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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.27 n.3 Lisboa jul. 2009

 

O Eu-pele no Rorschach: A sua expressão em adolescentes toxicodependentes (*)

Márcio B. F. Linhares (**)

Catarina Bray Pinheiro (***)

RESUMO

O conceito de Eu-pele, a estrutura e funcionamento dos envelopes psíquicos, em particular as funções de manutenção, continente e pára-excitação, serve de base à elaboração de novos procedimentos de interpretação para o Rorschach, subsequentemente aplicados na análise dos protocolos de dois adolescentes toxicodependentes. Os procedimentos propostos, revelaram-se relevantes para a expansão do potencial clínico do Rorschach, como forma de acesso ao funcionamento psíquico, num dado momento da vida de um sujeito. Neste sentido, a articulação entre o Eu-pele e o Rorschach poderá ajudar a clarificar o sentido/função do consumo de substâncias psicoactivas ao longo dos movimentos da adolescência.

Palavras chave: Adolescência, Eu-pele, Rorschach, Toxicodependência.

ABSTRACT

The Skin-Ego concept – on the psychic envelopes structure and functioning, particularly on the “holding”, “containing” and “protection against stimuli” functions – served as a base for the elaboration of new interpretation procedures for the Rorschach projective test, subsequently applied in the analysis of the protocols of two drug addicted adolescents. The proposed procedures were found relevant to the expansion of Rorschach’s clinical potential, as a form of access to psychic functioning, in a particular moment of a subject’s life. Therefore, the articulation between the Skin-ego and Rorschach might help clarify the meaning/function of the drug use throughout the phases of adolescence.

Key words: Adolescence, Drug addiction, Rorschach, Skin-ego.

INTRODUÇÃO

A partir das descrições de Anzieu (1985/ /1995) sobre o funcionamento dos envelopes psíquicos, propomo-nos estabelecer correspondências entre a construção e elaboração do símbolo-Rorschach, o trabalho das funções de manutenção, continente e pára-excitação e os procedimentos de elaboração e redimensionamento do espaço psíquico característicos da adolescência (Marques, 1999). Para tal, desenvolvemos uma análise do processo-resposta Rorschach a partir de elementos que reenviassem para o trabalho do Eu-pele, de forma a destacar o processo que vai da captação dos perceptos e construção do engrama ao tecer do fio projectivo.

Ao longo do tempo, contribuições de diferentes escolas têm enriquecido a fundamentação teórica do Rorschach, transformando a sua abordagem interpretativa e alargando a sua aplicabilidade, nomeadamente como meio de acesso aos processos de desenvolvimento e crescimento característicos da adolescência (Chabert, 1997/1998; Marques, 1991a,b, 1996, 1999; Rausch de Traubenberg, Bloch-Laîné, Boizou, Martin, & Poggionovo, 1988; Rausch de Traubenberg, Bloch-Laine, Duplant, Martin, & Poggionovo, 1993). Neste sentido, propomos novas hipóteses de interpretação de elementos quantitativos e qualitativos deste instrumento, ensaiadas na análise (cartão a cartão) dos protocolos de dois adolescentes toxicodependentes.

Os objectos externos (o grupo, o meio, os pais) são a plataforma, o espaço psíquico alargado sobre o qual o adolescente abandona as funções ainda insuportáveis para determinadas instâncias do seu aparelho psíquico, constituindo-se como uma espécie de pseudo-pele psíquica (Bégoin-Guignard, 1989; Jeammet, 1980).

As manifestações adictivas são um dos modos privilegiados de expressão de determinados conflitos próprios da adolescência, pelo que a delegação de funções do Eu-pele no exterior poderá inserir-se num contexto de risco inerente aos comportamentos ordálicos, de procura de limites e estruturação da identidade (Anzieu, 1985/1995; Baudin, 2001; Dias, 2000; Jeammet, 1994).

Neste âmbito, a mobilidade e transgressão dos limites é entendida como mais um aspecto fundamental do processo adolescente (Marques, 2004). A transformação, (re)composição dos objectos internos e externos, conduz a novas relações continente-conteúdo, operadas pelo/para o estabelecimento de uma nova barreira de contacto, que Dias (2004) traduz por espaço psíquico, pele mental. Salienta-se, ainda, o carácter evolutivo destas condutas de risco, deslocando-as do domínio exclusivo da psicopatologia para uma concepção normativa da adolescência, composta por oscilações entre movimentos regressivos, desintegradores e progressivos, integradores (Marques, 1999; Pinto, 2002).

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

De um ponto de vista freudiano, todas as funções psíquicas têm uma ancoragem numa função corporal, a partir da qual se desenvolve um correlato mental. Para Anzieu (1985/1995) a pele não só fornece ao aparelho psíquico as representações constitutivas do Eu, como também assegura as suas principais funções, nomeadamente: manutenção, contenção, pára-excitação, individuação, intersensorialidade, suporte da excitação sexual, recarga libidinal, inscrição dos traços e auto-destruição.

O Eu-pele assegura uma função de manutenção do psiquismo, no sentido em que se apoia na interiorização do holding materno, fornecendo a solidez e unidade necessárias ao seu funcionamento. A identificação primária ao objecto de suporte permite a aquisição de um eixo vertical fálico sobre o qual se edifica a estrutura mental. Permite também o desenvolvimento das representações de frente e verso, precursoras do dentro e fora, i.e., o sentimento de reforço e protecção das superfícies dorsal e ventral, possibilita a criação de um espaço intermédio de depósito, primeiro, de sensações, depois de pensamentos.

Isto corresponde já à segunda função descrita por Anzieu (função continente), que tanto remete para um Eu-pele continente (superfície estável e imóvel, servindo de receptáculo passivo de sensações, imagens e afectos), como para a função contentor, de transformação, elaboração e representação (descrita por Bion como função α). Ambas as dimensões são indispensáveis ao desenvolvimento do aparelho psíquico, pela formação e transformação. Do mesmo modo, continente e conteúdo são indissociáveis: a pulsão, como força motriz do psiquismo, encontra a sua potência na pressão que exerce contra os limites que encontra, enquanto que estes só adquirem a sua forma insuflados por um núcleo pulsional que os sustenha.

Estes limites, não só contêm o interno como protegem do externo, cumprindo uma função de pára-excitação. A superfície externa do Eu-pele deve ser suficientemente densa (para impedir a sobre-estimulação) e porosa (para permitir as trocas com o exterior). O funcionamento psíquico adequado pressupõe um espaço de diferenciação entre estas superfícies interna e externa, de forma a prevenir invasões exteriores e/ou vazamentos do interior.

METODOLOGIA

Centrada nas três funções supracitadas, a metodologia consistiu na proposta de novos procedimentos de análise e interpretação da prova Rorschach, tratando-se de um instrumento que permite reconstituir os processos de pensamento que operam num aparelho psíquico em mudança catastrófica (Marques, 1999).

No que concerne à função de manutenção, propôs-se que as respostas alusivas ao eixo central, comum a todos os cartões (Chabert, 1997/1998), fossem interpretadas como a expressão da actividade de manutenção, averiguando-se o papel desse eixo na organização da imagem, ou seja, se constitui um suporte eficaz para o engrama; se representa um suporte partilhado com outro objecto; ou se remete, como sugere Anzieu, para a acção da clivagem.

No primeiro caso, há que ter em conta que determinados cartões, cuja configuração é mais compacta e maciça (I, IV, V e VI), facilitam a manifestação de um simbolismo ligado ao fálico, proporcionando a representação deste “falo interno” que fornece ao espaço mental o poder de se manter. O emprego de um modo de apreensão global (G), numa imagem completa e sólida, pode dar conta dessa capacidade para manter a arquitectura interna do Eu, revelando a interiorização do holding, leia-se, da função de manutenção. Da mesma forma, os grandes detalhes (D) íntegros, podem traduzir o reconhecimento dessa capacidade no próprio e no Outro. Esta solidez pode, contudo, representar a calcificação de qualquer tentativa de movimento, na medida em que os conteúdos revelem rigidificação ou desvitalização (da imobilidade fóbica à inanimada). No mesmo sentido, os elementos que indiciam normopatia (número elevado de Banalidades, F%, F+% e H% elevados) podem revelar a maquinalização da manutenção, sujeita a preceitos externos “excessivamente” internalizados. Assim, holding deixa de ser traduzido como suportar, manter, passando a significar constringir.

A presença de cinestesias (K) num protocolo remete para a possibilidade de elaborar o movimento de objectos e/ou personagens, pela mudança ou construção de novas posições, sobre a manutenção de elementos da posição anterior.

Outro elemento de cotação do Rorschach a relacionar com esta função é a qualidade e quantidade das respostas formais (F), que nos remete para a distinção figura-fundo. A importância do trabalho do negativo, facultado pelo branco do cartão e pelo destaque da mancha, solicita um trabalho de individualização, de separação entre o dentro e o fora (Roman, 1996). Por outro lado, a incapacidade para realizar este destaque figura-fundo pode revelar uma tendência para a dispersão, ou para a diluição. Anzieu relaciona a deliquescência dos corpos, nas pinturas de Francis Bacon, com perturbações na função de manutenção, correspondentes à imagem do corpo do alcoólico. Esta liquefacção dos conteúdos internos reenvia-nos para as respostas associadas à excessiva porosidade dos continentes, revelando também a perturbação das funções continente e pára-excitação, numa configuração de Eu-pele passador, e para fortes angústias de derramamento.

O branco intramacular (Gbl, D bl, Dd bl) pode, também, representar a disfunção da manutenção, os núcleos vazios dentro do núcleo interno, os espaços por preencher, constituindo uma “invasão do espaço psíquico por conteúdos pouco diferenciados, em relação com o Id” (Roman, 1996, p. 141), ou espaços evacuados porque insustentáveis. Pode questionar-se se esta evacuação não corresponderá à exteriorização de partes do aparelho psíquico, cujo manejo é provisoriamente incomportável. Assim, a estas imagens de incompletude poder-se-iam alternar outras de sobrevalorização narcísica, de idealização, que corresponderiam à delegação da função no exterior, a construção externa de um Ideal do Eu a interiorizar (ou, por vezes, a incorporar).

Esta incompletude também se manifesta pela imposição de imagens do interior do corpo (partes do corpo humano, Hd, Anatomias), relacionadas com a reactivação da angústia de castração, expressa pelos adolescentes de 17 anos (Marques, 1999). Apesar de (relativamente) alcançada a diferenciação figura-fundo do ponto de vista formal, ao nível dos conteúdos é revelada a fragilidade do eixo fálico, i.e., da função de manutenção.

As imagens de reflexo ou simetria também sugerem uma certa diluição do Eu no Outro. Aqui, a manutenção é partilhada com uma figura de suporte anónima (porque igual). Os temas de amparo, em que dois objectos dividem um eixo comum (mais frequente nos cartões bilaterais), podem remeter para a dificuldade em assegurar individualmente o funcionamento do aparelho psíquico. Por vezes, na própria comunicação com o clínico vemos apelos à certificação, pedidos de permissão para criar, na tentativa (mesmo que transitória) de dividir com o Outro a responsabilidade de simbolizar.

O eixo central também serve de sustentáculo para mecanismos de clivagem e identificação projectiva, para a cisão dos engramas em bom e mau, amor e ódio, vida e morte, retratados na bilateralidade de um cartão e/ou numa alternância que percorre o protocolo. Esta clivagem serve/reflecte as organizações mais arcaicas do Eu-pele, em que a manutenção do aparelho psíquico se faz por oposição à indiferenciação, à fusão, num retorno ao bipartido como protecção contra o multipartido. Os movimentos de regressão que permeiam a adolescência traduzem-se por uma forte “reactivação” destes mecanismos, como defesa contra as fragilidades narcísicas que decorrem das mudanças em curso. Estas especificidades do processo adolescente e suas traduções no Rorschach encontram-se documentadas na literatura (Marques, 1999).

No que respeita à função continente, Anzieu (1985/1995) utiliza uma definição bipartida, relacionada com o conceito de “continente” (envelope, recipiente ou limite) e com o conceito de “contentor” (reportando para a função αtal como descrita por Bion). Pressupõe-se que os conteúdos sejam neutralizados e conservados por um receptáculo “continente”, sendo depois transformados e elaborados por um “contentor” que os torna mais representáveis.

Os elementos descritos por Chabert, que se baseia nos trabalhos de Anzieu para relacionar a qualidade dos determinantes formais e a do envelope psíquico, parecem reflectir de forma mais evidente o funcionamento continente (do que contentor), até pela sua relação com as variáveis Barreira e Penetração, muito ligadas à qualidade dos limites entre dentro e fora. As próprias variáveis estabelecidas por Fischer e Cleveland (1958) – apesar de concebidas noutro âmbito – estão profundamente ligadas à função de delimitação do Eu-pele e suas perturbações. Segundo Chabert (1997/1998), verifica-se uma boa capacidade de delimitação dos engramas, sendo o envelope psíquico eficaz na sua função continente, quando os conteúdos referentes a pele, membrana, ou superfície protectora estão associados a determinantes de boa qualidade formal.

No entanto, referências a objectos blindados, ou objectos cujas superfícies são reforçadas, remetem mais directamente para o conceito de segunda pele psíquica de E. Bick (1967/1991). Este reforço delimitador representa um trabalho da função de pára-excitação (a que se alude adiante), no sentido de assegurar uma pseudo-independência do objecto externo que desempenha a função de pele-continente ou, na terminologia de Anzieu, a função de continente. Como refere Roman (1996), esta ameaça à integridade da folha interna do Eu-pele pode coincidir com uma rigidificação da folha externa.

A substituição da função desempenhada pelo objecto de dependência parece também aparecer na expressão Rorschach dos púberes, com o privilegiar do modo de apreensão global, ou a maior participação dos esbatimentos de textura (Marques, 1999). Neste sentido, os G estariam ao serviço da delimitação e os E na procura regressiva de contacto com uma superfície continente, que desempenhe a função precária.

A diferença do funcionamento de “continente” e de “contentor” consiste no facto do primeiro implicar formar e o segundo transformar. Este conceito de mudança está presente nas variáveis desenvolvidas por Fischer e Cleveland (1958), nomeadamente, na referência a objectos escondidos ou cobertos, cotáveis como Envelope. Sobrepor algo a um objecto preexistente implica uma acção delimitadora – transformação operada pela função α.

Contudo, na definição das imagens cotáveis como Penetração verificam-se outras modificações e intercâmbios entre interior-exterior, talvez porque estes actos de mudança se caracterizem pela ruptura. No processo-resposta Rorschach interessa compreender o valor desta ruptura na construção do fio projectivo: representa uma mudança progrediente ou fica-se pela regressão e afunda-se na disruptividade (Emmanuelli, 2001).

A diluição da fronteira dentro-fora, expressa na imprecisão das formas, nas cinestesias que impliquem ruptura, na invasão dos perceptos pela cor, implica a permutabilidade dos conteúdos que procuram novos continentes, em torno do exercício da identificação projectiva e do ensaio de novas configurações da barreira de contacto (conceito que, aliás, se articula manifestamente com o de função contentor).

A bilateralidade das manchas (presente mesmo nos cartões mais fechados) permite a produção de interacções entre personagens humanas ou animais, nomeadamente através das cinestesias, que não só remetem para a capacidade de definir os limites de cada uma das partes (o seu continente), como dão conta da qualidade da comunicação entre elas, i.e., do funcionamento do envelope psíquico como interface, permeável aos conteúdos.

Os movimentos de objectos (kob), a comutação das formas (na sequência de respostas F-para F+, ou de FC para C, etc.) e até, possivelmente, a sua fragmentação (nos conteúdos Frag ou Expl), traduzem a necessidade de comunicação entre espaços, desempenhada pela função contentor (e autorizada pelas funções de pára-excitação e de intersensorialidade). Isto se a regressão permitir uma progressão criativa, se a decomposição fornecer os conteúdos para uma nova criação, um novo símbolo. Caso contrário, a simbolização dissolve-se na confusão dentro-fora, submersa nos elementos que a percepção evoca (a cor, o branco, o negro, etc.), perante a inconsistência do envelope e a sua inépcia em conter ou transformar.

A confusão dentro-fora define o Eu-pele adesivo, descrito por Roman (1996), e implica uma relativa indiferenciação entre a função continente e de pára-excitação. A diferenciação destas duas funções permite estabelecer o intervalo entre as folhas interna e externa do Eu-pele, um hiato entre os envelopes, definindo um espaço nuclear, individualizante, isolado e/ou isolável. O isolamento de D intramaculares, ou mesmo pequenos detalhes (Dd), pode comunicar esta capacidade para definir um núcleo interno bem contido, sobre a mancha que serve de fundo, por sua vez bem destacada do fundo branco do cartão.

Na inversão dos envelopes, as superfícies interna e externa do Eu-pele encontram-se perfiladas de tal forma que podem surgir vivências de difusão dos conteúdos internos – o envelope continente não se encontra bem protegido pelo de pára-excitação. A predominância de uma temática do olhar pode remeter para determinado tipo de angústias de intrusão psíquica ou difusão do pensamento. A dificuldade em conceber os conteúdos internos isolados do exterior, deverá ser tanto atenuada quanto for possível discriminar as funções e integrá-las, de forma a que o trabalho da identificação projectiva não implique este “perder-se” no Outro.

A colagem dos envelopes, interno e externo do Eu-pele, também sugere uma disrupção, mas com origem na dificuldade em estabilizar o tal núcleo interno assegurado pela função de manutenção. Respostas do tipo FC ou FE podem remeter para esta tentativa de conter o movimento pulsional interno, ou indiciar o recurso à função de pára-excitação para reduzir a excitabilidade dos perceptos, moderando o acesso do externo ao interior. Perante o aumento das tensões internas, o fantasma de esvaziamento narcísico (liquefacção, explosão, etc.) determina a necessidade de recurso a esta espécie de exosqueleto.

A função contentor participa na qualidade do envelope de cada engrama isolado, mas também está presente na evolução dos limites de resposta para resposta, de cartão para cartão, ou seja, com a qualidade dos limites ao longo do fio-projectivo.

A capacidade de evocar várias imagens a partir da mesma mancha, de não ficar preso dentro do continente criado, de efectuar o movimento de síntese implicado na construção de um G elaborado, ou um movimento de análise dos detalhes numa resposta inicialmente apreendida em G, determina a mobilidade das fronteiras e abre espaço à criação de novos espaços. É nesta evolução que se pode (a)testar a capacidade de transformação através do processo criativo, capacidade de estabelecer novas relações continente-conteúdo, de permitir-se a mudança catastrófica.

A eficácia da função continente depende da articulação das dimensões contentor e continente, e a criação do símbolo não pode acontecer sem o trabalho de delimitação e comunicação respectivos. O desfasamento entre o formar e o transformar verifica-se quando há apreensão de detalhes que, apesar de associados a boas formas, não estabelecem qualquer tipo de vínculo entre si, ou seja, estão completamente isolados.

Se a cotação de determinantes formais de boa qualidade (F+) remete para a eficácia da função continente, poderá subentender-se um contributo da função de pára-excitação quando se tratem de imagens apreendidas em zonas da mancha que possuem uma valência pulsional particular (como é o caso dos vermelhos), ou cujas características evocam reacções manifestas ao longo do protocolo (como acontece quando há uma reactividade particular ao negro). Poder-se-á realizar o mesmo tipo de leitura em relação aos elementos mistos de cotação (FC, FE e até mesmo FClob), tendo em conta que a qualidade formal do engrama revela o espaço facultado pela pára-excitação aos envelopes de manutenção e continente (ou seja, a distância entre as folhas interna e externa do Eu-pele).

A relação entre a oralidade e a epiderme é o protótipo de todas as relações figura-fundo. A partir do modelo oral, os orifícios tornam-se zonas erógenas, como figuras ou pontos de prazer intenso e rápido sobre o fundo de sensualidade global da pele. Daí que a inversão da relação figura-fundo possa estar relacionada com a (con)fusão entre as funções de pára-excitação e de suporte da excitação sexual, uma perturbação fundada na oralidade (Anzieu, 1985/1995). Esta interpenetração dos envelopes está patente quando as formas dos engramas não resistem à invasão dos conteúdos externos, como se verifica em alguns CF, em que um fundo de tensão pulsional determina a (in)definição dos limites.

A labilidade, que caracteriza alguns processos-resposta, poderá também configurar uma forma (paradoxal) de protecção, através da inversão dos envelopes de excitação sexual e de pára-excitação, permitindo a constituição de um ecrã de dispersão/ /imprecisão que impede o contacto directo com o objecto de angústia. A eficácia deste ecrã de afectos é limitada porque, apesar de lograr a irrepresentabilidade do objecto, inviabiliza o desenvolvimento contido e sustentado dos processos de construção, ligação e simbolização.

As cinestesias também são elementos importantes de avaliação da actividade de pára-excitação, pelo facto de oferecerem uma medida da flexibilidade dos limites, da barreira de contacto. As imagens de movimento remetem para a permeabilidade desta barreira externa, tanto mais quanto se trate de interacções humanas ou animais (K, kan), que revelam a comunicação interno-externo e a interpermutabilidade dos conteúdos.

As cinestesias parciais (kp), pelo contrário, poderão dar conta do funcionamento restritivo da pára-excitação, quando as solicitações do percepto sejam tão angustiantes que não permitam lidar com uma representação integral. Da mesma forma, pode-se questionar se as cotações de figuras parciais (Ad, Hd) não poderão ser interpretadas como o trabalho da função de pára-excitação na restrição de conteúdos animais ou humanos demasiado angustiantes. Tal seria ainda mais marcante se este funcionamento aparecesse associado à cotação de G barrados, correspondendo a uma restrição suplementar (desta feita, ao nível perceptivo), que encontraria a sua expressão mais saliente no detalhe oligofrénico (Do).

No que concerne à construção do fio projectivo, o aumento evidente do tempo de latência pode constituir uma tentativa de criar um hiato (temporal) entre o estímulo e as suas solicitações mais imediatas, possibilitando uma (re)elaboração das representações ou afectos evocados e evitando

o choque, evidenciando o funcionamento da pára-excitação. O choque corresponderá à falência desta estratégia, conjugando outros elementos que remetem para a expressão directa (não elaborada) da angústia. Do mesmo modo, é admissível que um manifesto abaixamento do tempo de latência corresponda à falência da pára-excitação, revelando uma permeabilidade acrescida às estimulações externas.

Noutras proporções, esta interpretação é extensível à denegação, em que é criado espaço para a elaboração do símbolo através da tentativa de distanciamento em relação ao projectado, ou seja, a denegação dos conteúdos internos solicitados, mas também à recusa, onde a acção de pára-excitação é levada ao extremo, impedindo a comunicação com o clínico (a permeabilidade interior-exterior) ou, até mesmo, dificultando os processos de pensamento (impermeabilizando as transferências entre continentes/conteúdos internos).

SUJEITOS

O P. tem 19 anos, frequenta o ensino superior (encontrando-se deslocado de casa). Foi internado numa Unidade de Desabituação, cerca de 15 dias antes da sessão de avaliação. Quatro meses antes tinha tido um episódio alucinatório, na sequência do consumo simultâneo de “pastilhas”, haxixe e álcool. Manifestou a intenção de aproveitar o internamento para deixar de consumir haxixe – sua substância de preferência, que consumia diariamente. Disse preferir a “erva” que o acalma e associou os consumos de haxixe à produção artística, nomeadamente à pintura. Descreveu efeitos que se assemelham a uma produtividade quase alucinatória. Referiu consumos regulares de “pastilhas” e esporádicos de “ácidos”.

Renitente em reconhecer a necessidade de apoio terapêutico, aceitou realizar o teste na perspectiva de explorar essa possibilidade. Estava visivelmente ansioso, algo que assumiu como traço de personalidade.

A S. tem 18 anos, estatura média, olhos bastante expressivos do seu estado de ânimo. Iniciou processo em comunidade terapêutica, registando evolução na passagem para a segunda fase de tratamento. Nove meses após a admissão, foi expulsa, na sequência do incumprimento de regras da instituição.

Iniciou consumos de canabinóides aos 10 anos. No início da adolescência, relata ter sido vítima de tentativa de abuso sexual por parte de um tio e fez internamento após tentativas de suicídio, por ingestão de fármacos. Diz ter entrado em depressão profunda aos 15 anos, após morte do pai, altura em que inicia o consumo de “drogas duras”: cocaína e ecstasy.

Deixa de se relacionar com os amigos de escola, pois sentia que nada tinha que ver com “aquele tipo de pessoas normais”. Sentia-se bem, salvo raras excepções, no seio do grupo de “amigos de consumo”.

DISCUSSÃO

A partir da interpretação dos dados dos protocolos e dos psicogramas, reflectiu-se sobre a pertinência dos procedimentos de análise propostos.

Verificou-se que nem sempre são a coesão e integridade dos engramas que revelam a predominância da função de manutenção na sua construção. A dificuldade em consentir a secção da mancha nos seus detalhes constituintes, forçando uma figura única, às expensas da sua qualidade formal (“um rato esmagado”), pode denunciar a fragilidade do núcleo de manutenção. À construção global dos engramas, também pode subjazer a (con)fusão dos detalhes – “Duas pessoas. Não, a mesma...” – relacionada com fantasias de (re)encontro fusional com o objecto de suporte, na partilha do mesmo espaço de manutenção.

Os conteúdos rígidos ou desvitalizados, das respostas do P. ao cartão IV – “um tapete... daqueles de ursos” e “uma árvore” – são representativos de estratégias de passividade (operadas pelas funções manutenção e pára-excitação), perante a ameaça da tensão pulsional que logo se revela – “explosão nuclear”. Apesar de disruptivos, estes movimentos sugerem capacidade de exploração de várias dimensões – a tridimensionalidade do “sombreado” e a temporalidade da cinestesia.

Os dados dos psicogramas não permitiram testar se os elementos que traduzem normopatia estão relacionados com o constrangimento da função de manutenção. Contudo, foi possível relacionar a boa qualidade formal dos engramas com a distinção figura-fundo e a eficácia das funções manutenção, continente e páraexcitação. Por exemplo, no cartão II, “poderia ser uma borboleta”, denota-se a eficácia da contenção e da pára-excitação perante a solicitação pulsional da mancha (apreendida no detalhe vermelho), numa figura cuja integridade e formalidade são conseguidas, revelando alguma capacidade de mediar o espaço entre as folhas interna e externa do Eu-pele.

A integração dos detalhes brancos intramaculares aparece apenas no protocolo de P., parecendo remeter para a inversão dos envelopes, nomeadamente na resposta adicional ao cartão X, em que “a cara é a parte branca” (D bl F- Hd). A formulação da resposta surgiu associada a fragilidades identitárias, numa procura ainda muito centrada no Eu. Estes elementos corroboram a proposta de que as restrições ao nível do conteúdo (mais Ad do que Hd e Anat) podem traduzir vivências de incompletude e fragilidade do eixo de suporte, portanto, da função de manutenção.

As respostas também sugerem que são as imagens de apoio, colagem e fusão, mais do que as imagens de simetria, espelho e/ou duplo, que traduzem a necessidade de um objecto de análise, que desempenhe a função de suporte do Eu-pele, como é evidente, mas pouco eficaz, no protocolo de S.: “um animal, ou melhor, dois animais idênticos pegados”. Alternativamente, propôs-se que as representações especulares remetem para estratégias mais centradas na procura de um continente emulado do Outro, que proteja o núcleo interno do Eu-pele (já assegurado por uma função de manutenção, relativamente, consistente).

Verificou-se ainda que, em torno do eixo de manutenção se organizam mecanismos de clivagem e de identificação projectiva, operados sobre o eixo vertical das manchas, mas também num eixo virtual, transversal ao processo-resposta – no cartão I, “diabólico, fria” e no cartão II, “pureza e ingenuidade”. No protocolo de S., em particular, o papel da identificação projectiva foi preponderante no esbatimento das fronteiras dentro-fora.

Nos dois protocolos, exemplos de boa qualidade formal – “borboleta” (F+), no cartão II – remetem para a eficácia da função continente, enquanto que a sua falência contrasta na construção de outros engramas – “... cara de um morcego (...) uma cara esquisita” (F-), no cartão VI. Neste aspecto, os dados dos protocolos e psicogramas vieram corroborar as propostas avançadas, de que a qualidade formal dos engramas remete para a qualidade dos envelopes psíquicos.

Quanto à interpretação dos esbatimentos de textura como expressão da procura regressiva de um envelope continente, a resposta de P., “tapete... daqueles de ursos... de pele”, parece elucidativa da eficácia, mesmo que provisória, da função continente, que antecede a ameaça disruptiva de “uma explosão nuclear” (cartão IV).

No cartão V de P., propôs-se considerar a delimitação eficaz de conteúdos acromáticos – “um insecto nocturno” (FC’) – como actividade de contenção e transformação dos afectos depressivos. Por outro lado, na análise do psicograma de P., propôs-se uma relação entre a percentagem de conteúdos humanos (H%=11) e a capacidade da função continente, estabelecendo os limites do Eu e contribuindo para a definição da identidade.

A partir das respostas “uma explosão nuclear” e “uma explosão”, respectivamente nos cartões IV e IX de P., sugeriu-se que as cinestesias de ruptura e os conteúdos Explosão estariam associados ao funcionamento contentor (traduzindo a necessidade de comunicação dentro-fora e de ensaio da barreira de contacto, o que sabemos ser presente na adolescência). Aqui, essa transgressão dos limites e tentativa de intercâmbio redundou na destruição total dos engramas, sem intento e/ou possibilidade de recuperação e sem criação de novas imagens.

Analisando a sucessão formal do protocolo de P., encontram-se dados que permitem consolidar a hipótese de que os pólos formativo-transformativo (continente-contentor) da função de continente podem operar de modo distinto. O processo-resposta de P. é construído numa perspectiva mais transformativa (contentor) – com respostas variadas e sequenciais a um mesmo cartão, diferenças relevantes entre o espontâneo e o inquérito, e algumas cinestesias – enquanto a qualidade dos continentes (formativa) fica para segundo plano – como é indicado pelos baixos valores de F% e F+%. A repetição, quase perseveração, de um mesmo continente “cara” indicia uma tentativa de compensação desta carência da função.

Respostas como “... é assustadora! Representa medo, escuridão e (...) parece um monstro” (cartão IV de S.), revelam que as solicitações fantasmáticas do cartão e a excitabilidade do percepto inviabilizam o funcionamento eficaz da função de pára-excitação (ClobF), resultando na imprecisão dos limites, numa má relação figurafundo.

Colocou-se em hipótese que os elementos de cotação K e kan poderiam ser interpretados como “medida” de permeabilidade e flexibilidade do envelope de pára-excitação. No entanto, em qualquer dos protocolos, as cinestesias humanas revelam uma certa porosidade, traduzindo a carência e/ou mesmo falência da função “Extraterrestres... Duendes, todos juntos numa festa” (Inquérito) “... espaço que criam (...) para uma pessoa estar e parece que não está”.

Considerou-se importante aprofundar a interpretação dos aumentos do tempo de latência, que nos protocolos analisados surgiram contextualizados de formas distintas. A resposta “cara de gato selvagem” (cartão III de P.) aparece associada a elementos que remetem para o funcionamento de pára-excitação – a delimitação formal da cor (FC) e o “pôr em desenho” (Ad/Desen). Estas estratégias permitiram circunscrever as solicita-ções mais agressivas e denegar a sua origem, criando um envelope de pára-excitação onde é manejada a angústia. Noutra resposta de P., “rato esmagado” (cartão VI), o aumento do tempo de latência coincide com outros elementos que caracterizam o choque (a falência formal e o conteúdo fragmentado): a barreira de pára-excitação não suportou o impacte do percepto. Por outro lado, o comentário de S. ao último cartão – “muita confusão, insegurança, coisas muito ambivalentes – é antecedido por uma pausa incaracterística, o que exprime uma intensa dispersão. Neste caso, a interpretação deve atender à falência da pára-excitação e das outras funções do Eu-pele.

A resposta adicional de P. ao cartão X, “dois cavalos-marinhos, cor-de-laranja, metidos entre as algas”, possibilita uma análise de vários procedimentos propostos, uma vez que representa uma boa integração do trabalho das três funções principais. Verifica-se uma boa distinção figura-fundo e figura-figura, que preside ao destaque dos detalhes. As figuras animais, bem enumeradas e diferenciadas de forma coesa nos seus envelopes (D FC), dão conta da capacidade continente e de manutenção, apesar da solicitação agressiva que a cor teve no espontâneo: “galos prontos para lutarem” e “uma explosão”. O conteúdo “algas” (Pl) representa uma segunda folha constitutiva do engrama, contribuindo para envolver a cena num envelope de pára-excitação, que reforça a contenção formal do afecto (FC) na transformação do clima conflituoso do espontâneo – operada pela função de contentor, numa acção delimitadora, que esconde/envolve o conteúdo, modificando-o.

Os dados não permitiram observar a pertinência de alguns procedimentos propostos. Contudo, a sua ausência também poderá ser significativa, conquanto possa traduzir a inacessibilidade a determinado tipo de funcionamento. Por exemplo, nenhum dos sujeitos revelou acesso ao processamento de um G elaborado, para cuja construção concorre a actividade das três funções.

Foram também inexistentes as referências a objectos blindados ou reforçados, cotáveis como Barreira, remetentes para o funcionamento combinado continente/pára-excitação. No protocolo de P., talvez porque as estratégias de reforço narcísico se caracterizaram mais pela apreensão global e individual dos perceptos, no de S., porque se evidenciou precisamente o contrário, ou seja, a imprecisão dos limites e a indefinição das superfícies continentes.

Resumindo, no que respeita a P., verificou-se que predominou a problemática da identidade, na procura de um continente estável do Eu-pele – expressa através de um conteúdo “cara”, repetido e espelhado na sua forma “esquisita”. Este singular (narcísico) alternou com imagens bilaterais reveladoras de fragilidades egóicas nucleares – na dependência do suporte e contenção do Outro – que lembram mais um registo púbere do que propriamente adolescente.

Por outro lado, P. revela capacidades de criar, de explorar limites e a expressão adequada dos afectos (pela relativa integração da cor e dos esbatimentos) e indicia potencialidades ao nível da relação e da subjectividade. O desejo de relação (idealizada) abre possibilidades de interacção, mas impõe o anonimato dos intervenientes. A indefinição de géneros, perante um materno-feminino ameaçador e um paterno-masculino esvaziado, dificulta a (re)integração do casal parental combinado, do ser e do realizar. As progressões, nem sempre pacíficas, por vezes impõem uma agressividade demasiado disruptiva para os recursos do seu Eu-pele.

No protocolo de S., a (con)fusão dos envelopes significa, mais do que a falência da função continente, a dependência da manutenção do Outro. A individualidade contestada na indefinição dos limites dentro-fora, num “jogo de forças entre mim e a minha mãe (...) como se não houvesse diferença de hierarquia, luta constante que não leva a lado nenhum”. Estar “pegado” significa partilhar envelopes, numa luta pela “liberdade”, que activa a angústia da pele rasgada, numa ambivalência tangencial à clivagem. Neste quadro, a inversão dos envelopes de excitação e pára-excitação tem a função de encobrir a profundidade do vínculo ao objecto e a indispensabilidade da sua manutenção.

CONCLUSÃO

A partir da discussão dos procedimentos de interpretação do Rorschach, elaborados através do organizador Eu-pele, procurou-se enquadrar a análise dos protocolos com as vivências de cada sujeito, com o intuito de compreender melhor o(s) seu(s) processo(s) adolescente(s) e perceber que função(ões) desempenha o consumo de substâncias.

Apesar das vicissitudes, P. logrou responder à situação projectiva num contexto de abstinência, tomando mão de elementos de ligação, comunicação e simbolização. Adivinha-se-lhe a possibilidade de progredir no seu processo adolescente, através da (re)construção e (re)organização dos envelopes de manutenção, continente e de pára-excitação, pela (re)interiorização das funções do Eu-pele delegadas no espaço psíquico alargado. Este potencial, ainda diluído na multiplicidade e mobilidade da sua expressão, é sugerido pelo Rorschach.

A criatividade, que P. atribui aos canabinóides, permite-lhe manter um Eu-pele aplanado e fantasiar novas possibilidades de ligação, comunicação e simbolização, explorando novas dimensões, alienígenas, mitológicas, psicadélicas. Esta atribuição de propriedades produtivas às substâncias psicoactivas corresponde à delegação das funções do Eu-pele num objecto mágico que permite o acesso a dimensões (aparentemente) inacessíveis.

Por outro lado, substâncias desinibidoras (tal como o álcool e o Ecstasy) podem ter a função de facilitadores da relação, envolvendo-a numa atmosfera idílica, num envelope para as angústias que o encontro do/com o Outro evoca.

Quanto a S., pode compreender-se o consumo de estimulantes no âmbito de uma estratégia similar à de barreira de fumo – que passa pelo recurso à excitabilidade e à agitação psicomotora como envelopes de protecção. A ineficácia deste funcionamento é inibitória da progressão e coloca S. face a uma representação de si equivalente a um “protótipo de como são as pessoas”, limitada no seu ser e impossibilitada de realizar o trabalho solicitado pela situação projectiva e exigido pelo devir adolescente.

O externo, o grupo de “amigos de consumo”, devolve uma imagem que S. não encontra junto das “pessoas normais”, não fornece apoio ou continência suficientes para delimitar o Eu em relação ao objecto familiar. A pseudo-pele psíquica do objecto-grupo não oferece estabilidade suficiente à delegação de funções ainda (di)fundidas no espaço do objecto-materno. Enquanto a indefinição um-dois sugere a anulação de um autêntico espaço de individualidade, torna-se difícil construir o símbolo da separação, cuja consequência fantasiada é a laceração da pele comum a sujeito e objecto.

Conceber as funções do Eu-pele como ferramentas de interpretação do processo-resposta Rorschach, permite recolher elementos adicionais para a compreensão da relação entre o Eu e o Outro. Tendo como eixos de referência as dimensões da representação de si e da representação da relação, estabelecem-se, assim, ligações com uma leitura mais clássica do Rorschach, alargando as possibilidades clínicas deste instrumento privilegiado na área da avaliação psicológica. A análise do funcionamento de manutenção e continente, principalmente, mas também de pára-excitação, fornece-nos dados sobre a estabilidade dos espaços entre o interno e o externo, sobre o jogo de contenção e transformação das tensões pulsionais e de redimensionamento do espaço psíquico, que concorrem para a manutenção de uma continuidade identitária, sem prejuízo para a exploração e expansão dos limites. Por outro lado, a análise também proporciona referências ao espaço que o sujeito (se) permite em relação ao Outro, à flexibilidade da barreira de contacto, inclusive, na permeabilidade do envelope de pára-excitação, e à delegação de algumas funções no espaço psíquico alargado.

Estes elementos constituem aspectos centrais no desenvolvimento dos processos de pensamento e do próprio processo adolescente. A exploração de várias configurações e funcionamentos do envelope psíquico, remete para um trabalho caracterizado por avanços e recuos, construção e desconstrução, que ressalta através do processo-resposta Rorschach – de uma forma mais flexível e variada no caso de P. e com uma instabilidade mantida no protocolo de S.

O consumo de substâncias imiscui-se nestes processos, satisfazendo necessidades específicas de delegação de funções que o próprio Eu-pele não desempenha suficientemente bem. Num caso, como elemento de verticalidade e pretenso “combustível” de criatividade (ou simbolização), noutro como barreira de excitabilidade entre o Eu e o objecto (alternativa à instabilidade da barreira de contacto).

No processo-resposta Rorschach, o símbolo pode encerrar múltiplos significados e sentidos, e remeter para diferentes relações do sujeito consigo próprio, com os outros, com as substâncias, a compreender no contexto de processo individual.

Consideramos a vantagem em consubstanciar a articulação dos conceitos de Eu-pele e adolescência, nomeadamente numa perspectiva normativa, sob o enfoque da metodologia projectiva, antes de tentar aprofundar as relações entre o processo adolescente e o funcionamento adictivo. Desta forma, sobressaíram associações que importaria explorar, nomeadamente: a inflação do núcleo de manutenção, emprestado por algumas substâncias, num movimento de empoderamento; a autorização para formar e transformar (envelope continente-contentor) concedida pelo consumo de alucinogénios; a contenção da angústia de contacto num envelope de pára-excitação (e eventualmente, de inter-sensorialidade) fornecido por algumas substâncias desinibidoras; a função dos estimulantes na construção de uma barreira e fumo, autêntico envelope de protecção contra a diluição do Eu no Outro.

Além destas interrogações sobre o sentido/ /função de diferentes tipos de consumo para indivíduos no final da adolescência, o trabalho com uma faixa etária restrita e elevada sugere a relevância de uma análise conjunta de protocolos de adolescentes com várias idades e em diferentes momentos do seu processo de desenvolvimento.

Sendo já controverso falar de dependência de substâncias na adolescência propriamente dita, seria discutível fazê-lo em relação à puberdade. Não obstante, seria interessante estudar como se vai movendo/alterando o sentido/função do consumo de substâncias psicoactivas ao longo dos movimentos do adolescer. Apenas um olhar clínico, num dado momento da vida de um sujeito, poderá dar conta desses sentidos. É esta forma de acesso ao funcionamento psíquico, aqui formulada na articulação entre o Eu-pele e o Rorschach, que propomos seja transposta para outros momentos de desenvolvimento e psicopatologias.

No que respeita às três funções do Eu-pele sobre as quais se desenvolveram os procedimentos de análise, sobrevieram algumas hipóteses que em seguida se discutem.

Considera-se que a análise e interpretação dos protocolos teria beneficiado da cotação dos índices Barreira e Penetração (tal como é preconizada e realizada por alguns autores como Chabert, Roman e Emmanuelli), permitindo uma apreciação mais completa e consistente de alguns procedimentos propostos, em particular, para o funcionamento continente-contentor.

É essencial referir a importância de intersectar os procedimentos de interpretação e significados de cada uma das funções, pese embora aqui surjam particionados. Neste sentido, questiona-se se as cotações Ad e Hd, interpretadas como funcionamento de pára-excitação, não traduzirão, também, uma confusão dos envelopes continente e pára-excitação, na medida em que a restrição do conteúdo está associada a uma restrição do continente total – que, em certos casos, também implicaria a intervenção da função de auto-destruição.

Por outro lado, seria interessante alargar o conceito de operador dos processos de transformação, aqui associado à função de contentor, explorando o carácter transformativo da função de pára-excitação, nomeadamente na passagem do espontâneo para o inquérito.

Propomos, ainda, que se explore como operam as funções do Eu-pele e que configuração dos envelopes psíquicos é expressa pelas Perserverações.

Em relação às outras funções do Eu-pele propostas por Anzieu – individuação, intersensorialidade, suporte da excitação sexual, recarga libidinal, inscrição dos traços (e auto-destruição), cujo estudo se chegou a considerar no âmbito deste trabalho, sugere-se que sirvam como pontos de partida para outros trabalhos baseados na mesma metodologia.

Em suma, o referencial teórico estabelecido por Anzieu, a aparente imprecisão das suas definições é um apelo à exploração, ligação e comunicação. O conceito de Eu-pele e das suas funções permite a exploração de uma multiplicidade de sentidos para a expressão do sujeito através do Rorschach. Esta abertura, não só contribui para o desenvolvimento do corpo de conhecimento que sustenta a utilização da metodologia projectiva, como também fornece elementos para uma melhor compreensão do sujeito psicológico, conquanto seja feita uma leitura singular e contextualizada dos processos mentais que concorrem para a construção do processoresposta Rorschach.

 

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(*) Artigo baseado na monografia de licenciatura com o mesmo título, apresentada e defendida no ISPA em 2004, na área de Psicologia Clínica.

(**) Psicólogo Clínico, Equipa Multidisciplinar de Apoio aos Tribunais de Angra do Heroísmo.

(***) Psicóloga Clínica, Hospital Fernando Fonseca.

 

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