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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.17 n.1 Lisboa mar. 1999

 

Comment L´Enfant Devient Lecteur (1997) – G. Chauveau, E. Rogovas-Chauveau, & M. Alves-Martins. Paris: Editions Retz.

O que é a leitura? Como se aprende a ler? Quais as dificuldades com que a criança se defronta no processo de aprendizagem da leitura e da escrita? O que fazer para a ajudar a ultrapassar essas dificuldades? São algumas das questões a que este livro procura responder.

Segundo os autores, as respostas para estas questões estão necessariamente interligadas, na medida que a percepção de como o leitor fluente interage com o texto escrito e a explicitação das operações cognitivas activadas no acto de ler, têm implicações nas formulações que se podem estabelecer sobre as estratégias que o aprendiz leitor precisa de desenvolver para dominar o código alfabético e sobre as dificuldades conceptuais com que se defronta no processo de apropriação desse código.

Por outro lado, o conhecimento da maneira como as crianças pensam a natureza e objectivos da tarefa de ler, antes do ensino formal, e das estratégias utilizadas por elas nas fases iniciais de aprendizagem, assim como o modo como estas evoluem, deverá ser tomado em linha de conta na organização e implementação de estratégias de ensino.

São vários os modelos que procuram representar o que se passa na mente humana durante o acto de ler, tanto no que respeita ao funcionamento do sistema no seu conjunto, como ao nível da especificação das etapas de tratamento de informação.

Durante um largo período da história da psicologia da leitura o processo de leitura foi equacionado no quadro de modelos hierárquicos (modelos ascendente e descendente), nos quais a difusão de informação seguia um percurso essencialmente serial.

No caso dos modelos ascendentes, a leitura implicaria um percurso linear que vai da percepção das letras até à compreensão do significado do texto.

Nos modelos descendentes, o processo seria exacta-mente inverso ao anteriormente descrito, ou seja, a lei-tura partiria de processos cognitivos superiores de antecipação sobre o conteúdo do texto e iria até à análise perceptiva das letras.

Hoje em dia os procedimentos de leitura são concebidos no contexto de um funcionamento em paralelo, considerando-se que o sujeito leitor utiliza em simultâneo e em interacção estratégias ascendentes e descendentes com efeitos retroactivos para ambos os níveis, sendo estes modelos representativos do acto de leitura designados de interactivos.

Na perspectiva destes modelos, quando um leitor se confronta com um texto os seus vários componentes geram expectativas a diferentes níveis: os traços das letras induzem expectativas em relação à sua identificação, a identificação das primeiras letras conduz a expectativas sobre o tipo de palavra, as palavras identificadas criam expectativas a nível sintáctico, etc. Portanto, o processo funciona de modo que a informação identificada a cada um dos níveis funcione como imput do nível seguinte num fluxo de informação ascendente. No entanto, em função dos conhecimentos prévios do leitor ao nível do tema, do tipo de suporte, da estrutura do texto, são igualmente construídas expectativas que guiam o processo de leitura, no sentido da verificação das hipóteses elaboradas com base em indicadores lexicais, sintácticos e grafo-fonéticos seguindo um percurso descendente.

A compreensão de um texto implica em simultâneo conhecimentos sobre o tema, sobre a estrutura e organização dos diferentes tipos de textos e conhecimentos sobre as diferentes estratégias a mobilizar em função das características do texto e dos objectivos do leitor e conhecimentos sobre o código linguístico e alfabético.

A concepção do processo de leitura inerente a estes modelos é uma concepção holistica, na medida que cada uma das operações implicada no acto de ler só contribuirá para um procedimento real de leitura quando integrada com todos as outras operações num jogo de equipa harmonioso.

A transposição desta perspectiva complexa do acto de ler para a aprendizagem da leitura requer modelos que consigam articular as operações inerentes à leitura com as competências implicadas no seu desenvolvimento.

Chauveau, Rogovas-Chauveau e Alves-Martins (1997) apresentam um modelo que procura exactamente dar conta da complexidade do procedimento de leitura realçando o seu carácter interactivo, heterogéneo e estratégico.

Consideram estes autores que o acto de ler implica a síntese de operações centradas sobre a identificação dos segmentos gráficos de um texto (letras, sílabas, palavras) e operações mais orientadas para a identificação do sentido do texto.

Mais concretamente, sustentam os autores que o acto de ler implica a coordenação de oito operações cognitivas:

- Identificar o suporte e o tipo de escrita;

- Interrogar o conteúdo do texto;

- Explorar uma quantidade de escrita portadora de sentido;

- Identificar formas gráficas;

- Reconhecer directamente palavras;

- Antecipar elementos sintácticos e semânticos;

- Organizar logicamente os elementos identificados e reconstruir o enunciado;

- Memorizar o conjunto de informações semânticas.

 

Estas várias operações são agrupadas pelos autores em duas dimensões:

- Uma dimensão instrumental que requer a coordenação de duas competências bases: a habilidade para descodificar e para explorar um texto.

- Uma dimensão estratégica que inclui um componente de compreensão relativo à fusão e interacção dos vários procedimentos mobilizados pela criança leitora e um componente cultural que conduz à adaptação da conduta de leitor em função dos objectivos de leitura e do seu conhecimento sobre as utilizações funcionais da leitura.

Os autores questionam-se sobre as bases conceptuais que a criança terá de dispor para que consiga desenvolver e integrar as várias operações que estão implicadas num saber ler de base, considerando que aquelas requerem a disponibilidade de competências metalinguísticas, conceptuais e culturais.

Estas várias competências são associadas às diferentes operações de leitura do seguinte modo:

- Saber descodificar requer o desenvolvimento de competências de reflexão e manipulação sobre as unidades da linguagem oral, na medida em que no sistema de escrita alfabético as regras que ligam o oral à escrita se baseiam numa análise fonética das palavras.

Este ponto vista está em concordância com os trabalhos empíricos efectuados no âmbito da consciência fonológica, os quais assumem a importância que as competências de reflexão explícita sobre a linguagem oral, e em particular sobre os componentes sonoros das palavras, têm para a compreensão do princípio alfabético da escrita.

O saber descodificar implica igualmente outra capacidade fundamental que é a competência grafo-fonética ou seja o conhecimento dos valores fónicos das letras ou de grupos de letras e o conhecimento das re-gras de combinatória.

- Saber explorar um texto implica dois tipos de competências base: competências verbo-preditivas ou seja a capacidade para se servir do contexto linguístico tendo em conta as restrições sintácticas e semânticas para antecipar uma palavra que falta num enunciado; competências textuais, ou seja, a capacidade para controlar a estrutura de um texto e estabelecer ligações entre as partes e o todo. Sem esta capacidade a criança pode por vezes ser um descodificador sem compreender o que lê. Esta capacidade revela-se em tarefas como pôr em ordem várias frases, encontrar um título para a história, etc.

- Ser capaz de reflectir sobre a natureza do código alfabético, dimensão que remete para o entendimento conceptual das particularidades alfabéticas da linguagem escrita.

Nos seus esforços para compreender os significados das marcas escritas e através de interacções com os outros (pares e adultos), as crianças desenvolvem ideias muito próprias sobre as propriedades da escrita e sobre o que esta representa, construindo uma série de hipóteses conceptuais geneticamente ordenadas que podem estar mais próximas ou mais afastadas da realidade alfabética. Os vários trabalhos neste domínio apontam para a existência de uma verdadeira psicogénese da linguagem escrita, caracterizada por várias eta-pas evolutivas conforme a natureza das hipóteses in-fantis sobre o funcionamento do sistema de escrita.

Inicialmente, as crianças limitam-se a distinguir a escrita dos desenhos; depois, começam por ter a ideia que a escrita das palavras implica uma quantidade mínima de letras e ainda que para se diferenciar as palavras, tem que se proceder a diferentes combinações das letras. Frequentemente, nesta fase, as crianças consideram que a escrita representa algumas propriedades do referente como, por exemplo, o tamanho. Posteriormente, as crianças começam a relacionar a lingua-gem oral e a linguagem escrita passando a escrever uma letra por cada sílaba e só mais tarde entendem que as letras codificam os fonemas.

Para que as crianças sejam capazes de efectuar as operações de descodificação, é necessário que algumas das confusões cognitivas associadas à linguagem escrita sejam ultrapassadas, ou seja, é necessário que as crianças tenham compreendido o princípio alfabético

- Dominar um certo número de dimensões culturais associadas ao acto de ler, nomeadamente a identificação dos diferentes suportes de leitura e a explicitação de finalidades da leitura e da sua aprendizagem.

Este modelo revela potencialidades para abranger a complexidade do acto de ler e da sua aprendizagem, como para integrar os diferentes tipos de pesquisas que procuraram, nas últimas duas décadas, investigar os factores cognitivos e as condições pedagógicas consideradas importantes para optimizar a aprendizagem da leitura e da escrita nas fases iniciais.

 

Ana Cristina Silva

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