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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.2 Braga  2015

 

RECENSÕES

Symbolon III – Paz e Concórdia, Belmiro Fernandes Pereira e Jorge Deserto (orgs.), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014; 94 pp. Symbolon IV – Medo e Esperança, Belmiro Fernandes Pereira e Ana Ferreira (orgs.), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014; 114 pp.

 

Virgínia Soares Pereira*

*Universidade do Minho, CEHUM, Portugal.

virginia.soarespereira@gmail.com

 

São várias as formas de revisitar o passado clássico. Quando fazemos essa visita guiados pela pena de especialistas, então o regresso ao passado vale mesmo a pena. É o que acontece com os volumes em apreço, da Coleção Symbolon,dedicados aos temas da Paz e Concórdia e do Medo e Esperança, que se seguem a dois outros volumes, dedicados igualmente a pares de emoções, o I sobre Amor e Amizade, e o II sobre Inveja e Emulação. Esta coleção corresponde a um projeto que pretende proceder à análise das Emoções na Literatura Greco-Latina, mediante o estudo de pares de emoções ou paixões e de conceitos éticos que se tornaram símbolos do mundo moral, político e religioso da antiguidade.

A primeira impressão que se colhe da leitura destes volumes é a de que as emoções humanas, que chegaram até nós mediadas pelos autores greco-latinos, não mudaram significativamente ao longo dos tempos. Lendo os Clássicos, reencontramo-las lá, na épica homérica, na tragédia grega, no teatro aristofânico de intervenção, na história de Tucídides, nos tratados de Cícero ou nos tratados e epístolas de Séneca, em Virgílio, em Horácio ou Ovídio, em Agostinho de Hipona, na literatura medieval, no Renascimento, enfim, até aos nossos dias. E, como não poderia deixar de ser, em Aristóteles, que lhes dedica grande atenção reflexiva no livro II da Retórica, falando sobre a ira, a calma, a amizade e a inimizade, o temor e a confiança, a amabilidade, a piedade, a indignação, a inveja, a emulação. As palavras que Belmiro Pereira escolheu para figurarem em epígrafe do “In Limine” do primeiro livro da Coleção são a este título muito significativas e projetam a sua luz sobre qualquer dos livros que a integram, funcionando como enquadramento orientador. São retiradas das Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, e dizem o seguinte: “Os nossos vícios e as nossas virtudes têm modelos gregos”. É nesta perspetiva que os diversos estudos se enquadram, o que lhes confere um interesse muito actual.

Dada a heterogeneidade dos autores estudados, referirei o essencial de cada contributo, por forma a despertar a curiosidade e o interesse para a sua leitura.

Symbolon III - Paz e Concórdia (ed. de Belmiro Pereira e Jorge Deserto)

Este livro oferece ao leitor, como diz Jorge Deserto no texto prefacial (p. 6), “alguns olhares, episódicos e parcelares (mas nem por isso menos rigorosos), sobre o tópico da paz e da concórdia em alguns autores clássicos, autores que fizeram ouvir as suas vozes em grego e em latim.” De Homero a Erasmo, passando por Aristófanes, Isócrates, Cícero e Virgílio, eis os autores abordados sob este ponto de vista.

A abrir o volume, Jorge Deserto começa por apresentar algumas pistas para a compreensão dos conceitos de paz e concórdia recorrendo à raiz destas palavras, em grego e em latim, o que permite definir esses conceitos com a precisão que é apanágio das línguas clássicas. Assim, o sentido ínsito na palavra pax (“paz”) revela-se na etimologia, pois, estando ligada à raiz do verbo pango (que significa ‘fixar', ‘plantar') e do seu correlato pactum, veicula as ideias de duração, solidez e pacto. Mas a análise dos termos relacionados com o conceito de ‘paz' sai enriquecida quando estes se revestem de roupagens mitológicas, e então ficamos a saber que eirene (‘paz' em grego) é irmã da eunomia (‘boa ordem') e de dike (“justiça”). Quanto à palavra latina concordia (cum + cord-), tem correspondência no grego homonoia (‘maneira igual de pensar', ‘harmonia', ‘consenso') e é o oposto de stasis (‘discórdia', discordia em latim), que leva a confrontos e à violência no seio de um mesmo povo.

O ensaio de Marta Várzeas sobre “Paz e Concórdia em Homero” tem subjacente a convicção de que convém desconfiar das ideias feitas, pois a cada passo questiona a ideia dominante de que a Ilíada é a glorificação do ideal heróico, como geralmente se diz. Na verdade, na Ilíada o poeta não se cinge à glorificação do herói em combate, pois dá a ver o outro lado desse ideal, a realidade penosa da morte de quem cai em combate. Não será por acaso que a proposição do poema fale desde logo em cólera e no seu resultado funesto. Também ao desejo de morrer gloriosamente em combate se contrapõe, no poema, um comportamento que diríamos muito pouco heróico, mas muito humano: a expressão do desejo de abandonar o combate, ou então o pedido de clemência, o pedido de que a vida seja poupada pelo inimigo. Há em muitos episódios da Ilíada uma visão negativa da guerra, ditada pelo sentimento de que ao ideal heróico se sobrepõem outros valores, como o da amizade, o da compaixão, o da consciência de que a morte de um jovem é uma perda individual e distinta de qualquer outra. Como escreve Marta Várzeas (p.15): “existem [no poema] muitas figuras cujo papel se resume a serem mortas, mas elas têm sempre um nome, uma linhagem e até uma história, por breve que seja.” É a humanização que dá sentido a tantas cenas de guerra… Assim acontecerá na Eneida, também.

Três comédias aristofânicas são convocadas por Jorge Deserto para nos falar de paz e concórdia em Aristófanes: Acarnenses, Paz e Lisístrata. Todas têm subjacente o sentido de que a guerra prejudica o desenvolvimento da polis, isto é, dos cidadãos, e que se impõe caminhar no sentido da paz. Mas os caminhos percorridos em direção à paz são diversos – diz Jorge Deserto -, embora todos se apresentem divertidos, fantasiosos e utópicos, como convém à comédia. Assim, em Acarnenses, Diceópolis, a personagem principal, desejoso de limitar os prejuízos comerciais decorrentes do estado permanente de guerra, decide estabelecer um pacto individual com o inimigo (Esparta), à revelia dos restantes concidadãos. Ora o coro é constituído pelos habitantes de Acarnas, que têm a vida dura de quem trabalha no carvão, e por isso protestam contra tal pacto unilateral e chegam dispostos a castigar o traidor. Acabarão, contudo, depois de acesa disputa, por aceitar os benefícios do pacto e da paz dele decorrente. Por seu turno, a comédia Paz põe em cena o vinhateiro Trigeu, que entra disposto a libertar Eirene, a Paz, feita prisioneira por Pólemos, a Guerra. Depois de libertada, a Paz vai trazer a prosperidade individual (Trigeu casa com uma sua acompanhante, a Colheita) e em simultâneo a prosperidade da comunidade, que se associa em festa. Finalmente, Lisístrata, a peça que traz no título o nome da líder de um movimento de resistência feminina contra a manutenção interminável da guerra. Lisístrata sabe que só um motivo muito forte afastará os homens da guerra; propõe às mulheres, por isso, uma greve ao sexo. No entanto, o seu movimento acaba por ter um alcance diferente, distante do universo erótico: reunidas na ágora, elas vão impedir que os homens tenham acesso ao tesouro da cidade, de que se serviam para financiar a guerra. Assim, sublinha Jorge Deserto, a um estereótipo – o de que os homens não renunciam ao sexo por nada deste mundo –, soma-se outro – o de que as mulheres, por saberem administrar a casa, saberão muito bem gerir o tesouro da pólis. Por isso Deserto pode concluir (p. 32): “A guerra e a paz não são, claramente, apenas assuntos da polis. Entram em casa de cada um, invadem-lhe todos os gestos do quotidiano.” As três peças não deixam de o refletir, como vimos. Mas o artigo de Jorge Deserto tem um interesse suplementar. No final, o autor sublinha aspetos comuns a dois tempos tão distintos como o longínquo séc. V a.C. e o nosso tempo, considerando haver muitos sinais da Atenas de então que “parecem inquietantemente actuais”. Por um lado, a ideia de que as guerras começam, muitas vezes, por motivos fúteis; por outro, a tristeza, o “compreensivo desgosto do Mercador de armas”, que, na comédia Paz, “vê o seu negócio arruinado pelo tratado que termina as hostilidades.” Ainda nas palavras de Jorge Deserto, “Tudo isto, e não só isto, é desesperantemente moderno.”

“Paz e Concórdia em Isócrates: Ideias e Conjecturas”, de Ana Lúcia Curado. Nas suas reflexões iniciais, a Autora começa por abordar a grandeza do tema “Paz”, acrescentando, muito judiciosamente: “Parece ter sido mais fácil falar sobre a guerra e aquilo que a motivou do que falar da arte de a contrariar e do estado de ausência de guerra, a paz.” (p. 33). Foi o que Isócrates tentou fazer, quando procurou conciliar a atenção dos Atenienses para a necessidade de evitarem a guerra, e quis fazê-lo mediante a palavra, através do discurso. Foi isso que o levou a compor o Areopagítico (relativo à moralização da política interna de Atenas) e o discurso sobre a Paz (que trata da moralização da política externa). E Ana Lúcia Curado interroga-se (p. 35): “Qual o papel de um orador como Isócrates nesta situação?” (isto é, no período da Guerra Social, em 357-355). Sabemos que, em comparação com Demóstenes, o maior orador grego seu contemporâneo, Isócrates teve dificuldade em fazer ouvir a sua voz, em difundir as suas ideias, pois é, como afirma a Autora, “um teórico do pensamento, pensamento que exprime através da palavra.” (p. 36) Ele pretende, com a sua palavra, contribuir para a salvação da cidade de Atenas, cuidar da saúde do estado, que tem sido maltratada por governantes inferiores aos de outro tempo. Em oposição às más políticas de outrora, Isócrates lembra qual deve ser o papel de quem governa: “É tarefa dos que mandam tornar, com os seus cuidados, mais felizes os governados” (p. 44). Sejam um exercício pedagógico ou texto de intervenção, os discursos de Isócrates têm como mensagem principal o “procurar a concórdia conducente à paz, estado ideal para a sociedade progredir e se manter em harmonia democrática no seu próprio interior e com as outras cidades com que mantém alianças.” (p. 37) Por ironias da história, o pan-helenismo desejado por Isócrates veio a concretizar-se, mas apenas depois da perda da independência da Grécia com a conquista da Macedónia e sob o domínio romano. Seja como for – conclui Ana Lúcia Curado – Isócrates tem a seu favor “a sua arte diplomática à distância de vinte e cinco séculos: uma arte humanista e essencialmente pacificadora.”

Num livro dedicado ao tema da paz e a concórdia, não podia deixar de figurar Cícero e o seu Tratado da República, aqui apresentado por Francisco de Oliveira, autor da recente tradução para português deste importante tratado de filosofia política e moral. Com este tratado, o Arpinate tentou preencher o espaço deixado pela ausência de ocupação em negócios políticos, que no final da vida lhe foi sendo negada. Quis, nesse tratado, ser útil ao estado romano, quis estabelecer as bases de um consenso que permitisse governar. É significativo que no diálogo (pois é um tratado sob a forma de diálogo), uma das personagens, Lélio, comece por se interrogar: “Como entender que num estado existam dois senados e já como que dois sóis?” Assim se referia à crise suscitada pelo assassinato de Tibério Graco, que criou em Roma divisões políticas, sociais e familiares. Defende-se depois a ideia de que importa trabalhar no sentido da harmonização de interesses, da concordia (termo de conotação afetiva) e do consensus (termo intelectual), como observa Francisco Oliveira. Defende o Arpinate que “Nada é mais firme do que um povo unido pela concórdia” (p. 49), que a concórdia e a paz são o garante da perenidade de Roma e do Império, e que, ao contrário da guerra ofensiva, de conquista, só a guerra justa é admissível. Segundo Cícero, a concórdia entre Roma e as províncias é essencial à preservação do império. E tinha razão. O período histórico que se seguiu, dominado por Augusto, veio confirmar o acerto desse velho sonho de Cícero.

No artigo de Cláudia Teixeira (sobre o tema da Pax e Concordia na Eneida de Virgílio), começamos por ler: “Paz e Concórdia são dois conceitos que, na Eneida de Virgílio, se desenvolvem em forte correlação com a época histórica coeva – uma época em que Roma conseguiu dissolver os seus conflitos internos e externos, inaugurando um período de moderação e de paz, sob a égide de um novo modelo civilizacional, que marcaria as raízes europeias até ao presente.” Não obstante, a ideia de domínio do mundo por parte de Roma e dos Romanos está muito vincada no poema, culminando nos famosos versos do canto VI (vv. 851-853) nos quais Anquises incita Eneias a comportar-se como Romano, a “impor regras de paz, a poupar os vencidos e a debelar os soberbos.” Eneias, a figura fulcral do poema, como que prefigura a posição fulcral de Augusto no caminho para a concórdia e a paz, poupando os vencidos, associando os povos bárbaros, de costumes diferentes, ao quadro de valores civilizacionais dos Romanos, mas derrubando os orgulhosos. Neste contexto, assume particular significado o escudo de Eneias, no qual tudo evoca o sentido moral da missão de Roma, mediatizada pela longa história da cidade desde a sua fundação, pela batalha de Áccio, que opôs povos civilizados a povos bárbaros, e muito em especial pela figura de Augusto à entrada do templo de Apolo, a receber as dádivas dos povos vencidos. É deste modo especialmente sublinhada a mensagem de que o caminho para a paz não se faz sem guerra (só assim se compreende que a parte iliádica do poema ocupe metade dos cantos). Por fim, é impossível não sublinhar a importância significativa do quadro final do poema, que espelha a fragilidade e imperfeição dos desígnios da alma humana: segundo Cláudia Teixeira, a morte de Turno às mãos de Eneias mostra como a amicitia se sobrepõe, muito humanamente, “às normas morais do império”.

Por último, “Paz e Concórdia em Erasmo”, do professor Jorge Osório. Erasmo é apresentado como um homem de paz, avesso à guerra e à discórdia. Mas a sua postura é essencialmente a de um homem de letras e de ideais. Como escreve Jorge Osório (p. 78): “O seu ponto de partida é uma espiritualidade culta, mesmo erudita, indissociável das litterae humaniores. Por isso, não estamos perante uma atitude de filosofia política ou de mera crise política, mas diante de uma atitude religiosa e espiritual.” Com esta premissa, Jorge Osório detém-se na análise de três escritos anti-belicistas, os adágios famosos Dulce bellum inexpers, Scarabeus aquilam quaerit e Sileni Alcibiades, três adágios que, pela aceitação pública que tiveram, mereceram as honras de publicação própria. Segue-se, a estes, o comentário da Querela Pacis. Neste texto, a Paz queixa-se do dissídio entre o apregoado e a realidade dos comportamentos, em especial de monarcas e frades. No que diz respeito ao problema urgente da guerra contra os Turcos, que chegaram a ameaçar Veneza, Erasmo aceita que se possa actuar no âmbito do conceito de guerra justa. No entanto, como sublinha Jorge Osório (p. 85), o humanista de Roterdão denuncia “a inconsequência de uma defesa da cruzada contra os Turcos com o pretexto de os converter, quando os cristãos – o papado, os príncipes, os frades – mostravam tamanho desrespeito pela doutrina de Cristo (…).”

Como foi dito no início, vale a pena revisitar autores e textos como os que compõem este volume III do Symbolon. Eles fazem parte do património cultural da nossa história europeia.

O volume IV do Symbolon, vindo a lume em 2014, é organizado por Belmiro Fernandes Pereira e Ana Ferreira e é dedicado ao tema Medo e Esperança, reunindo trabalhos em torno de Ésquilo, Tucídides, Plutarco, Séneca, Santo Agostinho e Carlos de la Rica. Abarca, assim, um arco temporal que vai do século V a.C., o tempo do primeiro tragediógrafo, até à segunda metade do século XX, o tempo de Carlos de la Rica, que foi sacerdote em Cuenca, Espanha, e escreveu obras de intervenção. No texto introdutório (“In Limine”), Belmiro Pereira lembra o pensamento aristotélico relativo a estas emoções (medo e esperança), exposto no já referido livro II da Retórica, e esclarece o âmbito do uso de cada termo, considerando que “o medo não é irracional, pelo contrário, chama à deliberação, convoca a reflexão, obriga a avaliar a situação” (p. 7). E, mais adiante: “Que o medo e a esperança constituem emoções básicas do discurso político comprovam-no ao longo dos séculos inúmeros exemplos.”

O primeiro estudo (“Medo e esperança em Ésquilo”) pertence a José Pedro Serra, que começa por tecer algumas considerações em torno da esperança que nos legou a herança cristã. Segundo o autor, “a esperança possui uma dimensão temporal, histórica e escatológica que integra a certeza das promessas por Deus já reveladas, aqui e agora.” Mas o modo de pensar do mundo grego antigo é diferente, observa Pedro Serra. Daí que, perante uma esperança desassossegada, se possa dizer que “a morada próxima da esperança é o medo”(p. 10), como afirmou Aristóteles e Ésquilo exprimiu nas suas tragédias. Em Prometeu Agrilhoado, o castigo de Zeus é justificado com o facto de Prometeu ter tirado dos homens o medo da morte dando-lhe “cegas esperanças”, que o fazem alhear-se do essencial (a inevitabilidade da morte). Em Os Persas, o temor e a esperança ensombram a longa espera de notícias sobre o desfecho da guerra que o poderoso exército persa foi travar em terreno grego. Todos têm consciência de que, mais do que o valor de cada um, pesa no destino o poder dos deuses. E assim o homem balança entre a esperança e o temor.

Maria de Fátima Silva desenvolve o tema “Medo e esperança em Tucídides: Dois fatores dinâmicos de progresso e de história”. Considera, com outros autores, que o medo é uma constante do devir histórico do homem. Remetendo para Romilly que “encarece a diferença entre phobos – o medo emotivo e irracional que de repente se apodera da alma e do corpo, e deos [‘temor'] a apreensão de ordem intelectual, que implica um cálculo em relação ao futuro e a consequente tomada de medidas correctas” (p. 20), expõe como Tucídides, no preâmbulo da sua obra, de teor arqueológico, explicou a progressiva passagem de um estado primitivo, de incomunicabilidade, a outro em que os homens se vão protegendo coletivamente, construindo muralhas autodefensivas, como reação ao medo. E foi também por medo que, segundo Tucídides, Agamémnon, por ser o mais forte, conseguiu reunir aliados para a expedição a Tróia. O mesmo vai ocorrer quando Tucídides narrar as várias fases da guerra do Peloponeso, que se desenrola entre o medo (gerado pelos Atenienses) e a esperança (de que Esparta se faz arauto). Ora os Atenienses são por natureza, segundo Tucídides (1.70.3), euelpides, otimistas, são “audaciosos sem contabilizar forças, aceitam o risco sem se deter em reflexões, são optimistas nas situações graves”. Mas o imperialismo ateniense vai provocar medo e as hostilidades com Atenas vão terminar na derrota desta cidade. Como se viu quando se falou de Isócrates, o imperialismo ateniense verá o seu fim com o domínio macedónio sobre Atenas, a que se seguirá o domínio romano. Assim avança a história, atingida por conflitos decorrentes de medos e esperanças.

Ana Ferreira trata o tema “Medo e esperança como condicionantes da actuação do homem de Estado em Plutarco”. As figuras de Estado analisadas – Alcibíades, Nícias e Péricles – apresentam-se com virtudes e fraquezas, uns mais dados à superstição, outros audaciosos e sem medos. Alcibíades e Péricles são vistos como modelos de coragem e audácia, enquanto Nícias é visto como cobarde, receoso. Quando a armada ateniense se preparava para zarpar para a Sicília, ocorreu um eclipse da lua, e todos ficaram atemorizados. Mas Péricles não se deixou amedrontar, pois tinha conhecimentos suficientes para não acreditar em superstições e temores infundados. A verdade é que Atenas foi derrotada. Atitude contrária teve Nícias perante acontecimento idêntico, ao acreditar no mau presságio associado a um eclipse da lua. Relativamente à ação destes homens como homens de Estado, Alcibíades revela-se audaz, destemido, perante as perseguições populares de que foi vítima. Sem nunca ceder perante os contratempos, “Foge do povo, refugiando-se junto dos Espartanos, foge dos Espartanos, refugiando-se junto dos Persas.” (Ana Ferreira, p. 39). Nícias, apesar dos medos, no final da vida lutou até ao fim, sem qualquer esperança na vitória, para não abandonar os que estavam sob as suas ordens. Péricles, por sua vez, é o meio-termo, o equilíbrio entre a audácia de Alcibíades e o temor de Nícias.

Paulo Sérgio Margarido Ferreira apresenta, em “O medo e a esperança na obra de Séneca”, o estudo mais extenso (trinta páginas) do livro. Antes de entrar em Séneca – que afirma que “pior do que a guerra é o temor da guerra” –, Paulo Sérgio recorda a teoria dos estóicos em torno das emoções, sublinhando a “insistência estóica na natureza física de acontecimentos, emoções e outras respostas afectivas, e nas mudanças psicofísicas a elas associadas” (p. 51). A seguir, trata do medo enquanto affectus e da importância do medo e da ira na caracterização do tirano. O pensamento do filósofo romano vai ser documentado com base no Oedipus, a peça que trata especificamente do medo neurótico. A ação começa in medios affectus, isto é, já num estado avançado e irreversível do medo que se apoderou de Édipo. As reflexões do protagonista suscitam uma dupla leitura: a do próprio e a do espectador, que sabe que as profecias se concretizaram ou hão-de concretizar-se. É a ironia trágica senequiana. No Édipo de Séneca, a tónica é posta na falta de autoconfiança e no temor do futuro, ditado pelo oráculo, o que o levou a deixar Corinto e a cumprir, sem o saber, a profecia. No que se refere à relação do medo com a esperança, esta, como a ira e o desejo, pode servir para refrear o medo. Mas também o contrário pode acontecer, isto é, a esperança suscitar medo e ansiedade. Para Séneca (Ep. 47.17), todos os homens são escravos da esperança e do medo, pelo que aconselha a que todo o género humano perca o medo da morte, “a considerar o dia final não como um castigo, mas como uma lei natural” (p. 72), “a ver nesse dia o termo dos nossos receios”. Quanto ao sumo bem, esse encontra-se onde só a virtude poderá ascender (p. 73) e o autoconhecimento é indispensável ao domínio dos temores. Estes são alguns dos tópicos da filosofia moral de Séneca evocados no artigo de Paulo Sérgio, que se caracteriza por uma grande densidade de informação, toda do maior interesse. Seja como for, a própria obra de Séneca é difícil de circunscrever quanto a estes temas, pois é um manancial inesgotável de questões relativas à mente ou à alma humana.

O estudo de Paula Oliveira e Silva tem por título “Medo: de quê? Esperança: como? A proposta de Agostinho de Hipona”. Nas palavras da A., “De uma forma simples, dir-se-ia que, na obra de Agostinho, o que está em causa na compreensão do binómio medo – esperança é a questão, inseparável do humano, acerca da conquista da felicidade pela posse do bem e pela fuga do mal.” Para a compreensão da mundividência agostiniana, a A. parte das Confissões, nas quais Agostinho narra o processo da sua conversão (do maniqueísmo e platonismo ao cristianismo), muito influenciada pela sua formação intelectual, assente em modelos literários, transmissores de cultura, desde os clássicos Cícero, Virgílio, Séneca, à literatura maniqueia, à literatura neoplatónica e à literatura bíblica. Segundo a A., “Trata-se sempre de Livros que transmitem visões do mundo e propostas de itinerários de vida feliz e de salvação, explanando uma concepção da relação do homem com o divino, isto é, uma religião.” (p. 81) Para Agostinho, o ser humano que segue os bens terrenos é terreno, carnal e exterior; o que segue os bens eternos é designado como o homem celeste, espiritual e interior. “O primeiro vive sempre intranquilo e amedrontado. O segundo construirá progressivamente a posse da vida eterna em paz.” (p. 85) Interroga-se Agostinho: Como identificar os bens eternos e saber que a posse deles é o fim do ser humano? Mediante um movimento ascendente de reflexão, que parte do exterior para o interior. Paula Oliveira e Silva traz ainda a terreiro uma outra importante obra de Agostinho, A Cidade de Deus,escrita sob o impulso da invasão de Roma pelos bárbaros de Alarico, em 410, acontecimento histórico que surgiu como “o fim do Mundo”, o mesmo é dizer, o fim de Roma. “O acontecimento [da queda de Roma], afinal, comprovava o acerto das teses de Agostinho acerca das fontes do medo e da esperança. Aqueles – e fora toda uma civilização – que colocaram a esperança na eternidade do Império são agora abalados pelo terror.”(p. 89) “Os que caminham em união com o Verbo caminham na esperança e constroem a paz. Os que caminham na aversão com ele caminham no medo e espalham a discórdia”. (p. 95) – assim termina o artigo.

Carlos Morais, “Antígona, ‘a razão suprema da liberdade': intertexto e metateatro na recriação de Carlos de la Rica (1968)”, situa-se no âmbito da revisitação contemporânea do mito de Antígona, prestando particular atenção a Carlos de la Rica (1929-1997), que, além de exercer o sacerdócio numa povoação de Cuenca, foi também escritor comprometido e de vanguarda, dedicado aos povos oprimidos e a quantos lutam pela liberdade e pela democracia. O artigo de Carlos Morais começa com a utilização do mito de Antígona na Espanha Franquista e trata depois, de forma desenvolvida, da Razão de Antígona (um texto de 1968, mas apenas vindo a lume em 1980, por motivos de censura), em luta pela liberdade e pela democracia. Por fim, a Conclusão, que insiste sobre o exemplum intemporal de Antígona. São estas as etapas de um texto que se debruça sobre o medo e a esperança e a sua relação com a inesquecível figura da filha de Édipo. Antígona acaba por ser libertada por Creonte, a isso forçado pelo povo, mas as suas propostas subversivas acabarão por condená-la: morrerá com um tiro, como morreu Luther King, ou tantos outros pacifistas e defensores dos direitos humanos, transformando-se assim em símbolo de liberdade, de paz e amor. O autor conclui o artigo deste modo, datando-o, muito significativamente: “28 de agosto de 2013, 50 anos depois do discurso de M. L. King”.

Ao refetir sobre a intemporalidade dos mitos gregos, Carlos Morais recorda Ragué Arias, que escreveu: “O carácter aberto dos mitos torna possível a sua utilização em momentos de crise, para convertê-los em símbolo de valores alternativos à ordem estabelecida”.

É este, como se sabe, um dos grandes usos do Clássico.

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