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Revista Portuguesa de Clínica Geral

versão impressa ISSN 0870-7103

Rev Port Clin Geral vol.27 no.5 Lisboa set. 2011

 

CLUBE DE LEITURA

Rastreio de cancro do pulmão com TAC de baixa-dose: redução da mortalidade contrabalançada por danos importantes

Lung cancer screening with low-dose CT: reduction in mortality counterbalanced by important harm

Bruno Heleno*

*General Practice Research Unit, Universidade de Copenhaga


The National Lung Screening Trial Research Team. Reduced Lung-Cancer Mortality with Low-Dose Computed Tomographic Screening. N Engl J Med. 2011 Jun;365(5):395–409.

O ‘National Lung Screening Trial’ (NLST) foi realizado para determinar se o rastreio com TAC de baixa-dose podia reduzir a mortalidade do cancro do pulmão.

Métodos

753.454 pessoas com risco elevado de cancro do pulmão (grandes-fumadores, actuais ou ex-fumadores, sem sintomas, sinais ou antecedentes de cancro do pulmão, com idade compreendida entre os 55 e os 74 anos), sem TAC torácica nos 18 meses anteriores, foram aleatorizadas (sem descrição da ocultação da sequência de aleatorização) a três rastreios anuais (1 de prevalência e 2 de incidência), ou com TAC de baixa dose (grupo TAC: 26.722 participantes) ou radiografia do tórax posteroanterior simples (grupo RX: 26.732). As imagens foram interpretadas por radiologistas muito experientes em unidades académicas. Os nódulos não calcificados com  4mm na TAC ou qualquer nódulo ou massa não calcificados no RX eram considerados suspeitos para neoplasia (embora, no terceiro ciclo, se as imagens fossem estáveis, seriam consideradas como alteração minor). O resultado principal era a mortalidade por cancro do pulmão, que era avaliada através de questionários anuais aos participantes (com contacto a parentes próximos caso os questionários não fossem devolvidos) e ligação ao registo nacional de óbitos. Entre os resultados secundários, salienta-se a mortalidade global, a incidência de cancro do pulmão e os procedimentos a montante do rastreio. Uma comissão independente, sem conhecimento do método de rastreio, verificou todos os óbitos.

Resultados

Os participantes do NLST eram mais jovens, mais escolarizados e com maior proporção de ex-fumadores que a generalidade da população americana. A mediana do seguimento foi de 6,5 anos. A adesão ao rastreio foi de 95% no grupo-TAC e 93% no grupo-RX. As perdas do seguimento foram de 3% no grupo-TAC e 4% no grupo RX. Dos participantes no grupo-RX, 4,3% fizeram um TAC fora do ensaio clínico.

Trinta e nove por cento dos participantes no grupo-TAC e 16% no grupo-RX tiveram pelo menos um exame positivo. A maioria dos testes eram falsos positivos (96,4% no grupo-TAC e 94,5% no grupo-RX). A incidência de cancro do pulmão foi significativamente mais alta no grupo-TAC (razão de taxas 1,13; Intervalo de Confiança a 95% [IC95], 1,03 a 1,23) com 1060 cancros (645 casos por 100.000 pessoas-ano) versus 941 cancros (572 casos por 100.000 pessoas-ano) no grupo-RX. A mortalidade por cancro do pulmão era menor no grupo TAC (RRR 20,0%; IC95 6,8 a 26,7%; P = 0,004; 247 mortes por cancro do pulmão por 100.000 pessoas ano no grupo-TAC e 309 mortes por 100.000 pessoas anos no grupo-RX). A redução relativa da taxa de morte por todas as causas foi menor no grupo-TAC (6,7%; IC95 1,2 a 13,6; P=0,02; 1877 mortes no grupo-TAC e 2000 mortes no grupo-RX).

Conclusões

O rastreio com TAC de baixa dose reduz a mortalidade por cancro do pulmão.

Comentário

Este artigo apresenta a primeira análise a longo prazo de um programa de rastreio de cancro do pulmão com TAC de baixa dose numa população de alto risco.1 Convertendo os resultados deste ensaio clínico para frequências naturais,2 ao fim de 6,5 anos após início de rastreio do cancro do pulmão com TAC de baixa dose, em 1000 fumadores (actuais ou ex-fumadores) entre os 55 e 74 anos haverá 70 mortes, das quais 13 serão devidas a cancro do pulmão. Desses 1000, 40 serão diagnosticados com cancro do pulmão (24 desses diagnósticos serão consequência do rastreio, 2 após um exame de rastreio negativo e os restantes 14 fora do programa de rastreio); mas 391 terão tido pelo menos um exame de rastreio positivo, 37 submeter-se-ão a um exame diagnóstico invasivo, 27 serão operados e 9 terão uma complicação não-fatal decorrente de um exame ou da cirurgia.

Quando comparado com a alternativa estudada, rastreio com RX, isto significa menos 5 mortes, das quais 3 relacionadas com cancro do pulmão. No entanto, existirão mais 231 pessoas com pelo menos um falso positivo, mais 22 submeter-se-ão a um exame diagnóstico invasivo (das quais, pelo menos 8 em pessoas sem cancro), 18 cirurgias adicionais (das quais, pelo menos 4 em pessoas sem cancro) e mais 6 complicações não fatais de procedimentos a montante do rastreio. Além disso, ao fim de 6,5 anos de seguimento, mais quatro pessoas saberão que têm um cancro do pulmão. Desconhecem-se as consequências psicossociais e o impacto na qualidade de vida.

Metodologicamente, os autores procuraram evitar a maioria dos vieses identificados noutros ensaios clínicos relacionados com programas de rastreio (viés de detecção, desempenho, contaminação, de avanço de tempo, etc.). A exclusão de indivíduos com TAC torácica nos 18 meses anteriores permite evitar a diluição do efeito do rastreio (o TAC torácico prévio funcionaria como detecção oportunística prévia). Todavia, exclui também pessoas com comorbilidades que necessitam de TAC, acentuando o efeito de “voluntário saudável”, já de si presente no viés de auto-selecção e reconhecido pelos autores. É difícil prever o sentido deste viés, mas é admissível que uma população mais saudável pode subestimar a magnitude do benefício e do dano.

O principal problema deste ensaio é a escolha do comparador: o RX de tórax anual. Este procedimento não representa os “cuidados habituais”, o que dificulta a generalização destes resultados. Por outro lado, existe prova científica que não tem qualquer benefício na mortalidade e está associado a dano (aumento de mortalidade global).3 Por este motivo, apesar de não levar a uma subestimativa do benefício, pode levar a uma subestimativa dos danos. Por exemplo, o Mayo Lung Project foi um ensaio clínico sobre o papel do RX de tórax no rastreio de cancro com pulmão e é um dos principais exemplos do conceito de sobrediagnóstico.4,5 Considera-se sobrediagnóstico a detecção de cancros que nunca teriam manifestação clínica, ou por serem de tal forma indolentes que não causariam sintomas, ou por existirem causas alternativas de morte (por exemplo, um doente com cancro da próstata morre de AVC antes da neoplasia se manifestar clinicamente).

Neste ensaio, as películas eram examinadas em centros de referência, por imagiologistas muito experientes. As consequências da implementação de um programa de rastreio não regulamentado e sem uma estrutura de garantia de qualidade são imprevisíveis. Quando comparados com os resultados preliminares de outros ensaios clínicos do rastreio com TAC,6,7 observamos que a incidência de resultados positivos varia extraordinariamente (NLST 39,1%, DANTE 15,6%, DLCST 7,9%). Possivelmente, estas diferenças estão relacionadas com os protocolos de interpretação de imagem ou com práticas mais ou menos defensivas. No NLST o protocolo considerava positivas imagens ≥4mm e os exames eram vistos por um único imagiologista. No Danish Lung Cancer Screening Trial (DLCST) eram consideradas positivas imagens ≥5mm e por consenso de 2 imagiologistas. De qualquer forma, as consequências do rastreio dependerão muito do desempenho do TAC de baixa dose (sensibilidade, especificidade, concordância inter-observador). No contexto português, com a realização dos exames dispersa em múltiplas entidades convencionadas, será um desafio para as entidades reguladoras conseguirem estabelecer critérios de qualidade uniforme.

Mais uma vez, na medicina preventiva, para que poucos beneficiem muito (5 mortes evitadas em 1000), muitos vão ter danos de gravidade variável (231 pessoas em 1000 com pelo menos um falso positivo vão ter procedimentos a montante). Espera-se que as associações profissionais e as de doentes comecem a fazer recomendações pró ou contra o rastreio de acordo com a sua interpretação da prova científica, valores dominantes ou outros interesses. Independentemente da adopção do rastreio pelas organizações governamentais, a tecnologia está já disponível e pode ser “comprada”. Isto significará mais desafios para o médico de família: ajudar os cidadãos a fazer escolhas que reflictam os seus valores, a lidar com os resultados positivos dos exames, acompanhar nas consequências do diagnóstico de cancro (sobrediagnosticado ou não).8 Isto para além de lidar com mal-entendidos (por exemplo, pedidos de TAC de alta definição para rastreio) ou com diferenças de ponto de vista entre especialidades.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. National Lung Screening Trial Research Team. Reduced lung-cancer mortality with low-dose computed tomographic screening. N Engl J Med 2011 Aug 4; 365 (5) 395-409.         [ Links ]

2. Akl EA, Oxman AD, Herrin J, Vist GE, Terrenato I, Sperati F, et al. Using alternative statistical formats for presenting risks and risk reductions. Cochrane Database Syst Rev 2011 Mar 16; (3): CD006776.         [ Links ]

3. Manser RL, Irving LB, Stone C, Byrnes G, Abramson M, Campbell D. Screening for lung cancer. Cochrane Database Syst Rev 2004; (1): CD001991.         [ Links ]

4. Marcus PM, Bergstralh EJ, Fagerstrom RM, Williams DE, Fontana R, Taylor WF, et al. Lung cancer mortality in the Mayo Lung Project: impact of extended follow-up. J Natl Cancer Inst 2000 Aug 16; 92 (16): 1308-16.         [ Links ]

5. Welch HG, Woloshin S, Schwartz LM, Gordis L, Gøtzsche PC, Harris R, et al. Overstating the evidence for lung cancer screening: the International Early Lung Cancer Action Program (I-ELCAP) study. Arch Intern Med 2007 Nov 26; 167 (21): 2289-95.         [ Links ]

6. Pedersen JH, Ashraf H, Dirksen A, Bach K, Hansen H, Toennesen P, et al. The Danish randomized lung cancer CT screening trial: overall design and results of the prevalence round. J Thorac Oncol 2009 May; 4 (5): 608-14.         [ Links ]

7. Infante M, Lutman FR, Cavuto S, Brambilla G, Chiesa G, Passera E, et al. Lung cancer screening with spiral CT: baseline results of the randomized DANTE trial. Lung Cancer 2008 Mar; 59 (3): 355-63.         [ Links ]

8. Getz L, Brodersen J. Informed participation in cancer screening: the facts are changing, and GPs are going to feel it. Scand J Prim Health Care 2010 Mar; 28 (1):1-3.         [ Links ]