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Análise Psicológica

 ISSN 0870-8231

     

 

A natureza e especificidade do espaço mental através do Rorschach. Um espaço potencial?

– Análise de um protocolo de uma paciente limite (*)

Marta Miriam Oneto (**)

Maria Emília Marques (***)

Catarina Bray Pinheiro (****)

RESUMO

Neste artigo, mostramos a possibilidade de ler, através do Rorschach, o conceito de espaço mental/potencial.

A partir dos trabalhos de Winnicott (1971/1975, 1988, 1990), Grotstein (1978) e Ogden (1985; 1992) sobre o desenvolvimento e características do espaço mental constituímos três tipos de espaço mental que se podem formar num sujeito: espaço mental unidimensional ou universo do ponto, espaço mental bidimensional ou universo da linha e espaço mental tridimensional, universo do plano ou espaço potencial.

Estudamos este conceito na estrutura de personalidade limite.

Apresentamos uma grelha de procedimentos Rorschach que criámos para ler o conceito de espaço mental e aplicamo-la na análise de um protocolo de uma paciente limite.

A análise do protocolo de Rorschach evidencia a existência de um espaço mental bidimensional (linha), com a presença de elementos mais característicos de um espaço mental unidimensional (ponto).

Palavras chave: Espaço mental, Espaço potencial, Estrutura de personalidade limite, Rorschach.

ABSTRACT

In this article, we show the possibility to red, through the Rorschach, the concept of mental space/potential space.

Based on works of Winnicott (1971/1975, 1988, 1990), Grotstein (1978), and Ogden (1985; 1992) about development and characteristics of the mental space we constitute three types of mental space that if can form in a subject: one-dimensional mental space or universe of the point, two-dimensional mental space or universe of the line and three-dimensional mental space, universe of the plane or potential space.

We study this concept in the borderline structure.

We present a list of Rorschach’s procedures that we created to read the concept of mental space and we employ it in the analysis of a protocol of a borderline patient.

The analysis of the Rorschach’s protocol show the existence of a two-dimensional mental space (line), with a presence of characteristic elements of a one-dimensional space (point).

Key words: Borderline structure, Mental space, Potential space, Rorschach.

INTRODUÇÃO

Propomo-nos estudar um conceito não explorado no plano da técnica Rorschach – o espaço mental/potencial –, através de um conjunto de procedimentos, por nós criados, que permitem dotar o instrumento Rorschach de capacidades para aceder a este conceito.

 

O ESPAÇO MENTAL/POTENCIAL

Winnicott (1971/1975) define espaço potencial como uma zona intermediária entre a realidade psíquica, pessoal e interna, e a realidade externa ou compartilhada; um espaço entre a realidade e a fantasia; uma terceira forma de viver. Relaciona-se tanto com o interno como com o externo, mas não pertence a nenhum destes dois domínios, é diferente deles. É o espaço do simbolismo, da imaginação, da criatividade.

Grotstein (1978) define espaço mental (ou espaço psíquico) como o espaço que se situa entre a representação de si e a representação do objecto, espaço este que abrange o espaço em que ambas existem. Inclui todo o conteúdo psí-quico, no qual se inserem os objectos internos, as representações de si e os acontecimentos psíquicos em geral. O autor considera que a capacidade para experienciar espaço é um mecanismo primário do Eu. Esta capacidade decorre da estimulação dos receptores sensitivos da pele do recém-nascido, como uma fronteira entre Eu e não-Eu e como um continente do Eu. Na sua conceptualização sobre o desenvolvimento do sentido de espaço, Grotstein compara o estado fetal, que é um estado de equilíbrio, de harmonia do feto com o seu ambiente, a uma total simetria em termos matemáticos. O autor postula a existência de uma série de pontos na superfície fetal, dos quais emergirá um só ponto, como sendo a soma de todos eles, devido à total simetria. Após o nascimento, o recém-nascido é exposto à experiência, começando a desenvolver-se um fenómeno de assimetria, resultando daqui a extensão do ponto a uma linha (série de pontos). O desenvolvimento posterior do bebé, permite, no momento em que começa a haver alguma diferenciação, que a linha se expanda a um plano e finalmente, a terceira dimensão dará profundidade ao plano.

Ogden (1985, 1992) propõe que o espaço potencial pode ser entendido como um estado mental baseado numa série de relações dialécticas entre união e separação, interno e externo, fantasia e realidade, Eu e não-Eu, símbolo e simbolizado, etc., em que cada pólo da dialéctica psicológica cria, dá forma e nega o Outro, existindo apenas como uma possibilidade hipotética sem o Outro. O espaço potencial é, assim, definido por uma série de paradoxos, simultaneamente de internalidade e de externalidade, que têm que ser mantidos e não resolvidos.

As conceptualizações de Ogden sobre o desenvolvimento do espaço mental convergem no mesmo sentido das de Winnicott. De uma forma sucinta, segundo os autores, o que deve ocorrer em termos desenvolvimentais, para que o espaço mental adquira espessura ou profundidade, i.e., que se constitua como um espaço tridimensional (potencial), é que a unidade fusional inicial composta pela mãe e pela criança – em que há uma adaptação quase total à criança, que não necessita, por isso, de criar símbolos – se transforme progressivamente, mediante um ambiente facilitador e suficientemente bom, numa tríade subjectiva composta por mãe e criança, como objectos simbólicos. De uma forma breve, podemos dizer que este ambiente facilitador e suficientemente bom implica a criação de um espaço (espaço potencial) entre mãe e bebé, no qual é permitido à criança o uso de um objecto transitivo.

A constituição do Eu como objecto pressupõe o Eu como sujeito observador, que o reconhece, com um espaço de pensamento entre os dois, i.e.,

o acesso à tridimensionalidade ou a capacidade para manter um processo psicológico dialéctico, logo, a capacidade para criar significados pessoais representados em símbolos, que são mediados pela subjectividade.

CATEGORIZAÇÃO DO ESPAÇO MENTAL

A partir dos trabalhos de Winnicott (1971/1975), Grotstein (1978) e Ogden (1985) propomo-nos identificar três tipos de espaço mental, cada um com as suas características próprias, que dependem do nível de desenvolvimento atingido: espaço mental unidimensional ou universo do ponto; espaço mental bidimensional ou universo da linha e espaço mental tridimensional, universo do plano ou espaço potencial.

O espaço mental unidimensional ou universo do ponto constitui-se como a forma mais rudimentar que o espaço mental pode apresentar. Associa-se aos estados simbióticos, onde predomina a ansiedade persecutória da posição esquizo-paranóide.

Nesta forma arcaica de espaço mental, o que se verifica é uma ausência de espaço entre realidade-fantasia, interno-externo, Eu-Outro, ou, na linguagem de Ogden, uma ausência de uma dialéctica psicológica. Há, portanto, uma polarização da experiência espacial, com predomínio do pólo da fantasia, onde as coisas são o que são. Não há capacidade para distinguir símbolo e simbolizado (não há espaço entre os dois). Aqui, a fantasia é considerada como um facto em si mesmo, que não pode ser diferenciado da realidade externa. O que encontramos nos indivíduos que se situam nesta dimensão, onde a noção de espaço está perdida, é uma tela de elementos β, i.e, elementos saturados de energia, que não podem aceder à cadeia transformativa, não ganhando qualquer significação. O tipo de pensamento possível a este nível é o pensamento concreto, o pensamento em processo primário, a assimbolização.

Nos funcionamentos mais empobrecidos, pode verificar-se um estrangulamento de qualquer conteúdo mental, não havendo sequer fantasia, estando-se neste caso perante o deserto psicótico.

O espaço mental bidimensional ou universo da linha é o tipo de espaço que podemos associar aos estados fusionais. Em termos evolutivos, é aquele que se situa entre o espaço unidimensional e o espaço tridimensional/potencial. É, ainda, um espaço que não adquiriu profundidade, apresentando-se plano, liso, sem perspectiva, sem espessura. Podemos falar, a este nível, numa ausência de vitalidade psíquica, um espaço onde há lacunas ou buracos psíquicos, em que os conteúdos da realidade interna e da realidade externa são dificilmente ligados. Não existe uma zona intermediária entre estas duas realidades. O que se verifica é um predomínio de um dos pólos da dialéctica psicológica de realidade-fantasia, internalidade-externalidade, Eu-não-Eu. Podemos ter, também, a presença dos dois pólos clivados e/ou uma confusão entre os dois.

Neste espaço, pode verificar-se a emergência do pulsional e a emergência do pensamento em processo primário. A capacidade de simboliza-ção é ainda precária, verificando-se uma lentificação da função α, que conduz a um aumento da identificação projectiva. O sujeito, em vez de pensar, coloca os elementos assimbólicos no outro, via identificação projectiva.

O espaço mental tridimensional, universo do plano ou espaço potencial é a forma mais evoluída que o espaço mental pode apresentar. Neste, a possibilidade de usar um objecto transitivo dá lugar ao acesso à representação do objecto. O Eu e o objecto constituem-se aqui como entidades claramente separadas. Estamos no domínio da separação-individuação e da ansiedade depressiva da posição depressiva. O espaço mental tridimensional apresenta-se como uma zona intermediária onde os conteúdos internos e externos, de realidade e de fantasia se podem ligar e produzir conteúdos novos. Há uma plasticidade mental do sujeito, uma maleabilidade em colocar-se, quer num, quer noutro dos dois pólos da dialéctica psicológica, que se encontram em permanente ligação. O espaço mental adquiriu profundidade, sendo possível aceder à representação, à subjectividade e à intersubjectividade. O acesso à simbolização possibilita a capacidade de ligar, transformar, criar e imaginar, promotora do crescimento e da expansão mental.

São as perturbações no processo de desenvolvimento do espaço mental que conduzem a perturbações no espaço potencial e que dão lugar a que se constituam modalidades de espaço mental mais arcaicas, consoante o grau da falha, que podem ser o espaço mental unidimensional ou o espaço mental bidimensional.

A PATOLOGIA LIMITE

Do ponto de vista estrutural, a organização limite é uma organização da personalidade que se situa entre a estrutura neurótica e a estrutura psicótica.

Segundo Bergeret (1974/2000), a génese dos estados limites é um traumatismo psíquico precoce no segundo estádio anal. Este traumatismo ocorre numa fase em que o Ego está ainda mal organizado e imaturo quanto ao seu equipamento, às suas adaptações e às suas defesas, sendo sentido pela criança como um risco de perda de objecto. A criança entra abruptamente, à custa deste traumatismo afectivo, numa situação edipiana para a qual ainda não está preparada. Aquilo que ocorre, então, nos estados limite é um bloqueio evolutivo da maturidade afectiva do Ego, no momento em que este ainda não está diferenciado sexualmente. A criança entra no segundo estádio anal numa pseudo-latência, que se prolonga, a maior parte das vezes, por toda a sua vida adulta, não lhe sendo possível aceder a uma relação triangular e genital com os seus objectos. A deformação do Ego conduz a uma adaptação anaclítica. O sujeito depende do objecto externo de apoio, que desempenha o duplo papel de Super-ego auxiliar e de Ego-auxiliar. Nestes funcionamentos, é o Ideal do Ego que desempenha a principal função organizadora dos processos mentais.

Da fraqueza do Super-ego e da organização da personalidade em torno do Ideal do Ego arcaico resulta a inadequação dos sujeitos limite, a intolerância à contradição e à incerteza, a dificuldade de elaboração, de reconhecimento, de manipulação e de integração dos fantasmas, a facilidade de passagem ao acto.

Green (1975/1990, 1983) refere-se à precariedade maternal na etiologia da patologia limite: a mãe falha no seu papel de Eu-auxiliar, de continente e de espelho para a criança. O autor introduz o conceito de mãe morta, que caracteriza como um objecto inanimado, deprimido, insensível, distante.

Green (1975/1990) caracteriza o Eu na organização limite como um Eu em arquipélago, i.e., um Eu constituído por núcleos isolados (“ilhas”) relativamente estruturados, mas sem comunicação entre alguns deles. Trata-se de um Eu sem coesão nem coerência, que se traduz, ao nível do funcionamento mental, na existência de pensamentos, de afectos e de fantasmas contraditórios e na sobreposição de elementos dependentes do princípio da realidade e do princípio do prazer, sem prevalência de um sobre o outro.

O mecanismo de defesa central da organização limite é a clivagem (clivagem do objecto e clivagem do Eu). Outros mecanismos de defesa usados são: a identificação projectiva, a idealização, a denegação, a omnipotência, a desvalorização. São também usados mecanismos de defesa neuróticos, já que a organização limite se situa numa zona intermediária entre a neurose e a psicose, mas estes não são suficientes, tendo o sujeito que recorrer por vezes aos mecanismos de defesa arcaicos, de nível psicótico. (Bergeret, 1974/2000; Green, 1975/1990; Kernberg, 1975/ /1979; Matos, 2002).

Green (1975/1990) refere-se a outro mecanismo (a confusão), que considera complementar da clivagem. Para o autor, a presença da clivagem implica necessariamente a confusão, já que aquilo que é separado pelo primeiro mecanismo é passível de ser reunido posteriormente. Assim, os diferentes tipos de material do aparelho psíquico (pensamentos, representações, afectos e mesmo acções) são confundidos nos casos limites, por causa da identificação projectiva.

Green (op. cit.) introduz um outro conceito importante (a psicose privada ou loucura privada), também designada por depressão primária, que é considerada, a par da clivagem/ /confusão um mecanismo psíquico de base nesta organização. É definido como o núcleo psicótico fundamental sem psicose aparente, caracterizado pelo branco do pensamento, pela inibição das funções de representação e pela bitriangulação

O autor explica a bitriangulação como uma clivagem que o sujeito faz entre os pais, em que um deles é o bom, idealizado, mas inacessível, e o outro é o mau, excessivamente presente, perseguidor, invasor. Em qualquer dos casos – inacessibilidade ou intrusão – o objecto não pode ser pensado, porque a falta não pode ser constituída. Só a falta do objecto pode estimular a imaginação e o pensamento, a criatividade e a vitalidade psíquica. Nestes funcionamentos, a não constituição do objecto no espaço psíquico dá lugar ao vazio, ao pensamento em branco.

Assim, esta psicose privada, ou depressão primária, é como “uma paralisia do pensamento, que se traduz por uma hipocondria negativa do corpo e mais particularmente da cabeça: impressão de cabeça vazia, de buraco na actividade mental, impossibilidade de se concentrar, de memorizar, etc.” (Green, 1975/1990, p. 79). Há uma incapacidade de pensar ou representar e de estabelecer as relações internas da simbolização.

A luta contra estas impressões pode levar a uma actividade de pensamento artificial: ruminações, pensamento compulsivo de natureza pseudo-obsessiva, divagações subdelirantes, etc. Kernberg (1975/1979) considera, também, na organização limite o retorno do pensamento em processo primário.

Esta psicose privada faz com que os pacientes limite apresentem uma dupla orientação, delirante e real, manifestando-se como um fenómeno relativamente discreto, descontínuo, parcelar e oculto. O que acontece é uma clivagem do Ego – uma parte adere à realidade, outra acredita na fantasia (Matos, 2002).

Dias (2004) foca a questão da formação e da organização do pensamento, e do não pensamento, da construção/desconstrução da cadeia simbólica e da relação entre percepção e pensamento na patologia limite. O autor explica que pensar é traduzir os elementos β(elementos da percepção), através de uma função pensante (função α), em elementos α. A capacidade da mente tolerar um maior número de elementos β, relaciona-se directamente com a capacidade que ela tem de utilizar a função αpara produzir um maior número de elementos α. O que acontece na patologia limite é que a mente não tem capacidade de transformação pela função αda sobrecarga de elementos β. Os indivíduos limite produzem pensamentos cumulativos, i.e., embora sejam capazes de organizar pensamentos, não são capazes de os articular entre si, porque não suportam o bombardeamento dos elementos βe só pensam a partir do isolamento da percepção, criando lacunas no pensamento. Vivem em rudimentos de αcarregados com energia βnão transformada, porque lhes é difícil introduzir símbolos, que dêem significado aos elementos perceptivos.

Os elementos β que não podem ser colocados na cadeia transformativa, são colocados no outro via identificação projectiva. Os sujeitos limite estão, assim, constantemente a precisar do outro (objecto anaclítico, segunda pele ou Ego auxiliar), que os organiza ou pseudo-organiza.

Se o objecto não cumpre a função de trabalhar um αcarregado de energia βnão transformada, a raiva narcísica é muito acentuada, os aspectos mais destrutivos invadem o sujeito e a frustração da não-resposta do objecto é intolerável, levando ao aparecimento de surtos psicóticos. Se, pelo contrário, o sujeito mantiver relacionamentos que lhe dão uma pseudo-organização, pela manutenção dos objectos (forma pseudo-neurótica), não se encontra a ruptura psicótica, mas sim um empobrecimento dos processos psíquicos, empobrecimento dos processos de simbolização, lentificação da função α, dificuldade na organização dos espaços, empobrecimento do pensamento, empobrecimento do imaginário.

OBJECTIVO

Tendo em conta as características da organização de personalidade limite, parece-nos pertinente estudar o conceito de espaço mental/ /potencial nesta organização.

Da categorização que fizemos do espaço mental, associamos a patologia limite a um espaço mental bidimensional ou universo da linha.

As dificuldades ao nível da separação-individuação que se verificam na patologia limite não promovem a criação de um espaço intermediário entre mãe e bebé, onde poderiam surgir os fenómenos transitivos, dos quais se destaca o uso de um objecto transitivo, que com o decurso do desenvolvimento se alargariam a todo o território da experiência do sujeito, possibilitando a existência de um espaço potencial.

A ausência do uso de um objecto transitivo, objecto este que representa a união e a separação, o interno e o externo, significa a impossibilidade de poder representar o objecto, já que o objecto transitivo se constitui como o primeiro objecto simbólico.

A precariedade na representação do objecto condiciona o acesso à tridimensionalidade. O espaço mental que se pode organizar é bidimensional.

Apesar de na nossa concepção associarmos a patologia limite a um espaço mental bidimensional, há que ter em consideração que não existem modos de funcionamento puros, i.e., devemos enquadrar o conceito de espaço mental num espectro alargado, que se estende desde a estagnação mental até à presença de um espaço potencial – espaço do simbólico, da subjectividade e da intersubjectividade, da imaginação e da criatividade.

MÉTODO

Iremos fazer a análise de um protocolo de Rorschach com base nos referenciais teóricos da Escola Francesa (Chabert, 1997/2003, 1998/ /2003). Mas, uma vez que este é um trabalho sobre o próprio método – o Rorschach –, a análise que faremos do protocolo prolonga os parâmetros que são habitualmente considerados. A proposta que fazemos é, assim, a possibilidade de ler no Rorschach o conceito de espaço mental a partir de uma grelha que criámos, que contém um conjunto de procedimentos de análise que permitem ler na técnica a expressão deste conceito. A grelha de análise inclui procedimentos que permitem evidenciar no Rorschach os elementos característicos dos três tipos de espaço mental que se pode constituir num sujeito – espaço mental unidimensional (universo do ponto), espaço mental bidimensional (universo da linha) e espaço mental tridimensional ou potencial (universo do plano).

Os procedimentos que usamos para ler o conceito de espaço mental incluem os elementos de cotação das respostas – os modos de apreensão, os determinantes e os conteúdos –, os elementos do psicograma, o processo-resposta Rorschach, os movimentos regredientes e progredientes intra e inter cartões, a relação entre as respostas espontâneas e o inquérito e, também, dimensões mais subjectivas, como a atitude do sujeito face à prova, os comportamentos não verbais e as modalidades de relação com o psicólogo. Embora sejam estes os elementos que são usados habitualmente numa análise de um protocolo de Rorschach, aqui eles são usados numa perspectiva diferente, o que demonstra a plasticidade deste método.

PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

PARTICIPANTE

Protocolo colhido em meio hospitalar. Sujeito com diagnóstico de patologia limite.

Susana (S.) tem 26 anos, está desempregada, é separada e tem um filho de 7 anos com quem não vive há 3.

S. apresenta um discurso difuso, concentrando-se e agarrando-se a uma ou duas temáticas, que passam por uma centração no corpo, através das quais parece evitar a emergência de outras dimensões potencialmente desorganizadoras. Há cerca de quatro anos que tem constantemente vertigens, dificuldade em respirar, dores nos ossos, sente “o chão a deslizar”. Tudo isto depois de um acidente de automóvel. Refere, ainda, desmaios e que piora quando está num local com muita luz, ou no meio da multidão. Esquece-se das coisas e “baralha tudo”, os números, os nomes. Afirma ser “muito espiritual”. Já foi a vários médicos, que nada concluem sobre o seu estado de saúde.

É difícil precisar o percurso de vida de S., por alguma confusão e generalizações vagas que caracterizam o seu discurso.

DISCUSSÃO

Depois de realizada a análise do protocolo (ver Anexo), retiramos dessa análise os elementos mais significativos.

No protocolo de Rorschach de S., o que encontramos maioritariamente são procedimentos que reflectem a existência de um espaço mental bidimensional. Não obstante, também estão presentes outros, que se enquadram num tipo de espaço mental unidimensional. Na generalidade do protocolo não há elementos susceptíveis de nos permitirem dizer que se formou nesta paciente um espaço mental tridimensional ou potencial.

Neste protocolo é notória a precariedade da qualidade do materno, característica de um espaço mental bidimensional, que pode ser vista nos cartões cuja simbólica remete para a função materna.

Podemos relacionar esta precariedade da relação maternal precoce com uma perturbação da vinculação, como menciona Matos (2002), ou com a inexistência de uma mãe suficientemente boa, na linguagem de Winnicott (1971/1975), que se traduz numa falha ao nível do holding, do handling e da apresentação de objectos, ou podemos, ainda, convocar Green (1975/1990), que faz alusão às relações, por um lado, de inacessibilidade, de carência, e, por outro lado, de invasão, intrusão, que não proporcionaram o estabelecimento de uma ligação afectiva a um objecto externo de referência – a mãe – ou houve um rompimento dessa ligação. As relações de carência podem ser vistas no protocolo nas respostas D bl (cartões I e II) e Gbl (cartão X), enquanto que a intrusão pode ser evidenciada nas respostas de forma imprecisa. O empobrecimento da função materna pode ser visto, também, na carência de imagens (apenas 14 respostas) e na carência de profundidade e dinâmica dessas mesmas imagens.

Assim, colocamos como possibilidade o não estabelecimento da boa distância necessária, na infância, entre mãe e criança, que levou a que o objecto não pudesse ser formado sob a forma de uma presença imaginária ou metafórica, o que, como consequência, levou a que o espaço interno se tornasse pouco povoado de conteúdos, imagens e representações.

O objecto não pôde, então, ser representado de uma forma consistente, estável. Verifica-se, pois, que S. permaneceu ligada a uma relação fusional, não tendo havido uma área intermediária numa fase precoce do seu desenvolvimento, que possibilitasse o uso de um objecto transitivo, que representasse a mãe, pelo que, como já referimos, a ausência de um objecto externo suficientemente bom não possibilitou o uso transitivo de um objecto. Verifica-se, então, uma fragilidade da internalização e da representação do objecto.

No protocolo de S., a instabilidade da representação objectal é evidenciada nalgumas imagens e nos movimentos intracartões, em que a representação do objecto é frágil, desvanece-se, por vezes quase desaparece.

No cartão I, S. dá como resposta “um bichinho com asas desfeitas”, numa referência a algo que não é um “animal”, não é um “bicho”, é um “bichinho”, que se desfaz, podendo desaparecer.

No cartão III, assiste-se a um movimento regrediente, em que inicialmente S. dá uma “imagem de duas pessoas”, para depois, num segundo momento, evocar um “ET”, um “crânio”, um “esqueleto”, terminando a sua interpretação da mancha com a imagem de um “fantasma”. As pessoas perdem a forma, os limites, o corpo, a espessura, transformando-se em qualquer coisa que é invisível, irreal.

No cartão VII verifica-se, também, uma indeterminação da imagem – um “porquinho”, um “elefante”, não havendo estabilização da representação; o mesmo se verifica no cartão VIII, na dúvida e indeterminação da designação entre um “leopardo” ou um “leão”.

Há em S. uma incapacidade de aceder ao objecto total, que pode ser vista no cartão V, onde são referidas “patas de cavalo” e no cartão VII, onde S. dá como resposta “cabeça de elefante”, numa referência ao parcial, numa impossibilidade de representar o todo (que apesar de tudo mostra uma procura de traços, pontas, pontes, com o exterior). Isto é, também, visível nas respostas em que S. só interpreta partes da mancha, excluindo outras, nos cartões II, VI, VII e na primeira resposta do cartão IV.

A recusa no cartão IX espelha bem a falta fundamental de S., um materno arcaico que é precário, que é, também, visível na resposta adicional a este cartão, numa referência a conteúdos regressivos – “monte de água” e “bichos marinhos”.

Há um vazio interior em S., pela tenacidade de uma representação evocável do objecto, manifesta nas respostas com integração do branco (nos cartões I, II e X).

A precariedade do materno não permitiu a constituição de uma membrana limitadora entre o Eu e o não-Eu, ou seja, a presença de uma realidade pessoal ou interna separada do meio externo envolvente, que se manifesta nas respostas F± e nas respostas FE.

Assim, embora existam fronteiras entre a realidade interna e a realidade externa, elas estão sempre ameaçadas de dano (“asas desfeitas”, “folha descamada, seca”), devido a uma diferenciação parcial entre o dentro e o fora.

É de salientar, contudo, o facto de haver em S. uma constante procura de fronteiras e da sua estabilização, que pode ser ilustrada através do valor de F%a, de 93%, que mostra que na maioria das respostas do protocolo há a participação de um determinante formal, que indica a necessidade de dar um contorno, uma forma, um continente.

Esta invasão do interno pelo externo e do externo pelo interno põe em causa a coesão identitária, que está mal estabelecida em S., como podemos observar no cartão V, cartão da representação de si, em que se verifica a imprecisão do percepto, patente numa resposta F± (“bicho”), que embora seja dada em G, revela uma indiferenciação dos contornos, não havendo uma membrana com limites bem delimitados entre o interno e o externo, pelo movimento de inconstância da representação interna da representação objectal, que leva, depois, à perda de captação do objecto externo, já que se verifica neste cartão uma tendência à contaminação (um bicho com corpo de coelho e asas ou patas de cavalo). Isto parece dar conta de que S. não se constituiu como um Eu inteiro, sólido, total, separado da realidade externa, mas como um Eu constituído por partes ou ilhas – um Eu em arquipélago –, como refere Green (1975/1990), havendo, como nos diz o autor, um espaço vazio entre as ilhas, um mar imenso de nada, expresso no Rorschach pelas respostas com integração do branco, pelas críticas subjectivas, por um tempo de latência elevado e excessiva manipulação dos cartões e também pela recusa no cartão IX.

A precariedade ou o desgaste de um mundo interno empobrecido e pouco povoado de representações, pela não introjecção de bons objectos internos, leva a que S. tente apoiar-se no outro, no mundo externo, no qual procura um suporte. Este aspecto é visível no protocolo de S., especialmente nos pedidos de ajuda feitos ao psicólogo, que ela procura que desempenhe o papel de Eu auxiliar. S. precisa do outro, estabelecendo com ele uma relação de objecto de tipo anaclítico, explicitada por Bergeret (1974/2000), e que podemos ver no protocolo, por exemplo, no cartão X, em que S. dá a imagem de “dois touros encostados de cabeça”.

S. não teve acesso ao uso pleno de um objecto transitivo, este constituiu-se e permaneceu como o seu objecto de apoio, de anáclise. Assim, não houve um evoluir do objecto transitivo para o brincar e para a experiência cultural, ou seja, para um espaço potencial, que se localiza entre o indivíduo e o seu meio envolvente, pois inicialmente não foi criado um espaço potencial físico e mental entre mãe e bebé.

A precariedade de um meio ambiente facilitador e suficientemente bom numa fase precoce do desenvolvimento, não permitiu a construção de um espaço mental tridimensional/potencial.

O espaço mental de S. é um espaço bidimensional, sem perspectiva, sem espessura, liso, que pode ser visto no Rorschach através da presença de conteúdos sem profundidade, lisos (“tapete africano”/“pele”, no cartão VI), conteúdos desvitalizados (“folha desfeita”, no cartão IV) e envelopes sem conteúdo (“fantasma”, no cartão III).

S. possui um espaço mental plano, caracterizado por uma ausência de vitalidade psíquica, com capacidades diminuídas para pensar, representar, imaginar e criar, evidenciado pelo uso ligeiramente superior à norma de respostas globais simples, que traduzem uma abordagem superficial da mancha, sem que haja um movimento de elaboração, ligação e construção dos elementos da percepção. Por outro lado, verifica-se a inexistência de respostas Dd, o que mostra que não há uma procura de um conhecimento mais detalhado, uma atitude de pesquisa ou capacidades de produzir imagens originais.

A dificuldade de S. em distinguir claramente a realidade interna e a realidade externa coloca-a no domínio da assimbolização. Verifica-se, pois, a dificuldade do uso de símbolos por parte de S., que é visível na ausência de uma ressonância fantasmática das imagens dadas na prova com o conteúdo latente dos cartões. Ela consegue aceder ao símbolo, vemos isso na resposta adicional do cartão VI, em que S. dá uma “espada”, no D superior, mas esta capacidade é muito diminuída.

Constata-se que há um colapso da dialéctica psicológica ou do espaço potencial, isto é, uma psicopatologia da simbolização, que se caracteriza pela presença dos dois pólos da dialéctica – o pólo da realidade e o pólo da fantasia –, mas sem ligação, e, portanto, sem espaço entre eles, ou seja, não há uma área intermediária em que possa ter lugar o processo criativo, que podemos ver no protocolo pela ausência de respostas cinestésicas, à excepção da resposta banal no cartão III.

O pólo da realidade da dialéctica psicológica parece ser usado como defesa contra o emergir do pólo da fantasia, mas não há um predomínio de um sobre o outro, eles coexistem e confundem-se.

Há uma tentativa de S. se apegar aos elementos da realidade, pelo recurso a referências pessoais, as observações de simetria, numa simples constatação dos elementos perceptivos, o uso de banalidades, o uso predominante de respostas determinadas pela forma.

No entanto, o pólo da fantasia emerge e, por vezes, invade, tentando S. a todo o custo lutar contra ela, mas por vezes, não o conseguindo. Este mundo de fantasia de S. expressa-se no Rorschach nas respostas de má qualidade formal, respostas de conteúdo (H) e Ad, nas tendências à contaminação, nas dificuldades de leitura do conteúdo manifesto dos cartões e nas perseverações, que dão conta de um lado de S. que está desligado da realidade.

Há um recurso predominante ao pensamento concreto, factual, e ao banal. Mas, por vezes, o pólo da fantasia sobrepõe-se, assistindo-se ao movimento de dispersão da posição esquizo-paranóide.

Há uma precariedade da função α, incapaz de transformação dos elementos β, que invadem S. e que, para se libertar deles e os transformar em pensamento, necessita de recorrer ao outro, que funcionaria como uma segunda pele, como nos diz Dias (2004), que transformaria o que S. não é capaz de transformar.

Assim, a fragilidade da função α faz emergir o mecanismo da identificação projectiva, que a substitui, e que pode ser vista no cartão VIII (“eles estão com ar de quem quer trepar alguma coisa...”) e na prova de escolhas – cartão I (“é um coitado, muito infeliz, muito feio, não tem alegria nenhuma, feio, monótono”). Mas, por vezes, já nem o recurso à identificação projectiva é possível, como se verifica na resposta adicional ao cartão IX. O outro já não cumpre a função de transformação dos elementos β, o que pode levar S. a perder-se num mundo de fantasia. Nas palavras de Dias (2004), esta falha do outro abre o sujeito à loucura, falando o autor dos surtos psicóticos do paciente limite.

Podemos dizer que o espaço mental de S. é bidimensional. Contudo, há zonas do seu funcionamento que remetem para elementos mais característicos de um espaço mental unidimensional, zonas de estagnação. Destacamos, aqui, a recusa do cartão IX, que se constitui como um bloqueio do processo associativo, uma incapacidade de transformar a experiência perceptiva numa imagem, que dá conta de um vazio interior. O mesmo acontece com a descarga de elementos β, que não encontram, por vezes, um elemento transformativo, mesmo que patológico. Salientamos, ainda, as dificuldades de leitura do conteúdo manifesto dos cartões, assim como a presença de temáticas de destruição/deterioração (“asas desfeitas”, “folha desfeita”).

CONCLUSÃO

Neste trabalho procurámos demonstrar a possibilidade de utilizar a prova Rorschach para analisar a qualidade do espaço mental de um sujeito.

Tendo em consideração que quando aplicamos um Rorschach pretendemos obter um conhecimento o mais aprofundado possível do sujeito psicológico, é importante e pertinente que possam ser criados procedimentos novos para analisar outras dimensões do funcionamento mental, às quais ainda não é possível aceder, dadas as possibilidades e potencialidades deste método, as quais tentámos aqui, também, ilustar.

É importante referir que o nosso objectivo foi trabalhar o próprio método – o Rorschach –, pelo que, a análise do protocolo que fizemos pretende ser apenas ilustrativa de como os procedimentos que criámos para ler o conceito de espaço mental podem ser aplicados. Isto é, no protocolo que analisámos, e tal como tínhamos colocado inicialmente, o que encontrámos foi a existência de um espaço mental bidimensional, com vários elementos característicos de um espaço mental unidimensional. Não obstante, dado que a patologia limite se situa numa zona intermediária entre a neurose e a psicose, noutros protocolos limite, embora o tipo de espaço mental que se constitui nestes sujeitos seja o bidimensional, podemos encontrar mais elementos típicos de um espaço mental unidimensional ou até, em funcionamentos mais evoluídos, indicadores de alguma plasticidade mental, característicos de um espaço mental tridimensional/potencial.

Salientamos, ainda, que a grelha de procedimentos que criámos pode, também, ser utilizada em protocolos neuróticos e psicóticos, não se limitando apenas aos protocolos limite.

ANEXO

Análise do protocolo

 

REFERÊNCIAS

Chabert, C. (1997/2003). O Rorschach na clínica do adulto. Lisboa: Climepsi Editores.

        [ Links ]

Chabert, C. (1998/2000). A psicopatologia à prova no Rorschach. Lisboa: Climepsi Editores.

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Winnicott, D. W. (1990). The maturational processes and the facilitating environment. London: Karnac Books.

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(*) Artigo elaborado a partir da dissertação apresentada e defendida no ISPA, em 2009, no âmbito do Mestrado Integrado em Psicologia Clínica, com o mesmo título.

(**) Psicóloga Clínica.

(***) Psicóloga Clínica, Professora Associada do Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

(****) Psicóloga Clínica, Hospital Fernando Fonseca.

 

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