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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.22 n.1 Lisboa mar. 2004

 

Nota de Abertura

 

A concepção deste número de Análise Psicológica surgiu quando da realização no ISPA do XI Colóquio de Psicologia e Educação intitulado “Experiência Social, Educação e Desenvolvimento” que, embora inserido no âmbito das comemorações dos 40 anos do Instituto, foi organizado pelo Departamento de Psicologia Educacional e pela UIPCDE, já sendo considerado um tradicional espaço de partilha e debate de trabalhos, ideias e preocupações ligadas à educação.

Este encontro científico contou com a colaboração de 75 oradores nacionais e estrangeiros e cerca de 600 participantes oriundos de todo o país e com diferentes tipos de formação e de actividade profissional, aderência reveladora do impacto desta iniciativa.

Dentro dos especialistas que apresentaram comunicações alguns disponibilizaram-se a publicar os seus trabalhos e conseguimos 24 artigos que vos damos a conhecer.

Nos últimos anos o papel da Experiência Social na Educação e Desenvolvimento tem sido alvo de inúmeros trabalhos empíricos e reflexões, sendo evidente a inspiração em Vygotsky e nas ideias base da sua teoria. Dentro da complexidade da teoria sublinhamos a componente Sócio-cultural: a actividade intelectual complexa não é resultante de capacidades naturais internas, mas da história cultural da sociedade. A componente Social: é pela participação activa em situações sociais com membros mais competentes da sua comunidade, que a criança se apropria dos instrumentos culturais. E a componente Semiótica: as relações sociais são mediadas por instrumentos semióticos, cuja apropriação e domínio conduz à reorganização da actividade individual.

A actividade psicológica complexa não é inata, mas um produto histórico resultante da história natural e da história sócio-cultural e o pensamento é resultante do controlo exercido pelas práticas sócio-culturais sobre as capacidades naturais, a socialização do cérebro e do corpo por meios culturais historicamente construídos - os sistemas de signos.

Sabendo que a apropriação de produtos culturais e a sua integração na actividade psicológica individual vai alargar a capacidade da acção humana, o campo de estudos da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia Educacional aparece intrincado: Como é que o indivíduo se vai apropriando progressivamente dos instrumentos historicamente construídos, como é que o uso destes instrumentos vai permitindo uma evolução e transformação e em que situações e como ocorre esta transmissão, apropriação e actualização de saberes culturais.

Estes objectivos tem sido explorados, ao longo de 20 anos de trabalho empírico por Barbara Rogoff, entrevistada por Zilda Fidalgo e a autora do nosso primeiro artigo, que com um enfoque particular na observação etnográfica e em metodologias qualitativas, aprofunda processos de desenvolvimento e aprendizagem por diferentes formas de participação guiada em contextos de actividade social, reconhecendo a complexidade da unidade entre as pessoas e o seus contextos sócio-culturais.

As teses sócio-culturais evitam reduzir o homem a uma história natural do seu cérebro situando a actividade mental em contextos histórico-culturais que as determinam e lhes dão forma. Esta preocupação aparece latente no artigo de Gomes Pedro quando se interroga O que é ser criança, afinal, quando perspectivamos a viagem da genética ao comportamento?

E nos diz:

É a dinâmica das relações entre factores nomeadamente mediados por diferentes genomas e os infinitos condicionantes do ambiente, sobretudo proporcionados pelos laços afectivos e morais, o que determina o comportamento e, com ele, o modo de viver, de ser e de estar.

Os contextos e programas de intervenção precoce são o tema dos artigos de Júlia Pimentel, Teresa Brandão Coutinho e Isabel Chaves de Almeida. Nestes artigos existem pelo menos três ideias comuns: a importância do envolvimento das famílias nos programas desenvolvidos no âmbito dos projectos integrados de Intervenção Precoce; a preocupação em aumentar os níveis de informação e as competências educativas parentais e não esquecer que criança e família estão integradas na comunidade.

Todo o indivíduo é construção da sua experiência hereditária e pessoal resultante da relação com o seu eco-sistema e da experiência sócio-histórica. Interrogando-se sobre a forma como a criança, no âmbito da sua experiência social, se apropria de instrumentos culturais pelo seu uso na actividade quotidiana com parceiros sociais, Isabel Matta explora a apropriação de estruturas esquemáticas, nomeadamente a narrativa.

As preocupações com a qualidade dos ambientes de ensino-aprendizagem estão patentes no artigo de Júlia Formosinho e Sara Barros Araújo onde o envolvimento é o conceito explorado para aprofundar a qualidade educativa e, segundo as autoras: ... o envolvimento não ocorre quando as actividades são demasiado fáceis ou demasiado exigentes. Para haver envolvimento, a criança tem de funcionar no limite das suas capacidades, ou seja, na zona de desenvolvimento próximo...

A aprendizagem é um processo essencialmente social e o conceito de ZPD aplica-se ao estudo de processos de transmissão - apropriação cultural formais e informais. São inúmeros os trabalhos que têm estudado as interacções adulto-criança no contexto escolar e fora deste, e em todos os casos se tem revelado que a auto-regulação resulta da participação activa do aprendiz em situações inicialmente reguladas pelo outro. O aprendiz participa na co-construção do seu próprio desenvolvimento pela sua (individual e ao seu nível) apropriação de meios, objectivos e instrumentos que os mais competentes lhe fornecem e as reais implicações educativas vêm pelo transferência deste conhecimento a outras situações da vida social.

No período pré-escolar a criança vai sobretudo aprender em situações marcadas por uma certa informalidade e vai sobretudo apropriar-se de conhecimentos no âmbito da linguagem e das regras de convivência social.

O artigo de Lourdes Mata mostra como práticas quotidianas de literacia familiar (ex. ler um livro de histórias, escrever uma carta, ou fazer uma lista de compras) realizadas pelos elementos da família são tão importantes no desenvolvimento de atitudes positivas face à aprendizagem da linguagem escrita assim como, na facilitação do processo de descoberta e apreensão dos aspectos funcionais, convencionais e conceptuais característicos da linguagem escrita.

A adaptação psico-social no Jardim de Infância, resultante da apropriação de regras de convivência social e de negociação com o pares e adultos, é o tema do trabalho de Raquel Silva, Manuela Veríssimo e António José dos Santos. Os resultados por um lado, evidenciam a importância do desenvolvimento da linguagem e da construção das relações nos grupos nas mudanças evolutivas de alguns comportamentos, e por outro, diferentes perfis comportamentais com consequências ao nível da adaptação e inserção no grupo. Os autores sublinham a necessidade de criar planos de intervenção em contextos de inadaptação social precoce.

As dificuldades encontradas pelas nossas crianças na apropriação da sequência numérica é o assunto do trabalho apresentado por Filomena Gaspar.

O computador enquanto instrumento mediador das interacções sociais em torno da aprendizagem de regras da linguagem escrita é detalhadamente estudado por Lúcia Amante.

Isabel Matta, Sally Rebelo e Cátia Martins estudam o papel mediador da linguagem e do formato discursivo na retenção e recordação de informação de crianças de pré-escolar e 1.º ciclo, a propósito de uma pintura de Picasso e de uma visita ao Oceanário de Lisboa.

O ensino precoce da ciência, contribuindo para a aquisição de ideias e conceitos de ciência, atitudes científicas, capacidades manipulativas e de comunicação, o sentido da precisão e rigor e sobretudo para satisfazer e estimular a curiosidade da criança de modo a criar o gosto por aprender e compreender o mundo que a rodeia, é o assunto explorado no artigo de Paulina Mata, Conceição Bettencourt, Maria José Lino e Marília Paiva.

No período escolar a criança vai apropriar-se de saberes formais (linguagem escrita, conceitos científicos, sistemas de cálculo, etc.) no quadro da instituição escola regida por múltiplas regras, evoluindo no sentido do domínio, do voluntário e consciente.

Um olhar crítico sobre a interpretação das dificuldades encontradas pelas crianças na apropriação da linguagem escrita é apresentado por Serge Regane.

Uma reflexão sobre a descoberta de regras essenciais à apropriação da linguagem escrita é desenvolvida por Cristina Silva. Já Fátima Valente e Margarida Alves Martins comparam os resultados de duas metodologias de ensino no desenvolvimento e utilização de competências de leitura. Ainda dentro da temática do ensino-aprendizagem da linguagem escrita, um outro artigo, assinado por Inês Horta e Margarida Alves Martins, explora o longo caminho da consciência das regras e do seu uso voluntário, pela análise crítica do erro.

A análise de dinâmicas interactivas potencializadoras de desenvolvimento e aprendizagem em crianças com deficiência mental é o tema do trabalho empírico apresentado por Cláudia Martinho.

Os resultados do trabalho de Francisco Peixoto, sobre percepção das relações familiares, auto-conceito, auto-estima e resultados escolares, apesar de algumas especificidades ligadas às idades estudadas, estão na generalidade, de acordo com diversos estudos, revelando que a qualidade das relações estabelecidas na família não só se relaciona com um auto-conceito positivo, como torna ainda possível a construção de sentimentos de competência e valor que contribuem para o desenvolvimento de uma auto-estima positiva.

Os saberes e conhecimentos são produtos culturais de determinada sociedade cuja apropriação e domínio vai depender de múltiplas variáveis, do enquadramento institucional, das relações sociais estabelecidas, dos agentes sociais transmissores, da forma de transmissão, dos contextos de apropriação, dos meios interpretativos do sujeito, etc. Como referiu Rogoff a direcção do desenvolvimento varia localmente de acordo com os valores culturais, as necessidades interpessoais e as circunstâncias específicas. Ora para além da apropriação dos saberes, uma das grandes questões da psicologia da educação e do desenvolvimento actual é, sem dúvida, a actualização distanciada e reconstruída destes saberes por indivíduos específicos em circunstâncias concretas, uma participação regida pela autonomia, o espírito crítico e o controlo estratégico da sua própria acção.

Uma proposta actual de Educação para a Paz e Cidadania assente em princípios democráticos, baseada na enfatização do valor da vida humana e da cultura da não violência, fomentando o compromisso com a procura da verdade e sensibilizando para o valor da justiça em detrimento da vingança e do ódio é desenvolvida por Xesús Jares.

Uma análise da qualidade do ambiente educativo a partir dos conflitos da sala de aula e de estratégias mobilizadas para os resolver é levada a cabo por Ana Carita.

Uma reflexão sobre os domínios e actores da Prevenção Primária é desenvolvida por Rui Pedro Silva sublinhando que... as intervenções em prevenção devem ser precoces, continuadas no tempo, envolvendo o maior número possível de actores sociais trabalhando articulada e complementarmente, e baseadas numa relação de conhecimento e confiança entre as pessoas. E que... É este jogo subtil entre a autonomia e a dependência que torna as decisões tão difíceis e o trabalho em prevenção tão criativo, aliciante e enriquecedor.

Terminamos este número temático com uma reflexão sobre a descentralização educativa, a partir de um trabalho empírico desenvolvido por Paulo Louro e Pedro Ayres Fernandes, junto de um Município ao nível da definição e implementação de uma política de intervenção no campo educativo.

Cientes de que é na partilha, no debate de ideias, no confronto de pontos de vista que se avança no conhecimento, esperamos que este número de Análise Psicológica, represente um passo em frente na nossa reflexão e intervenção em Psicologia do Desenvolvimento e Educação.

 

ISABEL MATTA

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