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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.16 n.3 Lisboa set. 1998

 

Este número da revista Análise Psicológica é dedicado à gravidez e à interrupção da gravidez.

A investigação psicológica na área da gravidez é, mesmo entre nós, uma realidade. De uma forma sistemática temos vindo a replicar estudos realizados noutos países, a testar hipóteses nascidas a partir da teoria ou emergentes enquanto constatações clínicas.

Temos, ao longo dos últimos dez anos, construido uma Psicologia da Gravidez e da Maternidade que, permanentemente informada por outros saberes e outras disciplinas, nos vai permitindo compreender e intervir num acontecimento fisiológico de extensas consequências psicológicas e repercursões sociais e culturais enormes.

A forma de encarar e viver hoje uma gravidez, pelo menos nos países ditos desenvolvidos é, em quase tudo, diferente das pungentes e minuciosas descrições que todos os séculos, anteriores ao nosso, fornecem.

O nosso tempo desnaturalizou a gravidez. Dando às mulheres e aos casais formas mais eficazes de anticoncepção, a raridade das gravidezes efectivas, passou a implicar uma sobrestimação do acto de engravidar e, por extensão, do acto de nascer.

Combateu-se ferozmente a mortalidade infantil como se combateu e continua a combater o insucesso gravídico.

Aceitando-se como princípio, a diminuição do número de gravidezes por mulher, a aposta parece que se dirigiu para a qualidade de cada uma dessas gravidezes. Qualidade, não só em termos da saúde da mulher, mas também em termos da saúde da criança a nascer.

Indisfarçavelmente esta mudança de tónica da quantidade de gravidezes para a qualidade de gravidezes significa, na prática, uma opção na qualidade dos filhos em vez da quantidade dos mesmos. Ou seja, significa que, a sociedade como um todo assume claramente a preferência de que vale mais menos melhores do que mais piores.

Esta questão, ainda que subtilmente escamoteada nem que seja pelo facto de ser «politicamente incorrecta», sustenta, a depois consensual e pacífica assumpção social de se poder interromper voluntariamente uma gravidez pela legítima razão de um embrião ou um feto apresentar mal-formação ou indiciar patologia grave.

Supõe-se que, uma criança nascida ou a nascer possa fazê-lo nas melhores circunstâncias de forma a exponenciar as suas potencialidades.

Fazer com que uma criança recém-nascida cumpra este projecto social tão moderno, implica paradoxalmente que se situe a gravidez como um momento, apenas um tempo de poucos meses, num projecto muito mais vasto e complexo: o de Projecto de Maternidade ou Paternidade.

Projecto esse que vai entre as duas décadas e o vitalicio e que afirma, em última análise, a responsabilidade dos pais em relação a uma criança que já nasce cheia de direitos.

Esta parentalidade hiper-responsável desdobra-se assim num conjunto de discursos que defendem a importância dos filhos desejados. Os filhos conscientemente desejados, suportados por pais com condições e recursos psicológicos, sociais e económicos que dêem garantias sobre o sucesso do projecto. Em consequência, estimula-se o planeamento familiar e a educação sexual das crianças e dos jovens. Em consequência, igualmente, não se estimula maternidades e paternidades demasiado precoces ou tardias, maternidades e paternidades de cidadãos desviantes: delinquentes, sem-abrigo ou de muito baixos recursos económicos. O mesmo para cidadãos com doença crónica, aguda ou ambígua: doentes mentais, seropositivos, alcoólicos, toxicodependentes, débeis, etc., etc.

Esta valorização de adultos «competentes» quererem ter filhos provoca por sua vez uma curiosa corrida à indústria da reprodução medicamente assistida, à viabilização de gravidezes e crianças com recurso a aparatosas e dispendiosas tecnologias e, também, a uma máquina complicada e complexa de redistribuição da parentalidade pela utilização da adopção, face simpática e bem vista de um primeiro momento que é o abandono de crianças.

A elegia da parentalidade responsável alinha assim, ou pelo menos pretendo-o, pelo mesmo diapasão da existência de crianças felizes.

Em uníssono pretende-se manter viva a crença que pais e filhos podem e devem ter todas as condições de sucessos afectivo e relacional.

Este cenário idílico, como se sabe, algumas vezes não é possível.

Muitos cidadãos não percebem ou não partilham esta ideia grandiosa de parentalidade. Muitos homens nunca pensaram seriamente o que lhes é pedido para o desempenho do papel. Muitas mulheres assustam-se com a enormidade da tarefa que lhes é proposta quando e se a têm consciente. Outras, temem a própria gravidez ou o parto genericamente, ou regeitam linearmente uma dada gravidez que não quiseram nem desejaram. É aqui que cruza um tema polémico e, pelo menos entre nós, de actualidade: a interrupção voluntária da gravidez.

As questões que se colocam a este nível são habitualmente de índole política, moral, legal, religiosa.

Os discursos psicológicos são, entre nós, virtualmente inexistentes ou, pelo menos, ausentes de qualquer visibilidade científica ou mediática. Há um mundo de questões a levantar e de respostas a encontrar: Quem são as mulheres que recorrem ao aborto? Porque o fazem? Que impacto é que essa prática acarreta? Que consequências têm na sua vida futura? Que implicações têm noutros projectos de Maternidade? Quem deve decidir duma i.v.g.? Por que razões? Em que tempo e em que momento da gravidez e da história da vida se pode ou não pode abortar? Porque é que se protela? Porque é que se entrega a decisão a técnicos, companheiros ou familiares? Quais as consequências da clandestinidade? Ou da liberalização em algumas ou todas as circunstâncias?

A estas e muitas outras perguntas não podemos, ainda, responder cabalmente. Mas saber fazê-las e apresentar alguns resultados é pelo menos um caminho.

 

Isabel Pereira Leal

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