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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.30 no.1 Braga  2016

 

Estudo longitudinal da proficiência ortográfica no 2º e 4º anos de escolaridade - estruturas /e/, /eI/ e /oU/

Longitudinal study of spelling proficiency in 2nd and 4th grades - the phonological structures /e/, /eI/ and /oU/

 

Celeste Rodrigues*[1]; Maria do Carmo Lourenço-Gomes**[2]

*Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, CLUL, Portugal, celesterodrigues@campus.ul.pt.
**Universidade do Minho, CEHUM, Portugal e Universidade de Lisboa, CLUL, Portugal, mclgomes@ilch.uminho.pt.

 

RESUMO

O domínio da ortografia pode ser obtido mediante o aprofundamento do conhecimento da língua pela criança. Esse processo desenvolve-se em etapas sucessivas e implica a estimulação de competências a partir de diferentes tarefas. As crianças com bom domínio dos contrastes e da manipulação dos sons da língua não possuem sempre um melhor domínio do sistema ortográfico, do mesmo modo que bons falantes não são forçosamente bons escreventes. Existem propriedades do sistema ortográfico do português que, por diversas razões (p. ex., não-relação com a oralidade ou complexidade gráfica), acarretam formas não-convencionais. São apresentados dados quantitativos e qualitativos longitudinais de formas não-convencionais envolvendo três tipos de estruturas (/e/, /eI/ and /oU/) de um corpus online de escrita e fala de crianças do Ensino Básico (2º e 4º anos). Esses dados permitem compreender o que é mais e menos relevante treinar nesses dois momentos da aprendizagem da ortografia.

Palavras-chave: Aprendizagem da escrita, Oralidade e Ortografia, Linguística, Ensino Básico, Frequência de formas ortográficas não-convencionais.

 

ABSTRACT

The mastery of orthography can be achieved by improving children's knowledge of language. This multi-step process implies the stimulation of competences using different tasks. Children who are good skilled at notice basic contrasts of his/her language and at segmental manipulation of the sounds do not always do well in written, the same way good speakers are not necessarily better writers. There are properties of the orthographic system of Portuguese that for several reasons (e.g., no relation between oral and written forms and orthographic complexity) can lead children to spell unconventional forms. Quantitative and qualitative longitudinal data of unconventional forms involving three types of phonological structures (/e/, /eI/, /oU/) from an online corpus of writing and speech of children in primary school (2nd and 4th grades) are presented. These data may allow us to understand what is more and less important to teach in these two moments of the process of learning to spell.

Keywords: Spelling learning, Speech and orthography, Linguistics, Primary School; Frequency of orthographic unconventional forms.

 

0. Introdução

O propósito fundamental deste artigo é mostrar como os dados de frequência de erros de ortografia em duas fases do desenvolvimento da escrita (2º e 4º anos) são distintos e devem servir para a elaboração de estratégias específicas de tratamento das estruturas em sala de aula. Serão apresentados os dados quantitativos do corpus EFFE-On pertencentes a Lisboa, a descrição linguística das estruturas envolvidas e a interpretação das formas ortográficas não-convencionais (FN-Cs) e do respectivo papel na identificação dos problemas que o professor deve ter em atenção em cada um desses anos de ensino.

1. Proficiência na oralidade e na escrita

A ideia de que existe uma relação direta entre o grau de proficiência na oralidade e o de proficiência na escrita é discutível, na medida em que não existem, até à data, estudos que o comprovem com dados das mesmas crianças de oralidade e escrita (pelo menos, de escrita em português europeu). Num estudo longitudinal com crianças do 1º ao 5º ano, Berninger et al. (2006) chegam à conclusão de que as diferenças individuais em compreensão auditiva, expressão oral, compreensão da leitura e expressão escrita são estáveis do ponto de vista do desenvolvimento, mas que cada um desses sistemas está apenas moderadamente correlacionado com o outro (p. 62). Além disso, essa ideia também é discutível com base no facto de os percursos de aquisição de uma língua natural e de aprendizagem do sistema ortográfico usado na escrita de uma língua serem processos cognitivamente independentes, que implicam o ultrapassar de dificuldades de natureza parcialmente diferente (cf. Lourenço-Gomes, Rodrigues & Alves, no prelo). É sabido que os dois processos se desencadeiam em momentos diferentes e que o da aprendizagem da escrita se desenvolve apenas em alguns indivíduos, por motivação distinta do da oralidade. Se a oralidade é espontaneamente adquirida num ambiente falante, a escrita só vem normalmente a ser aprendida com ensino explícito e havendo condições propícias para o domínio desse novo sistema, tais como desenvolvimento cognitivo e linguístico normal, instrução adequada e ambiente favorável.

A aprendizagem do sistema ortográfico tem uma finalidade diferente da oralidade e as dificuldades que este apresenta são de natureza independente das dificuldades no domínio das estruturas e contrastes das unidades segmentais de uma língua. A escrita envolve habilidades linguísticas e metalinguísticas e, nessa medida, é certamente beneficiada pelo conhecimento explícito que a criança possui dos contrastes das unidades da língua. Porém, além disso, envolve também aspectos relacionados, com a complexidade gráfica da estrutura, com a frequência da estrutura gráfica, com o próprio desenho dos caracteres utilizados, com a respectiva combinação, com o grau de insistência do professor na estrutura gráfica, com o grau de exposição à estrutura em material gráfico acessível à criança fora do espaço da aula, etc.. Assim, é natural o aparecimento de formas ortográficas não-convencionais (FN-Cs, daqui em diante) em crianças com bom domínio do sistema linguístico na oralidade. A maior parte dessas formas são mesmo esperadas, o que levou muitos autores a propor diferentes tipologias numa tentativa de as caracterizar (Cf. Pinto, 1997; Mateus, 2002; Horta, 2001; Horta & Martins, 2004, para o português europeu; Guimarães, 2005 e Moojen, 2009 para uma revisão de tipologias em português brasileiro). Nessas tipologias é constante a descrição de FN-Cs que, supostamente, seriam motivadas pela fala. Por isso, afigura-se necessário compreender as diferenças entre os processos cognitivos envolvidos na produção da fala e na produção da escrita e não estabelecer uma relação directa entre a proficiência nas duas modalidades. Esta posição não implica não reconhecer a existência de alguns mecanismos do mesmo tipo, nem que o seu prévio exercício no processo de aquisição possa beneficiar o seu natural uso ao longo do processo secundário de aprendizagem da escrita.

É sabido, ainda, que a consciência fonológica é um dos preditores do sucesso na leitura (Adams, 1990; Snow, Burns & Griffin, 1998; Melby-Lervåg, Lister & Hulme, 2012) e pode beneficiar a aprendizagem da ortografia. Contudo, sabe-se também que os leitores fluentes são capazes de reconhecer que duas palavras se escrevam da mesma forma ainda que pronunciadas de modo diferente. Por exemplo em inglês, na pronúncia americana, test é produzida sem o [t] final, embora essa palavra seja escrita tal como testing, que apresenta a pronúncia do /t/ (Rayner et al., 2001, p. 8). Isso mostra que o domínio do sistema ortográfico típico dos letrados exerce algum efeito sobre a perceção e o processamento da fala, como revelado em estudos mais recentes (cf., p. ex., Kolinsky, Pattamadilok & Morais, 2012), e sobre o conhecimento fonológico, como sugerido por Veloso (2007).

Decidimos, por isso estudar estruturas que suscitassem FN-Cs que pudessem ter relação com a oralidade de crianças na fase inicial de aprendizagem da escrita (início do 2º ano de escolaridade). No caso da estrutura fonológica /oU/ de touca, louca em português, o que acontece é que a estrutura ainda não foi completamente distinguida por todos os alunos do Ensino Básico da estrutura /o/, presente, por exemplo, em boca, tola. E, não havendo essa total discriminação das duas estruturas, como a pronúncia das duas implica [o] exclusivamente, então as crianças escrevem as palavras dos dois tipos com <o> ou com <ou>. Por isso, é relevante observar o que se passa na escrita de crianças nesta estrutura específica, por forma a, simultaneamente, podermos intervir no sentido de aumentar o conhecimento fonológico da criança e a sua correcção ortográfica. Adamoli (2006) já estudou os ditongos /eI/ e /oU/, entre outros ditongos, em contexto medial em crianças brasileiras aprendentes da ortografia do português. Estes dois ditongos são considerados ditongos fonológicos, contrariamente a vários outros ditongos fonéticos (um exemplo de ditongo fonético em português europeu é [ɐj] e este pode ocorrer em seja [´s ɐjʒɐ]). As crianças brasileiras para estes ditongos, segundo Adamoli, apresentam a grafia <o> mais frequentemente antes de consoantes labiais e velares do que das outras consoantes e, mais ainda, se forem de uma escola pública do que se forem de uma escola particular (p. 81-87).

No caso de /e/ acentuado pré-palatal (seja, telha) e de /eI/ (leite) e de /+a+i#/ nas formas verbais de 1ª pessoa da 1ª conjugação no pretérito perfeito como acabei em português europeu[3] verifica-se que as estruturas fonológicas podem ser produzidas foneticamente com o mesmo conjunto de alofones: [ɐ] e [ɐj]. Por essa razão, as estruturas mencionadas são susceptíveis de receber a(s) mesma(s) grafia(s) errónea(s): nomeadamente, <a> e <ai>. Só com um aprofundamento do conhecimento explícito da estrutura fonológica, a criança vai perceber que, além de a letra <a> não ser a correta, só em algumas palavras existe fonologicamente um ditongo, que deve ser escrito também com <i> (ou seja, <ei> leite). Essa discriminação das diferentes estruturas fonológicas não está ainda consolidada no momento em que as crianças são alfabetizadas, de modo geral.

De forma simplificada, nas tipologias de erros propostas, considera-se que umas são de natureza estritamente gráfica (devido à existência de múltiplas grafias para um mesmo som ou sons parecidos), outras devidas a correlação com a fala e outras relacionadas com questões morfossintáticas e prosódicas (incluindo os casos relativos à segmentação e, em certa medida, à pontuação) e discursivas. As FN-Cs que trataremos neste artigo são do grupo relacionado com a fala e, simultaneamente, com a existência de grafias múltiplas para um mesmo som. São referidas as FN-Cs relacionadas com as estruturas /e/ acentuado pré-palatal, o ditongo /eI/ e o ditongo /oU/[4]. Como na variedade linguística de Lisboa as duas primeiras estruturas apresentam o som [ɐ] que pode apresentar duas grafias em português <a> e <e>, as crianças confundem-se muitas vezes (compare-se: apanho com venho, por exemplo), em particular no 2º ano de escolaridade. A estrutura /oU/ <ou> de touca, por seu lado, corresponde ao som [o] tal como acontece com a estrutura /o/ de boca, o que implica igualmente grande número de erros. Assim, a escolha destas estruturas deve-se à sua complexidade para as crianças de Lisboa e, por outro lado, em certa medida à frequência de erros que as mesmas implicam nas fases iniciais de aprendizagem da ortografia. Tendo a possibilidade de observar o desempenho na escrita das mesmas crianças com dois anos de intervalo, poderemos verificar se os erros observados na primeira fase foram ultrapassados na segunda.

2. Descrição linguística das estruturas-alvo

2.1 /e/ acentuado pré-palatal

No que se refere a /e/ acentuado seguido por consoante palatal ou alvéolo-palatal, encontram-se estruturas como as seguintes:

(1) a. /eS.C/[5] (sexta, sexto)

b. /e.ʃ/ (fecha, mexa)

c. /e.ʒ/ (vejo, esteja)

d. /e.ɲ/ (venho, desenho)

e. /e.ʎ/ (telha, espelho)

A variedade linguística falada em Lisboa apresenta, nos cinco contextos exemplificados, a pronúncia [ɐ]. Já o ditongo fonético [ɐj] ocorre apenas em algumas delas, nomeadamente, não ocorrendo antes de palatal sonante /ɲ/ e /ʎ/, como em (1d) e (1e) (cf. Rodrigues, 2003, p. 128-135). As palavras em que a consoante faz parte da mesma sílaba da vogal, representadas em (1a), só recebem a pronúncia [ɐ] ou [ɐj] quando correspondem ao grafema <x>. Isso quer dizer que as palavras semelhantes, mas não aparentadas, cesto, besta não podem ser produzidas com a vogal central [ɐ].

A inserção de [j] foi representada seguindo o modelo autossegmental por Rodrigues (2003, p. 331), onde nos inspiramos para a representação da Figura 1. Assinalamos a sílaba acentuada com “*” e assumimos a representação da vogal /e/ como Dorsal (não-recuada por defeito), usando a teoria de subespecificação de traços, dita radical, de Archangeli (1988) e a geometria de traços de Clements & Hume (1995), adaptada para o português por Mateus & Andrade (2000). Todavia, a vogal pode ser considerada Coronal alternativamente. Porém, como não pretendemos discutir aqui a classificação fonológica das vogais do português, aceitamos neste contexto a classificação mais tradicional.

 

 

A pronúncia [e] em todos os contextos (1a-e) é residual em Lisboa, por isso, é natural que alunos do Ensino básico desta cidade hesitem ao grafar esta estrutura. Com efeito, dispõem de <a> muitas vezes para a correta representação do som [ɐ] de apanha, manha, mancha e generalizam o uso desse grafema para as formas que possuem o mesmo som mas filiações morfofonológicas diferentes – i. é, às palavras em (1a-e), acima. Ou seja, numa primeira fase de aprendizagem, as crianças podem supor que as palavras apanha e tenha, por exemplo, sejam escritas da mesma maneira na sílaba tónica e não se apercebem da existência de uma correlação morfológica e gráfica entre palavras como desenho e desenhinho (o que as leva a poder optar por <a> para a primeira e por <e> para a segunda, já que corresponde a [ɨ]), baseando-se para isso exclusivamente na diferença de pronúncia. A criança que sabe ler e escrever passa a ter uma percepção da fala mediada pelo conhecimento que tem da escrita e, portanto, saberá que desenho e desenhinho se devem escrever ambas com <e>, ainda que produzidas com dois sons diferentes. Na verdade, a identificação de paradigmas lexicais como as famílias de palavras só constituirá objectivo dos programas de Ensino Básico no 3º ano, (cf. Buescu et al., 2015, p. 15), apesar de ser de grande utilidade nesta fase, como estratégia de resolução das FN-Cs, nos casos em que uma relação directa entre pronúncia e grafia gera erros frequentes.

A vogal [ɐ] já é bem conhecida pelas crianças de Lisboa, quando se encontram na fase de aprender a escrever. Estima-se que as crianças a usem na fala desde muito cedo. Por exemplo, em Freitas (1997) encontram-se produções desta vogal em crianças aos 10 e 11 meses de idade (0.10.2 e 0.11.6, João I; 0.11.14, Inês). Mateus & Andrade (2000), entre muitos outros, afirmam que essa vogal não faz parte do inventário fonológico, no entanto, a sua elevada frequência na fala conduz a uma aquisição precoce do segmento fonético. A sua representação pode ser feita como mostrado na Figura 2, usando a teoria de subespecificação radical, associada à geometria de traços de Clements & Hume (1995), adaptada para o português por Mateus & Andrade (2000).

 

 


Nas estruturas acima referidas, porém, o segmento não se correlaciona com /a/ (vogal central aberta), mas com /e/ (vogal não-recuada média-fechada) como se pode ver na Figura 3, mais uma vez, usando a teoria de subespecificação radical e a mesma geometria de traços. Isso gera o uso de <a> para /e/, logo, as crianças precisam de ser alertadas para a existência do contraste fonológico entre os dois segmentos e para a existência de paradigmas lexicais que partilham a mesma estrutura gráfica. O português tem uma forte correlação entre a representação fonética e a ortográfica, no entanto, contempla também diversos casos em que os aprendentes da ortografia precisam, como as crianças a aprender línguas mais opacas como o inglês, de dominar correlações entre palavras da mesma família (ou seja, correlações morfológicas – cf. Seymour et al. 2003). Assim, estima-se que seria adequada também a realização de tarefas de construção de paradigmas lexicais, desde fases iniciais da escolaridade, para evitar a proliferação de FN-Cs como as referidas.

 

 

2.2 Ditongo /eI/

No que se relaciona com o ditongo /eI/ ([ej]~[ɐj], normalmente encontram-se casos como os seguintes:

(2) a. leite

b. queijo

c. queixo

d. torneira

e. prateleira

f. chamei

g. fechei

h. acabei

A pronúncia do ditongo /eI/ em Lisboa é [ɐj] em palavras como as de (2a-h) normalmente, ainda que a forma monotongada [ɐ] também possa surgir de modo esporádico. Trata-se, por isso, de mais um caso de incongruência entre a representação fonética e a representação ortográfica para aprendentes desta origem, porque a estrutura nunca é produzida com [ej] ou [e]. Este problema só não teria razão de ocorrer se a criança produzisse [ej] (variante que existe em algumas variedades da língua, diferentes do padrão) ou eventualmente [e] (como sucede no Alentejo, por exemplo). Além disso, tendo em conta que o ditongo aqui presente pode ser monotongado e que as palavras de (1a-e) podem ser ditongadas com [ɐj], existem erros frequentes (numa primeira fase, pelo menos), já que as crianças hesitam na grafia com e sem <i> nas duas estruturas. Tendo em linha de conta os resultados quantitativos apresentados adiante, seria de grande utilidade a insistência do professor na apresentação minuciosa dos contrastes também entre estas estruturas do ponto de vista fonético-fonológico e ortográfico. As duas estruturas apresentam complexidade idêntica na fala. Fonologicamente, apresentam complexidade diferente e, no processo de aprendizagem da ortografia, apresentam ambas grande complexidade, devido à não-correspondência fonema-grafema.

2.3 Ditongo /oU/

No que diz respeito ao ditongo /oU/ [ow]~[ɐw]~[o] temos casos como os seguintes:

(3) a. tesoura

b. touca

c. acabou

d. fechou

O ditongo /oU/ evoluiu em Lisboa para a forma monotongada [o] e, por consequência, crianças dessa origem produzem exclusivamente [o] na fala. Por essa razão, palavras a estrutura fonológica /oU/ (3a-d) podem ser associadas às das palavras com /o/, como boca, toda, gerando erros com ausência de <u> gráfico. Logo, trata-se de um terceiro caso de falta de correspondência entre pronúncia e ortografia, que precisa de ser trabalhada pelo professor, em particular, com a insistência na discriminação desta estrutura relativamente à do /o/ simples (de boca, toda). A estrutura fonológica com o ditongo possui maior complexidade fonológica do que fonética, mas, por confluir com a estrutura /o/ foneticamente, gera erros em palavras com /oU/ e em palavras com /o/. Um exemplo disso mesmo é: “estav a voar e as floures estavam a cexere co chova” (criança 28). Aqui a criança, já detentora de algum conhecimento ortográfico, adopta a grafia mais complexa <ou> para um núcleo simples (hipercorrecção).

3. Hipóteses de interpretação das FN-Cs

Pelo que referimos até aqui, esperamos encontrar FN-Cs dos seguintes dos tipos para cada uma das estruturas aqui descritas:

a) /e/ - grafado com <a> ou <ai>;

b) /eI/ - grafado como <ai> ou <a>;

c) /oU/ - grafado como <o>[6]

As FN-Cs destes três tipos são compreensíveis, tendo em conta a existência de uma falta de correspondência direta entre a representação fonética e a representação ortográfica. Muitas vezes, as crianças produzem as palavras com o ditongo fonológico em formas monotongadas, por isso, ao escreverem podem colocar apenas a vogal que mais lhes parece poder corresponder à sua pronúncia: formas com <a>, no caso do ditongo /eI/. Dependendo do nível de conhecimento ortográfico de cada criança, assim haverá mais ou menos casos destes. Por outro lado, nas palavras só com /e/ no núcleo silábico, referidas em a) acima, podem surgir formas ditongadas na pronúncia, que acarretem na escrita duas vogais: <ai> ou <ae>. No caso do ditongo /oU/, atendendo à sua monotongação regular em Lisboa, a forma gráfica <o> é a que mais se pode esperar. Veremos se só estes tipos de FN-Cs surgem ou se outros podem ocorrer, nas tabelas apresentadas na Secção 5.

4. Corpus

O corpus utilizado para o escrutínio das FN-Cs produzidas pelas crianças de Lisboa é o do projecto EFFE-On – Corpus online de escrita e fala de crianças nos primeiros anos de escolaridade (Rodrigues et al., 2015[7]). Trata-se dos dados pertencentes a duas turmas do 2º ano e do 4º ano, envolvendo as mesmas crianças, ou seja, uma amostra longitudinal de desempenho na escrita (cf. Alves et. al., 2015). Em cada fase de recolhas as crianças produziram dois textos narrativo-descritivos. As crianças foram entrevistadas oralmente aos sete anos, na primeira fase de recolha, altura em que, quase sem excepção, as crianças demonstraram amplo domínio da língua falada, distinguindo regularmente todos os contrastes fonéticos típicos da variedade padrão.[8] Na segunda fase de recolha, as crianças tinham já nove anos e não houve paralelamente recolha de entrevistas orais.

Os textos foram produzidos tendo como base imagens que propiciam descrições minuciosas, levando a criança a manipular estruturas fonológicas de diversos tipos. Cada criança escreveu um texto descritivo de uma de cinco imagens (adaptadas para evocação de contrastes fonológicos do português europeu por Guerreiro, 2007) e um texto narrativo relativo a uma história contada por uma série de imagens sem texto (Furnari, 1993a, no 2º ano, e Furnari, 1993b, no 4º ano). As crianças descreveram a mesma imagem nos dois anos de escolaridade, para se poder reunir um conjunto significativo de palavras comuns nos textos de cada criança, mas, contaram histórias diferentes, como já dissemos.

5. Resultados e discussão

5.1 Dados do 2º ano

Os dados quantitativos do 2º ano relativos à estrutura /e/ acentuado pré-palatal são os seguintes.[9]

 

 

Apesar de os resultados não serem muito expressivos, tendo em conta o baixo número de ocorrências no 2º ano, pode ver-se que a percentagem de acerto é relativamente alta, sempre que há mais ocorrências. Se juntarmos todas as ocorrências nos cinco contextos (73), a percentagem de FN-Cs é 34.2% (8.2% com a vogal <a>; 13.6% com <ai> e 12.3% com <ei>) em palavras com /e/ acentuado pré-palatal. As FN-Cs com inclusão errónea de <i> são mais frequentes em palavras com /e.ʒ/, nas quais nunca surge a FN-C <a>.[10]

 

 

As FN-Cs registadas contemplam a forma <ei>, para além de <a> e <ai>, porém, isso não quer dizer que a pronúncia mais corrente nestas crianças não seja a forma ditongada [ɐj]. Com efeito, essa pronúncia é a mais corrente nestas crianças, como se comprova pela observação no corpus de fala das duas turmas. Os 20% de <ei> na estrutura /e.ʒ/ indicam que as crianças que a utilizam supõem tratar-se do ditongo /eI/ e, conhecendo já a forma de o grafar, utilizam <ei> para a estrutura do núcleo não ramificado /e/. Esta FN-C não tem qualquer relação com uma hipotética pronúncia [ej] destas crianças, uma vez que essa pronúncia não foi registada nas crianças destas duas turmas de Lisboa. As formas corretamente escritas evidenciam que nesta amostra há crianças com um domínio já muito consolidado da ortografia das palavras com a estrutura-alvo – o que pode ser considerado surpreendente, tendo em conta que se encontram no primeiro trimestre do 2º ano de escolaridade.

Os dados quantitativos do 2º ano relativos à estrutura /eI/ são os seguintes.

 

 

Regista-se 28.3% de FN-Cs, considerando o total de 166 ocorrências. As crianças do género feminino apresentam uma frequência de FN-Cs de 20.9% e as do género masculino 35.2%. No entanto, essa frequência de erro parece implicar quase sempre uma pronúncia ditongada, uma vez que <ai> é a forma que mais ocorre. Além disso, <ae> e <aia> remetem também para essa pronúncia e, mesmo <i> parece constituir um reflexo de algum conhecimento ortográfico, visto que ei se escreve com <i>. A forma <a> pode dever-se à pronúncia monotongada e a ausência de grafia para a estrutura (< >) deve-se à dificuldade específica de uma criança apenas. As crianças do género feminino além da FN-C <ai> só apresentaram a FN-C <e>, ao contrário das do género oposto, que apresentaram maior diversidade de formas.

 

 

A FN-C <e> mostra que as crianças podem confundir ainda a representação gráfica do núcleo simples com a do núcleo ramificado, não havendo qualquer relação com a pronúncia já que produziram com [ɐj] todas as estruturas deste tipo. A forma <a> (num único exemplo) pode decorrer da pronúncia [ɐ] ou não, uma vez que a criança que a produz na oralidade oscila na pronúncia do ditongo. As crianças destas duas turmas apresentam na oralidade variação na pronúncia do ditongo: umas vezes, apresentam [ɐj], outras vezes produzem [ɐ]. A criança que não grafou o ditongo apresenta um atraso no domínio da ortografia, face às restantes crianças.

Os dados quantitativos do 2º ano relativos à estrutura /oU/ são os seguintes.

 

 

As FN-Cs em palavras com /oU/ atingem 128 em 363 formas possíveis, ou seja uma frequência de 35.2%. A percentagem de acerto é 64.7% - o que se pode considerar uma frequência de acerto alta, tendo em conta o nível de escolaridade e o facto de as crianças pertencerem a uma variedade linguística na qual a pronúncia não tem uma correspondência direta com a ortografia.

A distribuição dos dados por género, não discriminada na tabela 5, indica que a forma errada mais produtiva, <o>, representa 26.5% das ocorrências nos textos das crianças do género masculino e 37.3% nos do género feminino.

~

 

 

As FN-Cs registadas contemplam ainda a forma <e>, para além das apresentadas acima: “o pasaro transformese no chapéu i tinha as”, numa única ocorrência, para a qual não apresentamos qualquer explicação, a não ser a de haver ainda um fraco domínio ortográfico nesta criança (nº 47). A forma <on> revela porventura uma de duas coisas distintas: ou a criança ainda não domina a concretização do desenho do caracter ou não distingue perceptivamente o contraste entre [o] e [õ] (só surge na criança nº 54). A forma <au>, umas das poucas em início de palavra registadas, poderia dever-se à pronúncia [ɐw], se a criança fosse de um dialecto setentrional. Porém, sendo ela de Lisboa, só pronuncia [o] - cf. [tezóɾɐ], por exemplo. A grafia <ao> surge na criança nº 13 uma vez apenas, a par de diversas outras formas para esta estrutura, mostrando a grande insegurança ortográfica que esta ainda tinha na época. A grafia <oo> deve-se à especial complexidade da grafia: <ou-o>, tirou-o, surgindo numa criança apenas.

5.2 Dados do 4º ano

Os dados quantitativos do 4º ano relativos à estrutura /e/ acentuado pré-palatal são os seguintes.

 

 

A percentagem média de FN-Cs com vogal <a> (visto que outros não foram registados) em palavras com /e/ acentuado pré-palatal destes tipos é 6.6%, calculando a frequência com base no número total de ocorrências da estrutura (106). Como não foram já registadas as formas <ei> e <ai>, houve certamente um trabalho específico acerca deste tipo de erro, que quase levou à sua extinção. É importante observar que parece ter havido uma distinção clara das estruturas de núcleo simples relativamente às de núcleo ramificado. De outro modo, erros como <ei> e <ai> teriam certamente ainda surgido.

 

 

O único tipo de FN-C registado no 4º ano é <a> e surge apenas em duas crianças (as crianças 30 e 37), sugerindo que estas possam registar um atraso específico na consolidação do sistema ortográfico, devido a razões particulares. Como se comprova, pela observação no corpus da pronúncia destas duas crianças no 2º ano, a pronúncia de /e/ acentuado é sempre centralizada. As formas corretamente escritas das outras crianças evidenciam um domínio muito sólido da ortografia das palavras com esta estrutura. Isto não é surpreendente porque, no 2º ano, estas crianças apresentavam uma frequência de erro de 34.2%, que deve ter levado a uma intervenção específica do professor para a sua abolição.

Os dados quantitativos do 4º ano relativos à estrutura /eI/ são os seguintes.

 

 

A taxa de FN-Cs deste tipo é de apenas 3.1%, revelando assim que para o núcleo complexo as dificuldades registadas no 2º ano foram quase todas ultrapassadas. Algumas crianças usaram grafias híbridas: criança nº 4 <aei> e criança nº 26 <iei>.

 

 

A FN-Cs ainda existentes no 4º ano, à excepção das híbridas, são idênticas às que surgiram no 2º ano. Conclui-se que esta estrutura já só esporadicamente apresenta dificuldades a um número reduzido de crianças.

Os dados quantitativos do 4º ano relativos à estrutura /oU/ são os seguintes.

 

 

As FN-Cs em palavras com /oU/ são 59 em 874 formas possíveis, ou seja, têm uma frequência de 6.7%. A taxa de acerto é já de 93.3% no 4º ano. Trata-se de uma frequência de acerto alta, mas, tendo em conta o nível de escolaridade, de certa forma inesperada nesta estrutura tão frequente na língua.[12]

 

 

As formas verbais pronominalizadas são particularmente complexas e continuam a apresentar diversos erros. Quando o pronome é o(s), algumas crianças confundem-se na grafia das vogais arredondadas, como os exemplos acima demonstram. As grafias <oo> e <u> devem-se à especial complexidade da grafia em perdoou-o, desculpou-o.

5.3 Resumo dos resultados

Os dados quantitativos indicam que as três estruturas analisadas apresentam uma frequência assinalável no 2º ano de escolaridade. Com efeito, por exemplo, em 363 ocorrências possíveis do ditongo /oU/, existe 30.3% de erro <o>. E, se considerarmos as 73 palavras com a estrutura /e/ acentuado pré-palatal, temos 34.2% erros relacionados de uma forma ou outra com a fala, este erro é mais frequente do que, por exemplo, o erro associado com a inclusão de um grafema no interior de um ataque complexo, que é tido como muito relevante nas primeiras fases de aprendizagem da escrita, devido à observação na aquisição da língua que as crianças passam por uma fase na qual produzem erradamente uma vogal entre as duas consoantes do ataque complexo (cf. Freitas, 1997 e Santos, 2013, por exemplo)[13]. No corpus aqui utilizado, a injustificada inserção de <e> na escrita dos ataques complexos no 2º ano nos textos destas crianças de Lisboa apresenta uma frequência de 7.5%, tendo em consideração as 339 formas em que os ataques complexos surgiram (ex.: tigre > tigere). A inserção de outra vogal (<o> exclusivamente: cofre > coforo) apresenta uma frequência de 1.1%. No total de ocorrências com ataques complexos, para além destas inserções (estritamente grafémicas), há ainda 1.7% de formas com metátese na escrita: procura > porquora, preciso > persiso.

Apesar de a frequência de FN-C relativas ao ditongo /eI/ não ser tão elevada como a de /e/ e a de /oU/, a sua inclusão neste estudo é importante, para se perceber se as crianças estabelecem devidamente a oposição entre o núcleo simples e o complexo. Além disso, estando a tratar do ditongo posterior, simétrico do ditongo /eI/, a sua inclusão era justificável.

Os dados do 4º ano apontam para uma melhoria nítida da correcção ortográfica. Porém, os resultados não são uniformes e não podem ser ainda considerados excelentes. As estruturas apresentam resultados diferenciados, sendo a estrutura /e.ʎ/ (10.9%) a que apresenta mais FN-Cs, proporcionalmente, seguida da estrutura /oU/ (6.4%).

Conforme foi apresentado, os resultados quantitativos das FN-Cs associadas às estruturas-alvo indicam que a frequência de acerto sobe substancialmente no 4º ano de escolaridade, apesar de haver ainda taxas de FN-Cs a merecer reflexão da parte do docente. Observe-se as frequências de erro nos dois anos considerados apresentadas na Tabela 13.

 

 

Apesar da melhoria assinalável da correcção ortográfica em estruturas que envolvem complexidade da relação grafema-fonema/fone, as FN-Cs não deixaram ainda de surgir. Além disso, é necessário ter em atenção para a sua cabal resolução que as duas primeiras estruturas envolvem erros parcialmente comuns, que devem motivar a realização de exercícios de consciencialização das respectivas estruturas fonológicas contrastantes, de modo a que as crianças se apercebam dos contrastes, podendo, pouco a pouco, consolidar as correspondências com a ortografia estabelecida.

É de salientar ainda que, ao contrário do que se poderia supor, nem sempre as estruturas mais complexas são as que suscitam mais FN-Cs. De facto, a estrutura /e/, que é mais simples do que os núcleos complexos /eI/ e /oU/, apresenta uma frequência de erro semelhante à do núcleo ramificado /oU/ nos dois anos de escolaridade comparados. E as estruturas com núcleo ramificado apresentam resultados distintos, o que nos leva a questionar se a ideia da complexidade da estrutura da sílaba é afinal assim tão importante para a interpretação dos erros ortográficos das crianças ao aprenderem o sistema alfabético. Essa ideia, presente em diversos trabalhos como, por exemplo, Seymour, Aro, Erskine (2003) e Seymour (2005), é interessante por chamar a atenção para o facto de nem todos as estruturas apresentarem igual grau de dificuldade às crianças na aprendizagem da escrita. No entanto, consideramos que a complexidade silábica não deve constituir o único critério para a avaliação da complexidade da aprendizagem da grafia das estruturas. A complexidade silábica precisa de ser complementada com critérios relativos à quantidade e qualidade de processos fonológicos e fonéticos envolvidos nas estruturas fonológicas, caso contrário, a sua importância poderá ser sobrestimada.

6. Conclusão

Os resultados apresentados neste artigo, acerca de três estruturas nas quais se verifica existir no 2º ano um fraco conhecimento da representação fonológica, indicam que nessa altura as crianças tendem a apoiar-se na pronúncia para a escrita, como é costume acontecer nas línguas com sistemas alfabéticos de escrita. Os dados do 4º ano mostram, por outro lado, uma subida da taxa de acerto na grafia destas estruturas e, ainda, uma não estabilização ortográfica. Isso exige, portanto, um trabalho aturado da parte do professor no sentido da respectiva mitigação. Cremos que, se o trabalho de consciencialização das diferenças entre os três tipos de representação linguística aqui envolvidos (a fonética, a fonológica e a ortográfica) fosse introduzido desde o início da alfabetização, alguns destes tipos de problemas não surgiriam em tantas crianças no 4º ano e não seriam tão frequentes no 2º.

O confronto da escrita de cada criança com a sua oralidade constitui uma novidade deste trabalho, ainda que não tenhamos insistido muito na sua apresentação. Não por não existirem trabalhos anteriores com dados de escrita e de fala (cf. por exemplo, Santos 2013), mas porque só aqui estão apresentados dados produzidos pela mesma criança em situações espontâneas, na mesma fase de recolha. Com efeito, nem os textos escritos, nem a fala produzida se podem considerar controlados. A sua espontaneidade é de resto o que nos permitiu comparar maior número de palavras com as estruturas-alvo nas duas modalidades, escrita e oralidade. Como às crianças não foi pedido que produzissem ou lessem as palavras que escreveram, nem sempre podemos ter uma correspondência imediata entre as duas produções, o que se reflecte no número de palavras pronunciadas presentes na EFFE-On. Naturalmente, algumas palavras usadas na escrita foram substituídas na entrevista por outras em que não existe a estrutura fonológica-alvo. Porém, isso não impede que se comparem as produções orais e escritas de diferentes palavras produzidas por uma criança com uma estrutura fonológica específica. As produções orais foram recolhidas em entrevistas individuais, nas quais as crianças conversam acerca da imagem descrita por escrito em aula, de modo natural. Desta forma, foi possível observar quais são as realizações sonoras das três estruturas-alvo em 58 crianças (das 62 de Lisboa que participaram na amostra escrita) noutras palavras com a mesma estrutura não usadas na escrita.

A amostra de Lisboa usada para este estudo contém 38775 unidades gráficas compreendidas entre espaços em branco, das quais 10007 pertencem ao 2º ano e 28768 ao 4º.[14] A desproporção entre o número de unidades deste tipo nas duas fases de recolha merece as seguintes observações. Existem mais de dez mil unidades nos textos das 58 crianças que participaram na 1ª fase de recolha, o que é um bom resultado, tendo em conta que as crianças se encontravam no início do 2º ano de escolaridade a produzir um texto pela primeira vez, de acordo com o relato do professor. Além disso, é importante verificar que o número de palavras quase triplicou no 4º ano, como se poderia esperar em função do aumento exponencial do léxico e da capacidade de manipulação das técnicas de construção textual. Nesta quantidade de texto existem, portanto, para as estruturas consideradas, percentagens de FN-Cs das três estruturas /e/, /eI/ e /oU/, que justificam uma intervenção precoce do professor no sentido da clarificação da estruturas fonológicas em simultâneo com as estruturas ortográficas, por forma a reduzir atempadamente as dificuldades das crianças logo no 2º ano. Porém, esse trabalho deve continuar ao longo de toda a escolaridade, de modo a consolidar o conhecimento dos aprendentes acerca dos contrastes ortográficos da língua.

Os resultados apresentados neste estudo mostram com clareza que as crianças carecem de aprofundamento de conhecimento fonológico, durante a fase de alfabetização e em fases posteriores. A insistência do professor nas estruturas fonológicas, que, em cada lugar, possam levantar dúvidas às crianças,[15] por não terem uma correspondência linear com a pronúncia, é fundamental para o êxito, quer na manipulação explícita das unidades fonológicas, quer na correcção ortográfica dessas mesmas estruturas. Consideramos, por isso, que a alfabetização deve ser um processo articulado de formação, que consolide conhecimento fonológico implícito e, ao mesmo tempo, o melhore, se as crianças forem levadas a questionar a razão de ser de certas estruturas ortograficamente mais opacas. Se é certo que os principais contrastes fonológicos estavam adquiridos na oralidade aos sete anos na maioria destas crianças, também é verdade que nem todas elas no 4º ano já distinguiam todos os contrastes fonologicamente existentes na língua, a ponto de os poderem reproduzir na ortografia. Por isso, insistimos que a vigilância do professor deve manter-se ao longo da escolaridade, de modo a poder aprofundar o conhecimento linguístico (implícito e explícito) dos seus alunos.

 

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[Recebido em 26 de fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 6 de abril de 2016]

 

Notas

[1] FCT, projeto UID/LIN/00214/2013.

[2] Investigador Auxiliar ao abrigo do Contrato-Programa Compromisso com a Ciência (FCT).

[3] Decidimos juntar /eI/ e /+a+i#/ porque o tratamento dado às duas estruturas pelos falantes em geral e pelas crianças que participaram no nosso estudo em particular assim o justifica. As formas verbais em /+a+i#/ evoluem para o ditongo [ej] em todos as variedades da língua e é, a partir do tratamento dado a esse ditongo que as variedades se distinguem (variedades meridionais com [e], variedades centrais do litoral com [ej] e variedades setentrionais e padrão quase exclusivamente com [ɐj].

[4] A representação fonológica dos ditongos aqui apresentada segue a notação de Mateus & Andrade (2000). Esta notação assinala a posição da semivogal, que pode ser implementada foneticamente ou não, com o símbolo da vogal correspondente em maiúscula, para distinguir estas estruturas daquelas em que a vogal fonológica pode ser realizada como vogal (piano), o que não acontece nestes casos. Nestas estruturas, a vogal subjacente não conta como vogal para a estrutura métrica da palavra, pelo que faz parte do mesmo núcleo silábico da vogal precedente.

[5] Assinalamos a fronteira silábica por intermédio de “.”.

[6] Foram observados alguns casos de FN-Cs nas palavras com /o/ grafadas com <ou>, como em floures, que não serão tratadas neste artigo, por acharmos que essa estrutura deve ser tratada separadamente. Nessa estrutura é mais frequente a existência de FN-Cs com <u> gráfico simplesmente do que com <ou>.

[7] Disponível em http://alfclul.clul.ul.pt/teitok/effe/index.php?

[8] Algumas crianças manifestaram apenas dificuldades na produção de certas palavras com estrutura silábica complexa, o que, mais uma vez, deve indicar ao professor que a complexidade estrutural (neste caso, a complexidade da sílaba) deve ser abordada de forma explícita, para as crianças atinjam um conhecimento mais aprofundado do léxico. Um exemplo desses casos diz respeito à pronúncia de palavras como prateleira, produzidas na oralidade e na escrita com formas com metátese: [pɐɾtɨ´lɐjɾɐ] *<parteleira> (criança nº 53). Outro é o de transformou: escrito como *<tranxfromou> (criança nº 20).

[9] Foram devidamente excluídas das contagens desta estrutura-alvo todas as ocorrências de /ɛ/, como, por exemplo, as das palavras: velho e Alentejo.

[10] Observando os resultados em detalhe, nesta estrutura específica nota-se que há diferenças entre o comportamento das crianças dos dois géneros nesta amostra. As meninas apresentam uma percentagem de FN-Cs muito superior à dos meninos: respectivamente, 57.8% vs.19.1%.

[11] Esta FN-C contém duas vezes a letra <a>, no que parece constituir uma gralha sem importância. No entanto, como não poderíamos legitimamente juntá-la a nenhuma das restantes, decidimos separá-la na tabela.

[12] A distribuição dos dados por género indica que a forma errada mais produtiva, <o>, representa 9.5% das ocorrências nos textos das crianças do género feminino, ao passo que representa 4.1% nos do género masculino. Confirma-se assim a tendência para as crianças do género feminino destas turmas apresentarem mais erros, evidenciada no 2º ano de escolaridade. As crianças 21, 30 e 54 são as que mais apresentam este tipo de erro do género feminino.

[13] Freitas (1997) identificou os estádios de aquisição dos ataques ramificados em português, tendo considerado o estádio 3b como aquele em que a vogal epentética surge entre as consoantes (cf. p. 193).

[14] Estas unidades não devem ser confundidas com palavras, porque são formas escritas que incluem, tanto os casos de hiper-segmentação (tinha piada éra fix comera cilo todo quero dizer ficava - criança nº 20),como os de hipo-segmentação (sair da banhaira vitoria vitori acabose esta istoria. - criança nº 31). Estes resultados, não sendo muito precisos em termos da unidade lexical, ajudam a perceber o grau de proficiência das crianças.

[15] Chamamos aqui a atenção para o facto de crianças de diversas variedades linguísticas poderem apresentar diferentes dificuldades. Futuramente, pretendemos fazer a avaliação desse factor na aprendizagem da ortografia portuguesa com base em materiais de escrita de Português Europeu e do Brasil.

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