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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.25 n.2 Lisboa abr. 2007

 

Comunicação em contexto clínico (2007) - José Mendes Nunes. Lisboa: Bayer Health Care, 194 pp.

 

Numa época em que a saúde em Portugal vive imersa em discursos economicistas sobre a necessidade de racionalização dos recursos, em pressões para aumentar a eficiência e a produtividade dos técnicos de saúde, bem como na comunicação política desastrosa que acompanhou encerramentos de maternidades, urgências e SAPs, este livro, dedicado à comunicação em contexto clínico e centrado na prática da medicina geral e familiar, é uma importante lufada de ar fresco que, deixando para trás os que gerem saúde como quem gere grandes superfícies, focaliza nas pessoas e nos processos de comunicação entre as pessoas. Especificamente, focaliza nos médicos e pacientes, que se encontram em contextos clínicos.

Para além do específico contexto social (e político) em que aparece, momento em que também está em curso importante Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, é desde logo uma obra pertinente face a uma Medicina que se caracteriza pela utilização crescente das tecnologias em desfavor da comunicação e pela escassa centração dos médicos nas pessoas, nas suas experiências e nos seus problemas com o viver. A entrevista médica é, tradicionalmente, uma entrevista centrada no médico, constituindo-se por isto num obstáculo à comunicação, uma vez que desse modo os assuntos que o paciente traz para a consulta, a sua “agenda” para a consulta, não são acomodados pela agenda do médico.

Ao mesmo tempo, criaram-se tantas expectativas de infalibilidade e perfeição em relação à Medicina e aos médicos que, sendo ilusões optimistas e irrealistas, vão gerando frustrações, conflitos e, até, violências, que emergem nos serviços de saúde. É por isso que é hoje necessário, mais do que nunca, dar lugar central aos processos de comunicação na consulta e à qualidade das entrevistas clínicas, investindo na formação dos médicos, com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento das suas competências de comunicação e relação. Mais, mais do que isso, é preciso dar voz aos utentes (no sentido proposto por Ronald Laing de “dar voz aos pacientes”) para compreender a experiência vivida do utente que consulta, para o compreender como pessoa e não como categoria nosológica que não é e, finalmente, para compreender tudo aquilo o que não é abrangido pelas racionalidades clínicas (biomédicas) e que são processos e interacções de natureza subjectiva.

A deriva tecnológica da larga maioria das especialidades médicas tem feito com que o método clínico centrado no paciente e a entrevista clínica tenha perdido centralidade na consulta médica, com a consequente desumanização e manipulação dos pacientes como objectos. Será realista pensar que a Medicina se consegue “humanizar” só a partir “de dentro”?

O autor acredita que sim, nomeadamente ao enunciar que contribuir para a humanização da Medicina e para consciencializar os médicos que a consulta pode ser relação de ajuda são os objectivos gerais do seu trabalho. A proposta essencial da sua obra pode inserir-se numa tendência geral de remoralização da educação e prática médicas, apresentando o método clínico centrado no paciente e a entrevista clínica como instrumento privilegiado de trabalho em Medicina Geral e Familiar, o que consegue fazer de forma clara, compreensível, preocupada com o rigor e com indiscutível didactismo. Em cada momento recorda ao leitor o essencial: o paciente é uma pessoa.

José Mendes Nunes, licenciado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa e Mestre em Comunicação em Saúde pela Universidade Aberta, é Chefe de Serviço da Carreira Médica de Clínica Geral do Centro de Saúde de Oeiras, foi Sub-Director Geral de Saúde, é orientador do Internato Complementar de Clínica Geral, Assistente Convidado do Departamento Universitário de Clínica Geral da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa (UNL), além de Coordenador do Departamento de Formação da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral (APMCG) e membro do Conselho Consultivo do Departamento de Formação Permanente do ISPA, escreveu um livro que só poderia ser escrito por um Médico com larga prática clínica, capaz de reflectir criticamente sobre a sua própria experiência e com uma percepção clara sobre o que faz falta no desenvolvimento pessoal e profissional dos médicos em termos de competências de comunicação na consulta.

Trata-se de um livro que, em minha opinião, ombreia ao mesmo nível de qualidade científica de obras essenciais sobre o mesmo tema e praticamente com os mesmos destinatários: os livros publicados por Roslyn Corney (Developing Communication and Counselling Skills, 1991), Debra L. Roter e Judith A. Hall (Doctors Talking with Patientes/Patients Talking with Doctors. Improving Communication in Medical Visits, 1992), Peter Tate (The Doctor’s Communication Handbook, 2003). Entre nós, tem o grande mérito de ser o primeiro não psiquiatra a publicar uma obra relevante sobre comunicação em contextos médicos, depois de Eduardo Cortesão e, mais recentemente, de Pio Abreu.

A meu ver, o livro divide-se em três partes:

-Na primeira parte são apresentados aspectos essenciais sobre a comunicação humana em geral (escolas, teorias e modelos), incluindo uma referência à importância da comunicação em clínica geral. Talvez aqui, e não no fim do livro, fosse o momento de colocar em evidência a importância da comunicação na prestação dos cuidados de saúde, em termos de satisfação dos utentes e da melhoria dos comportamentos de adesão e, já agora, da influência que pode ter nos comportamentos de procura de cuidados e utilização dos recursos de saúde por parte dos utentes e na satisfação dos profissionais, mais do que na terceira parte do livro;

-Na segunda parte, que é a parte mais relevante e representa cerca de metade do livro, desenvolve o método clínico centrado no paciente e diferentes aspectos da técnica de entrevista clínica. Ao referir a incorporação da promoção da saúde e da prevenção da doença opta por incluir três modelos psicológicos, de forma simplificada: modelo de crenças de saúde, auto-eficácia e modelo transteórico da mudança de comportamento por fases. É verdade que contemplam variáveis com influência na mudança de comportamentos, mas não esgotam o assunto e, sobretudo, não se vislumbra como é que os médicos de família dominam técnicas baseadas nesses modelos em termos de intervenções de aconselhamento preventivo, sobretudo para transformar uma intenção favorável de mudar um comportamento numa mudança efectiva e, sobretudo, como assegurar a manutenção a longo prazo, a única que poderá relacionar-se com ganhos para a saúde. A orientação geral é de inspiração humanista rogeriana e concretiza-se no método clínico centrado no paciente (MCCP) para a Medicina Familiar. O capítulo sobre as fases de entrevista clínica é particularmente bem conseguido, quer pelo seu didactismo quer pela ilustração com apropriadas vinhetas de casos

-Finalmente, na terceira parte aborda as emoções na consulta, o impacto da comunicação na consulta e alguns aspectos do próprio processo de consulta. É talvez a parte menos conseguida do livro, uma vez que, especialmente as interacções emocionais na consulta, mereceriam maior profundidade da abordagem. Seria a oportunidade de abordar a intersubjectividade do diálogo clínico que só acontece quando se estabelece uma relação de confiança mútua e reciprocidade, um processo intersubjectivo, não quantificável. Elaborar uma espécie de “guidelines” para a entrevista clínica é importante, como é feito na segunda parte do livro, até porque é mais difícil fazer perguntas adequadas do que responder a elas e o diálogo também depende dos modos de comunicação. No entanto, uma preocupação excessiva com “receitas” comunicacionais pode sobrepôr-se, sobretudo para quem se está a iniciar na profissão, ao facto do diálogo clínico depender também das qualidades emocionais e pessoais dos intervenientes, da sua capacidade para estar-aberto e estar-com e da qualidade afectiva da relação e respeito genuíno pela liberdade do outro. As exigências de um desempenho comunicacional “by the book” podem ser obstáculos para a arte de questionar com espontaneidade, intuição, compreensão, ironia e imaginação.

Existem duas formas de abordar as questões da comunicação na consulta médica, que são complementares.

A mais tradicional, que coloca acento tónico no desenvolvimento das competências de comunicação do médico e no seu permanente aperfeiçoamento, centradas na transmissão de informação sobre os processos de saúde e doença e na comunicação persuasiva que visa a adesão medicamentosa e aos auto-cuidados, sempre na perspectiva da melhoria contínua da qualidade dos processos de comunicação em saúde que, em última instância influenciam a satisfação dos utentes. Não se interessa pelo desenvolvimento das competências de comunicação do utente.

A mais crítica, que coloca a comunicação na consulta no contexto do sistema/serviço de saúde em que ocorre a consulta e que inclui também os aspectos emocionais e irracionais da interacção, bem como a preocupação com o desenvolvimento das competências de comunicação de quem consulta, pelo desenvolvimento da sua literacia de saúde e pela sua participação activa na consulta, através da facilitação da sua assertividade e empowerment individual no próprio processo de consulta.

Para o ponto de vista mais tradicional digamos que a qualidade da comunicação na consulta surge como uma exigência “técnica” para “informar bem” e “obter uma boa adesão” ou “uma boa colaboração do doente”, como tantas vezes se ouve por aí a propósito de um misterioso “lado humano” da Medicina. O centro é o desempenho comunicacional do médico. Fica geralmente de fora da agenda médica a preocupação com a relação dos problemas de saúde com o contexto pessoal e social do utente, factor que, entre outros, pode influenciar o sucesso das medicinas alternativas…, bem como a representação leiga que o paciente já traz do problema que o afecta ou faz sofrer.

Para o ponto de vista crítico, a qualidade da comunicação é importante para compreender as experiências do utente e contextualizá-las em relação ao seu-mundo, mas também em relação às suas representações, crenças e atitudes face ao que considera ser o valor dos médicos, da Medicina e do sistema de saúde. O contexto organizacional (por exemplo, problemas de acessibilidade, listas de espera, faltas de pontualidade, etc.) influencia atitudes negativas em relação às crenças e experiências dos utentes, que seriam irrelevantes face à aceitação acrítica da ideia (errónea) de que o médico actuaria de forma benevolente sempre no interesse do doente. Há por vezes a ilusão de que os factores emocionais e irracionais desapareceriam apenas porque se faz um forte investimento no desenvolvimento das competências de comunicação… Pelo contrário, a atmosfera afectiva (relacional e organizacional) na qual decorre o processo de comunicação na consulta é fundamental, particularmente quando existem atitudes ambivalentes dos utentes em relação aos médicos e, por vezes, mesmo uma atitude de hostilidade em relação ao aumento da burocracia, das tecnologias e, claro está, das taxas moderadoras...

Se fosse necessário posicionar esta obra em relação a esses pontos de vista, diria que se situa numa posição de charneira entre as duas perspectivas, embora mais alinhado pela perspectiva mais tradicional, mais “cientificamente correcta”, que confere importância decisiva à pessoa do médico e à sua relação com o doente, isolando-os dos contextos sociais e culturais (e políticos) nos quais essa interacção social se desenrola.

Entre os seus pontos mais fortes contam-se:

- Ser uma voz crítica que, surgindo de dentro da própria Medicina, procura respostas para o problema central do nosso tempo na prática discursiva dos médicos na consulta: comunicação insuficiente, ambígua ou excessivamente técnica, num contexto relacional paternalista e controlador

-Desafiar o grande paradoxo da educação médica: as competências comunicacionais que estão no centro da actividade profissional só muito raramente fazem parte dos conteúdos formativos pré e pós-graduados

-Reflectir seriamente sobre a comunicação na consulta, que interpela todos os médicos

-Preocupação permanente em contribuir com instrumentos facilitadores do desenvolvimento das competências de comunicação dos médicos no processo de consulta

-Apresentar propostas concretas de reconhecimento de que os pacientes são pessoas, com a consequente necessidade de focalizar na sua experiência subjectiva, nos significados que constroem e na dimensão de “cuidar”, tão importante como a de “tratar”

-Apresentação muito clara do método clínico centrado no paciente e da entrevista clínica, fornecendo a cada passo sugestões concretas através das quais o leitor pode melhorar o seu desempenho comunicacional e melhorar a sua técnica de entrevista.

Entre os seus pontos menos fortes contam-se:

-Conferir (deliberadamente) um estatuto ambíguo a quem consulta, que umas vezes é o “paciente”, outras vezes é “doente”

-Não desenvolver aspectos comunicacionais sobre transmissão de informação de risco para saúde, de forma a assegurar a compreensão das mensagens, ajudar a lidar com a ansiedade e prevenir atitudes de falsa segurança após resultados negativos de exames médicos

-Deixar para segundo plano os aspectos emocionais na consulta, aspectos que, pela sua subjectividade tão oposta à racionalidade biomédica, se reconhece que serão porventura mais difíceis de abordar mas que têm importância crucial na comunicação na consulta nomeadamente, entre outros, o problema do distanciamento afectivo e da supressão das emoções que, sendo necessários para alguns aspectos do exercício clínico dos médicos são frequentemente usados por estes também como atitude pessoal protectora e resposta defensiva sistemática contra as atitudes projectivas dos pacientes, transformando-se em obstáculos para a autenticidade na relação médico-doente

- Apesar de apresentar a tradicional retórica biopsicossocial, não contempla a influência dos contextos sociais concretos dos pacientes e diferenças de género, nem como adaptar as modalidades de comunicação do médico a diferentes níveis educacionais, estilos cognitivos e contextos culturais dos pacientes, ou seja, comunicar na consulta com diversos tipos de pacientes (minorias sociais, étnicas ou culturais, etc.). Não aborda a questão da comunicação escrita com os pacientes.

Em minha opinião este livro é referência obrigatória sobre o tema, com especial interesse para jovens médicos em formação, em qualquer especialidade. Pode ser também um útil instrumento de reflexão sobre as práticas para qualquer técnico de saúde com actividade clínica em qualquer fase da sua carreira e desenvolvimento profissional, proporcionando uma oportunidade única de reflexão sobre o que se faz e, sobretudo, como se faz a consulta.

Pelo seu carácter de recurso didáctico, poderia mesmo constituir-se como um precioso manual de formação sobre o tema. O autor tem agora essa responsabilidade adicional: a de contribuir também com oportunidade formativas concretas para mudar as atitudes em relação à comunicação por parte dos seus Colegas que reconheçam essa necessidade de desenvolvimento pessoal e profissional.

 

José A. Carvalho Teixeira

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