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Revista Diacrítica

Print version ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.3 Braga  2015

 

RECENSÕES

O voo do garajau: dos Açores a Macau Maria do Rosário Girão Ribeiro dos Santos & Manuel José Silva, Vila Nova de Gaia, Calendário das Letras, 2014. 355 pp.

 

Virgínia Soares Pereira*

*Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

virginia.soarespereira@gmail.com

 

O volume em apreço – de título aliciante – consta de um conjunto de estudos inovadores no âmbito da literatura portuguesa (sobretudo açoriana) e lusófona, sendo aqui evocados “vários Escritores que nasceram e viveram no Arquipélago, em Macau e na Austrália”, nomeadamente os açorianos Vitorino Nemésio, Natália Correia, Cristóvão de Aguiar, Dias de Melo, Vasco Pereira da Costa, Álamo Oliveira, Onésimo Teotónio Almeida, o macaense Henrique Senna Fernandes, e J. Chrys Chrystello.

De acordo com o prefaciador, Chrys Christello, presidente da AICL, – que abraçou desde logo (e incentivou) o projeto –, os textos recolhidos neste livro tiveram na sua génese o aprofundamento de um “Curso Breve de açorianidade(s) e insularidade(s) ministrado pela Maria do Rosário Girão na Universidade do Minho, entre setembro de 2010 e fevereiro de 2011”, bem como das “notáveis apresentações, ao longo de seis anos, nos Colóquios da Lusofonia” (p. 12). De facto, o objetivo dos autores foi o de “compilar, após subsequente ampliação e expansão, os textos apresentados desde 2008 no âmbito da Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia (AICL)”, como se diz na introdução. Estamos, portanto, na presença de um livro de gestação lenta, resultado de um constante e incansável labor, desenvolvido ao longo de seis anos e dedicado a percorrer sendas desconhecidas que foram pesquisadas até o mais ínfimo pormenor, no intuito de caracterizar, com base em obras que o leitor comum geralmente desconhece, a açorianidade literária. Dado que, na sua grande maioria, os ensaios versam sobre escritores de origem açoriana, compreende-se que os autores comecem logo, na introdução, por tecer considerações teóricas em torno de uma questão essencial: “a existência ou não de uma literatura açoriana” (p. 20).

Diga-se, desde já, que não é fácil proceder a uma apresentação linear deste livro invulgar, que reúne ensaios de grande independência mútua – por ser constituído em grande parte por conferências ou comunicações que, pelo tempo e pelo contexto em que ocorreram, constituem unidades em si, sem correlação necessária entre elas. Em todo o caso, é evidente a existência de um traço de união a conferir uma indiscutível unidade intrínseca ao conjunto, e esse traço de união consiste no facto de os escritores apresentados pertencerem ao espaço comum da língua portuguesa. Uma frase talvez sirva de guia na leitura deste livro feito de muita indagação teórica, de muitas análises e, mais ainda, de muitas leituras: a leitura crítica apresentada é sinónima de “discurso sobre as obras literárias que põe a tónica sobre a experiência da leitura” (citando A. Compagnon; p. 110). Esta afirmação, pertencente ao cap. IV, surge a encabeçar (e a justificar) a análise feita a quatro personagens (Abílio, Fernando, Gibicas e Adriano), criadas por quatro escritores açorianos (Vitorino Nemésio, Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa e Onésimo Teotónio Almeida), e perspectivadas sob o manto teórico que distingue entre romance de formação ou romance de aprendizagem, romance de iniciação, romance de educação, romance pedagógico, romance de desenvolvimento e outros tipos afins de romance.

Entre o prefácio, de Chrys Chrystello, e a introdução, dos próprios autores, surge uma página singela, intitulada “Homenagem a José Martins Garcia”, preenchida com um comentário de Urbano Bettencourt referente à escrita do autor homenageado. Diz-se, na introdução, que pode parecer estranha uma página de homenagem a um escritor “a quem nenhum Capítulo é particularmente consagrado” (p. 20). Mas só aparentemente a homenagem parece escassa. Na verdade, todos os capítulos são emoldurados, por assim dizer, por (duas) citações do referido autor. Compreende-se, assim, que, referindo-se a esta particularidade e originalidade, se fale, na mesma introdução, de um preito prestado mediante a “‘cercadura' citacional”.

Seguem-se os ensaios, em número de nove: o primeiro (pp. 28-55) é dedicado à evocação plural (sic) de Vitorino Nemésio, considerado o criador do conceito de açorianidade, e do qual se rememora – era inevitável fazê-lo – o memorável “Se bem me lembro…” televisivo; o cap. II (pp. 56-78) desenvolve o tema “Natália Correia e Carlos Wallenstein: o tema da metamorfose”; o cap. III (pp. 80-107), “A Terra Permitida, Prometida ou Proibida? No centenário da República e da Primeira Guerra Mundial”, gira em torno do referido romance de fundo histórico; o cap. IV (pp. 108-131) disserta sobre “Abílio, Fernando, Gibicas e Adriano: A Açorianidade no entre cá e lá”, criaturas de quatro escritores; o cap. V (pp. 132-153), “Em demanda de uma Pastelaria em Angra…”, incide sobre a açorianidade de Vasco Pereira da Costa, que assume vários registos devidamente explorados: essa açorianidade é ora geográfica, ora etnográfica, ora gastronómica, ora linguística; o cap. VI (pp. 154-183), “O poeta do banco verde”, com uma epígrafe de Álamo de Oliveira, apresenta este escritor; o cap. VII (pp. 184-229) é dedicado a Cristóvão de Aguiar, escritor micaelense, e ao seu último livro, Catarse; a escrita como terapia, a escritoterapia, é o tema; a este propósito, são desenvolvidas distinções entre géneros literários afins, como as memórias, a autobiografia, o jornal íntimo, a autoficção; segue-se o cap. VIII (pp. 230-254), dedicado a dois escritores: “Cristóvão de Aguiar e Dias de Melo: Silêncio, Memória e Palavra”; o último capítulo, o cap. IX, “Assim vivia Macau” é o mais longo (pp. 256-334); aqui se recorda o testemunho literário de três escritores, Rodrigo Leal de Carvalho (escritor açoriano), Henrique de Senna Fernandes (escritor macaense) e Deolinda da Conceição (escritora macaense), que espelham na sua obra as suas mundividências relativas a Macau.

A finalizar, uma conclusão, que se transforma num verdadeiro roteiro de como ler este livro… Em boa verdade, a conclusão substituiria, muito bem, qualquer recensão. O essencial está lá, em versão condensada.

A bibliografia encontra-se no final de cada capítulo. A opção é justificada pelos autores “com o intuito de facilitar um percurso de leitura”, correndo embora o risco, assumido, “de eventuais e reais repetições de livros consultados”. Seja como for, a bibliografia compulsada é extensa e muito diversificada, como são as obras e os temas tratados. O livro termina – importa sublinhá-lo – com um índice onomástico, um ‘utensílio' que muito o enriquece, por ser de extrema utilidade para qualquer aluno ou investigador.

Vale a pena registar ainda uma virtude deste livro: o cuidado posto na sua revisão final, pois raríssimas são as gralhas e estas de pouca monta. Apenas um reparo: sendo que na sua maioria os trabalhos aqui reunidos tiveram origem em textos de comunicações, posteriormente retomados e reelaborados para publicação conjunta, talvez tivesse tido interesse, pelo menos para memória futura, situá-los no tempo, numa breve nota de rodapé.

*

Apresentada uma visão global da obra em apreço e na impossibilidade de falar de todos os ensaios com o merecido pormenor, referirei alguns aspectos dignos de especial sublinhado.

Conforme foi já dado ver, estamos na presença de estudos no âmbito da literatura comparada. Assim acontece no ensaio dedicado a Natália Correia e Carlos Wallenstein sobre o tema da metamorfose. Trata-se de um ensaio particularmente rico, por trazer à colação inúmeras obras (literárias e pictóricas – retratos) que, nessa análise intertextual e comparativa, contribuem para a descoberta de sentidos insuspeitos nas obras analisadas. A explanação teórica que serve de pano de fundo ao comentário de várias obras dos referidos autores disserta sobre o fantástico europeu (pp. 60 seg.) associado ao tema da metamorfose, com fundas raízes nas Metamorfoses dos romanos Ovídio e Apuleio, ou, mais modernamente, ao tema do duplo ou do outro. Sob este ponto de vista, são comentadas uma obra de Natália Correia (a novela O aplaudido dramaturgo curado pelas pílulas pink), outras de Carlos Wallenstein (Metamorfoses, O segundo da Esquerda, O Sr. Venâncio não quer táxi?). De realçar a acribia da escalpelização de possíveis sentidos ou de “significâncias escondidas” para o mundo fantástico criado, que termina com uma conclusão inconclusa, melhor, plural, por concluir com uma série de interrogações a que não é possível responder de forma inequívoca (vd. pp. 73-75 e a extensa nota 84). Ou, como dizem os autores (p. 75): “uma produção indefinida de sentidos, susceptível de dar um sentido qualquer à existência”.

Muito frutífero e clarificador, e sinal de uma análise funda, é o estudo comparado de escritores feito a duas colunas, a que se seguem conclusões elucidativas, como ocorre com o cotejo entre A casa fechada de Vitorino Nemésio e O pastor das Casas Mortas de Daniel de Sá (pp. 45-47) – uma “incursão pela domoanálise ditada pela evocação plural de Vitorino Nemésio”, nas palavras dos autores (p. 50) –, e entre a obra de José Dias de Melo e a de Cristóvão de Aguiar (pp. 246-248), revisitadas no campo das memórias, da revivescência da meninice, das leituras, dos afectos, dos sonhos, dos hábitos de escrita e da sua função terapêutica, da relação com a Ilha, etc..

Entre outros exemplos de reflexões aprofundadas em torno de uma dada obra, refiram-se as linhas de leitura ou a “leitura plural ou múltipla” a propósito de Passageiro em Trânsito de Cristóvão de Aguiar, explorado sob diversificadas perspetivas, a saber, a psicanalítica (sobre o tema da Ilha), a temática e sociológica (em torno do fenómeno da emigração), a estilística (o uso lúdico das palavras, os “diminutivos não hipocorísticos”, a “profusão de asteísmos e truísmos”, o “recurso à antífrase”, etc.), bem como a ocorrência irónica da “intrusão de um intertexto descontextualizado, mas inserido num re-contexto lúdico” (p. 219). As análises de teor estilístico são feitas com profundidade e rigor, alicerçadas num domínio extraordinário da nomenclatura retórico-estilística, de figuras e tropos, a cada passo comentados; neste campo, deparamos mesmo com uma análise pormenorizada das várias e inéditas funções dos parênteses na prosa de Dias de Melo (pp. 241-242).

Assistimos, assim, a uma panóplia de motivos exploratórios, a que os autores do volume se entregam com manifesto prazer ou enorme paixão. Do tema maior ao pormenor mais pequeno, tudo serve de ponte para mais um alvo a explorar. De “biscate” analítico fala-se mesmo na p. 203, ao anunciar uma particularidade que vai ser explorada, sob o subtítulo “Rumo a uma tipologia canídea…”, a saber, os mais diversos tipos de cães, mais e menos letrados, de uma obra de Cristóvão de Aguiar. Sirva também de exemplo deste gosto pela pesquisa e abordagem interrogativa das matérias, a nota 38 (p. 41), que começa com uma interrogação motivada pelo título da obra O pastor das casas mortas, de Daniel de Sá: “Poderá um título ser inocente?”. Tudo neste livro de ensaios é questionado. Neste sentido, os ensaios reservam-nos, muitas vezes, interessantes surpresas.

Note-se, ainda, que os artigos ensaísticos constitutivos do presente volume se caracterizam por uma escrita densa, por vezes vazada em longos períodos de catorze linhas ou mais (fazendo lembrar o clássico estilo periodal de Cícero), mas também e sobretudo pela densidade informativa de cada frase ou período. Para esta densidade concorrem: um domínio invulgar da variedade lexical, que traz de novo à memória velhos lexemas ou põe a circular termos da mais moderna crítica retórico-literária; o enquadramento do(s) escritor(es) e da(s) obra(s), alicerçado em referências sócio-históricas de grande valor evocativo; a fundamentação teórica dos diversificados tipos de análise, que tanto pode dizer respeito a teorias e categorias da narrativa, a géneros e subgéneros narrativos, à intertextualidade ou ao macrotexto, como à domoanálise ou como à mitocrítica; a mobilização oportuna de um elevado número de textos e obras, desde revistas e jornais contemporâneos das épocas em estudo, a obras dos mais diversos escritores (franceses, espanhóis, italianos, ingleses, romenos), com os quais estabelece relações no domínio da literatura comparada, ou ainda a ensaístas e investigadores que têm contribuído para o estudo da açorianidade, etc.. E tudo isto com uma particularidade digna de registo: é que não há afirmação que não seja devidamente comprovada com uma citação. Daí que certos artigos abundem em extensas notas de rodapé que permitem ao leitor saborear um pouco mais os textos de que se fala.

Antes de concluir, apraz-me registar ou insistir num outro aspecto digno de nota. Os autores deste livro, Maria do Rosário Girão e Manuel Silva, revelam-se profundos conhecedores e amantes da língua portuguesa, que renovam a cada página, graças ao uso ou à recuperação de termos que os tempos, ou a incultura, deixaram cair ou apagaram da memória. Este livro é também isso: um repositório de termos que muitas vezes nos esquecemos de recordar, a fim de lhes dar uso e de lhes influir uma nova vida, pois, já dizia o velho Horácio (Arte Poética, vv. 70-71): “Muitos vocábulos, já desaparecidos, voltarão à vida, e muitos outros, agora em moda, desaparecerão, se o uso assim quiser”.

Concluindo:

Estamos perante um trabalho de excepcional riqueza informativa e crítica, perante uma obra feita de muitas obras, de inúmeras leituras e de múltiplas análises de extraordinária acribia crítica. Os seus autores não se furtaram nunca ao trabalho, duro mas reconfortante, de quem percorre caminhos pouco trilhados, enveredando por trazer ao conhecimento de muitos leitores obras e autores menos conhecidos da nossa literatura portuguesa e lusófona. É este o fruto de um projeto de vários anos, que reuniu informação da mais elevada qualidade, levado a cabo com muito entusiasmo e persistência. Assim se compreende que o último capítulo, intitulado “Navegar e Circum-navegar: Um verbo a conjugar”, tenha como epígrafe, perfeitamente ajustada, o aforismo latino “Absque sudore et labore nullum opus perfectum est” (p. 320).

Estamos, – sublinhe-se uma vez mais – perante uma obra de grande envergadura, e uma obra de referência para jovens investigadores que queiram trabalhar nesta área da literatura de raiz açoriana, desbravar outros caminhos e dar a conhecer outras obras e outros autores.

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