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Análise Psicológica

 ISSN 0870-8231

     

 

Bem-estar subjetivo de adolescentes transplantados de órgãos

Elisa Kern De Castro (*)

 

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo examinar o bem-estar subjetivo de adolescentes transplantados de órgãos sólidos e sua relação com auto-conceito, auto-estima e variáveis relacionadas à doença e ao transplante. Participaram do estudo 26 adolescentes transplantados com idades variando de 13 a 17 anos de idade, que estavam em tratamento de rotina pós-transplante em três hospitais públicos de Madrid, Espanha. Os adolescentes responderam a instrumentos que medem bem-estar subjetivo, auto-conceito e auto-estima, e a um questionário com dados sócio-demográficos e clínicos. A auto-estima mostrou ser uma variável preditora de estado de ânimo positivo nos adolescentes transplantados, enquanto o auto-conceito pessoal e o tempo em lista de espera foram preditoras de estado de ânimo negativo. Esses resultados apoiam a noção de que existe uma conexão importante entre aspectos médicos e psicológicos. Indicam também que é necessário ajudar os adolescentes transplantados a ter um bom auto-conceito e auto-estima. Intervenções psicológicas que possam facilitar o adolescente a ter consciência de seu corpo e de seu problema de saúde, ajudando-o a aceitar sua condição e suas limitações são necessárias para minimizar sofrimentos.

Palavras-chave: Adolescentes, Auto-conceito, Auto-estima, Bem-estar subjetivo, Transplante de órgãos.

 

 

ABSTRACT

The goal of the present study is to examine the subjective well-being in adolescents who have undergone solid organ transplantation and its relationship to self-concept, self-esteem and variables related to disease and transplant. Twenty-six transplanted adolescents, who were in routine treatment after transplant in three public hospitals in Madrid, Spain, aged 13-17 years old, were part of the study. Measures to evaluate subjective well-being, self-concept and self-esteem and a questionnaire with socio demographic and clinical data were used. It was shown that positive affect was predicted by self-esteem, while self-concept and waiting list time were predictors of negative affect. These results support the idea that there is an important connection between clinical and psychological variables. Therefore, indicate the need to help transplanted adolescents to construct adequate levels of self-concept and self-esteem. Psychological interventions that may facilitate the adolescent have body and health problem conscience, helping them to accept their condition and limitations are necessary to minimize suffering.

Key-words: Adolescents, Organ transplantation, Self-concept, Self-esteem, Subjective well-being.

 

Os avanços nas ciências biomédicas e técnicas cirúrgicas fizeram com que a mortalidade associada a diferentes tipos de doenças pediátricas diminuísse consideravelmente. Um dos grandes avanços nessa área ocorrido nas últimas décadas foi o surgimento e desenvolvimento do transplante de órgãos. Esse procedimento cirúrgico pode beneficiar crianças e adolescentes com diferentes tipos de enfermidades físicas, crônicas ou agudas, que seriam fatais e que melhoram a sua qualidade de vida (Burra & De Bona, 2007; Evans, Belle, Wei, Penovich, Ruppert, & Detre, 2005).

Para alguns pacientes pediátricos, esse tratamento é a sua única opção de sobrevivência, apesar de que não signifique a cura, pois implica em risco de morte e diversas limitações físicas. Aproximadamente 3% das listas de espera para transplante de órgãos é de pacientes menores de 18 anos (AAP, 2002).

Considerando a natureza das doenças crônicas pediátricas e os riscos do transplante de órgãos, as condições psicológicas dos adolescentes podem ter um papel importante no seu resultado e na sua reabilitação (Aley, 2002). As mudanças físicas, emocionais e cognitivas dessa fase associadas à doença e ao transplante de órgãos podem ter um efeito negativo na sua autonomia, adaptação social, atitude frente ao seu corpo e a sua sexualidade. Enquanto alguns adolescentes aceitam bem sua dependência relacionada à doença e transplante (toma dos remédios, visitas sistemáticas aos hospitais e outras intervenções), muitos pacientes podem se rebelar contra as limitações das suas vidas e apresentar condutas desafiantes e de risco (Masi & Brovedani, 1999). Além disso, fatores psicológicos como baixa auto-estima, ansiedade, impulsividade e isolamento social podem influenciar a compreensão do adolescente sobre sua doença/tratamento e sua adesão ao tratamento médico.

O bem-estar subjetivo é o termo técnico para “felicidade” (Howell, Kern, & Lyubomirsky, 2007). Frequentemente este conceito tem sido estudado em termos de afeto positivo e negativo (Charles, Reynolds, & Gatz, 2001; Howell et al., 2007). Altos níveis de afeto positivo e baixos níveis de afeto negativo resultam num nível aceitável de bem-estar subjetivo. O afeto positivo tem sido associado a estados ativos como alerta e entusiasmo, enquanto o afeto negativo está relacionado a medos, irritação, monotonia, etc. (Watson, Clark, & Tellegen, 1988).

O bem-estar subjetivo está relacionado a melhoras nos resultados em saúde e na diminuição de comorbidades, embora seu efeito ainda esteja em discussão (Howell et al., 2007; Lyubomirsky, King, & Diener, 2005). Howell et al. (2007) fizeram uma meta-análise no qual integraram os resultados de 150 estudos experimentais e longitudinais que avaliaram o impacto do bem-estar em índices objetivos de saúde. Os autores observaram que o impacto positivo do bem-estar na saúde estava relacionado a resultados a curto e longo prazo e na capacidade em controlar do sintoma da doença. Além disso, verificou-se que o impacto do bem-estar subjetivo na melhora da saúde foi maior para respostas do sistema imune e tolerância à dor, mas não foi significativo para melhorar a reatividade cardiovascular ou fisiológica.

De acordo com o modelo transacional do estresse, o bem-estar subjetivo pode minimizar os efeitos negativos dos eventos estressantes, aumentando a capacidade de resiliência e de enfrentamento do indivíduo (Pressman & Cohen, 2005). Por outro lado, o afeto positivo pode também afetar diretamente práticas em saúde, diminuindo a atividade do sistema nervoso autônomo, ajudando na regulação dos hormônios do estresse, influenciando a resposta imune e melhorando as redes sociais das pessoas.

Em adolescentes com problemas de saúde, o bem-estar subjetivo pode estar afectado pela gravidade da doença que o paciente apresenta, a quantidade de tratamento que requer e especialmente pelas dificuldades sociais e psicológicas que podem acompanhar essa condição (Suris, Michaud, & Viner, 2004). Wit, de Wall, Bokma, Haasnoot, Houdijk, Gemke, e Snoek (2007) encontraram uma relação forte entre baixos níveis de bem-estar subjetivo e altos níveis de depressão em adolescentes com diabetes tipo 1. Castro, Moreno, e Rodríguez-Carvajal (2007), observaram a importância do bem-estar subjetivo para jovens adultos transplantados de órgãos em idade pediátrica. Esses autores verificaram que a auto-estima foi um fator preditor importante do afeto positivo, enquanto as variáveis preditoras do afeto negativo foram auto-conceito físico, tempo em lista de espera e o estado de saúde.

O auto-conceito, entendido como a percepção que a pessoa tem de seus sentimentos, atitudes, aceitação social e aspectos físicos, tem sido estudado como um importante fator no ajustamento da doença crônica e transplante (Beanlands, Lipton, McCay, Schimmer, Elliot, Messner, & Devins, 2003; Blum-Gordillo, Gordillo-Paniagua, & Garcia-Lozano, 2003; Castro, Moreno, & Rodríguez-Carvajal, 2007). De forma complementar, a auto-estima está relacionada à avaliação pessoal de si mesmo que influencia seu comportamento, particularmente na adolescência, e também é um indicador importante na área da saúde (Guillon & Crocq, 2004).

A doença crônica tem um impacto importante no auto-conceito do indivíduo, transformações essas que ocorrem no período do diagnóstico da doença, se estendem durante o tratamento e também no período subseqüente (Beanlands et al., 2003). Essas mudanças no auto-conceito, segundo os autores associam-se à depressão, a satisfação reduzida com a vida e a intrusividade da doença.

Em adolescentes com doenças crônicas físicas, o auto-conceito e a auto-estima têm sido considerados como um fator importante de adaptação social (Aasland & Diseth, 1999). Apesar disso, há evidências de que um grande número de pacientes pediátricos tem um bom nível de auto-conceito e auto-estima (Aasland & Diseth, 1999; Adebäck, Nemeth, & Fishler, 2003; Törnquist, van Broeck., Finkenauer, Rosati, Schwering, Hayez, Janssen, & Otte, 1999).

Em pacientes adultos transplantados, observou-se que o indivíduo passa a definir-se a si mesma como doente, mudando seu auto-conceito, enquanto outros aspectos da sua vida passam a ser menosprezados, o que tem sido chamado de engolfamento (“engulfment”) (Beanlands et al., 2003). Além disso, observou-se a intrusividade da doença, ou seja, o quanto esta implica em mudanças na sua vida diária, gerava maiores mudanças no auto-conceito desses indivíduos. De forma similar, Pérez-San-Gregorio, Martín-Rodríguez, Galán-Rodríguez, e Pérez-Bernal (2005) observaram que adultos transplantados apresentam baixos níveis de auto-conceito, auto-estima, maiores níveis de ansiedade e depressão. Além disso, os índices são piores no primeiro ano após o transplante e passados dois anos do transplante. Não foram encontrados estudos semelhantes com adolescentes transplantados.

A baixa auto-estima pode gerar dificuldades sociais e sexuais em adolescentes transplantados, tendo influência negativa dentro do seu grupo de iguais, por exemplo (Kauffman, 2006; Sucato & Murray, 2005; Suris, Michaud, & Viner, 2004). Por outro lado, para se sentir aceito dentro do grupo, alguns adolescentes transplantados podem apresentar comportamentos de risco como fazendo uso do álcool, drogas, e sexo sem proteção. Além disso, os efeitos adversos dos remédios e as mudanças na aparência física podem causar muitas conseqüências para sua auto-imagem (Aley, 2002; Suris, Michaud, & Viner, 2004). A necessidade de mostrar o corpo frequentemente à equipe médica, as cicatrizes visíveis no corpo e os exames periódicos e injeções a que são submetidos podem causar vergonha nos adolescentes transplantados ou doentes. Essas experiências podem comprometer sua privacidade e sua relação com seu próprio corpo.

As frustrações emocionais causadas pelas limitações em sua vida diária e a dependência ao tratamento são freqüentes em adolescentes transplantados (Aley, 2002). A agressão do adolescente pode ser dirigida a seus pais, à equipe que os trata ou a si mesmo, como em casos de não adesão ao tratamento (Griffin & Elkin, 2001). Muitos pacientes podem experimentar a sensação de ser “super-heróis” já que venceram a morte e podem acreditar que de agora em diante nada de mal lhes acontecerá (Aley, 2002). Alguns pacientes transplantados na primeira infância e que na adolescência não apresentam sintomas físicos podem ver a si mesmos como saudáveis e, portanto ter mais comportamentos de risco para sua saúde. Uma das conseqüências desse tipo de comportamento pode ser a rejeição aguda ou crônica do órgão transplantado, que é uma causa importante de mortalidade nessa população.

Nas últimas décadas, conforme referido na revisão de literatura, pesquisadores têm feito estudos sobre a importância do bem-estar subjetivo, auto-conceito e auto-estima para a saúde de pessoas com doenças crônicas, porém há escassa informação sobre o bem-estar subjetivo de adolescentes transplantados de órgãos. O único estudo relacionando essas variáveis foi realizado com adultos jovens (Castro, Moreno-Jiménez, & Rodríguez-Carvajal, 2007) apontou para relações importantes entre elas, assim como com variáveis da doença e do tratamento. Assim, o objetivo do presente estudo foi investigar o bem-estar subjetivo de adolescentes transplantados de órgãos, e identificar o peso do auto-conceito, da auto-estima e de algumas variáveis clínicas (ex.: tempo em lista de espera, idade no transplante) na sua predição.

 

MÉTODO

Participantes

Foram avaliados 26 adolescentes transplantados de órgãos com idades que variaram dos 13 aos 17 anos. Todos os participantes estavam em tratamento de rotina pós-transplante (terapia imunossupressora) em três hospitais públicos de Madrid, Espanha. Sete pacientes eram transplantados de rim, 4 eram transplantados de coração e 15 eram transplantados de fígado. Vinte e cinco pacientes receberam seus órgãos de um doador cadáver e um paciente recebeu o rim de sua mãe. Foram excluídos da amostra pacientes com evidência de problema neurológico ou psiquiátrico. Os dados sócio-demográficos são apresentados na Tabela 1.

TABELA 1

Dados sócio-demográficos e clínicos conforme o tipo de transplante (tx)

Legenda: *Idade no transplante ou idade no primeiro transplante (no caso dos pacientes que sofreram transplantes em mais de uma ocasião)

 

Delineamento e procedimentos

O estudo é de caráter transversal. O recrutamento dos pacientes ocorreu durante as consultas ambulatoriais no hospital. Uma vez que a equipe de transplantes concordou em colaborar com o projeto de pesquisa, a autora passou a estar presente no ambulatório de transplantes, quando convidava formalmente os adolescentes e seus pais a participar da pesquisa. Todos os pacientes contatados aceitaram participar do estudo. Inicialmente, eram explicados os objetivos da pesquisa e a seguir o pai/mãe/responsável pelo adolescente assinava o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisadora, então, perguntava sobre os dados sócio-demográficos e alguns dados da história clínica do paciente. Finalmente, os questionários eram aplicados. Nenhum paciente ou família tiveram ou estavam participando de programas de apoio psicossocial relacionado ao transplante de órgãos.

 

Instrumentos

Bem-estar subjetivo: foi medido através das escalas de afeto positivo e negativo PANAS (Watson, Clark & Tellegen, 1988). O instrumento consiste em 20 adjetivos (10 para afeto positivo e 10 para afeto negativo), em que a pessoa deve dar uma pontuação de 1 a 5 numa escala de tipo likert. A versão espanhol foi feita por Sandín, Chorot, Lostao, Joiner, Santed, e Valiente (1999) com índice alfa de 0,87 para afeto positivo e 0,89 para afeto negativo.

Auto-estima: foi avaliada através da Escala de Rosenberg (Rosenberg, 1965). A pontuação total obtida resulta de 10 questões que a pessoa deve responder sobre seus sentimentos sobre si mesmos. A validação espanhola foi realizada por Baños e Guillén (2000). O alpha encontrado nesse estudo foi de 0,88.

Auto-conceito: foram utilizadas as subescalas Eu pessoal e Eu físico da Escala de Autoconceito de Tennessee para medir auto-conceito (Roid & Fitts, 1988). A subescala Eu pessoal mede como os pacientes pontuam sua adequação como pessoa. A subescala Eu físico mede como os pacientes percebem sua saúde, seu corpo e sua aparência física. O escore de cada subescala é obtido a partir dos resultados de um instrumento auto-aplicável de 18 questões. A versão em espanhol foi feita por Galanto-Alós (1984), com alpha de Cronbach de 0,89.

Informações sócio-demográficas e clínicas: os adolescentes e seus pais foram questionados sobre, entre outras coisas, idade, nível educacional, informações familiares, diagnóstico, tratamento, duração da doença, idade do adolescente no transplante, número de transplantes, etc.

 

Considerações éticas

O Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido de todos os pais/mães dos adolescentes. O projeto foi aprovado pelos coordenadores das equipes de transplantes e foi realizado de acordo com os princípios éticos gerais. Os hospitais em questão não tinham, na ocasião da coleta de dados (2004-2005), comitês de ética em pesquisa em funcionamento.

 

Análises

Análises descritivas, não-paramétricas e análise de regressão múltipla hierárquica foram utilizadas. O teste Kruskal-Wallis foi usado para comparar os dados dos adolescentes com diferentes tipos de transplante (Tabela 2). Análises descritivas e teste U Mann-Whitney foram usados para comparar os dados de acordo com o gênero (Tabela 3). Finalmente, para determinar quais variáveis contribuíam significativamente para a variância do afeto nos adolescentes transplantados, foi feita análise de regressão múltipla hierárquica. As variáveis sócio-demográficas (idade e sexo) entraram no Passo 1, enquanto as variáveis psicológicas (auto-estima e auto-conceito) entraram no Passo 2. As variáveis clínicas (idade no diagnóstico, tempo em lista de espera, idade no transplante e problemas de rejeição) foram incluídas no Passo 3. Foi utilizado o pacote estatístico SPSS 14.0 para as análises.

TABELA 2

Média, desvio padrão, teste Kruskal-Wallis e nível de significância de acordo com o tipo de transplante (Tx)

 

TABELA 3

Média, desvio padrão, teste de Mann-Whitney e nível de significância de acordo com o gênero Masculino (n=10) Feminino (n=16) U p

 

RESULTADOS

Como mostra a Tabela 2, não há diferenças significativas na auto-estima, auto-conceito e bem-estar subjetivo entre os pacientes transplantados de rim, coração e fígado. Entretanto, a média 27,50 (DT=0,71) no afeto negativo dos adolescentes transplantados de rim mostra que eles apresentaram piores resultados que os pacientes transplantados de coração ou fígado, de maneira parcialmente significativa (p=0,06).

A Tabela 3 apresenta as diferenças de gênero com relação às variáveis psicológicas. Não foram observadas diferenças significativas entre adolescentes transplantados do sexo feminino e masculino.

Também não foram encontradas diferenças significativas com respeito as variáveis psicológicas entre os adolescentes transplantados relacionado a idade no diagnóstico, idade no transplante e problemas de rejeição.

Para investigar as variáveis preditoras do afeto negativo e positivo em adolescentes transplantados, duas análises de regressão hierárquica foram realizadas separadamente (ver Tabela 4). Com relação à variável dependente Afeto Positivo, no segundo e no terceiro passo a análise de regressão indicou a auto-estima como uma variável independente significativa e parcialmente significativa (β=.661; p<.05; β=.747; p<.10). O coeficiente beta estandarizado indica que altos níveis de auto-estima foram associados com altos níveis de afeto positivo. A auto-estima foi o único fator isolado capaz de predizer o afeto positivo de adolescentes transplantados, que explicou 63,1% da variância no Passo 3. Com respeito à variável dependente Afeto Negativo, a análise de regressão mostrou a influência das variáveis auto-conceito pessoal (β=-.686; p<.05) e tempo em lista de espera no Passo 3 (β=.686; p<.01). Um pior auto-conceito associado a um maior tempo maior na lista de espera para o transplante esteve relacionado a um aumento significativo no afeto negativo dos adolescentes transplantados. O modelo explicou 78,7% da variância do afeto negativo e foi significativo (p<.05).

TABELA 4

Análise de Regressão Hierárquica

Legenda: p<.10; *p<.05; **p<.01; β=coeficientes estandarizados de regressão; gênero (0=masculino, 1=feminino), problemas de rejeição (0=não, 1=sim)

 

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

O presente estudo buscou examinar o bem-estar subjetivo e sua relação com variáveis psicológicas e clínicas de adolescentes receptores de transplantes de órgãos. Nesse sentido, foram analisadas as possíveis diferenças entre os diferentes tipos de transplante (rim, coração ou fígado) e gênero, e o possível valor preditivo das variáveis psicológicas, clínicas e sócio-demográficas no bem-estar subjetivo desses jovens.

Com relação ao tipo de órgão transplantado, não foram encontradas diferenças significativas auto-estima, auto-conceito e afeto positivo e negativo. Os adolescentes transplantados de rim apresentaram níveis mais altos de afeto negativo que os pacientes transplantados de coração ou fígado, mas essa diferença foi apenas parcialmente significativa. De acordo com Starzomski e Hilton (2000), o período que antecede a diálise/hemodiálise produz estresse físico e emocional que pode afetar a saúde mental do paciente. Essa característica particular da doença renal e do seu tratamento pode explicar os altos níveis de afeto negativo nesses pacientes, incluindo também o período pós-transplante.

Existem poucos estudos que incluem amostras de pacientes transplantados de diferentes órgãos, e as possíveis diferenças associadas a isso na adaptação psicológica dos pacientes ainda não foram esclarecidos. Em parte, isso acontece porque é muito difícil ter amostras grandes o suficiente de pacientes transplantados de diferentes tipos para realizar uma análise nesse sentido. Por outra parte, é possível que essas diferenças inexistam (Castro, Moreno-Jiménez, & Rodríguez-Carvajal, 2007; Eiser, 1985). De qualquer forma, a idade no diagnóstico da doença e a idade no transplante podem ser fatores que têm um efeito importante na adaptação psicológica de crianças e adolescentes, conforme Blum-Gordillo, Gordillo-Paniagua, e García-Lozano (2003). No presente estudo, contudo, essas diferenças não foram evidenciadas e mais estudos são necessários para esclarecer essa questão.

Com relação ao gênero, não foram observadas diferenças importantes entre os adolescentes transplantados. Outros estudos (DeBolt, Stewart, Kennard, Petrik, & Andrews, 1995; Qvist, Nãrhi, Apajasalo, Rönnholm, Jalanko, Amqvist, & Holmberg, 2004) já haviam demonstrado que pacientes pediátricos transplantados do sexo masculino poderiam estar mais vulneráveis a apresentar problemas psicológicos, porém essa questão ainda está em discussão. De qualquer forma, é possível que o reduzido número de participantes não tenha contribuído para o aparecimento dessas diferenças nas análises realizadas.

Os resultados da análise de regressão hierárquica mostraram diferenças nas variáveis preditoras de afeto positivo e negativo. Com relação ao afeto positivo atual, observou-se a importância da auto-estima como variável preditora. É possível pensar que manter a auto-estima elevada pode ser um fator de proteção ao bem-estar ou sentimento de “felicidade” desses adolescentes. Segundo Blum-Gordillo et al. (2003), pacientes transplantados pediátricos podem ter sua auto-estima prejudicada devido a uma variedade de perdas que influenciam seu bem-estar e sua saúde. Esse resultado corrobora também o estudo de Castro et al. (2007), que observou a importância do papel da auto-estima na predição do afeto positivo de adultos jovens transplantados em idade pediátrica.

Em contraste, os fatores relacionados ao afeto negativo foram o auto-conceito pessoal e o tempo em lista de espera. Esse resultado é muito importante porque enfatiza a importância das variáveis psicológicas e clinicas no estado emocional do adolescente transplantado. Conforme Beanlands et al. (2003), a doença crônica (e o transplante) podem afetar a auto-conceito do indivíduo, fazendo com que esse acontecimento seja o evento principal de sua vida. Nesse sentido, poderíamos pensar que na adolescência, época de transformação e consolidação da identidade, a doença crônica e o transplante podem ser um fator de dificuldade para a superação dessa tarefa desenvolvimental, “engolfando” a construção de um auto-conceito saudável para esses pacientes.

O tempo em lista de espera é um período caracterizado pela ansiedade, declínio físico progressivo e hospitalizações freqüentes (Stubblefield & Murray, 2002). Dessa forma, o presente estudo demonstra que um período longo em lista de espera pode aumentar o afeto negativo nos adolescentes, e que esses sentimentos negativos como irritabilidade e hostilidade continuam depois do transplante. Esse achado é similiar a outros encontrados com pacientes adultos transplantados (Baker, Wingard, Curbow, Zabora, Fogarty, & Legro, 1994; Castro et al., 2007) e indica que os esforços para aumentar a doação de órgãos são necessários não só para reduzir a lista de espera, mas também para favorecer a saúde mental dos receptores.

Os resultados do estudo devem ser visto com limitações. Em primeiro lugar, é um estudo transversal que utiliza questionários de auto-informe respondidos pelos adolescentes, apesar de que esses instrumentos sejam extensivamente reconhecidos e utilizados em diversos países (Baños & Guillém, 2000; Roid & Fitts, 1988; Rosenberg, 1965; Sandín e cols., 1999; Watson, Clark, & Tellegen, 1988). Além disso, o estudo é eminentemente exploratório dada a escassa literatura existente sobre bem-estar subjetivo e transplantes. Por fim, o tamanho reduzido da amostra (n=26) é motivo de alguma limitação. Apesar de que a amostra possa parecer inicialmente pequena, é importante salientar que a autora coletou dados nos três hospitais de Madrid mais importante na área de transplantes pediátricos. Tendo em vista que o sucesso do transplante de órgãos na infância é um acontecimento recente e que a grande maioria desses participantes foram transplantados em idades bastante precoces, podemos concluir que a amostra tem tamanho razoável considerando o tempo de transplante desses pacientes.

Esses resultados apóiam, ainda, a noção de que há uma importante conexão entre o transplante de órgãos e o estado psicológico do adolescente. Confirma também pesquisas previas que encontraram que o transplante de órgãos pode causar ou agravar diversos transtornos psicológicos, causar stress e trauma nesses pacientes (Qvist et al., 2004; Serrano-Ikos & Lask, 2003; Walker, Harris, Baker, Kelly, & Houghton, 1999).

Os principais resultados dessa pesquisa são de que as variáveis psicológicas, especialmente a auto-estima, são importantes para o afeto positivo de adolescentes transplantados, enquanto o auto-conceito e o tempo em lista de espera são significativas para a predição do afeto negativo. Esses resultados destacam a necessidade de um trabalho preventivo e de suporte emocional após o transplante. Embora a qualidade de vida no âmbito físico melhore após o transplante de órgãos pediátrico (Aparício-López, 2003), é necessário um trabalho integral de reabilitação psicossocial com esses pacientes.

Intervenções psicológicas que ajudem o adolescente a lidar com a mudança no seu corpo e seu sofrimento relacionado à doença e transplante são necessárias. Isso lhes ajudará a aceitar sua condição e suas limitações de saúde, facilitando a compreensão sobre o impacto emocional e as conseqüências do transplante de órgãos para suas vidas e ajudá-los a ter expectativas realistas sobre seu futuro. A adolescência, que é uma fase de questionamentos sobre a identidade dos jovens, pode ficar problemática para os pacientes transplantados que levam dentro de si um órgão que não é seu. Esses aspectos precisam ser trabalhados no atendimento clínico para que possam ser felizes aceitando sua condição e limitações. Além disso, a redução no tempo em lista de espera para transplante melhoraria sem dúvida o sofrimento e, como observamos nesse estudo, diminuiria os estados de ânimo negativos desses adolescentes transplantados a longo prazo.

Futuras pesquisas deveriam examinar mais a fundo o papel de outras variáveis psicológicas no bem-estar subjetivo de adolescentes transplantados, a percepção da doença ou auto-eficácia, por exemplo. Também, é importante avaliar as implicações psicológicas do transplante de órgãos na adolescência em pesquisas longitudinais, verificando crises específicas e dificuldades relacionadas às diferentes fases da adolescência.

 

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Agradecimentos: CAPES/Brasil e Equipes de Transplante Renal e Transplante Cardíaco do Hospital Materno-Infantil Gregório Marañon (Madrid), Equipe de Transplante Hepático do Hospital Materno-Infantil La Paz (Madrid) e Equipe de Transplante Hepático do Hospital Doce de Octubre (Madrid).

(*) Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Centro de Ciências da Saúde, Avenida Unisinos, 950 – Bairro Cristo Rei. CEP 93.022-000, São Leopoldo, RS, Brazil. E-mail: elisakc@unisinos.br

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