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Análise Psicológica

Print version ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.26 no.4 Lisboa Oct. 2008

 

Reflexões sobre o pesquisar em psicologia como processo de criação ético, estético e político

 

Andréa Vieira Zanella(*)

Almir Pedro Sais (**)

 

RESUMO

Este texto, fundamentado nos aportes teórico-metodológicos do enfoque histórico-cultural em psicologia, apresenta reflexões sobre o processo de produção de conhecimentos e defende a tese de que pesquisar é um processo de criação ético, estético e político. Tendo como foco a pesquisa acadêmica, apresentam-se alguns debates sobre o processo de produção de conhecimentos para identificar fundamentos do pesquisar que podem vir a ser reconhecidos como comuns às diferentes tendências metodológicas em psicologia, o que se entende como condição para que algum diálogo possa vir a ser instituído em torno da tese aqui apresentada. Esses fundamentos são: a importância da pergunta de pesquisa; o reconhecimento da complexidade do que se quer investigar; a inexorável relação entre pergunta de pesquisa, método e referencial teórico-epistemológico; a falsa dicotomia entre pesquisa e intervenção; a assunção de que pesquisar é criar.

Palavras-chave: Metodologia, Método, Pesquisa em psicologia, Prática social ética-estética-política.

 

ABSTRACT

This text, based on theoretical-methodological concepts of the description-cultural approach in psychology, presents reflections about the production process of knowledge and defends the thesis that to search is an ethical, esthetic and politician creation process. According with the academic research, some discussions are presented about the process of knowledge production to identify basis of searching that can come to be recognized as common to the different methodological trends in psychology, what is understood as condition for some dialogue could become instituted around the thesis proposed here. These basis are: the importance of the research question; the recognition of complexity of it wants to investigate; the inexorable relation between research question, method and theoretician-epistemological reference; the false dichotomy between research and intervention; the presumption of to search is to create.

Key words: Methodology, Method, Research in Psychology, Social practice ethical-esthetic-politician.

 

INTRODUÇÃO

Este texto apresenta reflexões sobre o pesquisar para alicerçar a tese de que se trata de um processo de criação que se caracteriza como ético, estético e político.

São apresentados alguns debates sobre esse processo de produção de novos conhecimentos que mobilizam pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, debates esses que balizam, de certo modo, os embates e tensões entre diferentes enfoques metodológicos em psicologia. Dessa reflexão são identificados fundamentos do pesquisar que podem vir a ser reconhecidos como comuns às diferentes tendências metodológicas, o que se apresenta como condição para que algum diálogo possa vir a ser instituído em torno da tese aqui apresentada.

Inicialmente cabe esclarecer alguns aspectos da produção de conhecimentos em Psicologia no Brasil para que o leitor possa se situar em relação à realidade onde estas reflexões se originam. A produção brasileira de conhecimentos em Psicologia vem sendo incrementada nos últimos tempos, o que se relaciona diretamente com a expansão dos Programas de Pós-Graduação no país. É expressão desse aumento o número de titulados entre 1996 e 2003 nos Programas de Pós-Graduação: o documento de área (Triênio 2001-2003) da CAPES1 registra 298 mestres e 61 doutores em Psicologia titulados no ano de 1996, número que no ano 2003 passa a ser de 810 mestres e 218 doutores em psicologia titulados2. A produção de artigos publicados em periódicos, por sua vez, distribui-se por mais de 500 títulos nacionais e estrangeiros, muitos deles vinculados a outras áreas de conhecimento.

Além dos Programas de Pós-Graduação, os cursos de Graduação em Psicologia também contribuem para o incremento da produção científica na área, em especial os que vêm dando ênfase à dimensão de pesquisador na formação profissional. Essa formação acontece em espaços formais, como as disciplinas de métodos e procedimentos de pesquisa, mas também e fundamentalmente em espaços outros em que se investe nas possibilidades de leitura crítica da realidade.

A significativa produção científica em psicologia no Brasil não é acompanhada, com a mesma intensidade, pela divulgação de reflexões sobre os embates metodológicos que a caracterizam. É propósito deste texto justamente contribuir, à luz das reflexões teórico-metodológicas do enfoque histórico-cultural em psicologia, com esse debate.

 

SOBRE CIÊNCIA(S): ALGUNS APONTAMENTOS PARA INÍCIO DE CONVERSA

Ao refletir sobre o pesquisar no campo da Psicologia, uma primeira questão que se apresenta diz respeito a possíveis especificidades de uma prática social em um determinado campo disciplinar: afinal, há especificidades no processo de produção de conhecimentos em Psicologia que diferencie as pesquisas aí desenvolvidas das realizadas em outros campos disciplinares? Essa pergunta, por sua vez, remete à reflexão sobre possíveis especificidades intradisciplinares, o que engendra outra pergunta: diferenciam-se as pesquisas psicológicas em contexto de intervenção, na docência ou na esfera acadêmica?

Estas duas perguntas são consideradas como dispositivos para a reflexão que se apresenta neste texto, a qual se assenta em um debate maior: o processo de produção de conhecimentos, independentemente dos seus fins, é sempre e necessariamente marcado pelas tensões e os jogos de poder que caracterizam as relações em diferentes contextos sociais e que caracterizam a realidade como essencialmente polissêmica, plural e complexa. Sujeitos e(em) realidade são, na perspectiva do enfoque histórico-cultural em psicologia adotado neste trabalho, constantemente constituídos, sendo tudo, todos e cada um, expressão e fundamento de condições essencialmente históricas, marcadas pelas (im)possibilidades de cada tempo e lugar3.

O não reconhecimento dessa pluralidade, historicidade e complexidade caracterizam uma história da civilização ocidental, marcada por fundamentalismos e exercícios de intolerância. No que se refere às ciências, por muitas décadas o debate sobre o processo de produção de conhecimentos também foi marcado pelos mesmos dogmatismos e intolerâncias, o que demarcou limites por vezes intransponíveis entre diferentes campos de saber, geralmente objetivados na cisão entre ciências da natureza, por um lado, e ciências humanas e sociais, por outro. Essa separação, problematizada por Boaventura de Souza Santos em uma obra que é referência em discussões epistemológicas e que foi publicada pela primeira vez em 1978 (“Um discurso sobre as ciências”), provocou uma série de acontecimentos e polêmicas que o próprio autor e vários pesquisadores por ele convidados, de diferentes áreas de conhecimento, discutem quase 20 anos depois (Souza Santos, 2004).

A “Guerra das Ciências”, modo como o embate ficou conhecido no universo acadêmico, explicitou que “as diferenças epistemológicas não ocorriam apenas entre cientistas naturais e cientistas sociais, mas também entre cientistas naturais e entre cientistas sociais, e que tais diferenças se articulavam de modo complexo com diferenças culturais e políticas, com diferentes concepções sobre a relação entre conhecimento científico e outras formas de conhecimento” (Souza Santos, 2004, p. 25).

Além das discussões epistemológicas, demarcadas por diferentes modos de se conceber sujeito, validade, possibilidades de produção de conhecimento e sua generalização, as polêmicas eram caracterizadas por intolerâncias e práticas de exclusão assentes em critérios de verdade que assumiam dogmaticamente, por um lado, os preceitos iluministas que fundamentavam as ciências modernas ou, por outro lado, critérios de verdade opostos que negavam peremptoriamente esses mesmos preceitos. Em uma ou outra perspectiva, o critério de realidade como verdade era assumido como fundamento.

Essas oposições apresentaram-se visivelmente no interior das ciências humanas e sociais, demarcando territórios distintos e geralmente excludentes em relação ao modo como se concebia o processo de produção de conhecimentos. Sob a égide do debate, por vezes mais animoso do que animado, apresentava-se o embate sobre o que se legitimava como conhecimento científico, luta em que se procurou impor um determinado modo de fazer ciência com argumentos de objetividade, neutralidade e generalidade.

Um dos modos de objetivação desse embate foi o suposto antagonismo entre pesquisas quantitativas e qualitativas, sendo as primeiras privilegiadas nas pesquisas das ditas ciências naturais, e as pesquisas qualitativas reconhecidas como pertinentes ao campo das ciências humanas e sociais. Importante ressaltar que estas também foram historicamente marcadas pela territorialização anteriormente referida em razão de muitas de suas práticas assumirem, sob o mesmo discurso de cientificidade, os preceitos metodológicos e epistemológicos das ciências da natureza.

A estatística foi utilizada como artífice da oposição quantitativo/qualitativo em razão de sua suposta objetividade e precisão, fundamentais na busca da distância da polissemia que obnubilava a inteligibilidade das expressões científicas. Procedimentos estatísticos, portanto, foram apresentados como instrumentos por excelência na produção de conhecimentos que se pretendiam exatos, precisos, fiéis à realidade investigada, enfim, científicos.

A exatidão estatística, no entanto, pouco serve às pretensões de verdade unívoca e igualmente se apresenta como falácia, assim como a oposição quantitativo/qualitativo que, por seu intermédio, buscou-se afirmar. Estranham Bourdieu, Chamboredon, e Passeron (2004, p. 20) que “a estatística – ciência do erro e do conhecimento próximo que, em procedimentos tão usuais quanto o cálculo do erro ou dos limites de confiança, coloca em ação uma filosofia da vigilância crítica – possa ser utilizada como álibi científico da submissão cega ao instrumento”.

Embora se reconheça o caráter histórico da separação quantitativo e qualitativo, que demarca possibilidades de pesquisa a reivindicar/lutar por espaço em contextos acadêmicos e verbas junto às instâncias de fomento, entende-se que necessário se faz superar falsas oposições e reconhecer as contribuições de diferentes modos de produção de conhecimentos. Afinal, a realidade não fala por si só e todo número – apresentado como ícone das pesquisas quantitativas – é sempre e necessariamente expressão de uma qualidade que precisa ser explicitada. A oposição quantitativo/qualitativo é, nesse sentido, falaciosa e mantê-la significa reproduzir dicotomias que marcam o pensamento ocidental e pouco revela sobre a diversidade que caracteriza a própria ciência.

Toda homogeneização precisa ser problematizada, pois uniformizar diferenças que demarcam singularidades no processo de produção de conhecimentos – tanto no que se refere às ferramentas a serem utilizadas para a coleta de informações e análise de dados, quanto na assunção dos resultados daí advindos – oblitera a possibilidade de olhar criticamente o que se faz e diz, assim como são dificultadas as condições para engendrar práticas criativas necessárias à produção de respostas para os complexos problemas sociais que contemporaneamente se apresentam.

 

PESQUISA ACADÊMICA EM PSICOLOGIA: FUNDAMENTOS COMUNS?

A pesquisa em contextos de pós-graduação ou instituições de pesquisa tem por compromisso a produção de novos conhecimentos, de novas explicações sobre a ou compreensões da realidade, explicações/compreensões essas que necessariamente se assentam sobre o que já foi dito ou sobre os não ditos, sobre os silêncios e omissões que também requerem atualização.

“Novo” aqui pode ser entendido tanto como a explicitação de algo até então desconhecido, portanto inédito, original, quanto a apresentação de uma nova faceta/uma nova leitura sobre algo há muito tempo estudado e cuja familiaridade cega para o que pode vir a ser (re)conhecido. Em qualquer das situações, o conhecimento sobre o dito e o não dito é condição sine qua non para o pesquisar, a base sobre a qual se assentam as reflexões a serem produzidas.

A pesquisa acadêmica caracteriza-se, pois, pelo diálogo estabelecido com a realidade e com a própria ciência psicológica, com o que se fala em seu nome e o uso que dela se faz. Poderia-se dizer que, de modo geral, a pesquisa em psicologia é assim delimitada na medida em que aquilo que se investiga é atinente à ciência psicológica, aos seus focos de estudo: maiores especificações, por sua vez, implicam em riscos na medida em que não se caracteriza como ciência singular. Seus dilemas são os mesmos que concernem às ciências em geral, assim como sua história é marcada pelas relações de força e tensões características dos momentos históricos em que se insere.

Se há, por sua vez, compromisso com a própria ciência e seu desenvolvimento, toda e qualquer pesquisa em psicologia, para além da diversidade epistemológica em que pode se assentar, responde a inquietações que marcam o status do processo de produção de conhecimentos, com suas implicações econômicas, sociais e políticas. A interação & eacute; uma constante, seja com a realidade (re)conhecida ou com os muitos interlocutores que caracterizam a civilização ocidental da qual se é signatário. Nessa complexa e intrincada rede de relações, com suas influências e pressões variadas, as uniformidades são poucas e as exigências muitas, nem sempre reveladas.

Difícil pensar, nessa condição, em fundamentos que possam ser comuns às pesquisas e suas diferentes práticas. Esse exercício de identificação de consonâncias, porém, é importante, pois quando se nega a possibilidade de reconhecimento de afinidades, de pontos de referência em comum ainda que destes possam decorrer explicações variadas, quiçá opostas, o diálogo é impossível, as trocas ficam obliteradas, negadas. Negadas tal como acontece no diálogo verbal de surdos relatado por Vigotski (1992), onde três deficientes auditivos defendem veementemente seus pontos de vista, sem se dar conta de que falam sobre assuntos diferentes. Para que não continuem surdos e cegos às diferenças, para que algum diálogo possa acontecer, é preciso (re)conhecer aspectos de interesse comum às diferentes práticas em pesquisa que permitam instituir a própria interlocução.

Que fundamentos podem ser esses que, ao mesmo tempo, reconheçam/preservem as especificidades dos diferentes métodos4 de pesquisa em psicologia e viabilizem algum diálogo? Como reconhecê-los sem recair em discursos normatizadores, discursos esses que afirmam direções unívocas para o pesquisar e se traduzem em manuais onde a produção de conhecimentos é reduzida à seqüência de passos a serem seguidos?

Procura-se apresentar aqui algumas respostas para essas perguntas. Respostas provisórias, por certo, e que são somente anunciadas, pois cada uma delas demanda uma complexa reflexão que se estende para além dos limites desse texto. Ousa-se apresentá-las com a pretensão de contribuir para o diálogo sobre o pesquisar e como suporte para a defesa desse processo como criação ética, estética e política.

1) Toda e qualquer pesquisa parte de uma pergunta que se quer responder

Como afirma Sérgio Luna (2000), “a realidade não se mostra a quem não pergunta”. Afirma-se que ela tampouco se esconde, porém a assertiva deste autor é apresentada porque revela a possibilidade de existência humana como mera passagem, uma existência cuja cotidianidade e garantia da sobrevivência imediata se apresentam como suficientes. Porém, é facultado ao ser humano, enquanto característica de sua própria humanização, superar o existente e projetar-se em direção a devires, instituir relações outras que se diferenciem das relações utilitárias e impessoais que caracterizam a sociedade capitalística5. Essas relações outras são fundamentalmente relações estéticas6, pautadas em uma sensibilidade que revela a cada um e a todos a riqueza de ser ao mesmo tempo uno e coletivo, de ser expressão e fundamento da realidade. Sensibilidade que se funda na possibilidade de reinvenção da própria existência, problematizada e problematizadora, superação do fato, do dado.

Nesse sentido, é preciso (re)aprender a olhar, a admirar e, fundamentalmente, a perguntar, a questionar, a problematizar. Em pesquisa, perguntar é fundamental, uma tarefa primeira e difícil, pois há que se considerar de certa forma vários aspectos: se essa mesma pergunta já não foi feita e, em caso afirmativo, analisar a qualidade da(s) resposta(s) que foi(foram) produzida(s); as condições que se têm para respondê-la; as possibilidades de respostas para esta pergunta, considerando suas implicações éticas7.

Apontar esses aspectos não significa que boas perguntas se caracterizem pelo grau de dificuldade na sua compreensão. Ao contrário, Souza Santos (2003, p. 15) propõe que “é preciso voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer, mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade”.

Perguntas, por sua vez, indicam escolhas, e em pesquisa essas se relacionam com o referencial teórico de base de quem questiona, com os seus valores e concepções de mundo, escolhas essas que apontam alguns caminhos a serem trilhados para a produção de respostas. Por sua vez, é importante destacar que esse mesmo referencial de base permite problematizar explicações já consolidadas, verdades supostas, ou então reafirmá-las, posições essas que revelam igualmente condições ético-estéticas e políticas.

2) Reconhecer, no caso das pesquisas em psicologia, a complexidade do que se investiga

Este é outro aspecto que se pode apontar como comum a diferentes métodos de pesquisa e reconhecido, embora com diferentes implicações, por teóricos de vertentes tão distintas como Sokal e Bricmont (1999), Morin (1998) e Souza Santos (2004).

Reconhecer a realidade como complexa é mais um indicador da necessidade de se transcender supostas fronteiras no que se refere a procedimentos e práticas de pesquisa. Isso não significa que fronteiras não existam: afinal, foram historicamente produzidas para demarcar lugares de saber/poder. No entanto, estas parecem não se situar nos locais tradicionalmente reconhecidos, ou seja, nos procedimentos de coleta de informações e análise de dados, pois dependendo do que e como se investiga, é preciso lançar mão de técnicas diferentes e referenciais de análise variados. Por exemplo: informações obtidas com a observação participante, ferramenta fundamental da pesquisa etnográfica que provoca a instituição de olhares para além do contexto imediato, reportando a uma busca histórica de modo a reconstituir cenários e problematizar o supostamente conhecido, podem ser cotejadas com a leitura de dados estatísticos: utilizados em uma mesma investigação, a ser desenvolvida não necessariamente por um pesquisador, mas por uma equipe, observações participantes e dados estatísticos possibilitam (re)conhecer diferentes ângulos de uma mesma situação/problema.

Assumir o princípio da complexidade do real significa, portanto, conceber que o próprio processo de produção de conhecimentos é igualmente complexo, o que leva ao reconhecimento de que explicações causais diretas, ou seja, que partem do isolamento de variáveis desconsiderando que o isolamento real é uma ficção posto que todos os fenômenos se interrelacionam e mutuamente constituem, têm um poder explicativo limitado. Por sua vez, toda e qualquer explicação é datada, e “... a ciência é ciência de um mundo real e que este, por sua natureza, é mudança, movimento e variação constantes. As proposições científicas, portanto, só tem uma estabilidade relativa, o que não quer dizer que por isso sejam falsas, pois exatamente por serem relativas se ajustam ao ritmo mutante e dinâmico do real. Nesse sentido, todas as ciências – e muito especialmente as ciências humanas e sociais, entre as quais seria preciso lutar para incluir a Estética – são tão mutantes – ou seja, tão históricas – quanto a realidade que estudam” (Sánchez Vázquez, 1999, p. 20).

3) Relação entre pergunta, método de pesquisa e referencial teórico-epistemológico

Toda e qualquer pergunta de pesquisa indica, em maior ou menor grau, o lugar de onde fala o pesquisador. Lugar teórico, epistemológico, ético, instituído e instituinte de possibilidades de olhar, de compreender, de (re)conhecer e de ser (re)conhecido, o que demarca a inexorável condição social do próprio pesquisador e do que investiga.

As escolhas metodológicas, a definição dos procedimentos para coleta de informações e análise de dados, por sua vez, carecem de sentido se feitas à priori, descoladas do que se quer investigar. Esclarece Vigotski (1995, p. 47) que “a elaboração do problema e do método se desenvolvem conjuntamente, ainda que não de modo paralelo. A busca do método se converte em uma das tarefas de maior importância na investigação. O método, nesse caso, é ao mesmo tempo premissa e produto, ferramenta e resultado da investigação”8.

Problematiza-se assim a assunção de procedimentos melhores desconsiderando-se as perguntas que se quer responder. Problematiza-se a desqualificação de práticas de pesquisa e seus resultados, baseada em pressuposições do que é científico cunhadas na afirmação de verdades ahistóricas, e que se sustentam no uso de determinados procedimentos e linguagem tidos como exatos, precisos. Por sua vez, as respostas possíveis, ou a interpretação do que se produziu como dado (vale observar a inadequação desse termo, posto que em pesquisa nada é “dado”, é gratuito, nada está pronto, tudo é resultado de árduo trabalho do pesquisador), igualmente se sustentam em uma perspectiva teórica epistemológica, seja esta explicitada ou não.

No que se refere à pesquisa acadêmica, a afirmação a priori de procedimentos a serem utilizados se esvai, pois a escolha destes decorre da pergunta que se pretende responder e dos fundamentos ontológicos em que se sustentam os diferentes referenciais teóricos que balizarão as análises a serem empreendidas.

4) Pesquisar é intervir

Toda e qualquer pesquisa implica relações entre sujeitos, entre pesquisador e as pessoas e/ou práticas sociais que são foco de seu olhar, ou entre pesquisador e o conhecimento já produzido, no caso de pesquisas documentais, onde muitos outros, ausentes, se fazem presentes. Destaca-se aqui a noção de relações, que necessariamente pressupõem um e outros, entendidos à luz do enfoque histórico-cultural em psicologia como mutuamente constitutivos. Isso porque, aparentemente distintos, separados, as pessoas em relação se amalgamam pela própria condição de que uma pressupõe a outra e tem sua existência (re)conhecida nessa condição, fundadora da própria humanização. Por sua vez, modificam-se no curso dessas relações todos os envolvidos, posto que lhes é facultado ressignificarem a si mesmos em razão tanto do outro presencial, quanto dos muitos outros anônimos que são necessariamente parceiros de toda e qualquer atividade9. Mesmo no caso de documentos, considerados “não reativos” (Valles, 1997), é importante considerar que estes (re)existem nas relações que com eles os pesquisadores estabelecem, relações essas em que novos sentidos necessariamente se produzem sobre o que se apresenta como imagem/texto a ser lido.

Nesse sentido, toda pesquisa é uma intervenção, posto que ali se recriam sujeitos, conhecimentos e a própria realidade. Toda pesquisa transforma tanto o pesquisador quanto as pessoas com as quais trabalha no processo de produção de conhecimentos, assim como seu produto, uma vez publicado, tornado público, apresenta-se como dispositivo a deflagrar diálogos e intervenções outras. Esclarece Maraschin que “O próprio fato de perguntar produz, ao mesmo tempo, tanto no observador quanto nos observados, possibilidades de auto-produção, de autoria. Nossos ‘objetos de pesquisa’ também são observadores ativos, produzem outros sentidos ao se encontrarem com o pesquisador, participam de redes de conversações que podem ser transformadas a partir de novas conexões, novos encontros” (Maraschin, 2004, p. 105).

5) Pesquisar é criar

Se o compromisso da pesquisa científica é produzir novos conhecimentos, pesquisar caracteriza-se como atividade estética criadora, como atividade “que não se limita a reproduzir fatos ou impressões vividas, mas que cria novas imagens, novas ações...” (Vigotski, 1990, p. 9), novos conceitos e explicações sobre a realidade investigada.

Necessário ressaltar que criar não é atividade mágica, sequer tranqüila. Vigotski (1990) esclarece que quem cria o faz a partir de um complexo processo em que aspectos da própria realidade são descolados dentre uma infinidade de possíveis, e combinados de múltiplas maneiras. O inusitado está nas infindáveis possibilidades de decomposição, de recortes de fragmentos daqui e dali que são recompostos em novas combinações, em produções inovadoras, decorrentes tanto do que intencionalmente se produz quanto dos acasos, dos encontros inesperados que surpreendem com o que emerge.

Por sua vez, para criar é necessário conhecimento, técnica e uma boa dose de sensibilidade. Conhecimento porque só é novo aquilo que não repete o já existente, e no caso da pesquisa científica, conhecer o que já foi produzido sobre a temática investigada é condição para a delimitação do próprio problema e dos diálogos que se irá estabelecer com os conhecimentos já produzidos10. Técnica, porque toda e qualquer pesquisa, independente do referencial teórico-epistemológico que a sustenta, requer rigor na escolha e explicitação dos procedimentos para coleta de informações e para a análise dos dados. Rigor que não significa engessamento, ou adoção cega de instrumentos considerados científicos. Rigor que se traduz como coerência, pois como afirmado anteriormente, a escolha de procedimentos não se faz à priori, mas sim em razão do que se busca investigar e do referencial teórico-epistemológico que, como uma luneta, foca o olhar sobre a realidade e os fragmentos que dela serão recortados e sustentarão o processo de criação.

Desse modo, questiona-se a assunção prévia de procedimentos mais ou menos adequados. Afinal, toda pesquisa é uma (re)invenção, e procedi-mentos se atualizam a cada nova investigação, embora seja importante reiterar que não se cria do nada. O que se quer d estacar é a necessidade de se (re)conhecer as importantes contribuições sobre o tema que já se encontram difundidas na literatura (como exemplo, ver Olabuénaga, 1999; Delgado & Gutierrez, 1994) e, no diálogo com o já dito, refletir sobre o que se diz e os muitos não ditos que carecem de voz e vez.

Por fim, criar requer relações estéticas pautadas em uma sensibilidade que possibilite não somente ver, mas fundamente olhar, admirar, problematizar a realidade; sensibilidade para não somente estar, mas para viver intensamente e sensivelmente os encontros e desencontros que caracterizam a existência humana – as relações que caracterizam o pesquisar aí se incluem – e o que esta produz como mediação fundamental para o seu próprio vir a ser. Sensibilidade, enfim, que mobilize para a procura de algumas respostas às perguntas que são feitas e que movem o pesquisador em direção à produção de possíveis respostas, respostas essas decorrentes da reflexão sobre os resultados da investigação e que não raro provocam a afirmação de muito mais dúvidas do que certezas.

Mas o criar não se encerra aí, pois o ciclo do processo de criação se completa somente com a objetivação do produto criado, o que requer a escolha de signos mediadores que permitam expressar o que se quer comunicar. Mas essa é uma outra questão, que foge ao escopo deste trabalho11.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões aqui apresentadas sobre o pesquisar em psicologia permitem afirmar que se trata de um processo de criação, de uma prática social complexa que busca compreender/explicar ou encontrar soluções para uma realidade igualmente complexa. Enquanto prática social, pressupõe sujeitos em todo o seu processo e necessário se faz, considerando a sua implicação com as condições históricas em que se vive e com a história que se quer (re)produzir, reconhecer que se trata de uma ação ética, estética e política.

Ética, porquanto socialmente comprometida com alguma visão de mundo, com os valores, conhecimentos e crenças que (re)(de)formam o olhar do pesquisador e constituem seu projeto de vida. No caso da pesquisa acadêmica, está presente em todos os momentos do processo de produção de conhecimentos, desde a formulação da pergunta de partida até a interpretação dos resultados e sua divulgação.

É também uma prática estética, posto que se pauta em sensibilidades que estranham o instituído e reconhecem infinitas possibilidades de devir e acolhimento das diferenças que conotam ou podem vir a conotar a existência humana. Estética porque se funda em relações estéticas, ou seja, em “relações sensíveis em que é possível reconhecer a potência criadora que afirma o ser humano enquanto humanidade” (Zanella, 2006, p. 36).

Por fim, pesquisar é uma prática política, na medida em que, como toda e qualquer ação humana, necessariamente se engaja em um projeto de sociedade que se quer (re)produzir. Desse modo, a reflexão sobre o que se faz, o como se faz e o que resulta dessa prática vincula-se inexoravelmente à reflexão sobre as implicações ou decorrências dessas práticas, sejam estas tecnológicas, sejam no plano das idéias.

 

REFERÊNCIAS

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1 Consulta realizada em 19/08/2005, no site http://www.capes.gov.br/capes/portal/conteudo/2003_037_Doc_Area.pdf

2 No Brasil, após a graduação é possível realizar cursos de pós-graduação lato sensu, denominados especializações e voltados para a atualização profissional, ou cursos de pós-graduação strictu sensu. Estes são oferecidos por Programas de Pós-Graduação vinculados a Instituições de Ensino Superior ou Institutos de Pesquisa. Há duas modalidades: mestrado, com duração média de 30 meses, e doutorado, com tempo previsto de conclusão de 48 meses. Informações sobre a realidade da pós-graduação strictu sensu no Brasil podem ser obtidas no site www.capes.gov.br.

3 Sobre as relações sujeito e sociedade na perspectiva do enfoque histórico-cultural em psicologia, ver Vigotski (2000), Pino (2000) e Zanella (2004, 2005).

4 Utiliza-se aqui método em sua acepção etimológica, ou seja, como caminho para se chegar a algum lugar.

5 “Guattari acrescenta o sufixo ‘ístico’ a ‘capitalista’ por lhe parecer necessário criar um termo que possa designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também setores do ‘Terceiro Mundo” ou do capitalismo ‘periférico’, assim como as economias ditas socialistas dos países do leste, que vivem numa espécie de dependência e contradependência do capitalismo” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 15 – nota de rodapé).

6 Sobre relações prático-utilitárias e relações estéticas ver Sánchez Vázques (1999).

7 Ética, neste trabalho, é entendida como “uma postura que se pauta pelas noções do que é bom ou mau para a vida, para a existência humana. Sendo esta existência necessariamente relacional, posto que somos sujeitos em relação, falar em ética significa falar no compromisso com os outros e consigo mesmo de valorização e luta pela vida, pela denúncia de toda e qualquer forma de violência e degradação humana. Luta permanente por modos de vida dignos para todos, o que requer o exercício contínuo e permanente de crítica em relação ao que se faz cotidianamente e as conseqüências dessas ações para a vida em sociedade” (Sais, Zanella, & Zanella, 2007, p. 323).

8 Sobre as reflexões metodológicas de Vigotski, ver Zanella et al. (2007).

9 Sobre a noção de outro – alteridade – à luz do enfoque histórico-cultural em psicologia ver Zanella (2005).

10 Esclarece Alves-Mazzotti (2002, p. 27): “A proposição adequada de um problema de pesquisa exige, portanto, que o pesquisador se situe nesse processo, analisando criticamente o estado atual do conhecimento em sua área de interesse, comparando e contrastando abordagens teórico-metodológicas utilizadas e avaliando o peso e a confiabilidade de resultados de pesquisa, de modo a identificar pontos de consenso, bem como controvérsias, regiões de sombra e lacunas que merecem ser esclarecidas”.

11 Sobre a relação pesquisar e escrever, consultar Machado (2007) e os vários textos compilados por Bianchetti e Machado (2002), entre outros.

 

(*) Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Bolsista em produtividade do CNPq.

(**) Professor e coordenador do curso de Psicologia da UNIVALI, Biguaçu, Brasil.

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