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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.27 n.3 Lisboa jul. 2009

 

O Rorschach e o agir na patologia borderline: A alucinação negativa e a simbolização (*)

João Carlos Viegas (**)

Maria Emília Marques (***)

RESUMO

O nosso objectivo é aceder à natureza dos mecanismos psíquicos e dos processos mentais e relacionais subjacentes ao agir na patologia borderline, concebendo-os como uma procura de continente, sentido e simbolização que actua contra a ameaça do nada, que se encontra subjacente à insubstância do simbólico.

Para pôr à prova esta concepção, concebemos o Rorschach como um “espaço virtual de alucinação negativa”, assimilando pressupostos metodológicos que estabelecem o instrumento como um “espaço de relação, interpretação, comunicação e simbolização”.

Em termos conclusivos julgamos ter prestado um contributo teórico para a compreensão dos fenómenos do agir, na medida em que o concebemos de um modo distinto das concepções anteriores; assim como um contributo metodológico, na medida em que a Psicologia Clínica se tem mostrado destituída de métodos e técnicas aptos a abordar a dimensão do negativo, a presença de fundo do nada e a ocorrência da alucinação negativa.

Palavras chave: Agir, Alucinação negativa, Patologia borderline, Rorschach.

ABSTRACT

We have attempted to reach the psychic mechanisms together with mental and relational processes, underlying acting in the Borderline pathology, conceiving it as a search for continent, sense and symbolisation, which acts against the threat of nothing that underlies the absence of substance of symbolic.

To test this conception, we regard Rorschach as a “virtual space of negative hallucination”, by assimilating previous methodological assumptions that establish the instrument as “a space of relationship, interpretation, communication and symbolisation”.

All in all, we believe to have presented a new theoretical contribution to the understanding of the phenomena involving acting, to the extent that we have conceived it differently from the previous conceptions; as well as a new methodical contribution, since the Clinical Psychology has proved to lack the methods and techniques fit to tackle the dimension of negative, in other words, the fundamental presence of nothing as well as the occurrence of negative hallucination.

Key words: Acting, Borderline pathology, Negative hallucination, Rorschach.

 

INTRODUÇÃO

A preocupação, justificada, com a exuberância patológica do agir, tem origem na visibilidade e gravidade que os seus fenómenos apresentam: as condutas de risco a vários níveis, a agressão, a violência, a criminalidade, o suicídio, o homicídio, etc.

Tais fenómenos encontram o seu principal domínio de expressão nas patologias borderline, no seio das quais o agir, a falta de controlo do impulso, se revela como a característica mais comum, desconcertante, preocupante e socialmente inquietante. No plano da clínica, estas patologias destacam-se ainda por serem as mais amplamente representadas, com os pacientes que mais exigências compreensivas e dificuldades técnicas têm erguido, ao nível dos processos de “cura”.

Assim, nestes quadros clínicos em que toma importância central o agir, o estudo aprofundado da especificidade dos seus processos revela-se um vértice de investigação privilegiado, ao serviço da necessidade de fazer frente às dificuldades encontradas.

O agir, entendido como um processo de descarga consubstanciado no acto impulsivo devido a uma falha instalada ao nível das capacidades de mentalização e/ou elaboração psíquica (Bergeret, 1998; Millaud, 1998; Tardif, 1998), tem sido invariavelmente descrito numa dimensão agressiva, como o resultado de uma força impulsiva, cega e inusitada, fantasmaticamente animada e destituída de sentido.

Contudo, para nós, o agir é concebido como uma procura de continente, sentido e simbolização que, inscrito sempre numa relação, actua antes de mais contra a ameaça do nada (Viegas, 2007).

No seio desta concepção destacamos duas dimensões, de carácter interdependente: (I) o agir como procura de simbolização que se inscreve necessariamente no quadro de uma relação; (II) o agir como procura de simbolização, que é uma resposta à ameaça do nada que se encontra subjacente à insubstância do simbólico.

Consideramos, assim, que o agir deve ser compreendido no quadro geral de uma teoria que dê conta das dimensões relacionais que lhe presidem e que, para além disso, se mostre particularmente sensível à ameaça do nada, ou seja, uma teoria do negativo. O nada é, efectivamente, o negativo radical (Green, 1993).

Se bem que muitas concepções se tenham revelado, de forma crescente, sensíveis à necessidade de inscrever o agir na esfera da relação, o mesmo não se pode dizer relativamente à questão do negativo.

Quanto aos métodos utilizados para a avaliação e diagnóstico das problemáticas em questão, o método Rorschach é, reconhecidamente, o mais sensível às dimensões primitivas do funcionamento mental borderline, que se manifesta impregnado pela dominância do processo primário, enquanto os testes psicológicos mais estruturados e de natureza mais objectiva, não assinalam nada de particular, dadas as capacidades adaptativas que estes sujeitos manifestamente preservam, estando presente a manutenção da prova da realidade (Kernberg, 1975).

Contudo, os procedimentos Rorschach utilizados na abordagem dos fenómenos borderline em geral, e do agir em particular, mostram-se insensíveis à condição subjacente do negativo.

É assim que, com o intuito de suplantar esta lacuna, procedemos a uma investigação através da qual procurámos estabelecer duas dimensões fundamentais: (I) em primeiro lugar, fundamentar teoricamente a nossa concepção do agir como procura de simbolização, recorrendo a integrações tecidas essencialmente entre os contributos de Freud (1925/1973) e Bion (1965, 1967) e articuladas no quadro geral da teoria do negativo de Green (1993); (II) em segundo lugar, e para pôr à prova esta concepção, formulámos dimensões da técnica e procedimentos específicos que nos permitiram conceber o Rorschach como um “espaço virtual de alucinação negativa” (Viegas, 2007), recorrendo fundamentalmente aos contributos metodológicos de Marques (1994, 1999), que estabelece o instrumento como um “espaço de relação, interpretação, comunicação, transformação, ligação e simbolização”.

A PATOLOGIA BORDER E O AGIR

Concepções teóricas gerais

Existem duas grandes tendências dominantes, que concorrem no mesmo terreno, inscritas em torno da controvérsia conflito vs. défice (Greenberg & Mitchell, 1983/2003; Grotstein, 1987; Grotstein, Lang, & Solomon, 1987).

As teorias do conflito, de cariz eminentemente pulsional, proclamam a primazia etiológica da incapacidade de mentalização e integração das exigências libidinais e agressivas do conflito pulsional, contra as quais o sujeito procede a uma mobilização massiva de mecanismos de defesa primitivos, nomeadamente, a clivagem e a identificação projectiva.

Estes mecanismos de defesa primitivos, que actuam antes de mais contra as exigências pulsionais insatisfeitas ou contraditórias, sempre intoleráveis e relacionadas com angústias de perda objecto (na senda de Freud), ou esquizo-paranóides (na senda de Klein), geram uma deturpação fantasmática acentuada e destrutiva da captação da realidade e dos objectos de relação. Tal deturpação pressupõe então uma perturbação severa dos limites Eu–não-Eu, instalada na base de uma indiferenciação estabelecida entre os arranjos destrutivos da pulsão e o seu objecto, que declara a presença de uma patologia fundada nos destinos da pulsão, no seio do narcisismo precoce.

As teorias do défice, de cariz eminentemente relacional, proclamam a primazia etiológica do défice, instalado ao nível da interiorização das funções do Eu – como a manutenção dos limites, o controlo da tolerância à frustração e o controlo do impulso –, pressupondo um sujeito traumaticamente frustrado no seio do seu narcisismo, dada a precariedade empática das respostas dos objectos do Eu às suas necessidades nucleares.

A percepção justificada e realista destas falhas origina, secundariamente, um exagero acentuado e destrutivo das tendências naturais para o pensamento animista e fantasista, contra o qual o sujeito mobiliza, secundariamente, mecanismos de defesa primitivos, como a clivagem e a identificação projectiva. Estes mecanismos de defesa podem manifestar-se, quer pela retaliação agressiva, quer como procura de prazer libidinal puro, sempre como estratégias de expiação da falha empática, mas cuja função revela, antes de mais, os esforços fracassados de auto-regulação e manutenção da coesão do Eu, persistentemente ameaçado por angústias de desintegração.

Para além destas duas inscrições teóricas, podemos ainda delimitar um terceiro terreno de concepções mais recentes, que têm vindo a proclamar a necessidade de abordar a falha instalada ao nível da interacção dos mecanismos de retro-acção que actuam entre os diversos factores constitutivos – neurobiológicos, psicológicos (intrapsíquicos e intersubjectivos ou relacionais), sociais, etc. –, no seio dos quais se destacam a pulsão e o objecto, considerando-se então o conflito e o défice como duas face da mesma moeda (Grotstein, 1987; Grotstein, Lang, & Solomon, 1987). Independentemente das divergências e integrações relativas à etiologia e compreensão da natureza essencial da falha, considera-se sempre que esta última condena invariavelmente as capacidades de mentalização-adaptação e o acesso ao pensamento simbólico, levando ao fracasso dos processos de auto-regulação, integração e elaboração mental das tensões psíquicas e dos estados afectivos.

O fracasso destes processos dá lugar à emergência de uma actividade fantasmática de natureza eminentemente destrutiva, da qual o sujeito pode procurar aliviar-se através de processos que assumem a forma de descarga – evacuação sobre os objectos, veiculados através da identificação projectiva patológica, que arrasta para fora os produtos da clivagem, pressupondo uma perturbação severa dos limites dentro-fora, Eu–não-Eu. Está aqui o terreno fértil do agir.

Estas concepções, sendo sensíveis à precariedade das capacidades simbólicas e ao enquadramento relacional do agir, denotam contudo uma centração no fantasma, leia-se, na positividade do fenómeno inconsciente, permanecendo insensíveis à dimensão que, quanto a nós, se encontra necessariamente subjacente à insubstância do simbólico: a ameaça do nada, do sem-sentido e a presença de fundo de uma angústia de natureza fundamentalmente nadificante (Viegas, 2007).

O agir como procura de simbolização: uma teoria do negativo

Para fundamentarmos a nossa hipótese, comecemos por dizer que a ameaça do nada conduz, efectivamente, ao problema do negativo e do trabalho do negativo (Green, 1986, 1993, 1994, 2000) e, consequentemente, à questão da alucinação negativa (Green, 1977, 1993), como mecanismo central que desempenha funções nucleares no seio dos processos constitutivos. Tal como a descreve Green (1993), a alucinação negativa é, por um lado, um mecanismo nuclear e propulsor, que actua no seio dos processos constitutivos da condição estrutural e simbólica do sujeito e, por outro lado, um fenómeno mental que destapa a ameaça do nada.

Sempre que um acontecimento psíquico se apresenta como uma realidade por pensar ou, se quisermos, como um “acontecimento pulsional” por pensar, a alucinação negativa exerce os seus efeitos, o que remete para a representação da ausência de representação, que expõe a mente às condições que a tornaram possível, ou seja, o apagamento do objecto e a sua transformação em estrutura enquadrante do sujeito (Green, 1977, 1993, 1994).

Por outras palavras, a alucinação negativa destapa a ameaça do nada e incita o pensamento que alucina no fundo branco das suas próprias produções – sobre o qual o objecto se apaga –, a re-percorrer a trajectória de um movimento, através do qual perceber não é conhecer, é reconhecer e pensar sobre um percebido cuja informação que veicula se encontra englobada naquilo que a pulsão traz consigo e se imprime numa dominante perceptivo-sensorial, presidida pelo par contrastante prazer-desprazer. Portanto, a base de ocorrência da alucinação negativa é, na verdade, o processo primário (Green, 1977, 1993, 1994).

Efectivamente, como considera Bion (1992), o destino dos elementos beta pode corresponder, precisamente, aos fenómenos submetidos ao domínio do princípio do prazer-desprazer, ao qual Freud (1920/1973) subordina toda a actividade pulsional do Id. Assim, em última instância, esta actividade pulsional, inscrita numa dominante perceptivo-sensorial – beta, sem-sentido e tendencialmente caótica , remete o sujeito para a possibilidade da sua transformação ulterior, desde que os conteúdos mentais em questão encontrem um continente psíquico próprio onde se alojar, ligar, religar, simbolizar e pensar, através da identificação projectiva (normal), na relação continente-conteúdo (Viegas, 2000, 2007). Caso isso não suceda, uma solução, ou pseudo-solução, é a descarga-evacuação dos conteúdos mentais emergentes, como prelúdio do agir.

Dito isto, consideramos que a assimbolia é, efectivamente, a questão border mais central, que revela a precariedade instalada ao nível dos processos de transformação do objecto em estrutura enquadrante do sujeito. A assimbolia declara, portanto, a precariedade da constituição de um continente psíquico próprio, autónomo e, consequentemente, declara a precariedade dos limites Eu–não-Eu, dentro-fora, interno-externo.

Tendo em conta estes pressupostos a patologia borderline é, efectivamente, uma patologia dos limites. Sempre que um acontecimento psíquico se apresenta como uma realidade por pensar, a alucinação negativa, como representação da ausência de representação, exerce os seus efeitos no momento presente, destapa a ameaça do nada e a identificação projectiva excessiva actua na perfusão dos limites dentro-fora, como preludio do agir e como procura de continente, sentido e simbolização.

Por outras palavras, a identificação projectiva predomina amplamente sobre a função alfa (Amaral Dias, 2004) e a mente funciona sob um modelo de evacuação-acção, como prelúdio do agir. Mas aos conteúdos mentais evacuados – elementos beta – preside o “querer implícito” dos conteúdos que procuram continente, sentido e simbolização.

O agir é, efectivamente, uma procura de simbolização que actua contra a ameaça do nada, à qual preside a ocorrência da alucinação negativa do objecto. Como contrapartida, resta a retirada, o retraimento narcísico, pseudo-depressivo, facultado através de formas diversas de pseudo-mentalização

O AGIR NA PATOLOGIA BORDER À PROVA NO RORSCHACH

Para pôr à prova as nossas concepções sobre o agir, revisitámos o método Rorschach, de acordo com os nossos objectivos e de modo coerente e convergente com as concepções que adoptámos, para o tornar particularmente sensível às dimensões relacionais e à questão do negativo: a ameaça do nada e a presença de fundo de uma angústia fundamentalmente nadificante, tão frequentemente expressa nas queixas destes sujeitos sob a forma de sentimentos de vazio e de falta de sentido.

As repercussões da controvérsia conflito vs défice, a que anteriormente nos referimos, reflectiram-se ao nível das abordagens Rorschach dos fenómenos borderline, em geral, e do agir em particular, estando bem expressas na literatura da escola francesa (Chabert 1883/1994, 1983/1999) e de uma das escolas americanas (Lerner, 1991; Lerner & Lerner, 1980) de metodologia projectiva.

Como reflexo das concepções teóricas em que se inspiram, no que diz respeito à especificidade dos processos do agir, independentemente da divergência relativa à etiologia da falha que lhe dá origem, ambas as escolas procuram captar no Rorschach a falência das capacidades simbólicas, dando conta da emergência de uma actividade fantasmática eminentemente destrutiva, veiculada através da identificação projectiva excessiva, ou patológica, que arrasta para fora os produtos da clivagem e pressupõe uma perturbação severa dos limites Eu–não-Eu, dentro-fora, interno-externo (fantasia-realidade).

Utilizámos como base do nosso método o modelo Rorschach estabelecido por Marques (1994, 1999), que concebe o instrumento como um espaço de relação, comunicação, ligação, transformação e simbolização. Utilizando como base este modelo, particularmente sensível ao processo de simbolização, procedemos então a novas elaborações, com vista a conceber o Rorschach como um espaço virtual de alucinação negativa.

Partindo da assimilação estabelecida por Marques (1994) entre processo-resposta Rorschach e o modelo de transformações de Bion (1965), consideramos que as transformações ocorrem, na sua dimensão mais abstracta e essencial, sob o pano de fundo do nada, ou seja, sob a condição radical do negativo.

Assim, consideramos que o processo-resposta Rorschach, que se revela como um processo de transformação resultante da percepção de uma mancha que contém qualidades psíquicas essências – o caos e o nada –, revela a natureza da realidade psíquica do sujeito, como a sua “realidade última” ou “verdade original”, sendo necessária a participação da alucinação negativa, potencialmente induzida por essas qualidades. Por outras palavras, é necessário que o objecto se apague, como representação da ausência de representação, para que se revele o modo como se transforma em estrutura enquadrante do sujeito. Revela-se então, através dos produtos da transformação, a natureza imperceptível, não figurável nem representável – incognoscível – da estrutura enquadrante do espaço interno representativo (Viegas, 2007).

Tornar o nosso instrumento sensível a estas expressões, estabelecendo-o como um espaço virtual de alucinação negativa, implica então renovar e redimensionar o nosso olhar sobre as qualidades psíquicas e perceptivas – o caos e o nada que reconhecemos serem intrínsecas à natureza das manchas Rorschach.

Efectivamente, percepcionar uma mancha Rorschach, e dado o impacto percetivo-sensorial de carácter estranho, desconhecido, disruptivo e sem-sentido, gera um sentimento de caos psíquico que se impõe ao sujeito como um acontecimento psíquico por pensar. O caos, o impacto sensorial e sem-sentido da realidade perceptiva da mancha, é um mal menor face à eminência do nada que se encontra subjacente, o fundo branco sobre o qual o objecto se apaga e o caos se destaca como um acontecimento psíquico por pensar. Este nada, que se encontra subjacente ao lugar onde o objecto se apaga e o caos se destaca, impõe-se então como representação da ausência de representação e a alucinação negativa exerce os seus efeitos no momento presente: incita o pensamento, que alucina no fundo branco das suas próprias produções, a repercorrer a trajectória de um movimento que só se pode realizar, através do processo primário, pela percepção/recaptação que religa o traço amnésico, a reminiscência evocadora do afecto-representação, como material para ligação, transformação e simbolização, portanto, através da identificação projectiva, na relação continente-conteúdo.

Debrucemo-nos então sobre estas soluções, em termos de procedimentos de análise.

PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Os nossos procedimentos visam captar as expressões que revelam as consequências directas da ocorrência da alucinação negativa no Rorschach no caso dos sujeitos borderline, que se traduz, antes de mais, na derrapagem dos processos perceptivos e na perda de eficácia da adaptação perceptiva de base (F-), mostrando o fracasso das defesas pela realidade (Chabert, 1987/1998).

No momento em que é perdida a adaptação perceptiva de base, o objecto apaga-se e a alucinação negativa destapa a ameaça do nada, dando origem, dada a precariedade dos limites dentro-fora, à evacuação dos conteúdos mentais emergentes – elementos beta –, através da identificação projectiva excessiva ou patológica, como preludio do agir. Estes processos evacuativos assumem, efectivamente, uma forma de descarga sobre os objectos, que surgem então atingidos, distorcidos, por vezes bizarros, confabulados, contaminados, etc. (F-). Contudo, aos conteúdos mentais evacuados preside o intuito ou o querer implícito dos conteúdos que procuram continente, sentido e simbolização.

Mas, para além disto, a expressão-revelação Rorschach destes processos pode, efectivamente, relacionar-se directamente com (I) angústias de perda de objecto – e, implicitamente, de separação-individuação –, assim como, secundariamente, com (II) angústias de desintegração e com (III) angústias esquizo-paranóides.

(I) Relaciona-se directamente com angústias de perda de objecto – e, por derivação, com angústias de separação-individuação –, na medida em que, quando a alucinação negativa exerce os seus efeitos, o objecto se apaga, é perdido e declara sem subterfúgios imediatos a ameaça do nada, porque o objecto perdido não pode ser reencontrado, ou seja, o objecto é (foi) perdido mas não transformado em estrutura enquadrante do sujeito – e esta é, como fundamentámos, a questão border mais central.

Deste modo, a ocorrência da alucinação negativa constitui-se como uma verdadeira reactualização projectiva, ou como uma revivescência actual da perda, sempre resentida como uma ruptura brusca e destrutiva. Esta reactualização projectiva revela, então, a perturbação severa dos limites dentro-fora, Eu–não-Eu, instalada na base de uma indistinção entre os arranjos destrutivos da pulsão e o seu objecto. São estes arranjos destrutivos, como “crenças pulsionais” enraizadas num narcisismo destrutivo (Green, 1983, 1994), que então se consubstanciam em toda a gama de equações simbólicas – dentro igual a fora –, presididas pela categoria geral destruído-destrutivo, no seio das quais os objectos – manchas – são englobados, distorcidos, destruídos, esmagados, contaminados, etc.

(II) Neste quadro, a alucinação negativa exerce os seus efeitos, o pensamento alucina no fundo branco das suas produções e imprime-se uma actividade perceptivo-sensorial, beta, caótica e sem-sentido, porque não pode ser transformada. Este caos psíquico pode, efectivamente, constituir-se como uma ameaça de desintegração que ataca a coesão do Eu, originando esforços fracassados de auto-regulação, que podem, mais uma vez, assumir a forma de descarga sobre os objectos-manchas.

Contudo, quanto a nós, trata-se aqui de uma ameaça – a desintegração – à qual subjaz uma outra maior: a ameaça do nada, ou a ameaça da dissolução dos limites pela queda vertiginosa num vazio nadificante. Neste sentido, os esforços a que o sujeito procede representam, antes de mais, como ilustraremos, uma procura de continente, sentido e simbolização, que actua contra a ameaça do nada.

(III) Por outro lado, a emergência do caos psíquico vem também justificar o eclodir do fantasma, que por lá passou a andar, como pseudo-organização dos conteúdos mentais emergentes – elementos beta –, ou como manobra mental alicerçada na falência do simbólico, através da qual se ilude a ameaça em questão – o nada. Como manobra mental alicerçada na falência do simbólico, portanto, como produção border, clivada, ou como solução paranóide erigida num cenário em que, efectivamente, a ideação persecutória exclui a benesse do objecto, ou do agente da frustração tornado perseguidor e assim identificado como alvo de agressão.

Esta actividade fantasmática pode, efectivamente, como ilustraremos, revelar-se no Rorschach através de uma ideação temática persistente, que não permite sair das lógicas em que a ameaça e a perigosidade se sobrepõem à apreensão simbólica dos objectos-mancha, como equação inevitável: dentro igual a fora, destruído-destrutivo.

Por fim, como solução alternativa perante a ameaça do nada, pode surgir o retraimento narcísico sobre si – pseudo-depressivo –, pelo recurso a formas de pseudo-mentalização que facultam a contenção do agir. Estas formas de pseudo-mentalização, tendencialmente associadas a uma sensibilidade narcísica às características sensoriais do esbatimento dos estímulos (E), revelam-se geralmente através de temas especulares – reflexos, simetrias, paisagens, processos espelhados, etc.-, como cenários que traduzem, através da identificação projectiva, uma estagnação regressiva dos processos mentais na contemplação do perfeito idealizado, como lugar onde se realiza o anseio que ilude toda a angústia.

OS SUJEITOS

Recorremos a quatro protocolos Rorschach, recolhidos em contexto próprio de consulta, no Serviço de Psiquiatria do Hospital Amadora Sintra, onde os nossos sujeitos foram diagnosticados, de um ponto de vista estrutural, com patologia borderline.

Utilizamos dois protocolos de sujeitos com historial agido – Sónia, de 21 anos, e a Helena, de 45 anos –, e dois protocolos de sujeitos sem historial agido – o Luís, de 42 anos, e o Manuel, de 40 anos.

DISCUSSÃO

A partir da análise e interpretação realizadas apresentaremos algumas das dimensões mais significativas da especificidade dos fenómenos do agir e, como contraponto, as que assinalam a especificidade dos fenómenos conducentes ao retraimento narcísico. Recorreremos como ilustração a alguns excertos dos protocolos da Sónia, da Helena, do Luís e do Manuel.

O agir como procura de continente, sentido e simbolização

Nos casos das narrativas da Sónia e da Helena, as respostas aos cartões da série pastel permitem-nos apresentar os melhores exemplos ilustrativos dos processos do agir, uma vez que esta série facilita a sua expressão-revelação, pelas suas características perceptivas, sensoriais e estruturais, que introduzem um apelo afectivo baseado numa sobre-estimulação de múltiplas formas e cores, a qual é inesperadamente introduzida pelo cartão VIII, passando depois a apresentar uma interpenetrabilidade de limites, com exclusão de elementos rapidamente estruturantes (cartão IX) e, finalmente, uma dispersão dos elementos, que em nada facilita a integração (cartão X).

Na sequência de um protocolo marcado pela falta de sentido, pela pobreza simbólica e pelo excesso de formalização – defesas pela realidade –, Sónia inicia as suas respostas à série pastel com uma adaptação perceptiva de base, facultada pela fácil captação da banalidade do cartão VIII (“dois animais”).

Contudo, prosseguindo um movimento de procura através da exploração das restantes partes do estímulo, dada a menor figuração das mesmas e o impacto sensorial da multiplicidade das suas formas e cores, Sónia vai encontrar dificuldades acrescidas nos esforços de formalização, que então cedem lugar a uma actividade mental altamente desorganizada, em consequência da qual emerge uma série caótica de conteúdos deformados, bizarros e destrutivos, apenas aptos à evacuação: “útero, monstro, borboleta, pessoa, cara, caveira de animal” (F-).

Efectivamente, face ao impacto tumultuoso e invasivo das características estruturais e sensoriais da mancha, o controlo formal fracassa, o objecto escapa, apaga-se e a alucinação negativa exerce os seus efeitos – a revivescência actual da perda, que destapa a ameaça do nada –, dando origem a um processo evacuativo dos conteúdos mentais emergentes, que não encontram um continente psíquico onde se alojar, ligar, transformar, simbolizar e pensar.

Na sequência da desorganização induzida pelo cartão VIII, a sobre-estimulação perceptivo-sensorial suscitada pelos cartões IX e X não permite a Sónia conter o processo evacuativo anteriormente originado (cartão IX: cabeça de insecto, duas caras, uma cabeça de animal e mais dois monstros. Cartão X: dois animais, uma cabeça de pato, dois monstrinhos, depois mais dois outros monstrinhos, uma pessoa, uma cara de gato, uma cara de pássaro, mais nada. Mais dois monstrinhos).

A alucinação negativa do objecto persiste e a evacuação dos conteúdos mentais emergentes insiste, através de conteúdos sem-sentido, desligados entre si, parciais, bizarros e declaradamente caóticos, denotando agora um nível de desorganização estonteante e radical.

Efectivamente, a identificação projectiva excessiva, evacuativa actua na perfusão dos limites dentro-fora e a mente funciona sob um modelo de evacuação-acção, como prelúdio do agir: não há transformação e simbolização, apenas deformação originada pela evacuação (F-). A identificação projectiva predomina amplamente sobre a função alfa.

Esta desorganização caótica de conteúdos mentais apenas aptos à evacuação pode, efectivamente, consubstanciar-se na forma de uma ansiedade de desintegração que ameaça a coesão do Eu, mas esta desorganização caótica é uma consequência directa da insubstância do simbólico, à qual subjaz um mal maior: a ameaça do nada, ou da dissolução dos limites e da queda vertiginosa num vazio nadificante.

Assim, perante a ameaça em questão, aos conteúdos mentais evacuados preside o cumprimento de um “querer implícito”, claramente anunciado por Sónia, pela insistência na procura, com as marcas da repetição e da falência do simbólico: conteúdo procura continente, sentido e simbolização.

Num estilo bem diferente das narrativas de Sónia, a Helena entra na série pastel em processo evacuativo, neste caso denunciado por temáticas catastróficas, no seio das quais o campo do sentido se mostra radicalmente perturbado, como denotam logo as primeiras respostas ao cartão VIII: Isto parece-me uma montanha em que vai entrar um vulcão em irrupção, a lava. E agora não me estou a lembrar do nome, tecnicamente tem um nome próprio, está em espécie de erupção que vai sair precisamente por este filamento e vai cair lava por esta montanha... (ia entregar o cartão, mas continua) Também tem aqui outra coisa, parecem-me uns animais, que é a lava que vai provocar a catástrofe, é o perigo, os animais fazem sentir o perigo que vai acontecer ao planeta... Porque parece que são duas feras. No inquérito explicta: – a lava saía precisamente por este orifício (eixo central); os dois animais a simbolizar que o planeta terra é tão frágil que isto pode ir tudo pelos ares. Porque isto parece-me leões ou tigres, mais tigres que é um animal mais ameaçador. O leão só ataca quando teme, o tigre é mais complicado (rosas laterais).

Efectivamente, estas temáticas catastróficas veiculam – evacuam – dimensões psíquicas internas de natureza destrutiva, ameaçadora e persecutória, que transbordam na perfusão dos limites dentro-fora, através da identificação projectiva patológica e contaminam radicalmente a percepção-captação dos objectos da realidade externa.

Como seria de esperar, perante a sua ausência de elementos estruturantes, o cartão IX não permite conter o processo evacuativo anteriormente iniciado e Helena repete, arrasta a temática anterior, enquanto o campo do sentido procurado continua a mostrar-se radicalmente perturbado, não permitindo sair das lógicas em que a ameaça e a perigosidade se sobrepõem, como equação inevitável – dentro igual a fora; destruídodestrutivo –, à apreensão simbólica dos objectos.

Cartão IX: Esquisito!... \/.../\...\/... Olhe esta faz-me lembrar, virando assim, portanto isto seria a relva e um lago que está por baixo, e a água, um repuxo, e o perigo que está por baixo que é o perigo da lava que está por baixo e que pode entrar em irrupção a qualquer momento. A água e canalização, a lava, apesar de ser azul clara, e o perigo da lava que está por baixo de terra, que é o perigo da catástrofe que poderá entrar, ou não. Explicita no inquérito: um lago (Dbl) com uma relva (verde) à volta, falta aqui terra para sustentar a relva, e isto seria um repuxo que se pode pôr com cores (rosa), e aqui a lava em actividade (laranja).

Estes processos evacuativos contêm, efectivamente, a marca da ameaça contra a qual actuam, ou seja, a marca do alucinatório que traduz uma revivescência actual da perda e destapa a ameaça do nada – a alucinação negativa do objecto –, como ameaça subjacente à falência do simbólico.

Cartão X: Se calhar é a mais difícil e complicada! Isto para mim parece-me a autodestruição do planeta, da terra, em que há outros planetas, em que já estão habitados por outros humanos que será este cinzento, que já estão a fazer construções – eu leio muito sobre isso – o céu azul, e isto será o fim do mundo que é fogo, que as outras plantas irão todas morrer. Aliás, aqui vê-se já, no outro tipo de planeta a quererem nascer plantas, a quererem pôr verdura no outro planeta. E no inquérito: Destruição do mundo. Já teríamos descoberto outros mundos (cinza) avançados e a habitar outros planetas.

Assim, no cartão X o alucinatório insiste, a ameaça do nada persiste e o sensorial – beta, caótico e invasivo –, origina uma procura de sentido totalmente fracassada, consubstanciada num excesso de identificação projectiva que assinala a perturbação dos limites e arrasta, evacua para fora as dimensões catastróficas da desorganização interior, através de temáticas cada vez menos coerentes, persecutórias, bizarras e algo delirantes.

Efectivamente, a identificação projectiva predomina amplamente sobre a função alfa e a mente funciona sob um modelo de evacuação-acção, como prelúdio do agir. Mas, aos conteúdos mentais evacuados, mais uma vez, como bem denota o esforço de procura de circunscrição temática dos mesmos, preside o “querer implícito” dos pensamentos que procuram ser pensados, dos conteúdos que procuram continente, sentido e simbolização.

Em suma, o agir é uma procura de continente, sentido e simbolização, que actua antes de mais contra a ameaça do nada. Face a esta, o fantasma, a identificação projectiva e a clivagem, como bem ilustram as narrativas da Helena com uma tonalidade persecutória dominante numa pseudo-organização fantasmática (esquizo-paranóide) dos conteúdos mentais emergentes, são uma consequência secundária.

O retraimento narcísico e a pseudo-mentalização

Quanto às narrativas de Luís e Manuel (sujeitos sem historial agido), recorreremos a alguns cartões negros, uma vez que as suas tonalidades negro-esbatido podem remeter mais facilmente para formas de sensibilidade narcísica (respostas E), facilitando o retraimento narcísico sobre si, dominante nestes sujeitos, como contraponto do agir e solução elegida perante a ameaça do nada.

Recorreremos também ao cartão X da série pastel, que facilita a expressão dos processos agídos e nos permite ilustrar as diferenças claras que existem entre as narrativas destes sujeitos (sem historial agido) e as da Sónia e da Helena (com historial agido).

O Luís inicia a situação Rorschach com uma adaptação perceptiva de base, que, contudo, revela mal-estar no contacto com o material, através do conteúdo anatómico (“conjunto de ossos”), assim como uma sensibilidade à falta (Gbl).

Efectivamente, a segunda resposta confirma este mal-estar através da evocação de um conteúdo de natureza eminentemente desagradável e constrangedora (“uma cabeça de besouro ampliada”), que se traduz numa perda de adaptação perceptiva inicial (F-).

O objecto escapa e a alucinação negativa exerce os seus efeitos, mais uma vez, a revivescência actual da perda que destapa a ameaça do nada. Face a esta, o Luís procede a um movimento de retraimento narcísico sobre si, revelado através de uma sensibilidade narcísica centrada nas características sensoriais do estímulo (E). Este movimento de retraimento, pesudo-depressivo, consubstancia-se em formas de pseudo-mentalização que facultam a contenção do agir (“águas calmas, sombras, lua, reflexos”), mas que em nada traduzem uma capacidade efectiva de simbolizar e pensar (“para treinar a imaginação tento formar imagens em sombras”, diz no inquérito).

No cartão IV, longe de uma captação simbólica das dimensões de força e potência evocadas pelo estimulo, Luís evoca uma “pele mal esticada, seca e demasiado velha”. Em suma, o simbólico não está lá, o objecto distancia-se (“idade média”), ameaça escapar e a eminência da alucinação negativa – a eminência do nada – marca a sua presença.

Mais uma vez, na sequência desta eminência, o Luís procede a um movimento de retraimento narcísico sobre si, através de uma sensibilidade narcísica submetida às características sensoriais do esbatimento (E) do estímulo (“simetria, claros-escuros que se reflectem na água”.

Mais uma vez, este movimento de retraimento, pseudo-depressivo, traduz-se através de formas de pseudo-mentalização que, muito aquém de uma capacidade efectiva de apreensão simbólica das manchas, facultam a contenção do agir.

O contacto inicial com a dispersão do cartão X e com a sobre-estimulação da sua multiplicidade de tons e formas – características do estímulo que facilitam a expressão dos processos agídos –, não conduz a mais do que a um novo movimento de retraimento narcísico, bem traduzido na temática evocada (“Aqui uma série de pássaros na água e empoleirados num ramo de árvore. A água em baixo. Um outro pássaro em baixo, mais uma vez num processo espelhado” – usa vários D e bl)

A dispersão do cartão dificulta a manutenção da posição em retraimento, mal compensada pela qualidade do suporte perceptivo (F-), e Luís passa a dar mais importância à ausência de cor (Dbl), ao negativo – o fundo branco como evocação da ameaça do nada –, do que à cor.

Contudo, num segundo momento, consegue proceder à recuperação do controlo perceptivo (F+), através de um conteúdo anatómico que ainda denota a ansiedade (“traqueia”, cinz. sup.). Este controlo perceptivo mantém-se através da evocação de um fogo de artifício, uma vez que se trata de uma percepção relativamente corrente neste cartão, enquanto este último movimento denota já um alívio da ansiedade suscitada (“fogo de artifício, coisa que sempre gostei” D cinz. e azul).

Por fim, Luís termina sem perder a adaptação perceptiva de base (“cavalo marinho”, F+), evocando um tema marinho que já nada traduz de inquietante, mas sim a viabilidade da contenção do agir, através de um controlo formal dos objectos, num contexto em que as evocações temáticas não deixam de revelar uma sensibilidade narcísica ao serviço do retraimento.

Quanto a Manuel, no cartão V, na sequência de um conjunto de respostas dominado por esforços dificultados de controlo formal dos objectos, surge uma acumulação de ansiedade, que se expressa através de uma certa hostilidade, dirigida ao examinador (ri... “não tinha bonecos mais simples?”).

As duas respostas que surgem depois (“... Tanto pode ser um caracol... Como um animal pré-histórico, não consigo”) denotam expressões que oscilam entre a passividade e a eminência duma hostilidade, ao que se segue o retirar-se da situação (“Podia dizer aqui atrás...” – vira o cartão).

A reacção de Manuel ao cartão VI, vem confirmar a importância funcional e relacional do movimento em questão.

Neste cartão, de evocações simbólicas transparentes, Manuel esforça-se por encontrar algo conhecido, tentando objectivar e aceder ao controlo formal – defesas pela realidade , mas acusa uma dificuldade inquietante, quer através do comentário (“Nossa senhora!”), quer da representação da ausência da representação, dada a insubstância do simbólico (“não tem semelhança com nada que possa estar na minha mente”).

A alucinação negativa exerce os seus efeitos no momento presente e o Manuel, desta vez, procede a uma retirada mais radical da situação, a recusa.

No inquérito surge uma resposta adicional que denota claramente a natureza da retirada, através do retraimento narcísico sobre si (“uma paisagem, o reflexo num lago”), sustido numa sensibilidade regressiva às características sensoriais do estímulo (E). Trata-se de um movimento pseudo-mentalizante – e pseudo-depressivo , dado que o simbólico continua a manifestar a sua ausência (“continua a faltar aqui água” – no Dbl), apesar das evocações transparentes do cartão.

Finalmente, no cartão X, longe das lógicas evacuativas subjacentes aos processos agídos, Manuel expressa o alívio pelo término da passagem e procede a uma retirada festiva (ri). “Isto, depois de ter passado por aquilo tudo, isto é o fim da festa! Deve ser para completar, como tem mais cores, mais aberturas. Um fogo de artifício, por aí”.

No inquérito, congratula-se com a viabilidade da fuga à situação aflitiva e coroa a retirada como solução celestial, um final feliz que, dada a intolerância às dimensões de frustração emergentes no contacto com as manchas, só pode traduzir a aspiração regressiva, não agída mas estagnante, à contemplação do perfeito idealizado: o encontro com reflexo narcísico de si no lago celestial, como lugar onde se ilude a perda e toda a natureza de angústia (“É a última, fogo de artifício. Aqui – aponta cartão VIII – fugir de uma situação de aflição, ambas têm um acabamento celestial (cinzas sup.), o que pela minha análise demonstra que é um final feliz”).

Em suma, através da ilustração apresentada, julgamos ter revelado (I) a natureza específica dos processos do agir, como procura de continente, sentido e simbolização que, inscrita a priori na relação, actua contra a ameaça do nada, dada a insubstância do simbólico; (II) bem como a solução alternativa perante a ameaça em questão, que ilustrámos através dos processos conducentes ao retraimento narcísico sobre si, através da retirada e do recurso a formas de pseudo-mentalização, que facultam a contenção do agir.

CONCLUSÕES

Em termos conclusivos julgamos ter prestado fundamentalmente dois contributos originais, de âmbito teórico e metodológico, para as práticas da psicologia clínica:

(I) Uma concepção do agir como uma procura de continente, sentido e simbolização.
(II) Uma concepção do Rorschach como um espaço virtual de alucinação negativa.

Efectivamente, recorrendo a uma gama vasta de integrações teóricas – tecidas essencialmente, em termos de referências centrais, entre os contributos de Freud (1925/1973) e Bion (1965) e articuladas no quadro geral da teoria do negativo de Green (1977, 1983, 1986, 1993, 1994, 2000) –, concebemos o agir no seio dos fenómenos border como uma procura de continente, sentido e simbolização que, inscrita a priori na relação, actua contra a ameaça do nada.

Para pôr à prova a nossa concepção – recorrendo essencialmente aos contributos metodológicos de Marques (1994, 1999), que estabelece o Rorschach como um espaço de relação, interpretação, comunicação, ligação, transformação e simbolização –, concebemos o método Rorschach como um espaço virtual de alucinação negativa, tornando-o particularmente sensível às dimensões do negativo e à presença de fundo do nada. De facto, as concepções dominantes, teóricas e metodológicas, sobre os fenómenos border em geral, e o agir em particular, têm ignorado persistentemente a presença de fundo da ameaça do nada, tão frequentemente expressa nas queixas destes sujeitos, sob a forma de sentimentos de vazio e de falta de sentido.

Através desta concepção metodológica e da análise e interpretação de quatro narrativas Rorschach de sujeitos borderline, ilustrámos e julgamos ter confirmado a nossa concepção sobre o agir, como procura de simbolização que actua contra a ameaça do nada, tal como, como contraponto do agir, ou solução alternativa perante a ameaça do nada, ilustrámos também os processos conducentes ao retraimento narcísico sobre si, através da retirada e de formas de pseudo-mentalização – pseudo-depressiva –, que facultam a contenção do agir.

Como injunção adicional, julgamos que as dimensões aqui ilustradas à luz da teoria do negativo – o agir e o retraimento narcísico –, vão de encontro às distinções diagnósticas tentadas estabilizar por diversos autores – entre as perturbações borderline e as perturbações narcísicas da personalidade –, como ilustra a controvérsia suscitada pelos contributos teóricos e técnicos de Kohut (1978) e Kernberg (1975) e consideramos que estabelecemos sobre esta controvérsia novas integrações e novos contributos.

 

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(*) Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado em Psicopatologia e Psicologia Clínica, apresentada e defendida em 2007, no ISPA.

(**) Psicólogo Clínico. Docente do INUAF, Instituto Superior D. Afonso III.

(***) Psicóloga Clínica, Professora Associada do Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

 

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