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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.2 Braga  2015

 

FILOSOFIA CONTINENTAL CONTEMPORÂNEA: PENSAMENTO FRANCÊS

Roland Barthes: “A língua é fascista”: aproximações a um topos da filosofia do século XX

 

Bernhard Sylla*

*Universidade do Minho, ILCH, Portugal.

bernhard@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Na sua conferencia inaugural no Collège de France, Roland Barthes usou a frase que consta do título deste ensaio e que nos parece, hoje em dia, bastante estranha e, à primeira vista até, difícil de entender. Pretendo mostrar que esta frase se associa a um topos filosófico, cujo surgimento está vinculado a uma recepção específica das ideias fundamentais do estruturalismo. A articulação do topos é binária, opondo antagonicamente duas instâncias, nomeadamente a de um sistema que detém um poder máximo e ubíquo, e a de um falar e agir que combate este mesmo sistema. Barthes concebe esta oposição como aporética e dilemática, e estabelece explicitamente uma analogia entre linguagem e política. O presente ensaio tem como objetivo esclarecer a configuração específica do dito topos em Barthes, limitando-se a indicar apenas tangencialmente a presença do mesmo topos em outros autores da filosofia do século XX.

Palavras-chave: arthes, estruturalismo, pós-estruturalismo, linguagem, poder.

 

ABSTRACT

In his inaugural lecture at the Collège de France, Roland Barthes used the phrase that appears in the title of this essay. Nowadays, this phrase sounds rather strange and, at first glance, difficult to understand. The aim of this essay is to show that this phrase is associated with a philosophical theme, whose emergence is linked to a specific reception of the fundamental ideas of structuralism. The articulation of this theme is binary, opposing two antagonistic instances: a system that has a maximum and ubiquitous power, and the individual speaking and acting that combats this system. Barthes sees this opposition as aporetic and dilemmatic, and explicitly draws an analogy between language and politics. This paper aims at clarifying the specific configuration of this theme in Barthes, mentioning only tangentially the presence of this theme in other authors of the twentieth-century philosophy.

Keywords: Barthes, structuralism, post-structuralism, language, power .

 

0. Introdução

Para além de ser um dos mais importantes teóricos da teoria da literatura, Roland Barthes merece, sem dúvida, um lugar entre os grandes filósofos franceses do século XX.

Nascido em 1915, Barthes faleceu no ano de 1980 em Paris, vítima de um acidente nos Champs-Élysées. Três anos antes da sua morte, Barthes deu a sua conferência inaugural no célebre Collège de France, como professor da cátedra de Semiologia literária. É nesta conferência, editada em 1978 sob o título Leçon,[1] que Barthes usa a frase que consta do título desta comunicação: A língua é fascista. No breve texto que se segue, gostaria de dar uma visão geral do contexto em que se situa tal constatação que hoje nos parece tão estranha.

Como é que uma língua pode ser fascista? E quais são as teorias, as ideias, as doutrinas que poderão ter motivado esta constatação?

Veremos primeiro como o próprio Barthes especifica esta sua acusação; depois do veredicto: “Mas a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista;” segue-se, imediatamente, esta justificação: “porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer.” (Barthes 1997, 16).[2] Penso que, com esta especificação, ainda não estamos mais esclarecidos. Como, por quê e em que medida a língua nos obriga a dizer?

Atentando no restante texto da lição inaugural, torna-se óbvio que a constatação se insere no contexto de uma corrente de pensamento que adquiriu grande impacto não só na linguística do século XX, mas também na filosofia e em outras ciências humanas. Refiro-me ao estruturalismo, cujo grande inspirador foi Saussure.

1. O background do estruturalismo

Não me posso deter aqui na apresentação dos fundamentos e da história de sucesso do estruturalismo. Quero apenas transmitir a ideia básica do seu começo. Segundo Saussure, qualquer que seja a suposta unidade linguística, seja o som, o afixo, a palavra, o sintagma, a frase, etc., esta unidade apenas tem significância devido ao seu valor no nexo de todas as outras significâncias. Daí que a significância não derive da unidade enquanto instância material e positiva, mas antes e somente do nexo das relações que existem entre todas as unidades linguísticas e determinam os seus respetivos valores.[3] Foi precisamente esta consideração do valor de cada unidade linguística que obrigou a criar uma nova terminologia que desse conta deste fenómeno. Em vez de som, sílaba, palavra, etc., passou então a falar-se de fonemas, morfemas, lexemas, etc. São, assim defendeu Saussure, os chamados princípios de diferença e de arbitrariedade que estão na base de um qualquer fenómeno de significância.[4] O valor não é um fenómeno fixo e de antemão estabelecido, mas antes um fenómeno que se cria no e através do uso reiterado e coletivo das unidades linguísticas e através da maneira como são relacionadas entre si. Somente assim um sistema de valores se torna real e efetivo.

Desde os anos 20 até aos anos 70 do século XX, a linguística na Europa ocidental e oriental, e sobretudo na Alemanha, França e Rússia, era predominantemente estruturalista. Fonética, morfologia, lexicologia, sintaxe, semântica, e mais tarde também a teoria do texto, usaram o método estruturalista.

Mas o que é que isso tem a ver com a dita obrigação de dizer? São vários os pressupostos que devem ser tomados em conta se queremos responder a esta pergunta:

(i) O estruturalismo linguístico parte do princípio de que tudo o que pode ser dito só o pode ser nos moldes do respetivo sistema de valores em vigor, i.e. das estruturas que uma língua particular possui;

(ii) este sistema de valores vigora sem que se tenha consciência disso;

(iii) o pressuposto (ii) é determinante em dois sentidos:

(a) em primeiro lugar, por constituir o ethos iluminista do estruturalismo. Considerando que se está perante um vasto domínio de factos que, em larga medida, é desconhecido e aplicado, por assim dizer, cegamente, é óbvio que a descoberta científica das regras e estruturas que regulam a nossa fala e o nosso pensamento terá um valor inestimável.

(b) Por outro lado, como todos os meios linguísticos que usamos e que podemos usar para descrever e desvelar as estruturas, se inserem, eles mesmos, no interior do sistema que se almeja descrever, surge aqui um dilema: como posso descobrir o funcionamento de um sistema se eu me encontro sempre dentro, e nunca fora, dele? Ou seja, não fará a análise científica das estruturas de uma língua parte do próprio sistema desta língua? E daí: será esta análise capaz de esclarecer o funcionamento deste sistema?

Ora bem, parece óbvio que estamos aqui perante um dilema. Em termos científicos, um dilema não tem apenas um lado negativo, antes pelo contrário, pode funcionar como um momento impulsionador para a investigação científica. A meu ver, é precisamente isso que aconteceu no desenvolvimento do pensamento estruturalista. O dilema impulsionou o surgimento – para usar um termo husserliano[5] – de ‘atitudes teóricas' muito diversas e, por vezes, até mesmo antagónicas. Distinguirei três atitudes teóricas diferentes que, a meu ver, marcaram uma parte considerável do debate científico e filosófico do século XX em torno das ideias e teorias estruturalistas, e cujos mais ilustres representantes provêm da tradição francófona.

Atitude teórica 1: É a atitude que pode ser identificada com o estruturalismo no sentido estrito. Aquele que suporta esta atitude acredita que as estruturas são as entidades mais fundamentais e que são, no fundo, os verdadeiros factos, e acredita também no grande valor científico da sua descoberta.

Atitude teórica 2: Esta atitude corresponde a um posicionamento que, em princípio, não põe em causa o valor dos conhecimentos alcançados pelo método estruturalista, pois fundamenta-se, ele próprio, nestes conhecimentos. Mas encara estes mesmos conhecimentos das ciências estruturalistas de uma maneira muito diferente da atitude teorética 1 por abandonar a atitude fundamentalmente afirmativa assumida pela atitude teórica 1. Tudo aquilo que para a atitude teórica 1 é uma mera facticidade, transforma-se para a atitude teórica 2 num desafio, para não dizer num escândalo. Perspetivar o ser humano como refém de um nexo de relações que domina e determina o seu agir, o seu pensar e a sua realidade social, cultural e política, acaba por transformar o ser humano numa marioneta que funciona à mercê de um sistema superior. Os adeptos da atitude teórica 2 procuram o lugar perdido da liberdade humana, o lugar onde o ser humano ainda seria capaz de se libertar das regras de ferro do sistema. Penso que a filosofia de Roland Barthes se enquadra nesta categoria da atitude teórica 2.[6]

Atitude teórica 3: Penso, no entanto, que se deve dar conta da existência de uma terceira atitude teórica. Esta difere das primeiras duas por rejeitar os pressupostos fundamentais do próprio estruturalismo (o que não acontece com a segunda atitude teórica), procurando mostrar a insuficiência do pensamento estruturalista e dos seus princípios fundamentais. Filósofos que se inserem nesta categoria seriam por exemplo Paul Ricoeur, que alertou para a necessidade de superar o estruturalismo através da hermenêutica,[7] ou Michel Foucault, cujas primeiras obras foram interpretadas, a meu ver com alguma razão, como estruturalistas,[8] facto que levou o autor a protestar fervorosamente contra esta leitura.[9]

2. Como as estruturas embruxam o nosso pensamento

Mas voltemos à atitude teórica 2 e a Roland Barthes. Atentando no essencial da atitude teórica 2, devemos primeiro dar conta da conotação extremamente negativa, na teoria de Barthes, daquilo que é a estrutura ou o sistema. Dito de outra forma e usando um termo wittgensteiniano: como é que as estruturas da língua embruxam o nosso pensar e agir? A primeira resposta de Barthes move-se inteiramente dentro do horizonte do estruturalismo linguístico: A língua embruxa o nosso pensamento por causa da sua estrutura gramatical. Barthes menciona, no texto sob análise, i.e. na Leçon, explicitamente[10] as formas pronominais e os géneros, que tal como outras formas gramaticais obrigariam o pensar a adequar toda a matéria do pensamento aos esquemas formais que a própria língua lhe fornece de antemão, como non plus ultra e sine qua non daquilo que pode ser pensado. Não admira, pois, que Barthes relacione os conceitos de sistema e/ou estrutura com o conceito de poder, ao associar o impacto das estruturas linguísticas ao impacto de um poder sociopolítico.[11] Em 1977, portanto quase uma década após as revoltas estudantis dos anos 60 que começaram em Paris e que se alastraram para outros países, principalmente a Alemanha, Barthes associa o poder incorporado na linguagem ao poder tecnocrático das instâncias políticas da sociedade.[12] Na lógica desta analogia entre linguagem e política, Barthes sustenta que a luta antagónica entre poder coletivo e contrapoder revolucionário também acontece na linguagem. E vai ainda mais longe, pois dá a entender que a verdadeira raiz do antagonismo político se encontra no seio da própria linguagem.

Este antagonismo afigura-se, no entanto, tanto na realidade sociopolítica como na linguagem, como luta entre dois poderes desiguais. Perante a supremacia esmagadora da instância do poder coletivo, o poder da resistência quase não tem hipóteses de sobreviver. Ora, se por um lado nos é fácil aplicar a lógica de uma tal controvérsia à realidade sociopolítica, já não o é no que diz respeito à linguagem. Será que a supremacia do poder do sistema da linguagem devém, pura e simplesmente, do poder das estruturas gramaticais? Embora haja autores que defendem uma tal posição,[13] não é essa a posição de Barthes. Segundo este, há uma outra instância que colabora com o poder da langue. Esta outra instância é o discurso, sobretudo o discurso corrente e quotidiano em todas as suas formas.

3. O papel do discurso

A par das restrições estruturais impostas pela própria langue, haverá, segundo Barthes, outras restrições suplementares de cariz sobretudo semântico impostas pelo discurso. As duas restrições, cujo impacto se deixa entender como repressivo, colaboram, segundo Barthes, estreita e eficazmente.[14] Uma vez congregadas no lado do poder sistémico, e como já não resta nada na instância da linguagem se a langue e a parole enquanto discurso se juntam, cria-se um sistema de supervisão superpoderoso que domina e vigia todos os atos de fala, i.e. toda a nossa prática quotidiana do falar. A tese sobre o poder repressivo do discurso remonta às primeiras obras de Barthes, sobretudo à obra Mythologies.[15] Aí, Barthes dirigira a sua crítica às mais diversas formas de distorção do ideário coletivo, viabilizadas pelas restrições semânticas quase que inconscientemente adotadas pelos discursos públicos, seja na imprensa, seja na literatura, seja na vida académica ou no dia-a-dia.

Para elucidar esta tese de Barthes, indicarei três exemplos. O primeiro é do próprio Roland Barthes:

(1) [E]stou na barbearia, dão-me um número de Paris-Match. Na capa, um jovem negro vestido com um uniforme francês faz a saudação militar, com os olhos erguidos, fixados certamente numa prega da bandeira tricolor. Esse é o sentido da imagem. Mas, quer eu seja ou não ingénuo, vejo bem o que ela me significa: que a França é um vasto Império, que todos os seus filhos, sem distinção de cor, servem fielmente sob a sua bandeira, e que não há melhor resposta aos detratores de um pretenso colonialismo do que o zelo deste negro em servir os seus pretensos opressores. Encontro-me pois, ainda aqui, perante um sistema semiológico privilegiado: há um significante, formado já, ele, de um sistema prévio (um soldado negro faz a saudação militar francesa); há um significado (que é aqui uma mistura intencional de francesismo e de militarismo); e há, enfim, uma presença do significado através do significante.[16]

Temos aqui o caso simples de uma manipulação da opinião pública, ao criar, delimitar e restringir um determinado significado através de um suporte que combina imagem e palavra. O preenchimento restritivo do significado transmite a mensagem de que os oprimidos pelo poder colonial colaboram de livre vontade e entusiasticamente na defesa dos ideais e fins dos seus próprios opressores. Dito de forma simples, estamos perante uma distorção do significado de patriotismo.

(2) Críticas muito semelhantes encontram-se na obra de Derrida. Quando entrevistado sobre os ataques terroristas às Torres Gémeas em Nova Iorque,[17] Derrida alertou para a bagagem ideológica de certos termos, entre eles o de tolerância.[18] Este termo que costuma ter conotações positivas, como pertencendo ao leque das virtudes democráticas, é desconstruído por Derrida como termo que incarna uma relação de desigualdade, pois quem tolera o outro é sempre aquele que possui mais poder, que tem um estatuto legal superior, facto que o dispensa de refletir sobre a legalidade da sua suposta superioridade.

(3) A manipulação da opinião pública é um fenómeno corrente em todos os tempos. O que desafia a filosofia e o espírito crítico é, no entanto, o facto de restrições ou alienações do significado se inculcarem quase que inconscientemente no pensamento corrente. Um exemplo atual seria a transformação do significado de ‘mercado'. Quando se fala de um mercado que não gosta de certas medidas políticas, que é sensível a certas decisões, é óbvio que se está perante uma hipóstase muito perigosa, que faz do mercado uma inteligência superior que deve ser reconhecida, respeitada e temida, podendo exigir de todos nós certos sacrifícios que contribuam, alegadamente, para o nosso bem-estar.

4. O ato da resistência

Voltando a Barthes, coloca-se a questão se e como se pode fazer frente à manipulação ideológica que provém tanto da langue como da parole enquanto discurso e que, daí, pareça ser inevitável e, face à sua ubiquidade, até mesmo ‘totalitária' e ‘fascista'.

Analogamente à politização do poder da langue enquanto instância fascista, também o papel da sua contraparte é politizado. Segundo Barthes, cabe aos intelectuais e escritores desempenhar o papel de uma resistência efetiva, uma agitação e um combate ao poder. Por outro lado, parece que este combate já está desde o início impossibilitado, uma vez que o poder ocupa e domina todos os lugares, todas as falas, i.e. todos os significados em uso.

No texto de Barthes, este dilema surge com toda a nitidez: a resistência apenas seria possível fora do poder da linguagem, no seu além, mas este além que conferiria um espaço à liberdade, não existe, porque a linguagem é um lugar hermeticamente fechado, encerrado:

(...) a liberdade de que falamos não poderá existir senão no exterior da linguagem. Infelizmente a linguagem humana não possui um exterior: é um lugar hermético.

(Barthes 1997, pp. 17s.)

(...) il ne peut donc y avoir de liberté que hors du langage. Malheureusement, le langage humain est sans extérieur: c'est un huis clos.

(Barthes 1978, p. 15)

Todos os intelectuais que ambicionaram combater este poder, voltaram do combate vencidos e desiludidos, pois, ao fim e ao cabo, tiveram que se render ao poder:

(…) pode dizer-se que nenhum dos escritores que tenham travado um combate muito solitário contra o poder da língua pôde ou pode evitar ser por ele recuperado (…).

(Barthes 1997, p. 25)

On peut dire qu'aucun des écrivains qui sont partis d'un combat assez solitaire contre le pouvoir de la langue n'a pu ou ne peut éviter d'être récupéré par lui (…).

(Barthes 1978, p. 25)

Contudo, segundo o nosso autor, o intelectual deverá ser persistente na resistência, embora esta se pareça com uma espécie de missão impossível. Mesmo que paire, sobre todos os atos de resistência, a ameaça da assimilação pelo poder do sistema, o intelectual não se deve render.

Como é evidente, este voto a favor da persistência da resistência apenas faz sentido se surgir, no horizonte deste dilema, alguma razão para a esperança. E é exatamente isso que acontece na obra de Barthes. Não havendo um exterior à linguagem num espaço fora ou além da linguagem, cria-se então este além no interior da própria linguagem, precisamente pela estratégia da criação de não-lugares, u-topoi, i.e. lugares não ou dificilmente detectáveis. Mas o que é, mais concretamente, este não-lugar?

Penso que a descrição de duas estratégias, que estão no centro de interesse de Barthes e que, no fundo, são uma e a mesma estratégia, nos permitirá entender melhor a ideia do não-lugar. A primeira estratégia consiste no jogo ilimitado com o material da langue, um jogo sem regras que permite “fazer batota com a língua”, ou seja, usando as próprias palavras de Barthes, “uma trapaça salutar, uma esquivança, um logro magnífico” que, por sua vez, permite conhecer e entender a langue fora do poder.[19]

Semelhante estratégia é o assim chamado déplacement,[20] traduzido na edição portuguesa da Leçon por deslocação.[21] Mantendo-se no âmbito da lógica metafórica, déplacement pode ser descrito como uma permanente mudança de lugar. Enquanto permanecer no mesmo lugar significa, usar e transmitir sempre o(s) mesmo(s) significado(s) estereotipado(s), a mudança de lugar evoca a noção de uma flexibilidade total. Esta pode ser subdividida em várias subcategorias:

(1) A deslocação pode significar que há um uso oscilante entre vários significados do mesmo signifiant,

(2) pode significar, num sentido muito ricoueriano, que o significado de uma palavra nunca se deixa determinar e esgotar definitivamente, que se mantém aberta a uma cadeia de novas interpretações e de novas dotações de sentido,

(3) pode significar que o autor de um texto verdadeiramente ‘literário' deve procurar explorar a totalidade, em última análise infinita, da polissemia de uma determinada unidade linguística.

Esta estratégia, seja qual for a subcategoria, garante que o ato de conferir sentido a uma palavra, a uma frase, a um texto, não se deixa identificar inequivocamente, uma vez que o sentido / significado não tem um domicílio fixo, não ocupa nenhum lugar determinado, encontrando-se, muito antes, permanentemente em fuga. Daí que seja u-tópico, i.e. não está em lado nenhum. A aporia de que aquilo de que se fala é, por um lado, inidentificável, ou seja, insistant, irréparáble, inconnu,[22] mas, por outro lado, também reconhecível (reconnu)[23], não é nenhum defeito, mas antes precisamente aquela caraterística que o ato de resistência ao poder deve possuir. Pois a resistência deve ser, simultaneamente, visível e invisível. Habitando no interior do sistema e usando os meios da própria langue para resistir ao seu poder, a resistência é um poder subversivo que se esconde no interior da entidade que combate.

Embora exista obviamente uma analogia entre a resistência como fenómeno político e a resistência linguístico-literária, esta analogia não é total, uma vez que, a nível linguístico, o próprio poder foge de si mesmo, ou seja, a langue ela mesma foge ao seu próprio poder, porque é ela o guardião do potencial infinito de significações. Entregar-se a esta infinidade, saber jogar com o tesouro precioso da langue, desrespeitando todas as hierarquias e todas as arquai, ser “an-archiste”,[24] como o próprio Barthes diz, é um dom que apenas os verdadeiros autores possuem.

Em outras obras tardias, Barthes realça muito mais o aspeto hedonista do anarquismo. Libertar-se do poder repressivo, torna-se, no último Barthes, num assunto ligado não só ao prazer do texto, da leitura, da literatura, mas também e sobretudo ao prazer corporal. Redescobrir o potencial ilimitado dos sentidos linguísticos e dos sentidos corporais, para celebrar o seu festejo total, é o desejo íntimo de Barthes ao qual se entregou, de corpo e alma, no decurso final da sua vida.

5. Conclusão

Em jeito de conclusão, gostaria de salientar o seguinte:

(1) O tópico do combate entre sistema e poder revolucionário antagónico parece-me um motivo forte na filosofia do século XX, sobretudo na tradição estruturalista e no espaço francófono.

(2) Penso que a versão barthesiana deste combate, que aponta para uma certa ‘hedonização' da problemática política, seja significativa para as tendências gerais dos anos 70 e 80, em que os movimentos políticos de revolta dos anos 60 se transformaram paulatinamente em tendências e hábitos meramente culturais.

3) Julgo, no entanto, que a raiz deste tópico, tão diversamente trabalhada por autores como Derrida, Deleuze, Adorno, Rorty, Lyotard, não se perdeu por completo, como demonstram, a título de exemplo, os mais recentes e acima já mencionados comentários derridianos aos ataques terroristas do 11 de setembro,[25] que trazem novamente à tona a questão da aporeticidade que inere à preservação do ‘sistema'. Um sistema que procura à força garantir a sua longevidade e imunidade, acabará, inevitavelmente, por implodir e cavar a sua própria sepultura. Qual o papel do discurso subversivo, poético, anarquista, revolucionário, eis no entanto uma questão que permite e permitia respostas diversas. A de Roland Barthes merece certamente não cair em esquecimento.

 

Referências

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[Submetido em 18 de junho de 2015 e aceite para publicação em 25 de julho de 2015]

 

Notas

[1] Barthes, Roland (1978). Leçon. Paris: Éditions du Seuil. Citarei, neste ensaio, tanto o original como a tradução portuguesa: Barthes, Roland (1997). Lição. Trad. de Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70.

[2] “Mais la langue (...) n'est ni réactionnaire, ni progressiste; elle est tout simplement: fasciste; car le fascisme, ce n'est pas d'empêcher de dire, c'est d'obliger à dire.” (Barthes 1978, p. 14).

[3] Saussure, Ferdinand de (1999). Curso de linguística geral. Trad. José Victor Adragão. 8ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 190ss. e passim [título original Cours de linguistique générale, editado primeiramente, por Charles Bally e Albert Sechehaye, em 1916].

[4] Cf. Saussure 1999, pp. 199, 202ss.

[5] Cf. Husserl, Edmund (2006). A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia. In E. Husserl: Europa: Crise e Renovação. Intr. e trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Centro de Filosofia, pp. 119-152; [título original: Die Krisis des europäischen Menschentums und die Philosophie, ed. primeiramente em 1936].

[6] Que Barthes parte dos fundamentos do estruturalismo linguístico, não colocando a sua cientificidade em questão, torna-se evidente na sua obra Barthes, Roland (s.d.). Elementos de Semiologia. Trad. de Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix [título original: Éléments de Sémiologie, publicado primeiramente em 1964].

[7] Cf., a respeito da crítica ricoeuriana ao estruturalismo, Rocha, Acílio da Silva Estanqueiro (1998). Da função semiológica à semântica: Lévi-Strauss e Ricoeur. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela. Consultado em junho 25, 2015, em http://hdl.handle.net/1822/9355. São várias as obras em que Ricoeur frisa o assunto, menciono aqui apenas Ricoeur, Paul (1996). Teoria da Interpretação. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70 [título original: Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning, publicado primeiramente em 1976].

[8] Principalmente Foucault, Michel (2002a). As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Ciências Humanas. Trad. António Ramos Rosa. Lisboa: Edições 70. [título original: Les Mots et les Choses, publicado primeiramente em 1966]. Foucault rejeita principalmente o estruturalismo na versão universalista de Lévi-Strauss e Lacan (se bem que ainda tece elogios ao estruturalismo de Lévi-Strauss em As Palavras e as Coisas (Foucault 2002a, pp. 412-416), alegando o caráter não universal, contingente e genealógico do seu pensar sobre ordens, estruturas e formas de epistemes e/ou discursos. Há que salientar, porém, que o estruturalismo se deixa facilmente combinar com a mudança contingente de estruturas / sistemas ao longo da história, pois é exatamente isso que o pai do estruturalismo, Saussure, defende. Cf., sobre este assunto, também Ruffing, Reiner (2010). Michel Foucault. 2ª ed., Paderborn: Fink, pp. 40-54.

[9] Cf. Foucault, Michel (2002b). Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. 17ª ed., Rio de Janeiro: Graal [coletânea de artigos de 1972-1976, traduzidos primeiro para o alemão sob o título Mikrophysik der Macht: Über Strafjustiz, Psychiatrie und Medizin, em 1976], particularmente p. 5, onde Foucault diz: “Eu não vejo quem possa ser mais anti-estruturalista do que eu.”

[10] Barthes 1978, pp. 12s.; Barthes 1997, pp. 14s.

[11] “(…) a língua (…) pode (…) dar a entender, com uma ressonância por vezes terrível, outra coisa além do que [o sujeito através da sua mensagem] diz, sobre-imprimindo à voz consciente e racional do sujeito, a voz dominadora, teimosa, implacável da estrutura (…).” (Barthes 1997, 16; “(…) la langue (…) peut (…) faire entendre, dans une résonance souvent terrible, autre chose que ce qu'il dit, surimprimant à la voix consciente, raisonnable du sujet, la voix dominatrice, têtue, implacable de la structure (…).” (Barthes 1978, p. 14).

[12] Barthes 1978, pp. 12s.; Barthes 1997, pp. 14s.

[13] Sobretudo na Linguística houve, a partir dos anos 20 do século XX e na esteira das primeiras receções eufóricas de Saussure, um vasta corrente teórica que defendeu o poder supremo do sistema da langue, sobretudo da língua materna. Cf. acerca deste fenómeno Sylla, Bernhard (2014), Humboldt reloaded. Vier Paradigmen der meaning-zentrierten Sprachphilosophie. Würzburg: Königshausen & Neumann, pp. 48-88.

[14] “(...) a língua aflui ao discurso, o discurso reflui na língua, persistem um sob o outro como no ‘jogo da sardinha'.” (Barthes 1997, p. 30); “(…) la langue afflue dans le discours, le discours reflue dans la langue, ils peristent l'un sous l'autre, comme au jeu de la main chaude.” (Barthes 1978, p. 31).

[15] Barthes, Roland (1957). Mythologies. Paris: Éditions de Seuil [trad. portuguesa: Barthes, Roland (s.d.). Mitologias. Tradução e prefácio de José Augusto Seabra. Lisboa: Edições 70].

[16] Barthes, Roland (s.d.). Mitologias, pp. 268-269.

[17] Borradori, Giovanna (2004). Filosofia em tempo de terror: diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida. Trad. de Jorge Pinho. Porto: Campo das Letras.

[18] Ibid., pp. 200-217.

[19] “Esta trapaça salutar, esta esquivança, este logro magnífico que permite conhecer a língua no exterior do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, é aquilo a que eu chamo literatura.” (Barthes 1997, p. 18); “Cette tricherie salutaire, cette esquive, ce leurre magnifique, qui permet d'entendre la langue hors-pouvoir, dans la splendeur d'une révolution permanente du langage, je l‘appelle pour ma part: littérature.” (Barthes 1978, p. 16).

[20] Barthes 1978, p. 17 e passim.

[21] Barthes 1997, p. 19 e passim.

[22] Barthes 1978, p. 20.

[23] Ibid.

[24] Ibid., p. 24.

[25] Borradori 2004.

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