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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

Sobre as origens de [u] átono no Português europeu contemporâneo: variação, mudança e dimensões sociocognitivas [1]

On the origins of unstressed [u] in contemporary European Portuguese: variation, change and socio-cognitive dimensions

 

Maria José Carvalho*

*Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (CELGA-ILTEC), Portugal.

mariac@fl.uc.pt

 

RESUMO

Com este estudo, pretende-se determinar o valor de /o/ átono no português medieval, em posição interior e final de palavra, num corpus documental oriundo da zona Centro-litoral portuguesa. Argumentaremos que, em interior de palavra, o contexto consonântico é bastante mais importante na mudança [o] > [u] do que o contexto vocálico referido por Herculano de Carvalho. Demonstrar-se-á que, nesse contexto, a realização [u] do português europeu remonta ao século XIII, tendo-se difundido gradualmente no interior do léxico (de acordo com as combinações fonemáticas), e que a consciência dessa mudança deverá ter começado em finais do século XIV, muito antes do testemunho setecentista de Luís Caetano de Lima. Através de numerosas abonações que atestam o fechamento (e, por vezes, a perda dessa vogal) ou ainda de fenómenos de hipercorreções gráficas, tentar-se-á provar que, na região em estudo, esta mudança deveria ter-se difundido por volta do segundo quartel do século XV, dando lugar, a partir de meados desse século, à “deriva” linguística. Por fim, reivindica-se o reconhecimento da investigação histórica nos estudos de Linguística Cognitiva, particularmente os que concernem a aprendizagem do sistema ortográfico do português por crianças do 1º Ciclo do Ensino Básico.

Palavras-chave: História dovocalismo átono; Elevação vocálica; Cognição e mudança linguística; Linguística sociocognitiva; Mudança linguística e standardização.

 

ABSTRACT

The aim of this study is to determine the value of unstressed /o/ in mid and final position, in a corpus of medieval Portuguese documents from the central-coastal region of the country. We argue that, within the word, the consonantal context is more important in the change [o] > [u] than the vowel context, mentioned by Herculano de Carvalho. We will show that in this context the realization [u] of European Portuguese goes back to the 13th century, having proceeded gradually within the language, according to phoneme combinations, and that awareness of this change would have begun at the end of the 14th century, well before the 18th-century testimony of Luís Caetano de Lima. Through abundant evidence showing the closure (and sometimes the loss of this vowel), or even examples of graphical hypercorrection, we will try to show that, in the region of study, this change must have spread around the second quarter of the 15th century, making way for linguistic drift from the middle of this century. Finally we stress the importance of historical research in studies of cognitive linguistics, especially those on the learning of the Portuguese orthographic system by primary school children.

Keywords: History of unstressed vowels; Vocalic elevation; Cognition and linguistic change; Sociocognitive linguistics; Linguistic change and standardization.

 

In Memoriam José G. Herculano de Carvalho

A razão pela qual podemos acreditar nessa descontinuidade e lentidão é-nos dada pela anarquia que parece reinar na expansão do vocabulário português: neologismos com dezenas de anos, como “telefone”, “televisão”, “automóvel” ou “aspirina” têm redução das átonas pretónicas, mas outros mais recentes, como “teletexto”, “telemóvel”, “autoestrada” ou “aspegic” não incorporam o processo (…) (Marquilhas 2003: 6-7).

The distribution of metaphony in Iberia (the North and the West) suggests that it is ancient and was once more widespread (Penny 2009: 123).

0. Introdução: status quæstionis e considerações preliminares[2]

Como é sabido, o PE contemporâneo tende a fechar em [u] o /o/ átono, quer este se encontre em posição interior ou em final de palavra.[3] Este fechamento e redução traduzem-se em algumas dificuldades reveladas por um falante/ouvinte estrangeiro quando aprende a variedade europeia do Português. De facto, no Português padrão do Brasil bem como no galego, manteve-se a realização [o] em posição átona medial, o que torna a perceção vocálica bastante mais fácil. Já em posição final, enquanto o galego e alguns dialetos brasileiros (nomeadamente o caipira de S. Paulo) mantêm a realização [o], o português europeu e o Português padrão do Brasil conhecem a realização [u].

Para avaliar o valor de o em posição pretónica não inicial absoluta no século XVI, parece ser em vão recorrer aos gramáticos. Afirma, a este propósito, Thomas Hart:

Fernão de Oliveira, it is true, does say that “there is such great similarity between u and small [i.e., close] o that we tend to confuse them, some people saying somir and others sumir, and similarly with dormir and durmir, bolir and bulir, and many other words”. This, however, tells us very little, since we cannot be perfectly sure whether he is talking about pronunciation or about spelling (Hart 1955: 409).

Por outro lado, se atentarmos no testemunho de um observador setecentista como Luís Caetano de Lima, deparamo-nos com o mesmo tipo de problema, para o qual nos adverte I. S. Révah, dois anos mais tarde: «(...) mais il ne faut pas se dissimuler le fait que L. Caetano de Lima est plus préoccupé d'orthographe que de prononciation réelle: son témoignage exige d'être confirmé par d'autres données» (Révah 1959: 282). E, um pouco mais adiante, complexifica a questão do valor de o pretónico:

En réalité, la tendance de la langue était bien de faire passer O prétonique à U: cette tendance a fini par vaincre dans presque tous les cas dans l'actuel portugais commun. Mais, tout au long des siècles, au Portugal comme au Brésil, cette tendance a été contrariée par des réactions en sens inverse: (...) une réaction savante qui rétablissait le O étymologique ou orthographique. On sait, par ailleurs, que dans la prononciation scolaire du latin, tout E et tout O étaient ouverts: cette prononciation scolaire du latin a également agi sur le portugais. En 1736, Luís Caetano de Lima qualifie de O fermés tous les O prétoniques. Il peut s'agir d'une prononciation réelle, pédante ou plus soignée que celle du parler populaire. Mais on peut soutenir également qu'il s'agit d'une simple erreur d'un théoricien de l'écriture qui confond orthographe et prononciation (idem, ibidem: 290).[4]

Admitindo a hipótese proposta por Révah, sublinha Herculano de Carvalho:

Le phénomène bien connu du portugais moderne, la tendance à la chute et à l'assourdissement des voyelles atones, parait remonter, dans ses origines, à une époque bien plus ancienne qu'on ne serait porté à croire. Si cette tendance n'a pas tout à fait abouti, cela se doit très certainement à l'action de la norme linguistique cultivée qui, n'ayant pas réussi à l'empêcher tout à fait, a du moins pu retarder considérablement un procès, lequel, en suivant librement son cours, aurait transformé profondément le système phonologique portugais (Carvalho 1962a: 11).[5]

Defende este Autor que «quanto às outras posições (em morar, dever, árvore, áspero), teremos que supor, até nova prova, que e o correspondessem efectivamente a [e o] fechados, e não ainda a [ë u]» (idem 1962b: 15). Recorda seguidamente os exemplos dados por Fernão de Oliveira, que lhe permitem sustentar a sua argumentação:

De modo algum se pode concluir que fosse geral a tendência a fechar em u todo o o pretónico. Ora, se examinarmos bem as formas citadas por F. de Oliveira e as compararmos com as restantes formas quatrocentistas e quinhentistas com u pretónico em vez de o, verificamos que elas têm todas de comum a presença de um u ou i na sílaba imediatamente posterior (em geral a tónica) àquela em que o se fechou em u. Quer dizer que este cerramento constitui um fenómeno de assimilação estritamente condicionado à natureza da vogal da sílaba imediata (Carvalho 1962b: 16).

E, baseado no testemunho das variedades modernas do português, conclui:

Não há dúvida que nalgumas formas brasileiras, como corpinho e folhinha com [o] átono, diminutivos de côrpo e fôlha respectivamente (ao lado de corpinho ‘peça de vestuário' e folhinha ‘calendário', com u átono), o o fechado se deve à consciência etimológica da derivação, mas não parece nada provável que tanto nestas como sobretudo na multidão de outras formas em que a realização [o] na pretónica é constante, esta se deva a uma restauração, muito menos a uma restauração “savante”. Tal hipótese, por outra parte, torna-se inteiramente inadmissível relativamente às vogais pretónicas dos falares crioulos (idem, ibidem: 17-18).

Paul Teyssier, por outro lado, afirma que no português do século XVI a realização dessas vogais era [o] e [e], como ainda hoje permanece em galego. O que terá acontecido é que os falantes lusófonos, durante muito tempo, não tiveram consciência da deriva, e foi necessário esperar pela primeira metade do século XVIII para que certos observadores notassem que se pronunciava [u] e [i] (Teyssier 1980: 75). Caberá perguntar, como Ana Maria Martins, «em que momento entre o século XVI e os primeiros testemunhos dos gramáticos se terá produzido a elevação?» (Martins 2003-­‑2006: 300, n. 7).

A contribuição mais recente para esta questão, e que constitui, inquestionavelmente, uma observação inovadora que adensa o enredo deste problema tão obscuro e pertinente, parece ter sido de Rita Marquilhas: «em compostos com radicais neoclássicos há pr[ɔ]tagonista e pr[u]tagonista, digl[ɔ]ssia e digl[u]ssia, em nomes próprios formados por acronímia há S[ɔ]n[ɐ]sol e S[u]n[a]sol» (Marquilhas 2003: 3).

Paralelamente à questão dos neologismos, podemos observar o fenómeno de aquisição linguística. Quem for minimamente sensível à forma como as crianças portuguesas aprendem os sons da língua materna, apercebe-se que desde muito cedo, mesmo antes de entrarem para escola, desenvolvem mecanismos de “ultracorreção” (que pode ser variável de criança para criança),[6] tendentes a recuperar a realização [o] em contextos em que, instintivamente, já “sabem” que se pronuncia [u]. Assim, é muito comum uma criança de 5 anos pronunciar [koʹmiɣu] em vez de [kuʹmiɣu], ‘comigo' ou [koʹmer] por [kuʹmer],por exemplo, atestando, eventualmente (e instintivamente) alguma consciência da malsonância desta combinação fonemática. Por outro lado, numa fase posterior, e ao nível gráfico, é extremamente comum a confusão entre <o> e <u> em crianças do 1º Ciclo do Ensino Básico, já que, tendo aprendido, aos 6 anos, que à mesma imagem sonora poderão corresponder dois tipos de grafia, não encontram qualquer regra prosódica ou lexical para o uso de uma ou de outra. Já em contexto final, parece não haver, ao nível fónico, qualquer tipo de variação. Contudo, são também muito frequentes as hesitações gráficas em crianças do ensino básico, na fixação escrita do som final, particularmente nas formas verbais de 3ª pessoa de verbos da 3ª conjugação, onde confluem as duas vogais mais altas do espetro vocálico: *rio (por riu), *partio (por partiu), *fugio (por fugiu), por exemplo, são erros frequentíssimos em crianças de 7/8 anos de idade.[7] Este fenómeno de alteração, designado de “generalização de regras”, revela a existência de certos procedimentos de generalização nem sempre aplicados de maneira apropriada. O facto de uma criança escrever a palavra fingiu como *fingio, pode revelar a compreensão de que em certas situações o som [u] que se pronuncia nas palavras pode transformar-se no grafema <o>. Assim, ao pronunciar uma palavra como carro, a criança reconhece que o som final está escrito com o grafema <o>, sendo esta a razão pela qual a criança realiza uma generalização (não convencional) de tal procedimento para outras palavras. As mesmas crianças sabem, no entanto(como os escribas medievais já o saberiam), que, em posição final, [u] é apenas a imagem sonora.[8]

Infelizmente, os estudos sobre aquisição linguística e aprendizagem da ortografia em Portugal nada têm beneficiado das aportações que os estudos sobre a mudança linguística poderão proporcionar, nomeadamente no diagnóstico e prevenção dos erros ortográficos. Ora, este tipo de erro ortográfico, se entendido à luz da evidência histórica (documental) e enquadrado no âmbito de uma perspetiva consistente sobre a mudança linguística, aponta para a necessidade de integração da investigação histórica nos estudos de Linguística Cognitiva.

Na secção seguinte, daremos conta dos testemunhos documentais da evolução do fenómeno de fechamento desta vogal átona, interpretando a variação gráfica, sempre que possível e oportuno.

1. Análise do corpus

O corpus que iremos analisar é constituído por 153 documentos notariais originais (sécs.XIII-XVI), por nós transcrito (Carvalho 2006: 33-287), oriundo dos fundos do mosteiro cisterciense de Alcobaça, um importante centro na cultura portuguesa medieval (situado entre Coimbra e Lisboa). Os documentos situam-se num período compreendido entre 1289 e 1565, e são redigidos não apenas no mosteiro mas também nas áreas periféricas sob sua jurisdição, os chamados “coutos”. Escolhemos como amostra um corpus único, seriado cronologicamente, pois cremos que é comparando textos do mesmo género ao longo dos tempos que chegamos ao que Kabatek designou de variação diacrónica “autêntica” (Kabatek 2001: 97). O universo do discurso é a linguagem jurídica usada nos contratos relativos à propriedade: documentos de compra e venda, de arrendamento, de troca, recibos e testamentos, por exemplo. É sobre esta dupla base de campo de estudo – geográfica e temática – que podemos observar a evolução contínua dos textos e, por isso, em paralelo, da língua.

A ferramenta metodológica que usamos neste artigo é, naturalmente, de base estatística, embora saibamos que o valor das percentagens das unidades lexicais que exibem <u> em sílaba átona seja baixo, dada a opacidade com que se tinge o relacionamento língua escrita/língua oral. De um modo geral, cada unidade apresenta a sua evolução particular, pelo que foi calculada a frequência de <u> em cada uma dessas unidades, tendo em conta o total de abonações do corpus. Sempre que se julgou oportuno, foi delimitada uma etapa epocal como universo a considerar. Tal acontece, por exemplo, quando há uma ocorrência totalmente isolada ou extemporânea, que não se integra de todo na tendência evolutiva observada. Por vezes, deteta-se variação de tipo idioletal, verificando-se o uso de <u> no documento de um único tabelião; casos há, ainda, afetando apenas uma unidade lexical, o que leva a considerar apenas documentos isolados, para fins estatísticos. Em raros casos, como veremos, é possível visualizar nitidamente tendências evolutivas.

Na nossa análise, ilustraremos alguns condicionamentos vocálicos que podem ter motivado o «cerramento (…) condicionado à natureza da vogal da sílaba imediata», como refere Herculano de Carvalho (1962b: 16), evidenciando um outro tipo de contexto assimilatório – em nosso entender, bastante mais importante – que é o contexto consonântico. Analisaremos, igualmente, os casos em que poderão ter atuado os dois tipos de contexto.

Faremos, finalmente, coincidir o início do processo da mudança com aquele em que surge <o> em contextos onde, de acordo com a origem e a natureza da palavra, seria mais natural surgir <u>, normalmente em palavras de origem árabe, em palavras derivadas (criações lexicais), empréstimos e cultismos. Ou seja, o início do processo de mudança ter-se-á dado quando se deu o fenómeno cognitivo da consciência linguística dessa mudança.

1.1. Posição átona não final (inicial absoluta e em interior de palavra)

Analisemos, de seguida, o que foi possível registar na posição inicial absoluta. Pode observar-se nos textos mais antigos a existência do ditongo ou nesta posição: ourijnte (< ŏrĭente-) (1300 Alj 8),[9] denunciando uma realização [ow] para /o/ em início de palavra, tendência que existiu no antigo galego-português e que se manifesta ainda atualmente no mirandês, no asturiano ocidental e nos falares transmontanos da fronteira oriental. Revela-se interessante constatar que excecionalmente surge, num texto tardio, a forma Utubrro (< *octobriu-) (1505 MA 139), cujo ditongo ou deve ter passado por uma fase intermédia de monotongação em [o], que tendeu, posteriormente, para o fechamento. O caráter isolado da forma impede-nos de extraír conclusões seguras, mas leva-nos a crer que poderá ter havido uma tendência tardia para a elevação dessa vogal átona em posição inicial.[10] Destes dados apenas é possível admitir que durante o período estudado existiam as realizações [ow], [o] e (eventualmente) [u] em início de palavra, tudo levando a crer que, neste último caso, [u] refletisse uma tendência mais recente.

De referir ainda que a forma historicamente representante de hospitāle surge sempre com mudança de grafema em posição inicial (ou com aférese do mesmo), por um processo assimilatório: eſpital (1412 Ped 74, 2 v.; 1429 MA 88, 2 v.), eſpitall (1453 MA 107) e ſpital (1423 MA 83).

1.1.1. Mudanças condicionadas pelo contexto vocálico

Vejamos agora as mudanças observadas em posição átona interior de palavra. Em primeiro lugar, trataremos as mudanças condicionadas pelo contexto vocálico. A análise dos dados do nosso corpus permite-nos, de facto, reabilitar a hipótese de I. S. Révah e de Herculano de Carvalho relativamente à tendência antiga para o fechamento em [u] de todo o o átono não final, que foi, efetivamente (e desde cedo), travada por uma reação ou restauração “savante”. Os exemplos colhidos no nosso corpus poderão dividir-se em duas tipologias: aqueles em que se verifica a assimilação exercida por i ou u da sílaba tónica, e os que exibem fechamento condicionado pela situação de hiato com a vogal seguinte. Quanto ao primeiro caso, recorde-se que as variantes medievais representantes da atual forma composta bemfeitoria (< *benefactoria) começam a deixar transparecer <u> gráfico pretónico a partir da primeira década do século XV. Registam-se apenas 9 ocorrências, o que perfaz uma percentagem de 15,4%, ao longo do corpus: benffecturias (1409 MA 72, 2 v.; 1410 MA 73), benffecturjas (1410 MA 73), benfecturja (1410 MA 73), bem feiturias (1416 MA 78, 1429 MA 88; 1438 Ped 95) e bem ffeyturias (1489 MA 130).

Do antropónimo Soeiro (<*Soariu-), a única forma a apresentar fechamento da vogal átona data de 1375: ſueiro (1375 MA 48), representando apenas 25%, num total de 4 ocorrências: Soeyro (1289 MA 1 e 1306 Cós 12) e ſoeiro (1409 MA 72). Por outro lado, as formas patronímicas ſoariz e ſuariz convivem no mesmo documento (1304 Alc 10), mas este patronímico surge um pouco posteriormente na variante ſoarez (1329 Evo 22). Também em hiato com a vogal seguinte, encontra-se a vogal posterior na forma piſſueiro (1478 MA 123), única nesta coleção. Sabemos que um tabelião de Aljubarrota emprega, no mesmo documento, as formas reſtetujr (< restĭtǔĕre) (1491 Alj 132) e rreſtetoydos (1491 Alj 132), constituindo aquela variante uma percentagem de 86% do total de ocorrências (incluindo todas as formas derivadas) ao longo do corpus.

Saliente-se que o fenómeno de desaparecimento de o postónico em formas inicialmente proparoxítonas, e em contexto de vizinhança de fonema fricativo ou velar (com propriedades articulatórias mais próximas de [u]) já estava em curso no primeiro quartel do século XV: Paſca[11](< Paschoa) (1423 MA 83) e poua (< pŏpŭla-) (1477 MA 121) são alguns exemplos que provam a eminência de formação de um ditongo crescente e, portanto, de fechamento de vogal postónica.

1.1.2. Mudanças condicionadas pelo contexto consonântico

Argumentaremos neste parágrafo que o contexto consonântico parece ter sido bastante mais importante que o contexto vocálico referido por Herculano de Carvalho, pelo que a mudança agora em estudo foi uma mudança intralinguística, que se verificou gradualmente.

O fechamento da vogal átona por condicionamento assimilatório de tipo consonântico é antigo e deve ter tido uma difusão considerável no interior da língua, a partir de certo momento do tempo, como nos provam diversos documentos. É certo que em alguns casos essa difusão foi desde cedo travada por uma reacção conservadora, mas outros houve em que as consoantes contíguas exerceram uma pressão demasiado forte, que se sobrepôs a qualquer reacção “savante”.

O primeiro texto a apresentar u em contexto átono data de 1300 e foi redigido em Aljubarrota: dubrada[12] (< dŭplāta-) (1300 Alj 8); um outro é oriundo de Cós, do “mosteiro das Donas”:Cuſtãça (< constantĭa) (1343 Cós 32, 3 v.) e cu[n]hado (1343 Cós 32, 2 v.), tratando-se, neste último caso, da variante que a norma viria a consagrar,[13] não obstante o étimo (< cognatu-).

A tendência no desenvolvimento histórico do étimo pōmare, por exemplo, foi também a elevação de vogal da sílaba átona pretónica: Pumar (1289 MA 1, 2 v.) e pumares (1321 Alc 17). O <o> etimológico continuaria a verificar-se lado a lado com <u> no mesmo contexto: pomares (1304 Alc 10; 1342 Alf 30), pomar (1397 MA 63, 8 v.; 1426 MA 85, 7 v.; 1459 MA 111; 1460 MA 112, 4 v.) e pumar (1465 MA 116; 1500 MA 136, 2 v.; 1529 MA 148).

O mesmo aconteceu com a forma ſocceſſores (formada com o prefixo proveniente de sŭb latino)[14] e variantes, ao longo do período abrangido pelo presente estudo. As formas com u átono representam apenas 7% do total, e são as seguintes: ſuſeyçoreſ (1291 Alc 2), ſuſeçores (1291 Alc 2) e ſucceſſores (1304 Alc 10, 6 v.); a forma ſoceſſoreſ (1291 Alc3)começa, porém, a rivalizar coma variante inovadora desde finais do século XIII. Curiosamente, num documento de 1391 prevalece a variante com <u>, mas deverá tratar-se de uma tendência idioletal, pois esta vogalnão se vislumbrará nestas formas a partir dessa data. São as seguintes as variantes em convívio: ſubceſores (1391MA 59), ſuceſores (1391MA 59), ſucceſores (1391MA 59, 3 v.) e ſocceſores (1391 MA 59), o que significa que nesse documento a variante com u representa 83%. Também a forma ſtrumẽto (< instrŭmĕntu-)(1307 Alp 13, 3v.) domina um texto de inícios do século XIV, mas trata-se de um testemunho completamente isolado neste corpus.

Já na forma historicamente representante de fŏcācea, a tendência para o fechamento da vogal fez-se sentir até ao início do último quartel do século XIV (<u> representa, nesta unidade lexical, e ao longo do corpus, 31%), muito provavelmente devido à pressão exercida pelas consoantes lábio-dental e velar contíguas à vogal átona: fugaça (1291 Alc 2; 1321 Alc 17; 1337 Alc 27; 1375 MA 48).

Relativamente à forma historicamente representante de mŭlĭere-, sabemos que, na sílaba átona, exibe <u> num documento do último quartel do século XV, sendo aí exclusivo o seu uso: mulher (1477 MA 121, 5 v.), mas trata-se de um testemunho documental único.

Na forma historicamente representante de lugar (< lŏcāle-), até 1396 só se documentam as variantes com <o> em sílaba átona ((l)logar(es), loguar(es), etc.); entre essa data e 1425, registam-se duas variantes com <u>; no segundo quartel do século XV, cerca de 72% das ocorrências apresentam o resultado gráfico da elevação da vogal,[15] e a partir de 1460 a grafia é em 95% dos casos semelhante à atual.

Revela-se interessante constatar que o documento 1383 Alj 53, para além de apresentar 5 ocorrências da forma toponímica Purtugal (< portucale-)[16] e respetiva forma gentílica, evidencia igualmente <u> em outras formas onde não existe condicionamento vocálico assimilatório: Alcubaça (* alc-oba + -aça) (1383 Alj 53, 2 v.), por exemplo. Estas duas ocorrências representam uma percentagem ínfima de 0,8% ao longo da coleção, mas é extremamente importante o facto de ocorrerem de forma exclusiva num documento de 1383, escrito numa região periférica ao mosteiro. Para além disso, este documento exibe, igualmente, aprufeitardes[17] (de profectare), onde a elevação da vogal poderá eventualmente ter sido simultaneamente motivada por dois contextos: a existência de uma semivogal anterior na sílaba seguinte e a contiguidade de um fonema labial. O mesmo tipo de condicionamento surge num documento do início da quinta década do século XV, que apresenta uma forma onde, para além de o ter dado lugar a u se desenvolveu igualmente uma semivogal: mujſtejro (< monĭsteriu-)(1442 MA 98) (moeſteiromooſteiromoſteiromuſteiromujſteiro).[18]

Os exemplos expostos são suficientes para provar que, não obstante as baixas percentagens de ocorrências de <u> átono em algumas das formas, poderia já corresponder a [u] a realização de /o/ em sílaba átona, em muitos contextos, pelo menos a partir do último quartel do século XIV. Selecionámos dois casos que julgamos paradigmáticos no esclarecimento da tão obscura questão do valor de /o/ átono no português medieval. No primeiro exemplo, a norma gráfica veio a excluir o grafema <u> e no segundo caso veio a consagrá-lo. Observemos, no gráfico seguinte, as cronologias das formas pumar(es) e lug(u)ar(es):

 

 

No primeiro caso, vemos como o grafema vocálico <u> volta a superar <o> na forma pomar, a partir de 1460. Em lugar, a presença de uma consoante velar acelerou o ritmo evolutivo de o, que, a partir de 1460, parece dar lugar, irreversivelmente a u, sobrepondo-se a qualquer uso gráfico em vigor.

1.1.3. Mudanças condicionadas simultaneamente por contexto vocálico + consonântico

A forma historicamente representante de *cō(n)suētūmǐne (e seus derivados) é a que se encontra mais abundantemente representada nos documentos. Num leque cronológico compreendido entre 1291 e 1529 foi possível encontrar 71 abonações, 89% apresentando o resultado da assimilação da vogal da sílaba pretónica ou da sílaba inicial (conforme se trate de cuſtume ou de seus derivados) ao timbre da vogal da sílaba seguinte, geralmente a tónica: cuſtume(s), cuſtumara, cuſtumou, cuſtumarẽ, cuſtumarõ, cuſtumarã, acuſtumado/as, etc.

É interessante salientar que a reação “savante” (apenas ao nível gráfico, obviamente) de que fala I. S. Révah parece ter-se verificado desde a fase mais antiga da língua até ao século XVI, a avaliar pelas escassas ocorrências (representam apenas 11%) que a grafia deixa transparecer. Em pleno século XVI, encontramos, todavia, no mesmo documento acoſtumado e cuſtume (1528 MA 148), provando que a consciência etimológica era maior nas formas derivadas. Neste caso concreto, parece que essa reação restauradora só iria conseguir vingar após o período medieval.

A forma medieval furtujto (< fortuĭtu-) (1383 Alj 53) exibe igualmente o grafema <u> na sílaba pretónica, mas depois de 1383 todas as formas recuperam o <o> etimológico na grafia, constituindo tal ocorrência uma percentagem de apenas 12,5%. Sabemos que, por essa altura, que coincidiu com a ascensão ao trono de D. João I, começaria o governo de Frei João Dornelas no mosteiro de Alcobaça, a cuja empresa se deve o esforço de standardização gráfica.[19] Do mesmo modo se explica a forma mũturo (de monte-) (1484 MA 126), cuja vogal nasal também sofreu influência de u da sílaba tónica, mas trata-se de um exemplo completamente isolado no nosso corpus.

Um outro exemplo é a forma puſtumeiro (1350 AM 36), que apresenta igualmente a tendência para o fechamento de o na sílaba inicial, já em meados do século XIV, mas cuja difusão foi desde cedo refreada, muito provavelmente devido à consciência etimológica da derivação (formado a partir de pŏstrēmu-). Trata-se, de facto, de uma abonação completamente isolada que representa apenas 3,8% do total de ocorrências. Também isolado se apresenta o advérbio cumunalmẽte (< communāle) (1372 MA 47), embora, no século anterior, o adjetivo de que deriva não revele esse fechamento da vogal em causa: comunal (1291 Alc 2).

Quanto à influência de consoante e de vogal anterior, a primeira abonação que possuímos é rrecuciliaua (de reconcilĭāre) (1402 MA 67), tratando-se de uma forma totalmente isolada, o que nos impede de extraír qualquer conclusão. No final da terceira década do século XV surge a forma [cõ]puſyçõ (< cŏmpositĭōne-) (1438 Ped 95), representando apenas 8% do total das variantes, ao longo do corpus. É sensivelmente a mesma percentagem (9%) que encontramos em ſub p[r]ior (1465 MA 116), ſub prior (1528 MA 147)[20] e suprior (1565 Alc 153), com prefixo historicamente resultante de sŭb.A forma ſubfiçient[e] (1472 TC 120), que é a primeira de todas as variantes a evidenciar o fechamento da vogal, é também a única que revela a elevação da vogal átona da sílaba inicial, representando agora uma percentagem de 14%. Regista-se ainda a forma ſubr[e] d[i]ctos (1416 MA 78), estatisticamente insignificante num conjunto considerável de ocorrências, mas cuja cronologia não deixa de ser pertinente.

Diferente é a situação da forma medieval correspondente ao atual topónimo Portugal, bem como à forma gentílica correspondente, uma vez que <u> em posição átona representa aqui 100%, em toda a coleção: Purtugal (1383 Alj 53, 2 v.), Purtugall (1421 Evo 80; 1526 Ped 145), Purtugual (1451 MA 105) e purtugueſes (1405 MA 70).

Um tabelião de Aljubarrota (aliás, o mesmo que emprega as formas reſtetujr e rreſtetoydos), emprega num documento a forma futuro (fǔtūro) (1491 Alj 132) e em outro do mesmo ano a variante ffoturo (1491 Alj 133), mas possuímos apenas esses exemplos, que são escassos para se poder concluir com segurança.

Importa concluir, atendendo aos exemplos apresentados, que a contiguidade de um fonema velar (/k/ e /g/) ou labial (/m/, /f/, /p/ e /b/) é um contexto que favorece o fechamento de [o], uma vez que propicia o recuo na articulação, o arredondamento e a labialização da vogal. Assim, nos casos em que não se verifica qualquer condicionamento vocálico assimilatório, todas as formas apresentadas que apresentam (em maior ou menor grau) o fechamento da vogal átona (100% das formas, portanto) evidenciam o contexto consonântico apresentado: Alcubaça,Cuſtãça, fugaça, lugar,mulher,pumar, ſtrumẽto e ſubceſores.

Por outro lado, a quase totalidade das formas com <u> que apresentam condicionamento vocálico assimilatório (ocasionalmente, o elemento fónico condicionador é uma semivogal) exibe igualmente um desses fonemas em contiguidade com a vogal em causa: puſyçõ,cumunalmẽte, cuſtume,furtujto, futuro,mũturo,Purtugal (e purtugueſes), puſtumeiro, rrecuciliaua, ſub prior, ſubfiçiente e ſubre dictos.[21]

Finalmente, encontram-se nos documentos desta região, tal como nos da primitiva área galego-portuguesa, algumas formas em que, por dissimilação, o se transforma em outra vogal: B[er]tolameu (1328 Alj 21; 1346 SC 34; 1355 Cel 40, 2 v.; 1362 MA 44; 1377 Alv 50, 3 v.; 1386 MA 56; 1396 Ped 62; 1402 Ped 68; 1505 MA 138; 1509 Ped 140, 2 v.), p[er]ſuam (1485 MA 128), p[er]ſſujrom (1448 Alj 103), peſtumeira (1479 MA 124), peſuã (1502 MA 137) e peſuyram (1459 MA 110).[22]

Em outros casos, regista-se um fenómeno de tipo assimilatório: rreſſio (1388 MA 58) e rreſſyo (1453 MA 107, 2 v.). Nestas formas, verificou-se uma tendência, relativamente tardia, para a harmonização vocálica: rrjſjo (1532 Tur 149) e rryſſyo (1453 MA 107).

1.1.4. O fenómeno de hipercorreção: a formação da consciência linguística

Um fenómeno que, em nosso entender, é diferente da “restauração savante” a que alude I. S. Révah (e que causou alguma estranheza a Herculano de Carvalho) verificou-se em palavras onde não seria de esperar a existência de o, como em almoxa[rife] (1363 MA 45), almoinha (1482 MA 125, 2 v.), etc. É, na nossa opinião, quando se dá este tipo de reação em palavras que deveriam, de acordo com o étimo, manter <u> gráfico, ou seja, quando se toma esta consciência, que se pode falar do início do processo da mudança. Esta tomada de consciência deverá datar-se muito antes do século XVIII, como observou Paul Teyssier (1980: 75), e constitui uma atitude escribal de sobreutilização do <o>, da mesma forma que hoje as crianças de 7/8 anos fazem ao escrever faboloso, coriosidade, sobterrâneo ou poloição.

Esta tendência estava em incubação em formas de uso corrente onde existia um hiato, no primeiro quartel do século XIV, tendo ressurgido no século seguinte: cõtinoadamẽte (de continuu- ) (1321 Alc 17) e cõtinuadamẽte (1324 Alc 18); cõtynoar (1414 Alv 76), cõtjnoadamẽte (1430 Cós 89) e cõthynuada mẽte (1434 SC 91). Sobre estas “modalidades” exprimira-se deste modo Herculano de Carvalho, a propósito do que nos diz Fernão de Oliveira: «(…) sendo o o pequeno de qoando, língoa, (…), continoar (como F. de Oliveira desejaria se escrevesse em vez de quando, etc.) um u ‘líquido', identificável com uma variedade mais fechada de o pequeno, mas tão próxima de u que muitos com ele a confundem». E explicita em nota: «Por letras ou vozes líquidas entende F. de Oliveira em última análise aquelas que, constituindo o que chamaríamos fonemas assilábicos, formam grupo com consoante anterior, como u em quando (…)». (Carvalho 1962b: 9 e n. 1).

Posteriormente, pela regra de propagação analógica generalizada, esta ultracorreção veio a estabelecer-se em numerosos contextos, nomeadamente aqueles em que não existe qualquer fonema vocálico. Assim, um documento de 1372 exibe <o> num contexto em que seria de supor aparecer <u>(ou seja, quando uma consoante velar sonora precede uma vogal anterior). Ora, o que se verifica é que os notários transpunham por vezes o grafema <o>, que eventualmente corresponderia a uma imagem sonora [u], para um outro contexto em que <u> era um grafema vazio, sem qualquer equivalência fonológica. Trata-se, portanto, de um processo psicológico que decorre da associação imagem gráfica/imagem sonora, tendo precedência (hierárquica ou axiológica) a imagem gráfica, escrita, sobra a imagem sonora, falada (Carvalho 1962b: 4). Os exemplos extraídos desse documento são os seguintes: ſegojnte, agojſadamẽte e pagoe (1372 MA 47). No mesmo documento surge o em contexto assilábico, ou seja, como semivogal, o que não deixa dúvidas quanto ao valor fónico de <o> gráfico em sílaba átona: cincoẽta, goardar, engoas e augoas. A partir desta altura, <o> surge frequentemente para representar /w/ nos grupos kw e gw, tal como acontece nos documentos da primitiva região galego-portuguesa (Maia 1997: 426 e 641). Assim, o mesmo <o> gráfico volta a surgir com valor fónico de semivogal na década seguinte e durante a 1ª metade do século XV:[23] çjnqoenta (1383 Alj 53, 2 v.), cĩcoẽta (1415 Ped 77), cjncoẽta (1416 MA 78, 3 v.), cjncoeta (1429 MA 88), çyncoẽta (1433 Ped 90, 2 v.) e porcoãto (1448 Ped 102).

Mas as hesitações na fixação gráfica da semivogal nos ditongos crescentes tornam-se mais acentuadas a partir do 3º quartel do século XV: Agoas (1502 MA 137), augoa (1541 Sal 152), auguoa (1541 Sal 152, 2 v.), cynqoenta (1505 MA 138),[24] çimqoẽta (1529 MA 148), goarda (1529 MA 148), mỹgoa (1519 MA 142), quoaeσ (1467 Mai 117) e quoatroçẽtoσ (1462 Mai 114 e 1467 Mai 117, 2 v.).

Para além deste contexto de hiato, os vocábulos de origem árabe foram aqueles que, de forma nítida, sofreram essa adoção de o na sílaba átona. No primeiro documento da coleção em que ocorre a forma historicamente representante de al-muxrif (e derivados), esta surge sempre com <u>, de acordo com o étimo: almuxariffe (1352 Ped 38, 2 v.), almuxariffado (1352 Ped 38) e almuixariffe (1352 Ped 38). A partir de 1363, apenas 4 ocorrências evidenciam o <u>, em conformidade com a sua origem: almuxiliffe (1409 MA 72), almux[a]r[i]ffe (1409 MA 72, 2 v.) e almuxa[r]iffes (1430 Cós 89), o que representa cerca de 17%, a partir desta data; todas as restantes evidenciam <o> gráfico: almoxa[rife] (1363 MA 45; 1515 SM 141, 2 v.), almox[arif]e (1515 SM 141, 7 v.), almoxa[r]ife (1396 Ped 62, 3 v.; 1402 Ped 68), almoxaryffado (1419 MA 79), almoxaryffe (1433 Ped 90), almoxharjfe (1428 Alj 86, 2 v.), almoxharjffado (1428 Alj 86) e almoxharjffe (1428 Alj 86). É importante salientar que nunca se regista variação, no mesmo item lexical, no interior do mesmo documento, aspeto que se revela extremamente pertinente para inferirmos o grau de consciencialização dos tabeliães.

É ao entrarmos no segundo quartel do século XV que encontramos a forma almxharjffe (1428 Alj 86), com perda da vogal, ou seja, no mesmo documento onde se regista almoxharjffado. Ora, a perda da vogal átona é um testemunho de que este fechamento se tinha efetuado.

Quanto à atual forma almuinha (al-munīa) ‘herdade', a partir do século XV <u> cedeu definitivamente lugar a <o>,durante o periodo abrangido pelo presente estudo. São as seguintes as formas que seguem a etimologia: almuyã (1289 MA 1), almuỹa (1289 MA 1), almunha (1304 Alc 10, 2 v.; 1321 Alc 17), almuynha (1356 MA 41). Um documento de 1409 apresenta já 83% das ocorrências com <o>, curiosamente o mesmo que evidencia almuxiliffe e almux[a]r[i]ffe: almoinha (1409 MA 72, 10 v.), sendo as outras variantes almuinha e almujnha. O último documento a revelar este lexema é de 1482 e apresenta todas as variantes com <o> gráfico: almoinha (1482 MA 125, 2 v.) e almojnha (1482 MA 125, 6 v.).

Curiosamente, também na forma de origem árabe Mafra (< ár. mahfra), regista-se o fenómeno de epêntese de o, demonstrando a sua sobreutilização, e provando que [u] em posição átona existia no inventário dos sons ouvidos pelos escribas: Mafora (1465 MA 116). A forma toponímica Mafra seria captada cognitivamente como uma forma à qual desapareceu um som, que urgia restabelecer. Nesta fase de “hipercorreção”, <o> seria a solução, na grafia; deveria corresponder, naturalmente, a [u] na oralidade, por tudo quanto já ficou exposto.[25]

Também no empréstimo çedolla (1536 SC 150, 7 v.)/cedolla (1536 SC 150) surge a variante com <o>numa fase tardia. A variante mais antiga nesta coleção aparece com <u>, tal como no francês (cedulle), por via do qual terá entrado na nossa língua: cedula (1355 Cel 40).

Um facto extremamente interessante e que apenas corrobora a teoria da difusão lexical já apresentada, é o que acontece com as formas derivadas. Assim, as formas verbais derivadas de publico, -a (< pǔblĭcu-), palavra de origem erudita (poblicar e respetivas variantes flexionais), que são extremamente frequentes neste tipo textual, surgem sempre (sem exceção) com <o> gráfico ao longo do leque cronológico abrangido pelo presente estudo, o que significa que [u] átono sempre existiu bem como a consciência dessa existência, manifestada neste tipo de fenómenos de ultracorreção: pobricou, pobricada, proujcara, etc.

Em outras formas derivadas que, por vicissitudes linguísticas várias, apresentam um desvio vocálico relativamente ao étimo, também se testemunha o uso de <o>, a partir de finais do século XIV: Uma forma historicamente derivada de possĭdere[26] apresenta, pela primeira vez, <o> em sílaba átona pretónica num documento do último quartel do século XIV: poſſoidor (1388 MA 57); posteriormente a essa data, um documento lavrado em Cós apresenta, de modo exclusivo, <o> nesse contexto: poſſojr, poſſoyra (2 v.) e poſſoyſſe,(1430 Cós 89). No total, as formas com <o> átono derivadas de possĭdere representam 40%, no período abrangido pelo presente estudo. Sob a pena do mesmo tabelião, encontram-se as formas poſtomeira (1452 MA 106 e 1453 MA 107) e poſtomeiro (1453 MA 107), que voltam a aparecer cerca de meio século depois: poſtomeyro (1502 MA 137, 2 v.), o que permite constatar que depois de 1450 o uso de <o> por <u> nesta unidade lexical e neste contexto representa 45%. Em 1452 MA 106 encontra-se poſtmeiro (< postrēmu-, ‘último'), com desaparecimento de vogal átona pretónica.

Como podemos verificar, a partir do terceiro quartel do século XIV, em formas de origem árabe (com consoante bilabial na vizinhança da vogal em causa), os tabeliães sentiram a necessidade de grafar com <o>, formas que, segundo a sua origem, deveriam pronunciar-se e grafar-se com <u>. Foi assim que a forma almoxarife, por “generalização de uma regra” (fenómeno de natureza cognitiva),chegou até nós, ao contrário do que seria expetável graficamente. Curiosamente, o mesmo não ocorreu em almuinha, que, ao evidenciar a vogal em hiato com outra vogal alta, veio a recuperar o <u> original. É, portanto, nesse momento de cognição social convencionalizada (mais acentuada, ao que parece, com palavras “não autóctones” ou derivadas) que se pode falar da tomada de consciência linguística.[27] Num derivado como postumeiro,o contexto consonântico (a existência de uma consoante labializada) parece ter ativado o fechamento da vogal, que foi “compensada” com o uso de <o>.

Deverá ser, assim, a mesma ordem de fatores que justifica a existência de timbres diferentes nas formas neológicas compostas aut[u]móvel e aut[ↄ]estrada, a que já aludiu Rita Marquilhas. No entanto, também já ouvimos (ainda que de modo isolado) a forma aut[u]strada, eventualmente por analogia com aut[u]móvel, podendo considerar-se um fenómeno de ultracorreção.

A partir de meados do século XV parece ter-se iniciado a “deriva” (linguística ou apenas gráfica), que afetaria os textos de um mesmo tabelião: até 1451 registam-se 33 ocorrências da forma clauſula (< clausǔla) e variantes, mas a partir dessa data começa a aparecer a variante gráfica clauſo(l)la(s), ocupando, entre 1452 e 1541 uma percentagem de 30%. A mesma cronologia é possível estabelecer para a forma Reſſurreiçom (< resurrectĭōne) e variantes gráficas: registam-se 6 ocorrências da unidade lexical ao longo desta coleção, num período compreendido entre 1386 e 1459, mas a última forma, datada de 1459, exibe <o> gráfico: Reſorreiçom (1459 MA 111), correspondendo a uma percentagem de 16,6%. Num documento de 1490 é possível observar a variação <u> ~ <o> em sílaba átona: jſtipulant[e] e jſtipolante (de stipulāri) convivem no texto do mesmo tabelião, que apresenta igualmente jſtipulaçam/ eſtipulaçam (1490 MA 131).

O atual antropónimo Manuel (eventualmente, de origem castelhana) só aparece com <u> na primeira ocorrência registada, que se encontra num documento de 1519: Manuell (1519 MA 142); todas as restantes, que ocupam 75%, exibem <o>: Manoees (1529 MA 148), Manoel (1521 Ped 143) e Manoell (1532 Tur 149).

Estes exemplos vêm provar que entre a pressão exercida pelo sistema linguístico, a pressão do que soa bem ao ouvido e que é bem aceite pela norma (considerado mais próximo do standard), e os fatores individuais (por vezes de natureza analógica) existiu sempre alguma tensão, pelo que a dimensão linguística não pode separar-se da sociocognitiva. Inventariar o léxico de forma a averiguar o peso relativo de cada um dos fatores em cada subsistema seria uma ferramenta extremamente importante a construir para aplicar nas Escolas do Ensino Básico de forma a proporcionar aos professores e às crianças algumas regularidades ortográficas. Trata-se de aceder através de meios de análise científica, de modo consciente, àquilo a que a criança acede de forma mais ou menos inconsciente no momento da aprendizagem da ortografia da sua língua materna.

1.2. Posição átona final

Invocando os exemplos apresentados pelo manuscrito de Toledo do Testamento de D. Afonso II para sustentar a antiguidade da elevação da vogal átona final, Ana Maria Martins refere que se torna «necessário alargar a pesquisa a outros textos do século XIII, tanto para confirmar a realização de /o/ como [u] nas formas do plural (…) como para determinar a localização e extensão geográfica das realizações acima referidas» (Martins 2003-2006: 312).

Ora, uma particularidade dos textos mais antigos da nossa coleção é a de apresentarem formas com <u> átono final: ſu, forma apocopada de ſuſo (1297 Alc 5), du(1321 Alc 17), por exemplo. Estão, igualmente, nesse caso, formas com vogal nasal elevada: (1291 Alc 3;[28] 1298 Alc 6, 3 v.; 1300 Alj 8, 2 v.; 1304 Alc 10, 2 v.; [29] 1315 Alj 15, 2 v.[30]), cum (1298 Alc 6),e formas verbais de 6ª pessoa do pretérito perfeito: derũ (1298 Alc 6), furũ (1289 MA 1) e uſarũ (1289 MA 1), não ultrapassando, em nenhum dos casos, o primeiro quartel do século XIV. Na nossa opinião, deverão constituir latinismos gráficos, atendendo à proximidade e familiarização dos notários com os modelos latinos, numa época em que a língua carecia de uma tradição a nível da fixação escrita. Essas formas são semelhantes às que já foram encontradas por Maia (1997: 392-395) e, na nossa opinião, não deverão servir de pretexto para se prever a eventualidade de uma evolução de tipo -[ǔ] > [u] > [o] > [u].

Já desde o século XIII, mas sobretudo a partir do segundo quartel do século XV, registam-se nos documentos formas que, em vez de <e>, apresentam <y> e <j> em sílaba tónica. O fechamento do timbre da vogal da sílaba tónica deve-se à influência assimilatória de -u final sobre /e/ ou /o/ (< ĭ; ō), fenómeno que habitualmente se designa de metafonia. Ao contrário do que aconteceu no espanhol, a metafonia em Português (europeu e brasileiro) veio a tornar-se uma característica da língua standard, como é sabido.

Os exemplos que a seguir apresentamos correspondem a formas historicamente representantes dos pronomes demonstrativos neutros latinos (< ĭstŭ- e ĭpsŭ-). Na zona que nos ocupa essas variantes surgem no século XIII, começando a difundir-se apenas a partir do segundo quartel do século XV,[31] com a frequência média de uma abonação por década. São, de facto, esporádicas essas ocorrências e, na nossa opinião, denunciariam algum laxismo no respeito pela relação inquestionavelmente opaca entre língua escrita e língua oral, por parte de quem as deixava aflorar. Pensamos, portanto, que a forma yſto, que surge num documento de 1291[32] a uma grande distância temporal da que se lhe segue, já corresponderia a uma forma linguística viva na zona Centro do país, mas a grafia tenderia a ocultar durante quase dois séculos o que era a realidade linguística. Vejamos, esquematicamente, a cronologia das abonações registadas:

 

 

Uma outra forma a revelar o fechamento do timbre da vogal da sílaba tónica é, já desde os finais do século XIV, a forma tudo, historicamente proveniente da forma do neutro latino (< tōtu-). São raríssimas as abonações encontradas,[33] como se verifica na tabela seguinte:

 

[34]

 

Por outro lado, a análise dos documentos agora em estudo prova que uma tendência para fechar o átono final emerge em várias etapas da língua, e é normalmente oriunda de focos geográficos periféricos ao mosteiro, rivalizando com a coerção gráfica em voga no seu scriptorium. Quanto à primitiva área galego-portuguesa, exprime-se deste modo Clarinda Maia:

Não deixa de ser surpreendente que os textos portugueses não nos ofereçam formas em -u. É natural que desempenhe uma certa importância o facto de os textos portugueses inseridos no presente estudo serem algumas dezenas de anos mais tardios do que os documentos galegos, correspondendo, portanto, já a um período de maior experiência na fixação escrita em galego-português. Mas, apesar disso, na Galiza, há ainda exemplos de grafias em -u no séc. XIV, (…). E nessa época já não parece muito aceitável explicá-los apenas como latinismos gráficos, devidos à rotina ortográfica dos copistas. Neste como noutros aspectos, os copistas portugueses não só dão a impressão de estarem mais experimentados na fixação em língua vulgar do que os copistas galegos, como, por outro lado, parecem usar uma grafia mais normalizada e uniforme que aqueles (Maia 1997: 410).

Conclui, deste modo:

Das considerações acima expostas, parece não poder invocar-se o aparecimento do grafema -u para justificar que a pronúncia era [u]. Tal grafia resulta da influência da grafia latina e aparece mesmo em zonas peninsulares onde não há a menor dúvida de que existia uma pronúncia do tipo [o] (Maia 19972: 411).

A provar essa tensão que as duas forças (linguística e gráfica) provocavam na mente dos tabeliães, no corpus agora em estudo, encontram-se dois tipos de formas com <u> final, que apresentaremos nas secções seguintes:

1.2.1. <u> final em substantivos e adjectivos (< -ǔ )

É sob a mão de um tabelião oriundo de uma zona periférica ao mosteiro (Pederneira), e no segundo quartel do século XV, que <u> gráfico final aflora neste tipo de formas: juſtu, cunhu e pp[ubli]cu (1433 Ped 90). No mesmo documento, encontra-se também o advérbio ſuſu. [35] A partir do último quartel do século XV, aparece nos documentos, de modo exclusivo, a forma p[er]petuu (1478 MA 122; 1478 MA 123; 1479 MA 124; 1491 Alj 133), perpetuu (1482 MA 125) e, revelando crase, perpetu(1526 Ped 145).

1.2.2. <u> final na 3ª pessoa do pretérito perfeito dos verbos da 2ª e 3ª conjugações (< -ǔĭt )

Algumas formas de pretérito de verbos da conjugação em -er (excecionalmente, em -ar) prolongaram até tarde o <u> gráfico final, pois só a partir de 1383 o <o> se impõe quase definitivamente, como “hipercorreção” perante a tomada de consciência de uma mudança em curso. O <u> gráfico final só volta a aflorar em documentos de meados do século XV, sob a pena de um mesmo escrivão (que as usa de modo exclusivo), e, excecionalmente, no século XVI.[36] De qualquer forma, mesmo dominando quase todo o século XIV, o <u> não ultrapassa a percentagem de 32% ao longo do corpus:[37]

acaeceu (1315 Alj 15), acaeçeu (1375 MA 48), deu (1372 MA 47, 2 v.; 1402 Ped 68; 1442 MA 98, 2 v.; 1444 Alv 100, 2 v.; 1451 MA 105; 1487 PP 129, 2 v.; 1491 Alj 33; 1515 SM 141), pareçeu[38] (1451 MA 105, 3 v.; 1460 MA 113, 3 v.), perdeu (1340 Ped 29), prometeu (1315 Alj 15); rrecebeu (1350 AM 36), rreçebeu(1536 SC 150) e rrequereu (1460 MA 113).

As formas de pretérito deste tipo de verbos com <o> em posição átona final recolhidas no nosso corpus são as seguintes:

ẽtendeo (1437 Ped 94), lleo (1541 Sal 152), meteeo (1491 Alj 133), meteo (1541 Sal 152, 7 v.), moreo (1541 Sal 152, 2 v.), ofereçeo (1565 Alc 153), parçeo (1505 MA 138), pareceo (1422 MA 81; 1487 PP 129), pareçeo (1383 Alj 53; 1396 Ped 62; 1412 Ped 74; 1415 Ped 77; 1421 Evo 80; 1442 SM 97; 1444 Alv 100; 1452 MA 106; 1491 Alj 133; 1496 Sal 135; 1515 SM 141; 1521 Ped 143; 1526 Ped 145; 1536 SC 150; 1565 Alc 153), perdeo (1491 Alj 133), pertençeo (1453 MA 107), pormeteo (1415 Ped 77; 1459 MA 110), prometeo (1460 MA 112), rreçbeo (1426 MA 85), rrecebeo (1532 Tur 149), rreçebeo (1430 Cós 89; 1453 MA 107; 1455 MA 108; 1459 MA 110; 1460 MA 112; 1515 SM 141), rrecolheo (1515 SM 141), rrequereo (1415 Ped 77; 1487 PP 129; 1496 Sal 135, 2 v.), rrequerreo (1536 SC 151), tangeo(1526 Ped 145), uẽdeo (1448 Ped 102) e vendeo (1521 Ped 143).

Importa salientar que o <u> final da terceira pessoa do singular dos pretéritos perfeitos de verbos da 3ª conjugação (servir, partir, pedir, etc.) encontra-se apenas num documento de 1326: pediu (1326 MA 19), só voltando a aparecer no 3º quartel do século XV: pidyu (1460 MA 113), representando estas duas ocorrências a insignificante percentagem de 6%. São as seguintes as formas com <o> final extraídas do corpus:

abryo (1536 SC 151), cajo (1456 MA 109), cõprio (1334 Alf 25), partyo (1415 Ped 77), pedhio (1436 Alf 93), pedio (1336 Alj 26; 1346 SC 34; 1437 Ped 94; 1444 Alv 100; 1472 TC 120; 1526 Ped 145; 1565 Alc 153), pedjo (1402 MA 67; 1448 Alj 103), pedyo (1412 Ped 74; 1415 Ped 77, 2 v.; 1496 Sal 135, 4 v.; 1541 Sal 152), pidio(1442 SM 97; 1515 SM 141), pidjo (1392 MA 60; 1393 Alj 61), pydjo (1491 Alj 133), sayo (1515 SM 141), ſayo(1515 SM 141), ſ[er]ujo (1402 MA 67), veo (1505 MA 138; 1507 MA 139), veoo (1505 MA 138) e veyo (1491 Alj 133).

A grafia <io>, como se vê, foi adotada desde os começos da fixação escrita, eventualmente como forma de, na realização, evitar a convergência de duas vogais altas e fechadas. Por outro lado, foram registadas formas de 3ª pessoa de verbos da 3ª conjugação com cruzamento das duas grafias em três documentos de meados do século XIV, sob a pena do tabelião «Ffernã Domjngiz», eventualmente com reduzida formação cultural: pidyou (1350 AM 36; 1351 Alv 37, 2 v.) e ſayou (1353 Vid 39). Curiosamente, no segundo quartel do século XV, um tabelião em Aljubarrota escrevia pidjuo (1435 Alj 92), também resultante do cruzamento das duas grafias. Esta flutuação, que leva ao uso simultâneo de <o> e <u>,não é mais do que uma tentativa de adaptar a grafia ao som que o tabelião eventualmente já pronunciava.

Estes dados cronológicos relativamente à terceira pessoa do singular do pretérito perfeito vêm, mais uma vez, confirmar que <o>final correspondeu a um gosto gráfico homogeneizador no sentido da standardização, apesar de a realização [u] ter existido desde cedo. Assim, os dados parecem confirmar a observação de Edwin B. Williams, para quem «the change was merely an orthographic imitation of the -eo of veo» (1950: 61).[39]

Um argumento a favor da realização [u] para a vogal posterior em posição final, a partir de finais do século XIII, é a existência de uma forma como yſto num documento de 1291, a que já aludimos. Ou seja, se a vogal tónica é realizada [i] e não [e], esse fenómeno só se pode justificar por assimilação provocada por [u] final. Os exemplos a apresentar o resultado da metafonia só voltarão a aparecer a partir de 1444, o que mostra quão vão se torna, por vezes, interrogar as grafias para averiguar a dinâmica linguística.

É interessante referir que por volta de meados do século XV as assimilações de o final ([u]) à vogal inicial da palavra seguinte começam a aparecer refletidas nas grafias.[40] É esse fenómeno de fonética sintática que revelam os exemplos, com elisão de vogal final ou assimilação desta pela vogal inicial da palavra seguinte: «Mẽd'Afomſo»/«Mẽda Afomſo», 2 v.‘Mendo Afonso' (1448 Alj 103), «Fernãda Afonſo» ‘Fernando Afonso' (1456 MA 109), «Fernãd'Afomſo»/«Fernãda Afomſo» ‘Fernando Afonso'(1462 Mai 114), etc.

2. Conclusões e pistas para investigações futuras

A tensão entre as tentativas de standardização e as tendências individuais ativadas pela pressão intralinguística são uma dimensão extremamente importante na consideração da evolução do vocalismo átono português, particularmente no fenómeno que agora nos ocupa.

Os dados analisados neste artigo revelam que durante o período abrangido pelo presente estudo (sécs. XIII-XVI) existiam para /o/ átono inicial as realizações [ow], [o], [u] e [ø]. Na elevação da vogal átona em posição interior, são escassas as abonações que ilustram a ação exclusiva do contexto vocálico assimilatório referido por Herculano de Carvalho. Por vezes, a situação de hiato também favoreceu o fechamento e a redução vocálicas.

O fechamento da vogal átona em posição interior por condicionamento assimilatório de tipo consonântico é bastante mais importante na consideração deste fenómeno, e é bastante antigo, tendo-se difundido a partir de finais do século XIV, como mostra a evolução lŏcāle> lugar e pōmar > *pumar. De facto, a contiguidade de um fonema velar (/k/ e /g/) ou labial (/m/, /f/, /p/ e /b/) é um contexto que favorece o fechamento de [o], uma vez que propicia o recuo na articulação, o arredondamento e a labialização da vogal. Assim, nos casos em que não se verifica qualquer condicionamento vocálico assimilatório (referido por Herculano de Carvalho), todas as formas apresentadas com fechamento de vogal átona evidenciam o contexto consonântico apresentado: Alcubaça, Cuſtãça, fugaça, lugar, mulher, pumar, ſtrumẽto e ſubceſores. Por outro lado, a quase totalidade das formas que apresentam condicionamento vocálico assimilatório (ocasionalmente, o elemento fónico condicionador é uma semivogal) exibe, igualmente, um desses fonemas em contiguidade com a vogal em causa: puſyçõ, cumunalmẽte, cuſtume, furtujto, futuro,mũturo, Purtugal (epurtugueſes), puſtumeiro, rrecuciliaua, ſub prior, ſubfiçiente e ſubre dictos. Somos de opinião que, mesmo neste contexto, a ação consonântica é bastante mais forte do que o condicionamento vocálico.

O fenómeno que, na nossa opinião, corresponde à tomada de consciência da mudança corresponde ao que designamos de “hipercorreção” e que consiste em grafar com <o> palavras em que seria mais natural, de acordo com a sua origem, manter <u>gráfico. Esta tomada de consciência surgiu em finais do século XIV[41] e afetou, sobretudo, palavras com contexto de hiato (continoar, por exemplo) ou com <u> como grafema vazio, palavras de origem árabe, empréstimos e palavras derivadas (almoxarife, *almoinha, *cedola, *postomeiro, etc.) Este tipo de hipercorreção é um fenómeno distinto da “réaction savante” a que alude I. S. Révah, mas deverá ter-se generalizado analogicamente de forma tão intensa que, em certos casos (como em almoxarife < al-muxrif) veio a integrar a norma. Deverá ser a mesma ordem de fatores que justifica a existência de timbres diferentes nas formas neológicas compostas aut[u]móvel e aut[ɔ]estrada, a que já aludiu Rita Marquilhas.

É ao entrarmos no segundo quartel do século XV que encontramos as primeiras formas com desaparecimento de vogal átona, sempre no contexto consonântico mencionado: Paſca(1423) e almxhariffe (1428); já na segunda metade do século, regista-se poua (1477) e Mafora (1465), esta última com epêntese de o. Nas formas derivadas, o primeiro testemunho que possuímos de redução e desaparecimento é de 1452: poſtmeiro.

Quanto à justificação para a realização [o] átono no Português do Brasil, pensamos que deverá ser de natureza simultaneamente cognitiva e social. Um colonizador que nascesse por volta de 1480 conheceria certamente a realização [u] em voga, mas:

(i) ou porque, à medida que entravam novos vocábulos na língua (com os novos horizontes socioculturais soprados pelos ventos dos Descobrimentos e do Humanismo italiano), a difusão demoraria a atingir todo o léxico;

(ii) ou por ter sido adiada a convencionalização social desta pronúncia, devido aos fenómenos de hipercorreção que se propagaram analogicamente;

(iii) ou porque a realização fechada seria apenas conhecida na franja Centro-litoral portuguesa (onde se viria a constituir a norma) ou atualizada por certos estratos sociais, que não participaram na onda colonizadora inicial;

(iv) ou porque no Brasil (e nos falares crioulos) o fenómeno teve novo recuo em contato com os falares indígenas;

a verdade é que a realização [u] átona não se enraizou na consciência coletiva do povo colonizador. Se pensarmos que no Brasil existem folhinha e fôlhinha bem como corpinho e côrpinho, com realizações e significados diferentes, tenderemos a reabilitar a proposta de Marquilhas: é que «cada nova palavra criada em português ainda hoje resiste nas suas pretónicas à submissão sistemática a essa regra porque ela terá sido originalmente desenhada para outro tipo de vogais átonas» (2003: 18). Também não se deverá negligenciar a perspetiva sociolinguística já abordada por Naro:

There is also an independent social factor to be considered in the case of Brazil. Contrary to the situation found in other languages exported to the new world, in Portuguese the European pronunciation (as opposed to syntax or other parts of grammar) seems never to have constituted a prestige standard (Naro 1971: 638).

A existência de formas como yſto (1291), já encontradas por Maia na primitiva área galego-portuguesa, não deixam margem para dúvidas sobre a antiguidade de uma realização [u], em final de palavra. Da forma pronominal tudo, única documentada que conhecemos, a primeira abonação que possuímos é de 1375. Não podemos descurar o facto de a grafia em <o>ser a grafia convencional, tendente à standardização ortográfica, e ter ocultado durante séculos a realidade linguística. É sob a mão de um tabelião oriundo de uma zona periférica ao mosteiro (Pederneira), e no segundo quartel do século XV (1433), que <u> gráfico final aflora nos nomes e adjetivos: juſtu, cunhu e pp[ubli]cu. Também alguns casos de fonética sintática em nomes próprios revelam sensivelmente a mesma cronologia para o fechamento (neste caso, supressão) de [o]: Mẽd'Afomſo ou Mẽda Afomſo, 2 v.(1448).

O <u> gráfico dos verbos da 2ª conjugação parece ter sido o único a ser adotado desde o início pelos escribas, mas apenas se manteria nos textos até aos finais do século XIV; quanto ao da 3º conjugação, surgiria apenas excecionalmente ou provocaria algumas hesitações em notários menos experientes.

O estudo empírico levado a cabo tem implicações teóricas relevantes, no âmbito das teorias cognitivas sobre a aprendizagem do sistema ortográfico do Português, como língua materna. Conhecemos as dificuldades que as crianças do ensino básico têm ao grafar [u], que tanto pode corresponder a <o> como a <u>, mas revelam-se insuficientes todas as tentativas de diagnóstico e prevenção do erro. Na nossa opinião, uma das razões para essa insuficiência poderá ser a ausência total de estudos sobre este fenómeno, a partir de evidência histórica. De facto, aprender a ortografia implica compreender a relação entre sons e grafemas, ou seja, dominar a forma convencional de escrita das palavras. Neste sentido, o erro ortográfico tem sido um facto preocupante e pouco compreendido no contexto da aprendizagem da escrita. Ora, os mecanismos cognitivos acionados na fixação escrita dos sons da linguagem por uma criança, e a variação e flutuação daí decorrentes parecem ter sido os mesmos que operaram na produção notarial, no processo de fixação escrita do novo romance (galego)-português. Este tipo de estudo, ao fomentar a relação entre cognição e mudança poderá conduzir a uma nova dimensão nos estudos de Linguística Cognitiva, extremamente útil ao professor de Português. Uma reflexão sobre qual a dimensão que historicamente foi precedente (o social e a norma) ou o individual (e cognitivo) bem como a inventariação lexical associada às combinações fonemáticas (já que é a combinação fonemática dentro do Léxico que gera a mudança que acabámos de estudar) poderão ajudar a formular regras (e, eventualmente, a elaborar programas informáticos de natureza lúdica) para combater o erro ortográfico <o>/<u> nas Escolas do Ensino Básico.

De facto, os mesmos problemas que se colocaram aos escribas medievais na fixação escrita do português são os que se colocam às crianças na aprendizagem da ortografia da sua língua materna, pois são de todos os tempos os problemas de aprendizagem de uma língua, na sua intrincada relação oral/escrito.

 

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Notas

[1] Este artigo constitui uma versão ampliada de uma secção da tese de doutoramento da Autora (Carvalho 2006: 377-392), inédita. A Autora agradece a três revisores/as anónimos/as os contributos que deram para a sua versão atual. Assume, naturalmente, inteira responsabilidade por quaisquer erros ou imprecisões.

[2] Depois de demorada reflexão, concluiu-se que, ao contrário do que tem sido feito na literatura sobre a matéria, este fenómeno deverá ser tratado separadamente do fenómeno de elevação e redução da vogal anterior média, na mesma posição.

[3] Em posição inicial, existe variação mais ou menos opcional em alguns vocábulos ([o]velha ~ [u]velha; [u]brigada ~ [o]brigada ~ [ɔ]brigada, p. ex.). Em hospital, a realização é [ɔ] e em oferecer, existe variação entre [o], [u] e [ɔ]. Sobre exceções ou variação em contexto final, não há, contudo, casos a assinalar na variedade europeia do português.

[4] O sublinhado é nosso. Num outro estudo, I.S. Révah recorre à autoridade científica de Lin-dley Cintra, dando como aceite a sua constatação: “Écoutons le savant éditeur de la Crónica Geral de Espanha de 1344, L. F. Lindley Cintra: “Suprimi variantes soffrida – suffrida, custume – costume, suyam – soyam, fogir – fugir, já que a mistura de formas com o e de formas com u, em L como em P, demonstra que as duas letras, tanto na língua do copista do primeiro, como na do segundo, se empregavam, em sílaba átona, com o mesmo valor.” (Révah1958: 396).

[5] O sublinhado é da nossa responsabilidade.

[6] Algumas análises mais ou menos impressionísticas conduzem a acreditar que as crianças de sexo feminino têm mais consciência destas realizações fonéticas do que as de sexo masculino, sendo, por isso, mais expressivas nestes fenómenos de ultracorreção. Curiosamente, ao estudar a variável ‘Lateralidade', Pinto (1988: 108-109) refere que «a diferença de capacidades existentes nos dois sexos parece, todavia, surgir cedo (…). Quanto às mulheres, estas demonstrariam execuções superiores de ordem linguística, ligadas à fluência verbal, desde a sua infância. Diversos estudiosos, de acordo com Shucard et alii, 1981, p. 93, evidenciariam de diferentes modos a superioridade das execuções linguísticas na mulher: Darley e Winitz (1961) diriam que a mulher atinge uma maturação mais precoce dos órgãos da fala; Wellman et alii (1931) e Templin (1957) refeririam que esta apresenta melhor articulação; Garai e Scheinfeld (1968) admitiriam a sua superior fluência verbal; Smith (1935) referiria que esta dá menos erros gramaticais a partir da idade dos 18 meses e Day (1932), Young (1941) e Bennet et alii (1959) evidenciariam que a mulher produz frases mais longas e mais complexas». Mais adianta, Graça Pinto realça que «a diferença entre sexos, quando existe, só se verifica em provas ligadas a funções cognitivas muito específicas» (p. 110, sublinhado nosso) e que «os resultados de Gaddes e Crokett (1975) e os deste estudo revelam que aos 7 anos de idade o sexo feminino, em certas provas da linguagem, manifesta uma superioridade estatisticamente significativa» (p. 111). Na nossa opinião, alguns testes de perceção, relacionados com o que é menos ou mais malsonante para a criança, poderiam ser efetuados, mesmo antes dos 7 anos.

[7] De acordo com Veloso (2003: 164-165), «inúmeras produções que a tradição pedagógica considera como “erradas” emanam, fundamentalmente, de um uso criativo da ortografia e constituem pistas reveladoras do conhecimento fonológico intuitivo dos sujeitos que as produzem, devendo, por isso, ser merecedoras de atenção científica por parte dos estudos linguísticos e psicolinguísticos».

[8] À «separação rígida e perfeitamente estanque entre a vertente fónica da língua e a sua representação gráfica opõem-se as investigações – predominantemente oriundas da psicolinguística aplicada e, dentro destas, das que se ocupam do tópico específico da aprendizagem da escrita – que defendem a existência de um continuum entre a realização fónica e a realização gráfica da língua, nomeadamente no que diz respeito ao conhecimento implícito dos falantes» (Veloso 2003: 135-136).

[9] A mesma forma foi encontrada por Maia em HGP (História do galego-português, que, doravante aparecerá mencionada com esta sigla)(Maia 1997: 398). Saliente-se que a forma ouriente existe igualmente nas Cantigas de Santa Maria e na Crónica Troyana, segundo a Autora de HGP, que cita igualmente ouçidente, extraída de Miragres de Santiago. Uma variante desta última forma foi encontrada no nosso corpus (oucíjnte, 1304 Alc 10), mas não deverá considerar-se no mesmo plano de ouriente, uma vez que o seu étimo (< occidente-) faria prever na fase mais antiga da língua a existência da semivogal u, resultante da vocalização da velar surda. Exprime-se deste modo Jorge Manuel de Morais Gomes Barbosa: «Embora não tenha do texto mais exemplos que provem a ditongação de o- inicial, suponho que a grafia ou de ouriente pode reflectir de facto um ditongo próprio, isto é, não analógico do de oucidente, como pensa Leite de Vasconcelos (…), seguido por Nunes» (Barbosa 1958, I, 51).

[10] Também se deve aceitar a hipótese de ter atuado, na forma em apreço, a assimilação ao timbre da vogal da sílaba tónica.

[11] Esta forma é única no corpus. Registam-se 13 ocorrências de Paſcoa e 2 de Paſchoa. Poderia ter favorecido o desaparecimento da vogal o facto de a partir de certa altura ela se ter transformado em semivogal, tendo-se, por isso, formado um ditongo crescente.

[12] Ao longo do corpus, encontramos sempre dobro. Para o fechamento observado deverá ter contribuído o facto de se tratar de uma palavra derivada.

[13] Da variante etimológica apenas se regista conhado (1329 Evo 22), não se encontrando outras abonações da forma em causa ao longo desta coleção.

[14] Considerámos, nesta evolução, que o fonema bilabial do prefixo deverá ter influenciado o fechamento, não obstante apenas se ter mantido esporadicamente na grafia (cf. ſubceſores, 1391 MA 59).

[15] O período compreendido entre 1425 e 1450 revela-se, neste corpus, um período de transição importante. Saliente-se que o documento 1436 Alf 93 apresenta em variação llogares e llugares.

[16] Referir-nos-emos a esta forma mais adiante.

[17] Esta forma (bem como outras derivadas de proueito) surge, na maior parte das vezes, abreviada ao longo dos documentos, o que nos impede de efetuar uma análise estatística sólida. De qualquer forma, trata-se igualmente de uma forma que surge isolada ao longo deste corpus.

[18] Poderá igualmente admitir-se a hipótese de ter havido uma elevação e um fechamento da segunda vogal do hiato: moeſtejro > mujſtejro.

[19] Como sabemos, nem sempre essa empresa foi bem-sucedida em virtude das violentas transformações linguísticas que a mobilidade populacional associada à crise de 1383-1385 despoletou.

[20] Recorde-se que neste documento a variante ſub prior coexiste com ſob prior.

[21] As únicas formas que não se incluem nesta tipologia são bemfecturias, ſuariz, piſſueiro e reſtetujr, encontrando-se aí a vogal em contato com alveolar, dental, ou com outra vogal.

[22] De possĭdere, com síncope da dental intervocálica (cast. poseer).

[23] Tratando-se de ditongo decrescente, num documento de 1448, aodjencja (1448 Alj 103) representa 17% do total de ocorrências desta unidade lexical.

[24] No mesmo documento regista-se a forma çynquoenta.

[25] Rita Marquilhas dá um exemplo muito semelhante, ao tratar da elevação de /e/ em posição átona nas «mãos inábeis portuguesas do século XVII»: «Há uma sobreutilização da letra <e>, provando que o “e mudo” existia indubitavelmente no inventário dos sons ouvidos por personagens que o transcreveram exactamente da mesma forma que fazem hoje as crianças da escola ou os autores de graffiti que pintam VIVA O SEPORTING». (Marquilhas 2003: 7).

[26] No castelhano a forma é poseer (Corominas e J. Pascual 1989-1992: s. u).

[27] Evocando D. G. Miller, João Veloso refere que «os sistemas de escrita revelam sempre, da parte dos seus criadores e dos fixadores da convenção ortográfica canónica, uma forte intuição acerca da organização fonológica da língua (Veloso 2003: 86).

[28] Alterna, neste documento, com .

[29] Alterna, no mesmo documento, com .

[30] Alterna, no mesmo documento, com .

[31] Nas Cantigas de Santa Maria foram encontradas duas formas revelando metafonia (isto) e 19 formas sem fechamento de vogal tónica (esto) (Mettmann 1972: vol. IV s. u).

[32] Este documento é um dos que mais precocemente apresenta um grande número de inovações linguísticas, pelo que não consideramos que a forma em causa resulte de influência latina. Saliente-se que a forma iſto foi encontrada por Maia num documento de Guimarães, de 1281 (Maia 1997: 416), sendo mais numerosos os casos de metafonia em documentos da zona do Douro Litoral coevos.

[33] Este tipo de metafonia nesta unidade lexical não aparece documentada em HGP. A resistência oferecida por esta vogal à mudança deve-se, certamente, à contiguidade de duas consoantes dentais.

[34] Neste documento, a forma tudo surge apenas numa expressão final, já exterior ao texto do documento (mas escrita pela mesma mão), eventualmente mais descuidada em termos de linguagem, porque não sujeita à aridez dos formulários diplomáticos: «Aqui cõ tudo tirado pã e uinho que he ao quarto e todas coſas que Deus der no dito caſal». A forma tudo é, assim, uma forma real, viva, da época e já estaria em voga na oralidade no último quartel do século XIV.

[35] De acordo com Jorge Manuel de Morais Gomes Barbosa, «spiritu (…) e Nunu (…) são talvez os únicos casos nominais de grafia com -u», na Crónica de Castela (Barbosa 1958: I, 55).

[36] Exceptua-se a forma deu, que nunca aparece com <o> final. Segundo Edwin B. Williams, «in the second half of the thirteenth century this -eu (except in deu from dar) changed to -eo in a sporadic and haphazard way». Cf. Williams 1950: 61. Como se verifica, essa mudança é um pouco mais tardia no nosso corpus.

[37] Convém ter presente que a forma deu nunca aparece com <o> gráfico final, o que faz elevar um pouco a percentagem. Curiosamente, na Crónica de Castela -u «nos verbos predomina sobre -o» (Barbosa 1958: vol. I, p. 32).

[38] Note-se que o tabelião usa de modo exclusivo o <u> final nos dois documentos em que surge esta forma, mas prefere <o> na forma rreeos (1460 MA 113).

[39] De acordo com Celso Cunha, «uma mudança ortográfica semelhante à de Deus > Deos, também com repercussões na pronúncia, processou-se na 3ª pessoa do pretérito perfeito dos verbos da 2ª conjugação. Passou ela a ser escrita com -o (morreo por morreu), e fenômeno paralelo ocorreu com a mesma pessoa dos verbos da 3ª conjugação: partiu > partio» (Cunha 1991: 920). Referindo-se à lingua da Crónica de Castela, Jorge Manuel de Morais Gomes Barbosa informa que «com bastante frequência nos perfeitos do indicativo e raramente nos substantivos, a grafia documenta a convergência fonética de -u e -o (…)» (Barbosa 1958: I, 55).

[40] Os nomes próprios surgem frequentemente com e final em vez de o, sobretudo se o patronímico que se lhe segue é Anes, também por assimilação à vogal a dessa forma (Gyralde, Vaſque, etc.). De referir igualmente que a partícula de comparação como surge, sobretudo na fase mais antiga da língua, substituída por come. No total, estas últimas não excedem cerca de 8,5%, sendo que 87% das mesmas situam-se antes de 1425.

[41] Ao longo do nosso percurso, temos vindo a situar inúmeros fenómenos de mudança nesta fase da língua portuguesa, associada à movimentação populacional despoletada pela crise de 1383-85, que culminou na célebre batalha de Aljubarrota.

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