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Revista Diacrítica

Print version ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.3 Braga  2015

 

DOSSIER PRÉMIOS LITERÁRIOS. O PODER DAS NARRATIVAS E /OU AS NARRATIVAS DO PODER

Introdução

 

Ana Gabriela Macedo

*Coordenadora do Projecto Prémios Literários, O Poder das Narrativas e /ou as Narrativas do Poder.

gabrielam@ilch.uminho.pt

 

“… o escritor faz-se como todas as pessoas se fazem: olhando o mundo como se fosse pela primeira vez e descobrindo no Tempo algo que pode ainda ser estreado”

(Mia Couto, “Quando me fiz escritor?”, Granta 4, 2014, p.81).

O presente Dossier que integra o n. 29.3 da Revista Diacrítica editada pelo Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, inclui três dos textos apresentados pelos respectivos autores num painel que teve lugar na XVI edição do Festival Correntes d'Escritas da Póvoa de Varzim. Este painel, precisamente intituladoPrémios Literários. O Poder das Narrativas e /ou as Narrativas do Poder, foi organizado no âmbito de um projecto de investigação científica sediado no Centro de Estudos Humanísticos, com o apoio e a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian. Apraz-nos desde logo salientar esta pouco usual e a nosso ver crucial relação de cumplicidade entre a academia, no caso a Universidade do Minho e a sociedade civil através de um evento cultural que tem assumido um papel tão significativo local e nacionalmente, como o Festival Correntes d'Escritas da Póvoa de Varzim.

A nosso ver a Universidade só tem futuro se souber estabelecer sinergias vivas com a sociedade civil e se for capaz de criar redes de conhecimento, de debate e de reflexão para além dos seus próprios muros. Como tal, e desde logo, o nosso profundo reconhecimento à Comissão organizadora do Correntes d'Escritas (um evento que vem milagrosamente crescendo todos os anos!), o Dr. Luís Diamantino, Vereador do pelouro da Cultura da Câmara Municipal da Povoa de Varzim e a Dr.a Manuela Ribeiro, que desde o primeiro momento, num caloroso dia de Julho, nos recebeu, não menos calorosamente, nas ainda recentíssimas instalações do Teatro Garrett, na Póvoa.

Agradecemos vivamente a disponibilidade de todos os intervenientes no nosso painel (Ana Paula Tavares, Ana Luísa Amaral, Inês Pedrosa, Isabel Pires de Lima, Germano Almeida, Manuel Jorge Marmelo), e a generosidade com que acolheram a nossa proposta de reflexão conjunta sobre o significado dos Prémios Literários e o seu impacto múltiplo, desde logo no próprio autor/a, na leitura da sua obra, na sua obra por haver ou porvir, no mercado da edição e da tradução, na formação e transformação do cânone literário, na criação do bestseller e nas feiras internacionais do livro, enfim, reflectindo sobre o prestígio que o prémio literário tem, quer queiramos, quer não, e as várias malhas que o tecem.

Dito de outro modo, e tal como simbolicamente dito no título do nosso projecto e deste painel: Os Prémios Literários entre o Poder das Narrativas e as Narrativas do Poder.

Por motivos diversos são apenas três os textos destas intervenções editados neste Dossier. Decidimos assim juntar a estes um outro texto, de índole e formato algo diferente, da autoria de Nazir Ahmed Can, porém cujo conteúdo analítico se constrói em total sintonia com o tema proposto à reflexão e lhe acrescenta um estudo de caso que muito enriquece a reflexão global.

A anteceder ainda a apresentação dos textos contidos neste Dossier, apenas uma breve, algo crua e obviamente polémica, nota historiográfica.

Na cerimónia de atribuiçãodosPrémios Literários pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) a 21 de Fevereiro de 1935, a qual foi presidida pelo então Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, refere o mesmo no seu discurso de entrega dos Prémios, e que figura no volume I dos seus Discursos [1] como “pedaços de prosa que foram ditos”, e que de seguida transcrevo (ênfase nosso):

“Os princípios morais que estão na base deste movimento reformador [referindo-se ao Estado Novo] impõem à actividade mental e às produções da inteligência e sensibilidade dos portugueses certas limitações, e suponho deverem mesmo traçar-lhes algumas directrizes”. (p.XX)

(…) “o amoralismo e a arte pela arte, frutos lindos de ver-se mas inaproveitáveis ou nocivos”. (p. XXII)

E continua no seu discurso o então Presidente do Conselho:

(...) “para elevar, robustecer, engrandecer as nações é preciso alimentar na alma colectiva as grandes certezas e contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos, costumes morigerados.” (p. XXIII)

“É impossível nesta concepção de vida e da sociedade, a indiferença pela formação mental e moral do escritor ou do artista e pelo carácter da sua obra; é impossível valer socialmente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa como o que desmoraliza, os criadores de energias cívicas ou morais e os sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência.” (p. XXIII)

(...) neste momento histórico em que determinados objectivos foram propostos à vontade nacional, não há remédio senão levar às últimas consequências as bases ideológicas sobre as quais se constrói o novo Portugal. (...) E se por vontade de tal estado de consciência se vier a escrever menos ...” (p.XXIV).

Bom, posto isto à laia de Introdução, parece-nos que a questão dos Prémios Literários, o seu impacto nacional e internacional, os parâmetros que os regem, o seu reflexo no mercado e nas práticas editoriais e de tradução, são sim um fenómeno literário, mas também cultural, social e político indubitavelmente controverso e contíguo ao Poder das Narrativas e às Narrativas do Poder.

No seu texto, intitulado “A Verdade dos Prémios Literários: o Poder das Narrativas e /ou As Narrativas do Poder”, Ana Luísa Amaral começa por referir que irá tratar de “prémios e poesia”. Argumenta a autora que os prémios literários não são, em si mesmos, “narrativas do poder”, mas sim as circunstâncias que os enquadram, as quais têm a ver, nomeadamente, com a “legitimação do gosto”. Analisa depois a autora exemplos vários de prémios que se inscrevem em “narrativas de contra-poder”, caso, entre outros, da poeta americana Adrienne Rich, ao recusar a “National Medal for the Arts”, o mais alto galardão americano, como um símbolo da sua crítica severa à administração Clinton.

Germano Almeida, no texto “Acerca dos Prémios Literários”, analisa no seu jeito irónico e satírico aquilo que considera um tabu digno de nota na questão dos Prémios: a questão pecuniária. Reflexão esta que, sendo necessariamente “contra a corrente”, coloca uma importante questão raramente colocada e, muitas vezes, hipocritamente escamoteada. A questão do “valor económico” em que se traduz o “valor literário e cultural” dos Prémios, mais ainda quando se trata do Prémio Nobel, não é de facto menor. Daí a importância igualmente assinalável dos escritores que recusam os Prémios. Germano Almeida refere entre outros a recusa de J. P. Sarte do Nobel, a de Luandino Vieira, do Prémio Camões, a de Herberto Hélder do Prémio Pessoa, com fundamentos político-ideológicos.

A reflexão de Isabel Pires de Lima, “Não há prémios puros. E por que haveria de haver?”, enuncia pragmaticamente uma série de questões em torno da presente “proliferação de prémios literários”, as quais a autora equaciona, propondo-nos que “o prémio literário distingue e aponta seres distintos, discriminando positivamente”.

Por fim, e como se disse anteriormente, num registo formal distinto, Nazir Can no ensaio “Doxas, paradoxos e horizontes: o circuito secundário da poesia moçambicana em discussão”, texto que foi apresentado na conferência realizada no âmbito deste projecto na Universidade do Minho em 2-3 de Julho de 2015, entretece um diálogo teórico que consideramos fértil com as reflexões anteriores, acrescentando ao tema em debate novas indagações e perspectivas críticas. O autor propõe-nos um estudo de caso sobre “a proliferação de concurss literários dirigidos a iniciantes” presentemente, em Moçambique. Este instigante estudo reflecte sobre os dois grandes circuitos vigentes: o “campo – espaço constituído por escritores legitimados”, e o “símile-campo – espaço periférico mais ou menos desprestigiado pela institução literária. O estudo das relações entre “língua, sociedade e institucionalização” que este texto nos propõe, concretiza, a nosso ver, muitas dos postulados, indagações e inquietações múltiplas sugeridas pelos autores presentes no painel havido no Festival Correntes d'Escritas em Fevereiro de 2015, no âmbito deste projecto de investigação.

Uma palavra final de profundo agradecimento a todos os que contribuiram para a concretização deste vivo debate e desta reflexão conjunta: os escritores, os membros do projecto, particularmente a Joana Passos e a Elena Brugioni, fundamentais em todo este processo, os membros do grupo de pesquisa GAPS [Género, Arte e Estudos Pós-Coloniais] pertencente ao Centro de Estudos Humanísticos, o Director da linha temática de Literatura, Orlando Grossegesse, a organização do Correntes d'Escritas e, last but not least, a Fundação Calouste Gulbenkian que acreditou neste projecto e o financiou, oferecendo-nos uma salutar “luz ao fundo do túnel” nestes tempos sombrios para a investigação científica nas Humanidades.

Braga, 15 de Setembro 2015

 

Notas

[1] António Oliveira Salazar, Discursos I (1928-1934), Coimbra Editora Ltd., 1946 (p. XV).

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