SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 issue3Le champ du handicap, ses enjeux et ses mutations: du désavantage à la participation sociale author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Análise Psicológica

Print version ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.20 no.3 Lisboa July 2002

 

Nota de Abertura

 

ARMÉNIO SEQUEIRA

 

O estudo e a investigação das dialécticas de inserção/exclusão social constitui hoje não só objecto de numerosos discursos políticos e sociais mas também campo de profundo interesse e motivação de estudiosos e investigadores. Com posturas teóricas e metodológicas diversas, vários são os trabalhos que relevam o quadro da conjuntura internacional da globalização e o contexto onde se originam e desenvolvem os fenómenos sociais que as condicionam.

Sob uma perspectiva de multidimensionalidade e abrangência, diferentes autores mostram a importância da pluralidade dos modelos, da diversidade dos princípios, mas também, da necessidade de reconceptualizar uma mais estruturada aproximação. Salientam, igualmente, que é necessário clarificar, redesenhar e redirigir preocupações sociais e trabalhos científicos que garantam e estruturem novos objectivos e novas abordagens em reabilitação e inserção social.

Nascida, na moderna acepção do conceito, em pleno século XIX, a reabilitação visa, na sua concepção inicial, apoiar os milhares de vítimas da I Grande Guerra que regressam às mais diferentes cidades da Europa e dos Estados Unidos. Com várias limitações físicas e mentais e sem emprego, são um sinal de permanente alerta a uma sociedade que considera imperioso honrar os soldados feridos na defesa da sua nação. As respostas organizadas assentam em duas orientações: atendimento, incluindo familiares, em instituições de grande dimensão; procurar, através de reconversão e treino, promover o regresso ao trabalho. Os programas suportados nesta última perspectiva «Soldiers Rehabilitation Act» (1918) têm uma extraordinária aceitação e dois anos mais tarde tornam-se extensivos a qualquer pessoa com acentuada limitação física. Os governos começam, pela primeira vez, a assumir a responsabilidade destes apoios e orientações, constituindo o que alguns autores apontam como sendo o primeiro passo para a moderna Segurança Social. Contudo, os serviços de reabilitação destinam-se, exclusivamente, a pessoas com deficiência física que procuram trabalho. A variedade de ofertas de preparação e treino é pequena e a selecção procura admitir os que são considerados mais aptos e melhor podem garantir o sucesso no emprego.

Com o início do segundo quartel do século XX, os serviços de reabilitação expandem-se num menor mas importante caminho que permite às pessoas com cegueira prioridade para trabalharem nos quiosques de venda, propriedade do Estado. Embora limitada, esta é das primeiras medidas que sob a «Afirmation Action» procura introduzir na reabilitação/inserção factores de compensação.

Com a II Grande Guerra, a maior diversidade e mais severas deficiências que os avanços da medicina permitiam salvar impõem a criação dum mais abrangente leque de oportunidades de reabilitação. Os apoios às deficiências físicas e sensoriais alargam-se às pessoas com deficiência mental. Abrangem, igualmente, os dispositivos técnicos e instrumentais específicos. Estas novas tendências provocam um amplo desenvolvimento do sistema de reabilitação que passa a considerar como objecto da sua intervenção os vários tipos de limitações enfrentadas pelas pessoas com handicaps. A perspectiva de atendimento, contudo, é ainda marcada pelo modelo médico. O sistema é massificador e leva as pessoas a sentirem-se como peças duma enorme máquina.

As contradições entre os princípios que presidem ao «Soldiers Rehabilitation Act» e as práticas das instituições são notórias. A por vários autores designada «Revolução da Desinstitucionalização» toma corpo e tem como objectivo pôr fim ao desajustado, e muitas vezes humanamente impróprio, atendimento institucional. Pessoas com deficiência e suas famílias organizam-se e criam o «Movimento das Pessoas com Deficiência» que defende uma profunda mudança da filosofia e prática na definição e construção das respostas às pessoas em processo de reabilitação, agora entendido como uma resultante da organização e intervenção concertadas de vários sectores do sistema.

Estruturas, organizações e serviços são solicitados a reformular os seus programas, visando novos objectivos que promovam o desenvolvimento de capacidades e competências de amplas camadas de pessoas em situação/processo de desvantagem. A perspectiva é a de promover a participação destas pessoas nas actividades produtivas em contexto normal de trabalho, consideradas como um dos mais relevantes meios para a plena inserção. Não negando as diferenças entre as pessoas, antes sustenta que «a natureza e significação dessas diferenças dependem de como as vemos e interpretamos» (Bogdan & Taylor, 1994). Em vez de procurar «fixar» uma pessoa em situação/processo de desvantagem, ou de a separar do resto da sociedade, esta perspectiva tem como objectivo problematizar mais a sociedade do que o indivíduo. A solução reside não tanto na pessoa, mas no processo de quebrar barreiras que limitam, e muitas vezes impedem, as pessoas em desvantagem de participar social e economicamente nos desafios que se colocam às suas comunidades e à sociedade em geral.

Esta abordagem da reabilitação e inserção visando a autonomia socialmente assistida, a par do desenvolvimento económico que tem lugar após a II Grande Guerra e que cria milhares de novos empregos, provocam uma profunda mudança e exigem aos profissionais a compreensão da nova filosofia bem como conhecimentos e saberes adequados às necessárias intervenções.

A necessidade de estudo e investigação dos contextos e circunstâncias e das necessárias respostas é reconhecida a diferentes níveis, instâncias do poder político incluídas. Vários investigadores das áreas das disciplinas médicas e sociais incluem, nos seus projectos, investigações nestas áreas temáticas. Robert Scott (1969) com os seus trabalhos sobre a pessoa cega e Gary Albrecht (1976) sobre a sociologia das incapacidades físicas e sua reabilitação marcam, do ponto de vista académico, esta profunda mudança. Outros estudos com maior carácter de divulgação, de que sobressaem «Handicapping America» de Frank Bowe (1978) e «A Chronicle of Living with a Disability» de Irving Zola (1982), influenciam largamente a abordagem social em reabilitação e inserção social. Com base no movimento social de protesto das pessoas com deficiência, que já marcara, profundamente, as anteriores orientações, surgem os primeiros trabalhos sobre a qualidade de vida, Safilios-Rothchild (1976) e Gerben Deyong (1981).

Uma postura social mais marcada chama a atenção para as contradições dos modelos em vigor, relevando a importância da análise dos fenómenos segundo uma perspectiva social, cultural e política. «Disability Culture», B. Ingstad e C. R. Whyte (Eds.) (1995), «The Disability Studies Reader», L. Y. Davis (Ed.) (1997) e «Disability Studies/Not Disability Studies», S. Linton (1998) centram e divulgam vários trabalhos de investigação realizados. A adesão de vários investigadores provoca um amplo crescimento do número de estudos e Len Barton e Mike Oliver criam o primeiro jornal internacional académico exclusivamente dedicado à dinâmica social das designadas incapacidades/desvantagens. O campo de investigação e estudos alarga-se, igualmente, abrangendo áreas como a educação e a desvantagem, deficiência, doença estigma e desvantagem, perspectivas da pessoa com deficiência, etc.. Simpósios, encontros científicos, jornadas de estudo multiplicam-se.

Um novo paradigma dos handicaps toma lugar, possibilitando uma actualizada conceptualização dos fundamentos, organização e interpretação dos fenómenos das desvantagens. As consequências para a investigação e para a intervenção, daqui resultantes, são muito significativas. Às questões: qual a natureza das desvantagens? Quais as suas causas? Como são experienciadas social e pessoalmente? Organizam-se e desenvolvem-se diferentes respostas a nível teórico e metodológico. As análises/interpretações e intervenções transversais revelam-se cruciais para reformular as desvantagens e transformá-las numa(s) questão(ões) a resolver pela sociedade num quadro duma mais apropriada compreensão das respostas políticas, sociais, científicas, práticas, profissionais e de experiência pessoal. Sob a crença que os homens realizam a sua História suportados na transitoriedade de todas as transformações e relações sociais a partir de acções conscientes e motivadas (H. Rattner, 2001), esta perspectiva encara a realidade humana, por mais contraditória e incerta que se apresente, como uma construção social. A condição é lograr alcançar níveis de consciência individual e colectiva que garantam, sob o primado do valor humano e social da pessoa e da comunidade, os contextos, as organizações, os centros de realização do conhecimento e de disseminação do saber e do saber-fazer adequados à complexidade da vida social.

Às questões que atrás se enunciam outras se revelam fundamentais: as teorias existentes permitem-nos analisar os fenómenos, ditos hoje, de exclusão? A luta contra a exclusão realiza-se pela inserção durável? Quais os princípios norteadores da inserção?

Mas a exclusão social é também um drama individual que pode destruir uma ou várias vidas e que importa melhor conhecer para mais eficaz e rapidamente intervir.

Perfilhamos a crença que o desenvolvimento sem exclusão é possível no quadro dum contrato social que garanta o efectivo acesso de todos aos direitos fundamentais e abrindo a cada um perspectivas de iniciativa, educação e criatividade, formação e mobilidade ao longo da vida. Se as estratégias de inclusão solicitam um pensar globalmente, um identificar o que é universal, apontam como fundamental pensar que grupos sensíveis, que exigem intervenções específicas, produzem singularidades, quer pela criação de novos desejos e necessidades, quer pelas urgências que fazem emergir do fundo da organização social. Singularidades que não devem ser, como na tradição social moderna, relacionadas com o interesse geral, mas afirmadas enquanto tal. É do interesse geral o respeito das diferenças e das heterogeneidades.

Neste contexto, numa perspectiva dialéctica entre o universal e o singular, entendemos necessário promover o empenho de mais colaboradores e mais esforços na realização e aprofundamento de conhecimentos científicos que permitam conceber referenciais teóricos e metodológicos com capacidade de enquadrar e sustentar saberes, bem como instrumentos técnicos e tecnológicos de intervenção e redimensionamento da reabilitação e inserção. Considera-se, de igual modo, fundamental a sua disseminação, visando despertar o interesse entre pessoas e organizações por mais agendas de questões sobre os contextos e práticas de produção e estruturação dos handicaps e dos processos de reabilitação e inserção.

Precisamos de desenvolver a investigação nestas áreas temáticas, de promover estratégias de partilha do conhecimento, dos saberes e saberes-fazer que possibilitem a geração de interventores sociais com capacidade social, científica, ética e técnica para participarem na construção duma sociedade com mais coesão social, mas também com competência para intervir nas mudanças e nas práticas da reabilitação e inserção que hoje se realiza.

É esta, pensamos, a missão que o Número Especial da Revista Análise Psicológica sob o tema «Redimensionar e Intervir em Reabilitação e Inserção Social» assumiu e solicitou aos autores dos estudos e trabalhos de investigação que ora se reúnem e divulgam.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License