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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.22 n.1 Lisboa mar. 2004

 

Psicologia Cultural e Desenvolvimento Humano

Um encontro com Barbara Rogoff

 

ZILDA FIDALGO (*)

 

Barbara Rogoff, da Universidade da Califórnia, é um nome de destaque na área da Psicologia Cultural. Trabalhou no Laboratory of Comparative Human Cognition, com Michael Cole, James Wertsch, Sylvia Scribner, entre outros. Dentre os numerosos artigos e publicações ao longo dos últimos 20 anos, destacamos a obra Apprenticeship in Thinking, uma obra de referência na área da Psicologia Cultural. A Psicologia Cultural, nas suas diferentes vertentes, pretende responder ao renascimento do interesse pela natureza social do ser humano, a que se tem vindo a assistir nas últimas décadas. Este interesse, sendo recorrente ao longo da história das ciências humanas, continua a ser tratado segundo dois modelos arquétipos (Valsiner & van der Veer, 2000). No primeiro desses modelos, os cientistas mostram uma grande preocupação em demonstrar a “diluição” dos indivíduos nos contextos sociais. De acordo com este ponto de vista, as pessoas são sociais porque submetem a sua personalidade individual à necessidade de participar nas actividades de uma determinada unidade social. O segundo arquétipo, pelo contrário, apresenta as pessoas enquanto atraídas pelo mundo social, e por isso seguem as suas normas. Contudo, um terceiro modelo enfatiza simultaneamente a individualidade (uniqueness) e o relacionamento (relatedness) da pessoa com as unidades sociais, pretendendo ultrapassar a parcialidade dos dois modelos anteriores. Este modelo, inspirado no desenvolvimento das teses de Vygotsky, tem vindo a tornar-se o centro das atenções desde os anos noventa, sob a designação de Psicologia Cultural. É nesta abordagem que se situa o trabalho desenvolvido nos últimos 20 anos por Barbara Rogoff, com um enfoque particular na observação etnográfica das diferentes formas de participação guiada, em contextos de actividade social. O seu objectivo é pôr em evidência a complexidade da unidade entre as pessoas e os seus contextos sócio-culturais, recusando separá-los teoricamente. Aquando da sua participação no XI Colóquio Psicologia e Educação, realizado em Novembro de 2002, tivemos oportunidade de realizar uma longa entrevista com Barbara Rogoff, de que apresentamos seguidamente breves excertos, com o objectivo de clarificar os seus pontos de vista, no momento actual do seu trabalho.

ZF - Como situa a Psicologia do Desenvolvimento no quadro da Psicologia Cultural, hoje, se é que podemos falar de uma perspectiva única nesta corrente da Psicologia?

BR - Na família da Psicologia Cultural há hoje uma grande variedade de abordagens. A maior parte não estuda o desenvolvimento, no sentido do estudo da infância ou da criança, embora seja importante que se abra uma janela nesse sentido. Aqueles que tentam abordar o estudo do desenvolvimento humano, em que incluo o meu trabalho, deslocam-se de uma abordagem do desenvolvimento individual, como se este acontecesse no vacuum, para o estudo de como as pessoas crescem e se desenvolvem como participantes, (e não membros, o que pressuporia uma fronteira entre membros e não membros), em comunidades culturais. Uma das principais contribuições da Psicologia Cultural consiste exactamente em mostrar que não há “pessoas genéricas”. Fala-se normalmente da “criança” como se tal entidade existisse em si mesma. “A criança”o; não existe enquanto tal - todas as crianças são históricas. Os seres humanos nunca estão sozinhos, mas em comunidades culturais com uma história, e nós não temos prestado atenção suficiente à forma como as pessoas participam nessas comunidades. Em termos de oferta teórica neste campo, não penso que tenhamos avançado o suficiente. Precisamos de mais investigação empírica e não apenas de trabalho conceptual. Mas é evidente que o trabalho conceptual é importante e reorienta a investigação.

ZF - A insuficiência de investigação empírica não poderá conduzir, por vezes, a um discurso retórico sobre o desenvolvimento humano, a que falta sustentação?

BR - Com certeza. Mas existem já vários trabalhos de observação empírica que ilustram alguns dos conceitos teóricos. A procura de situações em que se “vejam” esses conceitos ou ideias é essencial. Por exemplo, a investigação de Hutches (1991; 1993), sobre a construção de barcos e a arte de navegar, mostra que a actividade cognitiva, tal como os instrumentos, está distribuída por todos os que participam na actividade. No meu próprio trabalho estou particularmente interessada nas variações e diferenças culturais nos processos de socialização da linguagem, como é o discurso na família e na sala de aula. Muito trabalho deste tipo tem sido feito, mas é muito recente.

ZF - O conceito de internalização, que aparece tanto em Vygotsky como em Piaget, tem sido muito discutido, nomeadamente no seu livro Apprenticeship in Thinking, em que prefere o conceito de apropriação por participação (participatory appropriation). Gostaria que comentasse.

BR - Não me parece que exista grande concordância entre nós sobre o conceito de internalização. No que me diz respeito, não preciso de outra palavra para falar de participação, e sinto-me bastante confortável com o seu uso. A ideia que tentei dar nesse livro é que a pessoa não é auto-contida e tem que ultrapassar uma barreira para chegar à cultura. Seria como se houvesse uma “parede” entre o indivíduo e a cultura, e essas fronteiras não existem. Neste momento não sinto necessidade de usar a palavra apropriação, mas não estou absolutamente segura. As pessoas e a cultura não são separadas, por isso a palavra participação, de momento, é suficiente para mim. E não tem nada de “mágico”, mas traduz o que as pessoas fazem para que as coisas aconteçam. Na participação num sistema cultural há transformação.

O programa de investigação de Barbara Rogoff pode, assim, ser caracterizado a partir das seguintes premissas: a) reconhecimento da natureza holística do desenvolvimento humano, ou seja, as pessoas e as actividades constituem-se mutuamente; b) observação dos processos de desenvolvimento pela participação guiada nas práticas e nos contextos culturais; e c) prioridade das metodologias qualitativas no estudo dos indivíduos em contextos culturais. O seu percurso como investigadora conjuga a descrição etnográfica dos fenómenos e dos diferentes modelos de psicologia popular (folk psychology) existentes, na psicologia e na educação, e a experimentação em contextos reais de vida.

Desta vertente do seu trabalho dá-nos conta no seu último livro, Learning Together: Children and Adults in a School Community (2001). Barbara Rogoff e colaboradores - pais e professores -, relatam-nos uma experiência, que tem vindo a ser construída nos últimos 20 anos, do que pode ser aprender por participação numa Comunidade Escolar. A organização desta Comunidade Escolar baseia-se na articulação das suas ideias teóricas e dos resultados da observação etnográfica sobre a vida das crianças em diferentes comunidades culturais.

 

(*) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa. UIPCDE.

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