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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.15 n.3 Lisboa set. 1997

 

Women, Violence And Male Power: Feminist Activism, Research And Practice – M. Hester, L. Kelly, & J. Radford (Eds.). Buckingham: Open University Press.

As duas últimas décadas têm sido palco do crescimento do debate público e da investigação no âmbito da violência contra as mulheres.

O activismo e a investigação feminista têm sido os grandes promotores dos debates e os grandes catalizadores da mudança sócio-cultural em relação às mulheres, nomeadamente através da influência na formulação de políticas sectoriais e da implementação de medidas práticas em consequência da vivência da violência por parte das mulheres. Refira-se a propósito, o aparecimento em Inglaterra e EUA na década de 70, dos grupos de auto-consciencialização, centros de crise, refúgios e programas de defesa cívica que tornaram possível documentar padrões de relacionamento social e acontecimentos que, até aí, estavam invisíveis.

O estudo da violência contra as mulheres tem crescido também em complexidade. A teorização feminista, especificamente, pretende ir para além da discussão pública. Tenta demonstrar que a violência contra as mulheres é um elemento central do poder masculino sobre as mulheres e uma forma de as controlar. Progressivamente, temos assistido ao desenvolvimento das análises sobre os significados, mais ou menos explícitos, de poder e de género que a violência contra as mulheres encerra e ao relacionamento da teoria feminista com as actuais teorias sobre a Família e o Estado e a discussões sobre o género e sexualidade.

Este livro – Women, Violence and Male Power – surge na sequência destas preocupações teóricas do pensamento feminista. O seu conteúdo é o resultado do trabalho do Grupo de Estudo sobre Violência Contra as Mulheres da British Sociological Association (BSA) que tem como principal objectivo desenvolver a compreensão sobre as diversas formas como a violência está implicada nas múltiplas estruturas das relações de poder e sobre os efeitos que este processo tem no acesso a mecanismos de apoio e protecção por parte das mulheres. Aliás, esta ligação entre os estudos académicos, o activismo do movimento das mulheres e a política que define as medidas de protecção foi, desde sempre, um princípio crucial no feminismo.

Entre a extensa bibliografia feminista sobre violência contra as mulheres a maior actualidade deste livro está no facto de refletir o esforço do movimento feminista actual em responder aos reveses e desafios que lhe têm sido postos nos anos mais recentes.

Efectivamente, o feminismo tem sofrido o desgaste de ataques sucessivos e a desvalorização da produção do conhecimento feminista através da focalização da atenção do público nas agressões menos frequentes contra os homens, na ênfase da prepetração feminina da violência bem como através da tendência para unificar todas as formas de abuso e agressão numa única categoria abrangente de «violência», não conotada com o género. As autoras defendem, por isso, a utilização do termo «violência sexual» para designar a violência entre os sexos pois permite reconhecer que esse tipo de violência é um fenómeno de género dentro de um contexto de relações sociais patriarcais. Salientam mesmo que a violência sexual não é uma questão de «pessoas violando/ batendo/ abusando pessoas» mas que o modo como é utilizada e posta em prática nas relações e instituições é um processo construído socialmente.

Este trabalho de teorizar e debater as experiências das mulheres da violência sexual põe em causa a visão tradicional sobre aquilo que é válido como conhecimento resultando daí fortes reacções anti-feminismo.

Algumas das dificuldades resultam de noções populistas do pós-feminismo nos meios de comunicação, da ridicularização do politicamente correcto, da apresentação das campanhas contra a violência sexual como uma mera expressão da vitimização das mulheres.

Mas Hester, Kelly e Radford, identificam mesmo dois quadrantes principais que estarão na génese destas reacções: um, relacionado com posicionamentos dentro do próprio feminismo, ligados às perspectivas pós-estruturalistas e do pós-modernismo acusando o trabalho de documentação da violência das mulheres sobre a violência sexual de ser «essencialista» e de colocar as mulheres como inevitáveis vítimas. Esta orientação filosófica criou raízes nos cursos de Estudos sobre as Mulheres que surgiram durante a década de 80 num percurso de afastamento gradual entre a produção de conhecimento e o activismo, tendo por base fundamentos teóricos distintos do quadro feminista e mais ligados a pensadores masculinos como Freud, Lacan e Foucault («dead white men» no dizer das autoras). Esta perspectiva pós-estruturalista, tem, pois, valorizado pouco o conteúdo da recente investigação feminista bem como a prática que lhe dá suporte. Tem sido, no entanto, esta prática que tem trazido a público a realidade da vida das mulheres e das crianças abusadas e influenciado as medidas das agendas políticas de todo o mundo através da globalização do movimento das mulheres.

Paralelamente, o reconhecimento e a aceitação de que já não é possível falar sobre as mulheres como categoria social homogénea (que tem sido central na perspectiva pós-estruturalista) não elimina, na opinião das autoras a oportunidade da análise feminista sobre a violência sexual (de que é representativo o trabalho realizado por C. McKinnon, por exemplo).

As autoras defendem o pressuposto de que as diferenças nas posições das mulheres em relação às estruturas de poder de raça, classe e sexualidade influenciam a resposta dada à violência contra as mulheres por parte do Estado, dos profissionais e do voluntariado e interessa-lhes, também, conhecer até que ponto a expressão máxima do poder masculino sobre a vida das mulheres que é a violência sexual, é fonte de comonalidades e diferenças entre as mulheres.

O outro quadrante de reacções parte do posicionamento crítico de académicos masculinos quanto à natureza e ao conteúdo dos estudos feministas que têm acumulado uma grande quantidade de conhecimento nas duas últimas décadas.

No centro da polémica está o modo como são definidos a violência e o abuso. A investigação feminista tem proposto definições mais abertas por forma a abarcarem e revelarem aspectos invisíveis e minimizados da vida das mulheres. É, precisamente, a esta abertura das definições que os investigadores masculinos vêm resistindo.

As autoras referem também que a investigação subsidiada por fundos oficiais tem procurado enquadrar o problema da violência sexual como o medo excessivo e irracional das mulheres em relação ao crime e que este tipo de re-interpretações podem levar à redefinação das temáticas fora do discurso feminista, acabando por produzir políticas culpabilizadoras das vítimas (as mulheres alvo de violência) com base na responsabilidade individual pela segurança pessoal.

Esta apropriação e redefinição dos problemas fora do feminismo, tem, também, segundo Hester, Kelly e Radford, transformado aquilo que foi a luta feminista nos anos 70 pelo reconhecimento da prevalência da violência contra as mulheres e do seu significado social num veículo para a produção de uma multiplicidade de síndromas e desordens que requerem «tratamento» levando ao crescimento dos serviços e dos profissionais especializados. Dum ponto de vista político, tem servido para deslocar a violência do seu contexto, significado social e estrutura de poder.

A apresentação das temáticas dominantes neste livro estão divididas em três partes. A primeira refere-se a implicações teóricas e metodológicas no estudo da violência contra as mulheres; a segunda aborda as problemáticas relacionadas com a legislação, protecção e justiça criminal e, a última parte apresenta investigação realizada que procura desenvolver uma concepção que dê suporte à realidade da experiência das mulheres.

Fátima Jorge Monteiro

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