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Revista Portuguesa de Clínica Geral

Print version ISSN 0870-7103

Rev Port Clin Geral vol.27 no.5 Lisboa Sept. 2011

 

DOCUMENTOS

Cuidados de Saúde Preventivos

Preventive health care

Gisle Roksund*

*Presidente do Colégio Norueguês de Clínica Geral (documento compilado em colaboração com as Unidades de Investigação em Clínica Geral de Trondheim e Oslo). Oslo, 14 de Junho de 2011.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


Os cuidados de saúde preventivos abarcam decisões e medidas em todos os sectores da sociedade e envolvem diversos grupos profissionais. Os Clínicos Gerais/Médicos de Família (CG/MF) desempenham um papel fulcral neste esforço, tanto na conceptualização como na sua passagem à prática.

Visamos prevenir a morte prematura e reduzir as inequidades em saúde. Este documento apresenta uma visão de como os CG/MF melhor podem e devem contribuir para atingir estes objectivos. O documento também providencia recomendações para as autoridades nacionais, regionais e locais. O relatório «Fair Society, Healthy Lives» (Sociedade Justa, Vidas Saudáveis), da autoria de Michael Marmot e colegas,1 foi uma das fontes de inspiração para as ideias fundamentais expressas neste documento.

Pretendemos dar ênfase à importância dos dilemas éticos e científicos relacionados com os cuidados de saúde preventivos.

Consideramos assim que:

• Iniciativas e estratégias sociais orientadas para a população devem ser consideradas de prioridade superior face a estratégias preventivas primárias dirigidas ao indivíduo e específicas de determinada doença.

• Os CG/MF devem assumir um papel activo nos cuidados de saúde preventivos assim como no desenvolvimento profissional nesta área, devendo responsabilizar-se também pela transmissão do conhecimento aos seus interlocutores e colaboradores relevantes.

• A prática do Médico de Família deve ser concebida e organizada de uma forma que inspire os médicos a discutir medidas preventivas relevantes com os seus pacientes.

• Os CG/MF têm que ser capazes de proporcionar conselhos baseados no conhecimento do que promove a saúde e previne a doença.

• Na aferição do risco de doença em geral, é importante considerar todos os factores que influenciam o indivíduo: constituição biológica, história de vida pessoal, história familiar e estilos de vida. Muitas doenças complexas e prevalentes têm raízes comuns e tendem a manifestar-se em grupo num mesmo paciente (co- e multi-morbilidades). Tal agrupamento de doenças pode melhor ser prevenido influenciando factores causais subjacentes – por exemplo privação social ou relações destrutivas.

• Influenciar as escolhas de vida com vista à prevenção constitui um desafio pedagógico e ético e requer precaução. A avaliação do que é mais importante para a saúde de cada ser humano tem de ser feita tendo em conta o respeito pela situação e pelos valores da vida única de cada indivíduo. Os CG/MF devem desenvolver uma consciencialização apurada da ocorrência de momentos especiais («golden moments») em que as condições para um aconselhamento preventivo são particularmente adequadas.

Base de conhecimento

As condições de vida desfavoráveis e a falta de suporte social são os factores que, no total, têm maior impacto negativo na saúde das pessoas ao longo da sua vida. Quanto mais elevada é a posição de um grupo na pirâmide social, melhores são os indicadores estatísticos da sua saúde. Este é um dos maiores desafios que o nosso estado social enfrenta, representando também um repto aos cuidados preventivos em Medicina Geral e Familiar (MGF).

A investigação dos anos mais recentes no campo da Medicina e disciplinas associadas contribuiu para uma compreensão muito mais profunda das ligações fundamentais entre as condições de vida quotidiana e a saúde.2 Os novos conhecimentos confirmam quão importante é considerar a saúde do indivíduo perspectivando toda a sua vida e ter em devida conta os aspectos socioculturais, relacionais e pessoais. Os CG/MF estão particularmente bem posicionados por forma a contribuir para esforços preventivos orientados para objectivos relacionados com os indivíduos. Isto implica que a Medicina Geral e Familiar baseada no conhecimento tenha que abranger uma vasta área: por um lado, a base de conhecimentos profissional tem que conter informação médica geral relevante para a generalidade das pessoas. Tal inclui a «medicina baseada na evidência» (MBE), sustentada por estudos experimentais e análises epidemiológicas. Por outro lado, deve também ser reconhecida a importância do conhecimento individual da pessoa ao longo do tempo, em relação com as suas condições de vida, a sua situação na vida e a sua mundividência subjectiva.

Actualmente, os CG/MF são objecto de elevadas expectativas, provenientes de várias fontes, que clamam pela identificação de riscos e pela intervenção precoce visando prevenir possíveis futuras doenças. Devem ser estabelecidos critérios rigorosos no que respeita à sustentação científica e à relevância de tais actividades preventivas proactivas. Os seus potenciais efeitos secundários devem ser sempre antecipados e monitorizados. A discussão pública constitui um pré-requisito para o desenvolvimento profissional óptimo neste campo. É preciso também que o leque de medidas dirigidas a pessoas subjectivamente saudáveis seja objecto de priorização e adaptado a outras obrigações e tarefas.

Estratégias recomendadas

A nível nacional, os cuidados de saúde preventivos são levados a cabo através de iniciativas políticas, requisitos das autoridades, estratégias nacionais, planos de acção e campanhas.

Está bem documentado que as boas relações são cruciais para a saúde de um indivíduo. Políticas sólidas no que diz respeito a escolas, jardins infantis, famílias e integração são assim de importância fundamental. Uma das mais importantes medidas preventivas é assegurar que cada criança cresce num ambiente seguro com a presença de um adulto responsável.

As estratégias nacionais para reduzir o consumo de tabaco, álcool e outras substâncias intoxicantes são importantes. O mesmo se aplica a iniciativas que tornam mais fácil ser-se fisicamente activo, bem como a outras medidas preventivas gerais com o objectivo de reduzir a obesidade prejudicial. Tais estratégias devem ser fundadas no reconhecimento de que a base para a adopção de hábitos adversos à saúde é com frequência estabelecida precocemente na vida e sob influência de condições exteriores ao indivíduo.

A importância do programa nacional de vacinação infantil é enfatizada, com a reserva de que ainda permanecem em discussão os benefícios da vacina do Vírus do Papiloma Humano (VPH).

Programas de rastreio para o cancro são actualmente alvo de debate internacional. A sustentação científica de cada programa deve ser regularmente aferida. A informação ao público tem que ser franca e equilibrada no que respeita aos benefícios e aos potenciais danos. Os efeitos primários e secundários devem ser apresentados em números absolutos e utilizando o mesmo denominador de modo a permitir uma fácil comparação entre dano e benefício.

A nível regional e local, os cuidados preventivos devem ser postos no terreno sob a forma de iniciativas de saúde pública interdisciplinares. Os municípios e as autoridades regionais são responsáveis pela criação de um ambiente local de promoção de saúde, tornando mais fácil a escolha de opções saudáveis, facilitando medidas relevantes de promoção da saúde e prevenção da doença dirigidas a grupos determinados, e tornando disponível a informação acerca de tais iniciativas.

Os CG/MF são responsáveis por se familiarizarem com as actividades locais e regionais de promoção da saúde, por forma a poderem oferecer conselhos relevantes, práticos e individualizados. As associações de CG/MF e os elementos de ligação entre estes e as autoridades locais e municipais podem constituir fórum de grande utilidade para a troca de pontos de vista e de conhecimentos sobre esta área.

Os CG/MF devem ser encorajados a participar activamente nas actividades locais que concernem à saúde pública.

A nível individual, a informação, aconselhamento e orientação devem adaptar-se às preocupações individuais e apoiar-se firmemente nos recursos e na vitalidade de cada pessoa. Qualquer iniciativa no âmbito da prevenção tem que ser considerada tendo em conta que as boas relações com familiares, amigos e colegas, a par de um exercício profissional meritório e de uma apropriada integração social são essenciais para a saúde do indivíduo.

Uma tarefa importante para os médicos de família consiste em apoiar os indivíduos que procuram tomar bem conta de si e dos que lhes são próximos limitando os seus consumos de tabaco, álcool ou outras substâncias intoxicantes, e em encorajá-los a serem fisicamente activos e alimentarem-se de forma saudável.

Os indivíduos que já estão doentes, e as pessoas que apresentam – ou que é esperado que venham a apresentar – um risco significativamente aumentado de doença no futuro devem ver garantida a boa acessibilidade ao seu médico de família. Os CG/MF deverão mostrar-se particularmente atentos às pessoas que foram ou estão a ser sujeitas a episódios vivenciais adversos, incluindo trauma, negligência, violência e abuso. Pessoas que estejam em situações exigentes, tais como cuidadores, indivíduos com problemas ligados ao álcool ou drogas (e os que lhes são próximos), bem como aqueles com doença mental grave ou sob tensão têm também um risco aumentado de contrair outras doenças. O mesmo se aplica a indivíduos que estejam desempregados ou que por outras razões perderam ou estão no processo de perder controlo sobre a sua situação de vida ou emprego. É importante estar atento às crianças com pais ou irmãos muito doentes ou pouco funcionantes. As crianças (desde a altura da sua concepção) e as mulheres grávidas são grupos particularmente vulneráveis.

As linhas de orientação clínica para a prevenção de doenças específicas podem constituir ajudas preciosas. É importante que os CG/MF estejam familiarizados com elas, embora reconhecendo as suas forças e fragilidades metodológicas. As linhas de orientação de índole oficial são geralmente baseadas em estimativas médias com validade limitada face a um dado indivíduo. Os limiares recomendados para a intervenção sobre um determinado risco não expressam factos médicos, antes derivam de consensos fundados em dados resultantes da investigação e em escolhas subjectivas dos valores. O processo de consenso é frequentemente influenciado por círculos profissionais com líderes de opinião fortes e empenhados. Ademais, os interesses comerciais estabeleceram há muito tempo as premissas quer para as doenças que os médicos são encorajados a prevenir quer para os métodos e instrumentos que devem usar.

Tanto a indústria farmacêutica como os meios ligados a certas especialidades se focam intensamente em parâmetros biológicos e no uso de medicação.

A detecção de risco e respectiva intervenção nem sempre são benéficas para a saúde. Se uma determinada medida não é vista como relevante e realista, pode fazer com que o indivíduo se sinta preocupado e incapaz de reagir. Uma focalização forte e selectiva em riscos mensuráveis pode contribuir para distrair a atenção (quer do médico quer do paciente) de assuntos mais básicos que são, no entanto, de maior importância para a vida e saúde da pessoa em questão.

A soma total das intervenções recomendadas cria dilemas éticos e problemas práticos consideráveis. Uma das razões que faz proliferar tais recomendações é o aumento do número de doenças abrangidas por linhas de orientação de índole oficial em simultâneo com a diminuição dos limiares de intervenção e de uso de métodos de diagnóstico. Se todas as iniciativas recomendadas fossem postas em prática, uma grande parte da população mudaria o seu estado de saudável para “em risco”. Sabemos que a auto-percepção de boa saúde é, em si mesma, um factor de prognóstico significativo. O diagnóstico generalizado de condições de risco e indisposições quotidianas como doença não deve ser recomendado.

Devem merecer a oposição dos CG/MF as ajudas educacionais ou de comunicação das quais se possa esperar que ofendam ou estigmatizem pacientes vulneráveis. Situações em que o medo é combinado com impotência ou vergonha podem elas mesmas prejudicar a saúde do indivíduo.

É preciso especial atenção no tratamento de pessoas saudáveis com medicamentos que visam prevenir a doença. Os requisitos para a documentação dos efeitos a longo prazo e dos efeitos secundários de medicamentos que vão ser usados por pessoas saudáveis devem ser ainda mais exigentes do que para medicamentos curativos usados em pessoas doentes. Os meios profissionais devem prestar mais atenção aos riscos ligados a regimes preventivos com múltiplos medicamentos – particularmente em idosos.

Os CG/MF devem estar atentos aos critérios definidos pela Organização Mundial de Saúde para aplicação aos rastreios e devem entender que os «check-ups» médicos abrangentes em pessoas saudáveis raramente representam um uso racional e aceitável de recursos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Marmot M, et al. Strategic Review of Health Inequalities in England post-2010. The Marmot Review 2010. Disponível em http://www.marmotreview.org/ [acedido em 2011/08/04]        [ Links ]

2. Getz L, Kirkengen AL, Ulvestad E. The human biology - saturated with experience. Journal of the Norwegian Medical Association 2011; 131(7): 683–7.         [ Links ]

 

Tradução e adaptação portuguesas

Azevedo P, Ferreira E, Gomes LF, Granja M, Heleno B, Peneda MI. Lisboa, 4 de Agosto de 2011.

CONFLITOS DE INTERESSES

O autor declara não ter quaisquer conflitos de interesse.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

gisle.roksund@gmail.com