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Revista Diacrítica

Print version ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.3 Braga  2015

 

VÁRIA

Recuo ao mais côncavo vazio de juan josé millás – os 40 anos de cerbero son las sombras

Return to the deepest emptiness of juan josé millás – the 40th anniversary of cerbero son las sombras

 

Almerinda Maria do Rosário Pereira*

*Universidade de Évora, CEL (Centro de Estudos em Letras), Portugal.

almerindaportugal@gmail.com

 

RESUMO

À guisa de celebração dos 40 anos da aparição a lume de Cerbero son las sombras, romance inaugural da obra de Juan José Millás (Valencia, 1946), este artigo visa analisar a forma como o escritor, sendo então um jovem, patenteou a sua preocupação pela temática existencial, a partir de um género de estética do esvaziamento, esvaziamento este que seria necessário a um posterior preenchimento, dotado de outro colorido, e ao qual um Millás quase septuagenário nos viria a habituar. O recuo que aqui empreendemos procura o lado mais côncavo do escritor, através da descoberta do retalhamento do físico, que é também, e em simultâneo, dilaceração do espírito, até à aniquilação.

Palavras-chave: mutilação, amputação, morte, desumanização, imobilidade.

 

ABSTRACT

This article commemorates 40 years of literary career since the publication of Millás' Cerbero son las sombras, analyzing the way in which the writer, when he was young, revealed his concern with existential matters. This was projected through an aesthetics of emptying, that afterwards would require a filling, provided with a different colouring, process that the reader recognizes in the writing of Juan José Millás (born in Valencia, 1946), who now is reaching his seventies. Going back takes us to the writer's deepest side, the discovery of physical reduction, that is simultaneously spiritual decline and even complete obliteration.

Keywords: mutilation, amputation, death, dehumanization, immobility.

 

A novelística a que Juan José Millás[1] nos tem vindo a habituar mostra-nos um estilo narrativo arejado onde proliferam as personagens que desenham no rosto do leitor sorrisos de indelével cumplicidade: homens em miniatura de fato e gravata saindo dos bolsos do escritor pouco inspirado, frases que atuam como gente e têm problemas existenciais, seres fantasmais simulando tomar algo no café do bairro, sapatos com vida própria a esconderem-se debaixo da cama, moscas a despirem-se de forma sensual e a lembrar a sedutora Kate Moss. Este insólito elenco de personagens mostra a preocupação do escritor por um género de replaneamento urbano-existencial que muito tem contribuído para a execução do seu projeto literário. Neste repovoamento das geografias millasianas, ninguém deveria sentir-se só, porque há sempre um outro no qual possivelmente nos revemos, ainda que aparentemente pouco possamos ter em comum com as entidades em questão. Porém, nem sempre este Millás de escrita bem-humorada foi assim. O homem que hoje acrescenta e preenche é aquele que, no início da sua carreira, soube subtrair, esvaziar, como se só a partir do vazio mais côncavo fosse possível o repovoamento.

Transcorridos 40 anos sobre a edição da primeira obra publicada de Juan José Millás, Cerbero son las sombras (1975)[2], a ocasião revela-se-nos interessante para fazer um recuo a essa geografia vácua e árida a fim de nela encontrarmos, e contra qualquer evidência, o lugar da fecundação. A obra, toda ela redigida num registo epistolar, consiste num longo monólogo de um filho a seu pai, onde recorda um passado marcado pela fuga da família para Madrid e a sua estância numa casa-esconderijo habitada pelo medo. Ao mesmo tempo que reconstrói os momentos desse passado, a carta torna-se um pretexto para a reflexão, fazendo parte do processo de identificação do filho com a fracassada figura paterna. Mas a obra é também lugar do presente, onde o narrador, esse filho, se distrai, numa cave húmida alugada, a construir jaulas para criaturas prenhes, com caixas velhas de charutos, mantendo-as a salvo dos machos devoradores das suas crias.

Ao longo destas páginas procuraremos averiguar a forma como Millás desconstrói e despoja, até chegar a um género de ‘absoluto do vazio', um extremo feito de escuridão e de sombra, marcado pela mutilação, a amputação, a depressão e a morte. No rasto do que parece não ter conteúdo, encontraremos o eco de algo que orientará as nossas indagações no sentido de devolver ao oco o compacto, a partir da ideia de que somente passando pela experiência catártica do esvaziamento se poderá encontrar a legitimidade para seguir o caminho de regresso. Um regresso diferente da ida, contudo.

Quando Juan José Millás publicou Cerbero son las sombras tinha 29 anos e estava seguramente influenciado pelo Experimentalismo, um estilo literário que surgira no final da década de 60, mantendo-se até à chegada da Transição, e que era, a diversos níveis, uma rutura com um modo clássico de se fazer romance.[3] Não será alheio a este estilo, e muito menos ao próprio escritor, o Millás dos 29 como dos 69 anos, a preocupação pela introdução da dissertação de pendor existencialista, daí que ao conceber, na obra em apreço, a vida como uma fuga e um encobrimento permanentes, tenha colocado a tónica no lado absurdo e totalmente inútil da existência. O título da obra anuncia a angústia existencial, ao confinar-nos à guarda desse cão de três cabeças que a mitologia colocou à entrada do Hades.[4] Esta obra, com efeito, poderia bem ser uma descida aos infernos, mas é bem mais do que isso. É a história de uma perda total, até à indiferença.

1. Mutilação e amputação

A fuga da família protagonista da obra é um acontecimento que carece de coordenadas que nos permitam situá-la, com todo o rigor, num determinado momento histórico, e muito menos, numa determinada fase da vida do autor. Sabe-se, no entanto, que também ele efetuou, em família, aos seis anos de idade, esse trajeto, essa mudança, para a capital[5], e embora a obra não faça qualquer alusão à sua Valencia natal, entende-se que a referência ao “mar que abandonábamos” (Millás, 1975, p. 10) – e com esta correlação não pretendemos incorrer no risco da biographical fallacy – poderia eventualmente remeter para as recordações de um Millás, resgatadas dos seus seis anos, da época franquista. Nessa Espanha do pós-guerra, estes cenários migratórios consistiam autênticos e recorrentes cenários de escape à fome e ao desemprego. Como o nota Carlos Ardavín, a história desta família retrata a tragédia das famílias vencidas pela guerra civil espanhola. Com ele, mostramos também a nossa estupefação: “Lo singular del texto de Millás es la capacidad que despliega para transmitir este sentimento sin especificar las circunstancias históricas” (Ardavín, 1997, p. 80). Não há, pois, descrição de época, nem alusão precisa ao espaço: a casa tem um corredor como todas as casas terão na posterior obra de Millás, até a casa orgânica do nosso corpo (vd. Vuillequez, 1997). A cave alugada é feita da mesma humidade de todas as caves alugadas e o prelúdio de outras, mais de acordo com os tempos hedonistas que haveriam de vir: os hotéis, essas “moradas neutras” (Ayuso, 2001, p. 26) onde se refugiam muitas das personagens millasianas.

Madrid não é um terminal de viagem, é um esconderijo, um interregno a meio do percurso. Ora, é num espaço inóspito, atravessado por um corredor escuro e medonho, que as personagens se movem ao longo da obra, num ambiente de comunicabilidade frustrada. Se a comunicação entre os membros que estão do lado de dentro é débil, aquela que anseiam que aconteça com alguém do exterior é inexistente. O desespero começa aí. A desgraça vem de fora para dentro. Tudo começa quando o pai do narrador comparece a um encontro clandestino com alguém que deveria ajudar financeiramente a família, mas o encontro não chega a dar-se em virtude da ausência do outro. Desesperado, rouba dinheiro numa circunstância que não nos é explicada, escapa a uma perseguição e depois corta a orelha esquerda. A sua condição na família passa a ser a de enfermo que está à mercê do apoio da mulher e do filho. Daí a declaração deste último ao escrever na carta: “Un hijo que tiene que ayudar a su padre a suportar el sufrimiento es ya un hombre sin padre y sin hogar, y sin un punto de referencia en cuanto al desamparo” (Millás, 1975, p. 48).

A automutilação assume uma tonalidade, a nosso ver, sacrificial, quando num gesto de desespero ou de loucura, e por ver esgotadas as soluções, o pai como que expia a maldade do mundo de que é vítima, usando para tal o seu próprio corpo. Estaremos próximos desse Van Gogh suicidado pela sociedade, como o viu Artaud, aquele que, também ‘suicidado' por ela, afirmou: “Quem não cheira a bomba assada e a vertigem comprimida não é digno de estar vivo” (Artaud, 2004, p. 45). O pai do nosso narrador é esse homem da vertigem comprimida, o homem a que lhe falta o ponto de equilíbrio (e a orelha / ouvido atua eficazmente nessa simbologia), aquele que com o corte, como que se atira de repente para fora de si, e usamos o itálico agora em sintonia com Bataille[6], é em suma um homem esgotado, um homem rebentado. Por uns momentos, ele tem a liberdade total para não dissimular o que sente, porque a sua dor é mais gritante do que o silêncio que exige a sua condição de fugitivo. Só quando regressa da sua alienação, gemendo talvez por um milagre, é que volta a encobrir-se a custo, isto é, volta à sua condição de fugitivo: “(…) y allí te golpeaste hasta que la rabia ante tanta impotência se tornó en sangre y dolor físico. Cuando te volvió la razón, tu estado era tan penoso que te fue difícil regresar a casa sin llamar la atención de la gente” (Millás, 1975, pp. 66-67).

A orelha amputada do pai torna-se, na imaginação do filho, um pássaro sem asas. Ousamos ver nesta imagem um mau augúrio: depois do dilúvio, nenhuma pomba há de vir. Indicia-o também a ação que se sucede imediatamente depois. Com o dinheiro roubado, na sequência de um primeiro plano falhado, o pai pede ao filho que vá de táxi pedir ajuda a uma mulher que tinha sido sua amante, mas esta é uma empresa sem êxito; o adolescente não chega a falar com a mulher do nome a lembrar a Brest de Prévert[7], antes assiste à sua morte por atropelamento. O filho torna-se, de repente, um mensageiro disfuncional, tão estéril quanto a orelha morta de Van Gogh entregue num lenço a uma prostituta. A família está condenada a ser o pássaro sem asas de que a amputação paterna é o símbolo. É interessante verificar, no entanto, que este é o acidente necessário para que ela aguente o oco dos seus dias: mãe e filho juntam-se na sutura da ferida, cosendo como podem a orelha caída do doente, barbeiam-no, alimentam-no. E no meio destes rituais quotidianos, a mãe faz as suas aproximações ao filho, aproximações amorosas de mãe, embora por vezes calculistas.[8] O adolescente, porém, aproxima-se sobretudo de si mesmo, como se a ausência de corpo do mutilado viesse abrir espaço para a reflexão. A carta é o lado palpável das suas tergiversações, em todo o seu lirismo, em toda a sua plasticidade. Diz-se nela:

No hay soledad total si el agotamiento físico no es completo. Incluso pienso que ambos son la misma cosa bajo ropajes diferentes, pues es bien cierto que los dos conducen a la lenta y minuciosa destrucción del cuerpo que nos ha tocado en suerte con una maestría tal que hace sospechar al entendimiento que no hay forma posible de diálogo con nuestro propio ser que no esté basada en su mutilación. (Millás, 1975, p. 53)

O discurso epistolar, nascido da privação, do distanciamento, da carência, torna-se na voz de uma realidade niilista que encontra o seu eco na solidão absoluta de um poço feito de carne humana, ainda em busca de algum consolo através da memória e da construção gráfica dessa memória que, como veremos, terá os contornos de um epitáfio. Como afirma Ayuso (2001), “es la memoria el reducto de estos seres divididos, frustrados, desengañados. A ella acuden como refugio, como explicación de su actual situación, o para conjugar la realidad que los anega”. E acrescenta Contadini (2013, p. 39):

De hecho, la actividad de escritura, que muchos protagonistas ejecutan, es un asunto imprescindible porque se revela ejercicio vital, la única prueba de la propia existencia, un pasaje obligatorio que ellos recorren para no morir, como acontece con el protagonista de Cerbero son las sombras.

A escrita de carácter introspetivo, narrativa de um “eu” angustiado, acompanha o Millás da juventude até ao Millás dos nossos dias. O jovem filho, de Cerbero son las sombras, continuará a viver na pele dos protagonistas de Visión de ahogado (1977), esses herdeiros do medo dos seus progenitores? Será ele um outro Ramón, de El jardín vacío (1981), que vemos acocorado no túnel do seu passado para chegar a um lugar que, se não seria o inferno, teria os seus atributos? Ou será antes um Turis, esse aspirante a terrorista, de Letra Muerta (1984), que no disfarce do convento acaba por se encontrar? O certo é que em qualquer um destes primeiros romances – romances da Transição – se verifica um esforço de inteligibilidade por parte das personagens, para perceber a sua posição no mundo e em especial no contexto da Espanha da mudança, ainda ferida pelos monstros do passado. Diz-nos ainda Contadini (2013, p. 35): “El extravío de las identidades, la imposibilidad de reconocerse en lo que ha ocurrido, la dificultad de comunicar y la presencia de espacios angostos y de vacíos ahogantes son los rasgos más significativos de estos textos”.

A carta torna-se então poesia da dor, como a são também os diários e outros relatos de pendor intimista, bem como relatórios, ou até mesmo os romances que as personagens, elas próprias, vão escrevendo. Ultrapassados os tempos gelatinosos da Transição, outro t(r)emor persiste: o da sempiterna dúvida ontológica. Em El desorden de tu nombre (1987), Julio Orgaz, vê-se ora preso, ora salvo pela ficção que engendra ou rouba de outros – num género de “pugilato y armonización de los textos rivales” (Mainer, 2009, p. 32) – mas está longe já do desespero do filho de Cerbero son las sombras: ele não morre; mata, se assim tiver de ser. Também Elena Rincón, de La soledad era eso (1990a), se reinventa pela escrita, renascendo de um casamento fracassado e de um caroço que lhe cresce no corpo. Com a descoberta do diário da mãe já falecida, sintoniza-se com ela, ao mesmo tempo que acolhe com uma nova maturidade e um outro fôlego a chegada de um neto. Resolve-se assim o conflito geracional na esfera familiar, poderosa metáfora do que poderia estar já a passar-se na esfera da pátria. Em Volver a casa (1990b), Millás remata a sua Trilogía de la soledad com uma solução que, a nosso ver, não convence, perturbada que está ainda pelo peso da angústia perante a dúvida sobre quem realmente somos e qual o sentido da nossa vida. A trama é aparentemente simples: dois irmãos gémeos, realmente iguais (apenas os distingue um colar em ouro no pescoço de um deles), resolvem trocar de identidade na juventude, o que implica, além da troca de documentos, a tomada de posse de aspetos relacionados com a esfera laboral e com o âmbito matrimonial. Por volta dos 40 anos, Juan quer resgatar a sua identidade e voltar a ser José, marido de Laura e escritor de algum sucesso. O acordo entre os irmãos faz-se paulatinamente e sempre numa dialética indireta permeada pela carta. Quando Juan se transforma novamente em José, já não se sente como dono dessa identidade, a não ser quando usa uma máscara para dormir e se apresenta com ela na rua e nas entrevistas. Porém, não satisfeito com essa solução, decide trocar a sua identidade com a de um manequim de cera, que representa o seu próprio cadáver, o da mãe e o do irmão, provavelmente a mescla das três pessoas que efetivamente constituem o seu ser. É na imobilidade do boneco, peça de museu, isto é, na sua natureza morta – ou, pelo contrário, imperecível – que atinge a paz, e o seu corpo físico se une com o corpo astral.

Instaura-se assim o delírio millasiano dos anos 90 até à atualidade. O ‘eu', tal como o ‘outro', poderá de repente fundir-se num sapato, num robot, num gato, num rei mago, num indivíduo de outro sexo, no cônjuge, em Ella imagina (1994), ou numa boneca de um conto de fadas construída no Oriente, num filho adotado, num tonto, num ser invisível, num ser morto, num ser plural, em Tonto, muerto, bastardo e invisible (1995). O ‘eu' poderá ser uma mentira, cobrindo uma outra mentira e depois outra ainda, num enredo ficcional que recupera uma certa estética de boneca russa, em Dos mujeres en Praga (2002), ou ser uma criatura reduzida ao tamanho do inseto, em Lo que sé de los hombrecillos (2010). Mas poderá irmanar-se também com a volatilidade das palavras, ou com as próprias palavras, essas gentes filológicas de vontade própria que interagem com uma peixeira em La mujer loca (2014), e que já em 1998, com El orden alfabético, tinham feito a sua aparição como personagens de pleno poder, podendo interferir com a ordem da realidade e na essência de toda a existência.

Sobre este ‘repovoamento' (termo que utilizamos no início deste artigo) que tem por base um universo onírico, fantástico, muito haveria a indagar. Não é, todavia, o ‘preenchimento' o foco deste breve estudo, mas o ‘esvaziamento'. Com ele voltamos à ideia de mutilação e de amputação que dá título a este capítulo e que é condição necessária para criar o oco uterino indispensável na gestação de uma multitude de entidades, todas elas potenciais agentes de resolução do drama existencial.

Há na extensa obra de Millás uma presença não desprezável de personagens amputadas, vítimas de uma qualquer mutilação, ou diminuídas em algum sentido, que trazem consigo uma carga simbólica grande no que à questão do oco existencial diz respeito. Nessa cavidade, ganha relevo uma outra questão, que a comunicação epistolar por si só já enuncia: a questão da incomunicabilidade (vs. comunicabilidade). Exemplo disso é o conto “El brazo derecho de mi padre”, da coletânea Los objetos nos llaman, onde o narrador se sente incomodado por ver a manga vazia do braço amputado do pai, e onde este, dando-se conta de que mal tinha abraçado o filho ao longo da vida, tenta recuperar os abraços perdidos:

Cuando estábamos solos, me pedía que me acercara a él, me rodeaba el cuerpo con el brazo izquierdo y colocaba la manga derecha de la chaqueta de tal modo que pareciera que tenía un brazo dentro.

– Me arrepiento tanto de no haberte abrazado… – me decía él al oído, mientras yo intentaba librarme de él.

Pero no podía, no me era posible liberarme porque me sujetaba fuerte, fuerte, y no con el brazo izquierdo, como cabría suponer, sino con el que le faltaba, el derecho. Por ese brazo inexistente me sentía yo atrapado. Todavía lo estoy. (Millás, 2008, p. 60)

É esta a densidade do vazio – compreenda-se o paradoxo. O não-dito assume proporções marcantes no gesto escondido pela manga vazia, pela manga fantasma. É um não-dito feito de pudor e afeto, como aquele a que assistimos cada vez que o filho faz a barba ao pai, como aquele que um Michel Onfray, filósofo francês, tão bem soube poetizar num texto intitulado “Le corps de mon père”: “Dans le monde où mon enfance se deplia, la tendresse ne se disait pas. Ni par les mots, ni par les gestes” (Onfray, 2002). A fusão da entidade paterna com a do filho é não obstante evidente, quando este se atormenta com a dor do pai, como se a sentisse na própria pele. Diz-nos Millás: “(…) mamá comenzó a sollozar, y yo la consolé como un hijo, no porque sintiera deseos de hacerlo, sino porque de esta forma le daba más importancia a su llanto, colocando así en segundo plano tu propio dolor, que era el que de verdad me atormentaba” (Millás, 2011a, p. 67). E diz-nos Onfray (2002), no mesmo texto: “Je sentais dans ma propre chair sa fatigue, son épuisement, sa carcasse fombue”.

Millás junta no mesmo precipício pai e filho, e isso é-nos anunciado logo no primeiro parágrafo[9], como se a propensão para a queda no abismo fosse uma questão de genética. A incapacidade do pai de fazer com que a família possa empreender a fuga, e libertar-se da situação difícil na qual se encontra, transfere-se para o filho cujo destino se adivinha estéril:

Pues ahora ya es seguro que moriremos sin descendencia y que todos los miles de muertos que nos han precedido quedarán definitivamente enterrados, definitivamente muertos, sin un mal olvido con que alimentar el recuerdo. Entonces supe que para nosotros el futuro no sería jamás un cielo abierto, ni siquiera un mar de calamidades, sino más bien el único lugar posible desde el que la memoria pudiera trabajar, como en un pozo sin fondo, intentando sacar algún sentido del azar anterior. (Millás, 1975, p. 14)

O corpo mutilado do pai é, em suma, um corpo que – novo paradoxo – fecunda a esterilidade. É um corpo que provavelmente se cospe por dentro, como se no seu interior houvesse uma cuspideira, que ousamos chamar de ‘cuspideira-útero', a mesma cuspideira, que nunca se enche e nunca se esvazia, sugerida pelo transeunte com quem o filho fala, mais tarde, em dia de chuva. E isto acontece – explica-nos o filho que chora – porque as lágrimas, o suor e a urina assumem todos eles esse papel. É nesta superioridade dos restos “de los que el cuerpo se deshace después de un largo proceso selectivo” (Idem, 120), é nesta superioridade, dizíamos, que reside parte dessa poética do ‘desfazer', do ‘deixar levar-se', do ‘deixar ser'. Mas Millás escava ainda mais fundo quando nos confronta com o caso de Jacinto que analisaremos em seguida.

2. A morte escondida

Voltando à narração, façamos uma nova contextualização dos factos. A família em fuga é constituída pelo pai, pela mãe, o filho narrador, a pequena Rosa e Jacinto, portador de uma deficiência, aparentemente de foro psíquico, cujos contornos não são dados a conhecer ao leitor. Certa noite, Jacinto propõe ao irmão fugirem os dois, mas como não obtém qualquer resposta, desaparece sozinho de casa. Trata-se, porém, de uma falsa fuga porque vêm a encontrá-lo, ao terceiro dia do seu desaparecimento, tossindo debaixo da cama. Pai e mãe resolvem nunca mais voltar a falar sobre ele, na crença de que a dor posta em palavras agravaria a vergonha e o sofrimento. A mãe encerra-o num quarto escuro, onde só ela entra para o alimentar e assear das suas dejeções. O quarto de Jacinto passa a ser um mistério a meio daquele corredor numa casa que tem como anfitrião o medo. Certo dia, o narrador, ao ver a mãe adormecida, retira-lhe a chave, que guarda com ela, e abre a porta do quarto escuro e silencioso. É então que encontra o corpo de Jacinto num armário, com panos embebidos em colónia enchendo-lhe a boca, para embuçar o cheiro da decomposição.

Estamos perante dois cenários que acrescem informação ao tratamento do tema da subtração (do corpo e da mente), como forma de operacionalização do oco existencial. Primeiro, a diminuição mental da personagem; segundo, a diminuição física levada ao aniquilamento. Até que ponto a loucura de Jacinto é importante para o desenho da geografia desta particular família? Até que ponto é importante a sua morte?

A loucura de Jacinto será um pretexto para a confirmação da lucidez dos outros, como o pressupõe o narrador[10]? Não ser o que o outro é, ou ser o que o outro não é, eis talvez a forma mais simples de fazer uma análise sémica dos conceitos definitórios de uma identidade. Ser menos ou ser mais, em relação a algo, num contínuo a perder de vista. É num jogo similar a este, de oposições e gradações, que se define também esta família. O seu caráter fugitivo é absolutamente fundamental para uma determinada organização do mundo exterior: ela era tão necessária a essa ordem geral, como o delinquente para a lei que transgride, concluiu o narrador. Porém, não ser Jacinto seria não ser louco ou seria ser mais Jacinto, ser mais louco? Não sabemos em que circunstâncias morre, nem em que medida aquela mãe estaria implicada na morte, mas sabemos, sim, que a oculta. Ora, uma mãe nestes moldes estaria em que ponto do eixo a perder de vista?

Em El jardín vacío, estas questões voltam a ser postas em evidência, quando o industrial da fábrica de gelo oferece à tia Jorobita do narrador uma cadeira de rodas em troca de um favor: o assassinato do filho deficiente, o próprio. Olhada com um misto de compaixão e vergonha, a deficiência torna-se obstáculo aos que coabitam com ela, daí a sua ocultação:

Sin embargo, el hijo del industrial tenía además una deformidad física que había alterado la primitiva organización de su cuerpo, y que no le permitía un desenvolvimiento normal. (…) Entonces, y siempre con la idea de ocultarlo por vergüenza o por lástima, lo metió en una cama instalada en el recoveco que hay al fondo de la fábrica, y allí el cuerpo fue tomando una forma como apaisada, y en seguida comenzaron a salirle llagas. (Millás, 1981, p. 125)

Também neste romance encontramos uma casa em ruínas e a lembrança de um irmão morto, Gabrielín, vivendo nas paredes da casa, sob a forma de ruídos que só a velha mãe ouve. No exterior, o cheiro a cadáver por todo o lado e a mesma atmosfera de frio, miséria e clandestinidade. Percorrendo os labirintos da memória, Millás faz deste terceiro romance como que uma variação sobre o primeiro, desaguando num mesmo porto porque “la vida es un acto clandestino, sempre el ayer hipotecó un presente que hace aguas por todos lados” (Ayuso, 2001, p. 22).

A diminuição mental de Jacinto é também um anúncio da sua diminuição corpórea, isto é, da sua retração enquanto ser biológico. Entre uma e outra “diminuição”, a da mente e a do corpo, uma terceira se interpõe: a diminuição verbal, aquela que cala Jacinto mas, sobretudo, que silencia todos os membros da família. Pela diminuição da linguagem há o intento de diminuir também a realidade. A linguagem pode ser mágica, é sabido, mas não tanto como para operar um desaparecimento definito.[11] A realidade é sempre mais forte: chega em primeiro lugar, e vezes há em que é a última a ir embora. Não falar de Jacinto era aniquilá-lo como ser corpóreo e aniquilá-lo como ser que é o outro, mas nem o corpo morto é presença discreta, nem a memória dos que vivem é um mecanismo em ponto morto. Significa isto, em primeiro lugar, que havia um problema prático em relação a Jacinto que era urgente resolver: o de calar a sua orgânica em decomposição. Se o ritual quotidiano da ida da mãe ao quarto de Jacinto era eficaz na construção de uma determinada verosimilhança necessária à mentira criada por ela, por outro lado, este ritual tornava-se ineficaz no seu propósito primeiro, o de dar à boca do morto a colónia que lhe esconderia a podridão. O cheiro do cadáver começava a ser muito forte, como o comprovam os seguintes fragmentos:

Recorrimos todo el pasillo gastándonos bromas y diciendo tonterías, lo que no impedía un cierto olor a descomposición en las cercanías del cuarto de Jacinto. No pensé que mamá se hubiera olvidado de renovar la colonia, sino más bien que contra aquel olor ya no podía luchar ningún perfume. (Millás, 1975, p. 138)

El olor a cadáver se expande como el humo; penetra por el resquicio más oculto y se convierte al salir en una nube invisible que lo invade todo hasta encontrar otro resquicio. Lo que quería decir que de no tomar alguna medida de inmediato aquel olor alcanzaría la escalera y después comenzaría a penetrar por debajo de las puertas de las casas vecinas en un tiempo que ni siquiera me sería posible calcular en días. (Ibidem)

A compra do gesso através do qual se embutiria o cadáver num buraco qualquer da habitação, como um gato de Edgar Allan Poe, resolve o problema da questão, na sua versão corpórea, ao mesmo tempo que parece estabelecer uma ponte de entendimento, ou cumplicidade tácita, entre mãe e filho. Contudo, e em segundo lugar, havia ainda o problema de outro desaparecimento por efetuar; é que embora Jacinto já fosse um morto (morto para sempre num buraco tapado pelo gesso), ele ainda não estava morto na memória do irmão:

(…) a un vivo se le elimina con cierta facilidad, basta un buen golpe; pero desprenderse de un muerto es problemático, sobre todo si se albergan prejuicios sentimentales. (Idem, 111)

Poderíamos ver, não no Jacinto engessado, mas no irmão que o engessa, a estátua de que fala Michel Serres, outro filósofo francês da atualidade. Segundo ele, a estátua é a imobilidade do gesto, a estupefação. E dá-nos o exemplo do “Ravi de la crèche de Noël”, a personagem que se maravilha com o mistério da natividade. Serres afirma que quando observamos as estátuas de um presépio, nós mesmos nos convertemos numa estátua que se transporta para o interior da cena, por pura estupefação, por puro êxtase.[12] Ora, se bem que é Jacinto o imóvel, é o irmão que se converte em estátua, tal a sua admiração, perante a ideia de morte:

(…) dejando a un lado estas cuestiones prácticas, te digo, no había más remedio que ver en su muerte una liberación, y desde este punto de vista yo debía alegrarme por él. Es cierto que este tipo de liberación también estaba a mi alcance; la diferencia es que en el momento de pensar tales cosas yo podía elegir y mi hermano no. (Idem, 111-112)

O desejo de ser estátua – estátua de sangue – é, de resto, explicado pelo narrador, que sonhava poder dormir cada dia mais uma hora até dormir 24 horas. O sono eterno como salvação. Enquanto não atingisse esse patamar da eternidade, isto é, das 24 horas adormecidas, faria também exercícios durante a vigília. Aos poucos iria languidescendo os movimentos, subtraindo os gestos supérfluos, para poder ficar imobilizado num canto da sala um dia. Desprezo pela vida, ou necessidade de se converter num género de homem-mármore? E dizemos homem-mármore, como poderíamos dizer também homem-escrita. Explicamo-lo novamente com o apoio em Michel Serres, hábil na explanação do modo como o homem foi exteriorizando as suas funções para lá do território do seu corpo.[13] A escrita é um exemplo da exteriorização da capacidade humana da linguagem e também da sua memória. Ela começa por ganhar forma nos suportes manuscritos, depois nos da imprensa e finalmente nos informáticos. A longa carta do filho ao pai poderia inscrever-se no primeiro momento da exteriorização a que aludimos. Vemo-la manuscrita, em folhas de papel, mas o suporte poderia ser ainda mais primordial: o mármore. Uma carta-epitáfio. Mas epitáfio para o túmulo de quem? Talvez encontremos resposta nos seguintes excertos:

Querido padre: hoy renunciaría a todo lo que he escrito si estos papeles no fueron el único refugio de mi identidad. (…) De este modo crezco y conquisto mi muerte día a día. (Idem, 120)

(…) no creo que pudieras alcanzar, ni en cinco vidas que dedicaras a ese intento, la intensidad de mi tristeza, llena de temeroso desprecio hacia la institución aquella de la vida. (Idem, 139)

Somos levados a acreditar que a morte escondida de Jacinto é a morte escondida do irmão, o narrador, o autor da carta, o homem-estátua-de-sangue, aquele que diz sentir nele uma tristeza cósmica. O desejo de imobilidade é esse anseio de alcançar a paz, de não ter que fugir, de não ter de sentir mais nada. A depressão profunda, a que provoca a inércia total do corpo, é oportunidade para ele sentir em si a debilidade e a passividade física[14], esse cansaço que, em 1949, uma Simone de Beauvoir considerou poder atenuar o terror na perceção da morte: “La mort semble moins terrible quand on est fatigué”.

A personagem millasiana anseia, pois, por uma vida anestésica. Ora, a vida privada de sentidos é o cotejo mais possível que se pode ter com a morte. O narrador de Cerbero son las sombras entrega-se à sua mortalha com a mesma lassidão, decorrente do medo, com que Juan, de Volver a casa, se entrega. Relembramos que o protagonista resgata a sua identidade ao irmão, José, e que este facto o deixa num estado de confusão mental tal, que não sabe já quem é. No Museo de la Desesperación havia visto uma estátua feita em cera, oferecida pelo seu irmão. Reconhece-se nessa escultura suja e envelhecida. Também ele passaria um tempo sem tomar banho, para que o suor lhe engrossasse a pele, como um verniz protetor. Com o uso da máscara de dormir, poderia ainda transpirar mais e morrer um pouco todos os dias. No dia em que embute o colar no pescoço da escultura, inicia-se o seu processo de automutilação, mas é quando a corta aos pedaços e a leva para casa, que a ação de esquartejamento alcança uma amplitude trágica. A analogia com o estrangulador de Boston, de quem falam na televisão, sugere imagens acordes com a realidade do protagonista: “el cuerpo de Tony Curtis, vestido de blanco, se diluía en el blanco de la pared a medida que la cámara se alejaba. (…) se trataba de un cuerpo vaciado de toda iniciativa, de un molde en el que encajaban perfectamente todas las formas posibles del horror” (Millás, 1990b, p. 185). À ação do esquartejamento, levada a cabo pelo protagonista, segue-se uma outra: a de recompor o boneco para que este o pudesse substituir no espaço doméstico. Quanto a ele, assumiria o seu lugar no museu. A incrustação do colar na cera é o anúncio de que só encrustando o corpo inteiro seria possível à personagem apaziguar-se para sempre, esquecendo-se de si própria. Este desfecho para a personagem de Juan / José (interessante a coincidência com o apelido de Millás) encontra eco nas palavras de Irene Zoe Alameda (2009, p. 13):

La soledad del hombre, y su incapacidad para situarse de un modo airoso en el mundo en que le ha tocado vivir, es un descubrimiento mucho más crudo si se tiene en cuenta que las novelas de Millás parten de la seguridad de que Dios no existe. Las únicas vías para acceder a paréntesis temporales que liberen de tal peso son las de suspensión de los sentidos, ya sea en forma de olvido, mediante el sexo (…) o de sustancias narcóticas, como el tubo de optalidones (…) o las borracheras de coñac.

Em Cerbero son las sombras não há ainda lugar para a extravagância sexual dos romances posteriores, nem para o vício do álcool, ou dos ansiolíticos. O medo ainda não se deixa ‘hedonizar'. Estamos também ainda longe do divã do psicanalista, mas há lugar para a febre e uma cedência quase sem resistência para a pulsão de morte, fruto de uma condição desarmónica familiar que tem vindo a ser comummente associada à Carta ao Pai (1919), de Kafka. A personagem vai-se rarefazendo na sua componente moral, mas é o corpo que começa por dar sinal.

Arrancar uma orelha continuando tendo orelha, arrancar um corpo continuando tendo um corpo – são estas as ações que reduzimos ao símbolo. O vazio, não obstante carecer de matéria, continua a ter uma linha limítrofe por onde o humano tem ainda a trágica hipótese de se desfiar. Através dela, chegaremos ao esgoto do ser, à ratazana, ao abandono total.

3. A desumanização

Nova contextualização dos factos. O filho foge de casa e, à medida que se afasta, vai parando em bares, onde não resiste a chorar. Fá-lo no lugar onde se eliminam os restos de um corpo a desfazer-se, embora já não consiga verter lágrimas. Fora da cidade, encontra um bairro de casas pequenas, de gente pobre. É aí que aluga um quarto, num compartimento subterrâneo de uma vivenda. É um espaço cheio de humidade, onde se distrai a construir jaulas para criaturas prenhes – ratazanas, supomos – que ali aparecem em abundância, dando uns gritos horríveis. E enquanto as vigia, escreve a carta. De vez em quando, pica-as com um arame e observa-as lambendo as úlceras causadas pelas feridas daí decorrentes. É também aí que, lendo um jornal, recebe a notícia da apreensão dos seus pais e de Rosa. Procuram-no, agora, a ele e a Jacinto.

Estamos perante um homem esvaziado que vê na convivência com as ratazanas a oportunidade realmente anestésica de se tornar louco[15], de ser essa “não-pessoa” a que se referem Elza Ibrahim e Junia Vilhena (2014) ao abordarem a questão do louco em Descartes:

Segundo a lógica de Descartes (1641, citado por Marcondes, 2000), em sua obra Meditações Metafísicas, escrita e publicada pela primeira vez em 1641, é aquele que não pode pensar, ou, se pensar, não pode ser louco, sugerindo com isso que, enquanto o homem sadio questiona a si mesmo, o louco não o faz. O que significa afirmar, parafraseando Machado, que “a loucura é condição de impossibilidade do pensamento; o pensamento exclui a possibilidade da loucura” (1981: 61). A equação cartesiana parece anunciar que aquele que for considerado louco não é um sujeito: tratar-se-ia, portanto, de uma não-pessoa. A loucura passa a representar o negativo da razão ou o não-ser da razão; e o louco passa a ser tido como desarrazoado, um animal sem razão que deve, por esse motivo, ser asilado.

É a convivência com as ratazanas que desumaniza o narrador, que o deixa indiferente à voz dos dois homens que perguntam por ele à porteira, e que em breve o capturarão. As ratazanas, quais ratazanas de Günter Grass[16], parecem anunciar a catástrofe; não a catástrofe de um homem só, mas a catástrofe daquele que tem, como vimos, uma tristeza cósmica. É um holocausto. Estamos perante um homem vazado que se deita diagonalmente na cama como um ponteiro de um relógio anunciando o fim de qualquer coisa, um fim também ele cósmico, talvez, o fim da era humana. Não há deus que lhe valha. A ratazana anunciadora da catástrofe é também, por isso, aquele rato ruivo repugnante que se deixa pisar em plena avenida Copacabana, fazendo uma Clarice descer do seu êxtase para, indignada, dizer “Deus era bruto!”[17]

Se, por um lado, o nosso narrador parece simbolizar a humanidade sofredora, como o vimos, pela dimensão cósmica do seu sofrimento, por outro, ele é como a ratazana enjaulada pelas suas próprias mãos. A expressão “mamíferos como yo” irmana-o com o animal, e a assunção de que a sua realidade é tão precária quanto a da ratazana corrobora essa aproximação. Assistimos, na montagem de toda esta situação “narrador / ratazanas”, ao que José-Carlos Mainer considera ser “una mise en abîme de su proprio mundo interior que conduce inexorablemente a la repetición, al cierre de un círculo” nascido da relação amor-ódio que havia visto entre os seus pais (Mainer, 2009, p. 35).

Em El jardín vacío, a dimensão animal da personagem, aquela que leva uma ‘vida de cão' é igualmente conseguida com o cotejo com o animal, sempre que a miserável personagem canina aparece para emoldurar uma realidade atroz. O excerto que transcrevemos mostra a impossibilidade de sobrevivência de tais personagens, e é com uma nota de quem quer estar no lugar do outro que lemos o comentário do narrador, ao dizer que pelo menos eles, os cães, morrem sem arrependimento:

La muerte de los perros solía pasar inadvertida. Había pocos y acostumbraban a morir como perros: sin señales de arrepentimiento y lejos del barrio donde habían encontrado un asilo casual, una condena atenuada. Venían del norte en grupos de nueve o diez, atraídos casi siempre por una hembra en celo. Algunos se ahogaban al atravesar el Canalillo; otros se daban la vuelta al divisar el barrio (…). Al principio no tenían más enemigos que el hambre y las ratas. Con el hambre podían llegar a mantener una relación soportable si, a falta de una casa fija, conseguían tomar como propia una calle entera. Con las ratas no alcanzaron jamás una paz duradera, ni siquiera una guerra lo suficientemente abierta como para desembocar en un conflicto estable. Tratándose de una polémica territorial, prevalecieron las ratas, que, además de discutir la superficie a los perros, poseían para ellas solas el subsuelo. (Millás, 1981, p. 139)

As ratazanas, como donas de uma espécie de‘inframundo' que é o subsolo, continuam a nortear o nosso narrador na sua descida aos infernos. As frases finais, de densidade goyesca, acentuam o paralelo entre as duas identidades:

(…) las hembras cogen a sus pequeños entre las patas delanteras y se los van comiendo lentamente. Primero la cabeza, luego el resto de esa pequeña realidad lampiña, ciega, tan precaria como esta realidad algo más grande que soy yo, que en seguida voy a ser atrapado por las redes de quienes me persiguen. (Millás, 1975, p. 150)

A cena da devoração das crias, ato animal mas também humano por analogia, é ainda transversal ao patamar dos deuses, se recorrermos à figura de um Saturno devorando os próprios filhos. Nenhuma cena, a nossa ver, se presta melhor à ilustração do que pode ser a ideia do “esvaziamento total”. O narrador está pronto para também ele ser devorado, não pelos seus progenitores[18], mas por uma determinada entidade: dois homens, que são seguramente os representantes do leão, rei da selva, como se diz.

A resignação foi sendo construída à medida que o esvaziamento se foi operando. O trágico ganhou assento no vazio do filho, como se não pudesse escapar do destino que coube em sorte a seu pai: “Pero así somos, padre, caminamos hacia nuestros errores como la víctima hacia su asesino, hipnotizados por el amor a lo terrible” (Idem,100-101). Nesta fusão pai / filho, por intermeio de um terceiro corpo que é a carta, vemos possibilidade de ilustração das palavras de Mijail Bajtín quando refere, em Estética de la creación verbal, o seguinte: “Ser significa comunicarse. Ser significa ser para otro y a través del otro ser para sí mismo” (apud Ardavín, 1997). Vemos aqui a união de dois vazios, a união de duas solidões condenadas, o que nos permite afirmar que quando um eu se desumaniza, o outro eu, que é um tu igual, também.

A carta, esse terceiro corpo a que aludimos, alimenta-se dos outros dois corpos que atingiram as margens do esgoto existencial, de que as ratazanas são as fiéis representantes no exercício das suas disputas diárias, na gula perante o sabor das feridas, no comprazimento na devoração das crias que ainda não abriram os olhos para o mundo. Ser comido é a operação do desaparecimento. Haverá algo depois disso?

Entre a ação de “comer” e a de “descomer” (o termo não é nosso)[19], isto é, entre a ação da ingestão e do resultado final da digestão, encontramos uma vaga ideia de eterno retorno que, a determinado momento, parece trazer alguma esperança ao narrador. Tal acontece num momento anterior à descoberta do cadáver do irmão, em que sente que este ainda se pode curar, que a fuga será lograda, que o seu amor imaginado possa vir a ser algo real e que a cidade se cumpra renascendo todos os dias do seu húmus, do que lhe sobra:

Bastaría, me dije, con dar un paseo, y sentir la madrugada en el fondo del bolsillo para que todo volviera a la normalidad (…).Entretanto las calles se abrían a otras calles que a la dura luz del amanecer me mostraban su corazón de cáscara de plátano y sus vísceras alimentadas de toda aquella suciedad que las necesidades humanas fabrican día a día, y que los traperos comenzaban a cargar en sus carros para venderlo al día siguiente, o para abonar tres palmos de tierra, de manera que se cumplieron así las leyes del eterno retorno, cuyo proceso era simplificado de un modo notable por algún perro o niño famélico de la familia traperil al comer directamente de los grasientos cubos de basura. (Idem, 58)

Mas a esperança dissipa-se, porque na verdade já nada sobra. Só um corpo deitado na diagonal, qual um ponteiro de relógio visto de cima e cujo movimento alguém detém, depois do último suspiro daquele que morre. É um corpo enjaulado, é um corpo-ataúde, perfeitamente desumanizado, e até mesmo ‘desanimalizado' (isto é, e em suma, ‘desvitalizado'), que passa a ser um objeto, como um Juan / José, de Volver a casa, entregando-se ao Museo de la Desesperación, ou, ainda, como um número Três[20], de Números pares, impares e idiotas (2001), que, depois de perseguido no país dos números ímpares, na qualidade de Quatro, é mutilado, e volta ao seu próprio país, o dos número pares, onde é morto e dissecado, por ter a aparência de um Três, passando o seu cadáver a ser exposto no Museo de los horrores. Neste conto, passível de ser lido por uma criança de oito anos, como no-lo informa a contracapa do livro onde se encontra, encontramos a ideia de desajuste do homem em relação ao mundo em que se move, de não pertença a nenhuma das suas frações. O número Quatro não tem lugar no país dos ímpares, nem no país dos pares, quando a ele regressa amputado, porque os números idiotas assim o deliberaram. “La gente va a verlo y se espanta sin saber que al contemplar al 3 se están mirando a sí mismos” (Millás, 2001, p. 14). Ora, a personagem desajustada é condenada à mesma materialidade das coisas inertes e a ficar presa numa condição de clausura, pelo menos aos olhos daqueles que só percecionam uma realidade, com uma única porta fechada, e não descortinam aquela cheia de “huecos”, “agujeros” o “ranuras”. Um homem nestes moldes, confrontado com este grau de condenação dos seus pares, poderia bem ser um homem-caixa.[21]

Conclusões

Não obstante o seu hermetismo, Cerbero son las sombras cumpre, com uma maturidade inusitada num autor tão jovem, a sua função inaugural de todo um edifício literário construído ao longo de 40 anos, uma obra que, partindo de uma mesma matriz, nos lança nos estranhos labirintos da aventura existencial. Se no início temos acesso a uma novelística mais sombria, ainda muito ancorada às memórias de um passado recente (o da Espanha franquista da infância do escritor, ainda a recompor-se da guerra), à medida que descobrimos a obra de Millás, deparamo-nos com a inclusão do onírico e do fantástico, chegando a um colorido bem-humorado que não teve assento nas primeiras publicações. O tempo, esse, já não é o daquela Espanha que acabamos de colocar entre parêntesis, porque as questões apresentadas se movem na esfera da intemporalidade, numa geografia que não é necessariamente espanhola ou peninsular, mas humana.

Nessa poesia do esvaziamento, movimento, no nosso ponto de vista, necessário para que o preenchimento possa ocorrer, Millás desmonta, desconstrói, desfaz, amputa, priva de corpo, para, num momento posterior, ocupar o lugar vazio, de forma a melhor chegar a um género de corpo original. Todavia não se apurou se é o corpo com que nascemos esse lugar original, ou o corpo com que crescemos e amadurecemos, ou ainda o corpo que nos abandona depois de um misericordioso fechar de pálpebras feito pelas mãos dos nossos filhos.[22] Talvez seja o corpo que enferma, que se extasia na febre e na doença, ou na violência de ser atirado, uma e outra vez, contra as paredes da realidade. Talvez seja o corpo do outro, aquele que está próximo de nós num determinado eixo que aqui qualificámos de ‘a perder de vista'. Pode ser também um outro longínquo, daí que Millás não se iniba de fazer chegar às suas páginas as mais variadas criaturas, do inseto ao “hombrecillo” (Millás, 2010), passando pelas existências fantasmais e as matérias inertes repentinamente dotadas de vida.

No final da nossa análise, voltemos ao Millás de antes deste ‘repovoamento', para resumirmos em traços largos o processo de subtração que vai levando a cabo até chegar ao vazio. Vimos como, nesta simbólica do esquartejamento, a retração do físico foi acontecendo à medida da degradação do espírito. Primeiro a orelha mutilada, símbolo do desequilíbrio, da vertigem, da necessidade de lançar para fora de si a frustração e a dor. Segundo, o encerramento da deficiência e da morte no quarto escuro, isto é, da pequenez[23] e da decomposição corpórea, respetivamente. Terceiro, a identificação com criaturas de esgoto encarceradas e o vislumbrar do cenário da devoração saturniana. Só nesta fase, por analogia com a cria comida pela mãe, o corpo desparece por completo e o espírito se entrega à evidência de que não há solução possível para os problemas que se colocam à existência da personagem tornada oca. Vimos também como o narrador adolescente, na sequência dessas três etapas se torna homem: é o homem que faz a barba ao pai, que engessa o irmão e que escreve uma carta cheia de notas reflexivas sobre as suas memórias. É, em suma, o homem-estátua-de-sangue mas também o homem-lápide, o homem estupefacto perante uma realidade que o torna imóvel, o homem que se deixa atrair pela “pulsão de morte” (Freud, 1920). É, em suma, o homem-ataúde, o homem-nada.

Aqui reside a fecundidade deste romance que inaugura o edifício erguido por Millás sem projeto prévio: nessa intenção de arrumar os fantasmas do passado, para dar lugar a um novo mundo, mas com as velhas questões de sempre. As sombras contidas no título convidam-nos a sair da caverna platónica, onde a negatividade do homem se deixa petrificar e morrer, para descobrir novas perspetivas e revitalizar a nossa perceção das coisas e das situações. Cerbero son las sombras é, neste sentido, um trampolim que expulsa o movimento, mas que o devolve também ao seu epicentro. As personagens millasianas, com efeito, parecem não conseguir libertar-se da força gravitacional contida nos seus medos, na sua sensação de estranhamento do mundo, na sua condição de bastardia ou de orfandade. Ora, este primeiro romance contém já os ingredientes que viríamos a encontrar na produção narrativa posterior de Millás, e que a seguinte síntese coloca em evidência:

En la primera novela de Juan José Millás, Cerbero son las sombras, observamos ya algunos de los aspectos más notables de su narrativa. Entre otras, el peso de la adolescencia, la soledad y las relaciones familiares, aquí con el padre, hechas de exceso y de vacío. Asimismo, un tratamiento que oscila entre la novela de horror y la policiaca, como expresión de búsqueda, de huida, de miedo y de angustia, sentimientos dominantes e expresados somáticamente. (Ródenas, 2009, p. 52)

O filho de Cerbero son las sombras é como um pícaro que tenta escapar a um destino fatal condicionado pelo seu passado familiar. De resto, como o verificou Zoe Alameda (2009), muitas das personagens millasianas contêm rasgos dessa figura saída do Siglo de Oro espanhol. É fácil, da nossa parte, também o verificarmos, se tomarmos em conta o recurso de Millás à inclusão de narrativas em primeira pessoa, ao delineamento da ideia do fracasso como condição a priori da existência, à exposição de um sentimento de orfandade das personagens, ou a uma estrutura itinerante, que chega a ser labiríntica e repleta de esconderijos. Não há, todavia, em Cerbero, rasgos do humor da picaresca, mas o humor negro da mais recente produção literária, eivada de certo naturalismo, poderia encontrar nela um ponto de tangência.

A busca da identidade começa, em Millás, nesta longa carta, que vai sulcando o caminho de 40 anos de trabalho do escritor. Esvaziando aqui e além, experimentado a intermitência de estar vivo e de estar morto, esse trabalho fala por si, como se houvesse nele intento de chegar a um género de grau zero[24] que tivesse o mesmo conforto de um útero do qual nunca se nascesse.

Referências

Obras de Juan José Millás

(1975). Cerbero son las sombras. Barcelona: Seix Barral, 2011.

(1977). Visión de ahogado. Barcelona: Seix Barral, 2013.         [ Links ]

(1981). El jardín vacío. Barcelona: Seix Barral, 2011.         [ Links ]

(1984). Letra muerta. Barcelona: Seix Barral, 2011.         [ Links ]

(1987). El desorden de tu nombre. Barcelona. Seix Barral, 2012.         [ Links ]

(1990a). La soledad era eso. Barcelona. Seix Barral, 2011.         [ Links ]

(1990b). Volver a casa. Barcelona. Seix Barral, 2013.         [ Links ]

(1994). Ella imagina. Barcelona. Seix Barral, 2012.         [ Links ]

(1995). Tonto, muerto, bastardo e invisible. Madrid: Santillana, 2010.         [ Links ]

(1998). El orden alfabético. Barcelona: Seix Barral, 2012.         [ Links ]

(2000). Cuerpo y prótesis. Madrid: Santillana, 2009.         [ Links ]

(2001). Números pares, impares e idiotas. Madrid: Ediciones SM, 2009.         [ Links ]

(2002). Dos mujeres en Praga. Madrid: Espasa Calpe S.A, 2007.         [ Links ]

(2008). Los objetos nos llaman. Barcelona: Seix Barral.         [ Links ]

(2010). Lo que sé de los hombrecillos. Barcelona: Seix Barral.         [ Links ]

(2011). Articuentos completos. Barcelona: Seix Barral.         [ Links ]

(2014). La mujer loca. Barcelona: Seix Barral.         [ Links ]

 

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[Recebido em 30 de abril de 2015 e aceite para publicação em 8 de julho de 2015]

 

Notas

[1] Juan José Millás nasceu em Valencia, em 1946. Começou a publicar em 1975. Ganhou, com a obra aqui em apreço, o Prémio Sésamo, em 1975, ao qual vieram a somar-se outros. É autor de romances, novelas, contos e articuentos. Desenvolve em paralelo uma atividade jornalística profícua, assinando todas as semanas uma coluna de opinião no jornal El País.

[2] Utilizamos as edições indicadas na bibliografia: Obras de Juan José Millás.

[3] A dispensa de qualquer apoio nas tradicionais categorias da narrativa e a valorização do discurso, da forma, face ao argumento são talvez as características mais relevantes deste estilo.

[4] Na época houve ocasiões em que a imprensa corrigia o título, de modo que em vez de “cerbero” chegou a figurar a palavra “cerebro”. A paronímia que se estabelece entre estas palavras não deixa de ser interessante quando, uma vez mais, comparando este primeiro romance com os posteriores, se verifica haver nele uma maior exigência para com a capacidade recetora no exercício da sua descodificação. É uma obra cerebral, mais hermética.

[5] A família Millás foi viver para um cinzento e pobre bairro periférico de Madrid chamado Prosperidad.

[6] “O sacrificante é livre (…) uma vez que ao identificar-se continuamente com a vítima é livre de vomitar o seu próprio ser, tal como tinha vomitado um pedaço de si próprio ou um touro: quer dizer, livre (…) de se atirar de repente para fora de si.” (Bataille, 2007, pp. 108-109)

[7] A comparação é nossa, não de Millás. Referimo-nos ao poema “Barbara” dando conta de um cenário devastado pela Segunda Guerra Mundial.

[8] Sente-se nova aproximação à biografia de Millás, já homem maduro, amante dos divãs do psicanalista, talvez por nunca ter entendido totalmente a sua mãe, muitas vezes acometida de ‘ganas de bronca', uma personagem mais dominante, em relação à figura calma do pai, como se deduz essencialmente da leitura dos seus contos e articuentos.

[9] “Querido padre: Es posible que en el fondo tu problema, como el mío, no haya sido más que un problema de soledad. Y, sobre todo, de no haber encontrado el punto medio entre la soledad y los otros. Hasta ahora cada cual ha venido ocultándolo a su manera, aunque las circunstancias no nos hayan facilitado mucho esta labor.” (Millás, 1975, p. 14)

[10] “En estas ocasiones acababa sintiendo que el atrapado era yo, y que Jacinto vigilaba mis reacciones desde su silencio. Entonces me ponía nervioso y comprendía que lo único que me impulsaba a hacer estas cosas era el afán de que mi hermano confirmase mi cordura, y en ese afán, precisamente, perdía la razón, como se desprende de mis actuaciones ante aquella puerta negra por la oscuridad del ambiente y de mis sentidos.” (Idem, 91)

[11] Colocamos de parte, evidentemente, a linguagem de El orden alfabético (1998) que, extinguindo-se, condena à inexistência a própria realidade.

[12] Veja-se a emissão de 12/01/2008 do programa V.I.P., do canal KTO, minuto 20:15 (Serres, 2008).

[13] O filósofo oferece-nos vários exemplos: os dentes caninos projetaram-se na faca; o antebraço, no martelo; as rotações do joelho e da anca, na roda; a memória e a linguagem, na escrita (tendo esta passado por três revoluções: a escrita manuscrita, a imprensa e a informática). Veja-se a conferência proferida na L'INRIA, por ocasião do 40º aniversário desta instituição (Serres, 2007).

[14] “No obstante, la depresión también tenía sus ventajas, porque le daba pereza y debilidad a mi cuerpo, lo que me sumergía en un estado de pasividad física, que era otra forma de defensa contra las acechanzas de mamá.” (Millas, 1975, p. 120)

[15] A admiração pela morte supra enunciada verifica-se também na admiração pela loucura. Jacinto reúne as duas situações. O irmão, nenhuma; daí que tentar uma ou outra via para escapar da sua miséria existencial seja para ele um caminho a ter em conta.

[16] Referimo-nos à sua obra A Ratazana, de 1986.

[17] Referimo-nos ao conto “Perdoando Deus”, de Clarice Lispector, de 1970.

[18] Corrigimos: os progenitores, como incapazes de salvar a família da fuga, acabam por ser os seus próprios devoradores. Diz-nos o filho: “Pero ya ves cómo los ciclos se cumplen y las generaciones se suceden sin que llegue a nuestros sentidos otro olor que sea el de la descomposición misma de la ruina que nos viene trabajando y a la que incluso hemos llegado a amar de cierta forma, pues, si no, cómo explicaríamos el cariño que siento por vosotros, que no sois sino vestigios de un modo de vida triste y ruin como sus resultados y asentado sobre la debilidad y el fracaso de cada uno de sus miembros (…).” (Millás, 1975, p. 81)

[19] É Valentín Nuñez Rivera (2010) que a esse termo se refere num ensaio sobre escatologia e a picaresca.

[20] Acreditamos não ser casual a escolha do número 3, sempre enigmático. Recordamos uma passagem de Volver a casa, relativa à escultura em cera: “A partir de ahora, el cadáver de cera representará mi pasado, pero quizá comience a representar tu futuro. O sea, que en el muñeco ese estamos los dos, los tres, si incluimos a mamá, que ya está muerta. Como en el Misterio de la Trinidad: tres personas en una (Millás, 1990b, pp. 200-201).

[21] A este propósito, sugerimos a leitura de Kunz (2009).

[22] Aludimos a uma passagem do conto “Manos”, da coletânea Articuentos completos (Millás, 2011).

[23] O deficiente é o diminuído de algo, o parvus latino, isto é, aquele que é pequeno. Do étimo latino surge o nosso termo ‘parvo'.

[24] A este propósito, citamos uma passagem de Número pares, impares e idiotas: “ (…) y se transformó en cero. Curiosamente, la sensación de pánico desapareció entonces. La idea que todavía tenía de sí mismo de ser un 8 parecía dormir dentro de un espacio confortable, blando, cálido, redondo como el vientre de una madre (2001, pp. 89-90). Citamos também uma passagem do conto “Felicidades”: “(…) imaginé que era chino y que no me había permitido nacer. La idea me relajó (…).” (2000, p. 26)

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