações físicas na gravidez e no parto foi exclusivamente descrito pelo G4.

Um dos motivos pelos quais as pessoas podem decidir não engravidar tem a ver com o medo da gravidez e do parto, que se relaciona com questões estruturais da personalidade, com a necessidade de controlo (Maria, 30 anos, psicóloga).

As alterações negativas no peso, forma e imagem corporal feminina foram referidas pelos vários grupos, à excepção do G2:

Há outras motivações que já não são tão frequentes, mas que ainda existem, como o medo das alterações corporais que a gravidez vai trazer à mulher, o medo de desfiguramento (Sandra, 26 anos, psicóloga).

Frequência das motivações para a parentalidade

O Quadro 1 sumaria a frequência e a extensão das categorias e subcategorias de motivações para a parentalidade, em cada grupo e no conjunto dos grupos, as suas respectivas percentagens de acordo inter-observadores e coeficientes Kappa de Cohen.

DISCUSSÃO

O presente estudo teve como objectivo conhecer as motivações para a parentalidade numa amostra portuguesa. De modo geral, os nossos resultados foram consistentes com a investigação existente, quanto ao seu conteúdo e frequência. No entanto, parecem apontar para algumas especi ficidades merecedoras de reflexão.

Ao nível do conteúdo, os profissionais contribuíram para uma compreensão mais vasta das motivações para a parentalidade. Neste grupo, a afirmação do estatuto social/identidade de adulto foi considerada específica da gravidez na adolescência, associando-se frequentemente a dificuldades de adaptação. A instrumentalização da religião foi apontada como uma forma de desresponsabilização em relação ao planeamento familiar, nos contextos culturais tradicionais. O medo da gravidez/parto foi descrito com uma motivação característica de mulheres com padrões de funcionamento psicoló gico específicos. Por fim, o apoio ao sustento da família foi relacionado com a obtenção de subsídios sociais nos casais oriundos de meios economicamente desfavorecidos, enquanto a força de trabalho foi relegada para o passado. Esta nova forma de apoio não tem sido descrita na literatura, podendo reflectir as alterações na legislação nacional que tem favorecido as famílias numerosas e com baixos rendimentos na atribuição de subsídios sociais (Instituto de Segurança Social, 2008).

A descrição dos laços familiares e do apoio futuro foi igualmente caracterizada por algumas especificidades, que não têm sido mencionadas na literatura. Os laços familiares não se relacionaram apenas com a companhia para outro filho; contemplaram ainda a coesão geracional e a gratificação que a criança proporciona à família alargada, consistentemente com os estudos nacionais acerca dos significados (Martins, 2010) e funções (Cunha, 2008) de um filho. Do mesmo modo, o apoio futuro não se restringiu ao apoio na velhice, tendo-se igualmente relacionado com o apoio futuro para um filho doente. A ambivalência expressa pelos participantes em relação a esta forma de apoio futuro tem igualmente sido igualmente observada em amostras de pais de crianças portadoras de deficiência (Kimura, Yamasaki, Mochikozi, & Omiya, 2010).

Ao nível da frequência, as motivações negativas foram mais referidas que as positivas nas dimen sões emocionais/psicológicas e foram mencionadas por um número aproximadamente equivalente de participantes. Estes resultados não são consistentes com a literatura, que tem apontado para um padrão inverso (Arnold et al., 1975; Bell et al., 1985). A compreensão das decisões reprodutivas contemporâneas parece, assim, exigir uma abordagem compreensiva que não se restrinja aos condicionantes contextuais e contemple um nível de análise individual (Wijsen, 2002). Com efeito, o crescente investimento das mulheres portuguesas na carreira profissional e a sua forte respon sabilidade nos cuidados parentais (OCDE, 2011) parece traduzir-se ao nível dos constrangimentos pessoais e das exigências parentais que estas percepcionam. Os constrangimentos conjugais assumiram-se como uma excepção a este padrão inverso. A frequência e extensão desta sub categoria não são consistentes com a literatura (Carmichael & Whittaker, 2007). Sugerimos que a sua consciência pode desenvolver-se com a experiência de parentalidade, atendendo à reorgani zação que esta implica na área conjugal (Cowan & Cowan, 1988) e à frequência e extensão desta subcategoria no grupo de mães. Todavia, a proeminência de partici pantes de sexo feminino, com formação superior e nível socioeconómico médio/elevado e o contributo do grupo de mães ao nível do número de unidades analisadas podem ter condicionado os resultados obtidos nas dimensões emocionais/psicológicas das motivações negativas.

As dimensões emocionais/psicológicas e sociais/normativas das motivações positivas não se diferenciaram, de forma clara, quanto à sua frequência e extensão. Estes resultados não são consistentes com a literatura, que tem evidenciado a preponderância das dimensões emocionais/ /psicológicas (Inborn & Van Balen, 2002). Estes resultados podem eventualmente reflectir a persistência de valores tradicionais em relação à parentalidade no contexto sociocultural português; todavia, a divergência de perspectivas que caracterizou a discussão das dimensões sociais/norma tivas (e.g., preceitos religiosos) pode ter influenciado a frequência e extensão desta categoria.

As diferenças de género não se expressaram somente ao nível das motivações negativas (Arnold et al., 1975; Bulatao, 1981) mas igualmente das positivas. A relação com a criança e a realização pessoal afirmaram-se como motivações essencialmente femininas, que parecem desenvolver-se com a maternidade, atendendo à sua frequência e extensão no grupo de mães. As expectativas sociais foram especialmente valorizadas pelos homens que descreveram o instinto biológico como fundamentalmente feminino. Estes resultados parecem evidenciar um maior desejo e centralidade da maternidade para a identidade/realização feminina (Dyer et al., 2008); podem, contudo, ter sido influenciados pelas dinâmicas do grupo de mães e pela inexistência de um grupo de pais com filhos em idade pré-escolar e escolar na nossa amostra.

Não obstante o seu contributo para a compreensão das motivações para a parentalidade, este estudo não se encontra isento de limitações. Além de reduzida, a amostra de conveniência foi maioritariamente constituída por mulheres casadas/unidas de facto, com formação superior e nível socioeconómico médio/elevado. Estas características sociodemográficas podem ter condicionado os resultados obtidos. Os profissionais contribuíram para uma compreensão mais vasta das motiva ções para a parentalidade. No entanto, as limitações da amostra não possibilitam a generalização dos resultados a outras amostras e contextos. Em termos metodológicos, a dimensão dos Grupos 1 e 3 (n=5) foi restringida pela disponibilidade dos participantes, tendo-se revelado inferior ao recomendado – 6 a 10 participantes (Krueger & Casey, 2009). A familiaridade do moderador com parte dos participantes e de alguns participantes entre si pode ter influenciado as dinâmicas de grupo, no sentido da inibição ou desejabilidade das respostas (Morgan, 1996). Do mesmo modo, a moderação da discussão (i.e., exploração de cada uma das dimensões das motiva ções positivas e negativas) e o contexto em que esta decorreu podem ter influenciado os resultados obtidos. A análise de conteúdo com indicação da frequência e extensão de respostas (Krueger & Casey, 2009) não possibilitou uma apreciação aprofundada das dinâmicas e interacções de grupos, cuja relevância tem sido evidenciada na análise de dados provenientes de grupos focais (Kitzinger, 1994); os resultados relativos à frequência e extensão das categorias/subcategorias devem, por isso, ser cautelosamente interpretados. Por último, não foi considerada a triangulação com outros métodos (e.g., instrumentos de avaliação), que possibilitaria averiguar a convergência dos resul tados (Bloomberg & Volpe, 2008).

Torna-se importante desenvolver estudos qualitativos que ultrapassem estas limitações amostrais e metodológicas. Estes estudos poderão contribuir para o desenvolvimento de instrumentos de auto-resposta que permitam avaliar as motivações para a parentalidade. Com efeito, a sua avaliação assume especial relevância, no sentido de melhor compreender as decisões reprodutivas contemporâneas e de promover decisões reprodutivas informadas (Langdridge et al., 2005). A sua influência nas trajectórias de (in)adaptação a diferentes percursos reprodutivos (Canavarro, 2001; Cassidy & Sintrovani, 2008) parece reforçar a importância da sua avaliação, com vista à optimização das práticas clínicas. Embora exploratórios, os nossos resultados parecem sensibilizar os profissionais de saúde para a relevância de atender às motivações femininas, especialmente na presença de dificuldades emocionais.

 

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Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Maryse Guedes, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Rua do Colégio Novo, Apartado 6143, 3001-082 Coimbra. E-mail: maryseguedes@gmail.com

 

NOTAS

1 Os nomes apresentados ao longo desta secção são nomes fictícios.

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