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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

RECENSÕES

Os Memoráveis. Lídia Jorge, Lisboa, D. Quixote / Leya, 2014

 

Isabel Cristina Mateus*

*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

icmateus@ilch.uminho.pt

 

Lídia Jorge é uma daquelas escritoras que consegue surpreender os leitores em cada novo livro: desde O Dia dos Prodígios (1980) em que nos deu a conhecer o mundo mítico, e ao mesmo tempo tão real, de Vilamaninhos (isolado e imune aos ventos de mudança soprados pela Revolução de Abril), que a sua escrita vem revelando, de romance para romance, uma notável capacidade de reinvenção e um não menos notável caleidoscópio de olhares sobre a realidade portuguesa. Sem ceder à tentação da moda ou à lógica imperativa dos mercados, a sua escrita singularíssima impôs-se nacional e internacionalmente, como o comprova, para além dos importantes prémios recebidos, o destaque concedido pela revista Le Magazine Littéraire, em 2013, ao eleger o seu nome como uma das "10 grandes vozes da literatura estrangeira", ao lado de escritores como Orhan Pamuk, Alice Munro, Enrique Vila-Matas. Ou o facto de a escritora ter sido este ano a homenageada da sexta edição da Escritaria, em Penafiel, evento literário que conquistou já foros de acontecimento nacional, de verdadeira festa da literatura.[1]

Vêm estas observações a propósito da publicação do último romance de Lídia Jorge neste ano de comemorações da Revolução portuguesa, mesmo se a autora não procurou (como publicamente afirmou) esta coincidência. Feliz coincidência, dir-se-ia, já que Os Memoráveis constituem a mais portentosa pintura mural com tinta de palavras, a mais poderosa, profunda e desassombrada análise sobre a Revolução de Abril até hoje feita na literatura portuguesa. O romance arrisca seriamente, como escreveu Miguel Real[2] no JL (16.04.2014), "tornar-se para o 25 de Abril como Viagens na Minha Terra para o Liberalismo, Os Maias para o Constitucionalismo Liberal fontista, Húmus para a Iª República e O Delfim para o Estado Novo".

Como primeira nota de leitura, importa sublinhar a novidade do ponto de vista encontrado para contar a história desse que foi, nas palavras de Sophia, o "dia inicial inteiro e limpo". Novidade que consiste não num olhar a partir do passado sobre o qual escorre a melancolia do presente, mas antes num olhar a partir do futuro, a partir de um tempo em que a memória da "metralha das flores" já quase desapareceu. O leitor é assim confrontado com um olhar puro, de certa forma inocente, de uma geração que não viveu os acontecimentos ou que, tendo-os vivido, deles pouco se lembra ou deles se distanciou. Uma história contada à distância, em perspectiva, a partir de um olhar exterior, em certo sentido estrangeiro, sob a forma de documentário encomendado pela cadeia televisiva americana CBS à jornalista portuguesa Ana Maria Machado. O documentário, a pedido do embaixador americano em Washington (ex-embaixador em Portugal logo a seguir ao 25 de Abril e, por esse dado histórico, passível de identificação com Frank Carlucci), deveria constituir o primeiro episódio da série "A História Acordada" cujo objectivo seria dar a conhecer um daqueles raros momentos em que o "anjo da alegria" passa pelo mundo e a história da incessante maldade humana, por breves instantes, se suspende. Para o embaixador, a revolução das flores cujo nome não recorda ("How awful, it´s carnations, of course, dear Bob!, p.19), ao som da batida dos passos de uma canção country, é um desses momentos extraordinários, um intervalo ou "rasgão no tempo" que merece ser contado para memória futura (a memória é, com efeito, um tema central para a autora que ainda recentemente afirmou "só querer ser uma cronista do tempo que passa"[3]).

De regresso a Portugal, em colaboração com dois antigos colegas de faculdade, Margarida Lota e Miguel Ângelo, a jovem repórter de guerra irá entrevistar vários protagonistas dessa noite e madrugada memoráveis, na tentativa de captar a pureza original daquele momento único em que se abriam todos os possíveis e todos os futuros, momento que convocou os deuses da beleza, do bem, da solidariedade e da esperança.

A equipa de jornalistas terá como ponto de partida da investigação (e de construção do argumento) uma fotografia datada de 21 Agosto de 1975, mais de um ano decorrido sobre os acontecimentos: a fotografia de um jantar no restaurante Memories que reúne alguns dos principais actores e testemunhas da revolução, com desenho e legendas no verso da actriz Rosie Honoré, e resgatada por Ana Maria da poeira que cobre a estante do escritório do pai. Sem que a jornalista o saiba, o instantâneo de Tião Dolores (Sebastião Alves) constitui, de algum modo, a "Última Ceia" fotográfica do "dia original": nele estão presentes não apenas os "apóstolos" da revolução, como nele se fixa e oculta um segredo, um momento que a investigação virá revelar ter sido decisivo, também ele memorável, para a viragem no curso da Revolução. Da mesma forma que nele se oculta e, paradoxalmente, dá a ler, a narrativa das origens de Ana Maria, o capítulo inicial da sua (auto)biografia ou nela se reflecte a sombra e o silêncio da relação com o pai, reputado jornalista no meio lisboeta.

Partindo de um registo testemunhal (que a escrita de Lídia Jorge frequentemente convoca), a investigação procurará reconstituir a narrativa desse momento de euforia colectiva, a crónica dessa utopia primordial, traçar a sua cartografia no tempo e no espaço, acompanhar os gestos dos seus actores, num constante estilhaçar e entrelaçar de histórias na História que mantém o leitor suspenso. Tudo isto ao ritmo das grandes séries televisivas americanas e através do olhar neutro, nómada e distanciado de Ana Maria, em permanente desacerto com o relógio parado do seu país e com o relógio familiar. Através, igualmente, do olhar aberto sobre o mundo, sobre o mundo global que é o nosso (e destes jornalistas, em particular) mas também sobre o mundo europeu e internacional, sobre os Estados Unidos ou os países árabes, abertura que é, mesmo se provisoriamente, uma das conquistas da Revolução de Abril: o momento em que deixámos de ser um país periférico, uma "toalha" estendida e esquecida à beira mar da "praia lusitana", para nos tornarmos o ponto focal do olhar do mundo.

Ao longo deste processo de recuperação e de re-escrita da memória, a equipa de jornalistas procederá àquilo que podemos chamar "leitura da poeira", procurando limpar, como Ana Maria faz à fotografia do escritório do pai, o pó acu>mulado pela passagem do tempo, removendo ou decapando nesse gesto, como se fossem de tinta, as camadas de poeira que lentamente ocultaram a matéria e cor originais, desocultando histórias à espera de ser contadas (a repórter de guerra, convém notá-lo, "aprend[era] no deserto que na poeira se encontram escritos livros inteiros", ela, a quem um velho árabe ensinara "que toda a vida passada e toda a vida futura se encontram escritas no pó", p. 59).

Leitura do pó, decifração de signos e de sulcos inscritos no tempo, arqueologia da memória que, não evitando a melancolia do arquivo (fiel e exemplarmente percorrido pela autora neste romance), faz igualmente apelo à imaginação, à ficção e, de um modo genérico, à arte como auxiliares indispensáveis na reconstituição do passado: porque a ficção, como a arte, é a câmara que melhor nos retrata por dentro, a sonda das nossas mais invisíveis e indizíveis sombras, a ilusão que nos redime e nos reconcilia com o tempo. O que torna particularmente significativa a leitura teatral inscrita nos desenhos e legendas de Rosie Honoré no verso da fotografia do Memories registando o momento único, "tendo sido todos muito felices". Rosie, a actriz que "não vivia no teatro do mundo, vivia o mundo do teatro" (p. 54), simultaneamente actriz e espectadora no palco dos acontecimentos. Inscrevendo a ilusão no palco da história, o espelho na realidade, os nomes dos actores e os petits noms do mito.

À procura da história original, do "coração da fábula", a equipa de jornalistas registará o testemunho do Oficial de Bronze cuja prodigiosa memória não apenas reconhece a fotografia do Memories (que, de resto, nunca vira), como é capaz de reconstituir o local, as circunstâncias, os gestos, de desocultar sinais e fios narrativos: "Tenho a certeza, foi tirada a vinte e um de Agosto de setenta e cinco, aposto a minha mão direita. (…) Garanto-vos que esta foi uma noite em que factos extraordinários aconteceram" (p. 92). Escutando o guardião da memória, os repórteres julgarão estar "a ouvir a história a escrever-se a si mesma" (p. 93).

Todavia, ao longo da investigação, os repórteres-detectives irão cruzar-se e confrontar-se com os tantos outros olhares dos entrevistados e testemunhas dos acontecimentos, num perspectivismo que permitirá uma constante, e nem sempre pacífica, re-avaliação, interrogação e re-interpretação dos factos. Dessa forma, serão confrontados com a desfiguração introduzida pelo tempo, com um conjunto de personagens que vivem o presente como um lugar de exílio, desterrados na névoa de melancolia e de irrealidade que sobre eles o tempo teceu: o chefe Nunes remetendo-se ao mutismo do presente, mas adquirindo voz no relato do filho que há-de evocar o grito de júbilo do pai ao ver avançar as colunas militares na manhã de Abril: "Levem-me a mim, pessoal, arranquem-me a cabeça do corpo e façam dela uma bala"; o Major Umbela escondendo a sua mão direita e arrastando-se em processos jurídicos contra aqueles que lhe sujaram a honra; Salamida fechado no seu quarto de eterno adolescente à procura de uma senha futura, uma nova canção; o fotógrafo Tião Dolores despedindo-se do seu acervo fotográfico para não ceder à miséria. A viúva de Charlie 8 procurando manter viva a memória do marido num país que atribui pensões a antigos membros da polícia política mas recusa atribuí-la a Charlie 8 porque "os seus actos de abnegação e coragem cívica não cabem no artigo 444, barra, oitenta e dois". Ou mesmo El Campeador, pairando já nas brumas do mito, montado num cavalo lusitano, à beira mar, em pose de estátua equestre para um filme que ninguém realizará. São personagens quixotescas, algumas no limiar da loucura, todo um cortejo de humanas fraquezas, contradições, vaidades, hipocrisias, silêncios, traições, que permite interrogar, por dentro, na penumbra da intimidade, o curso dos acontecimentos da madrugada de Abril.

Nesse processo de descoberta vão passando do desconhecimento inicial a um deslumbramento progressivo que Margarida Lota, com a sua inteligência e sensibilidade, corporizará. Quando Ana Maria lhe pergunta, no final das entrevistas, se "está feliz", Margarida responde: "Como não, se eles falam verdade? Podem não coincidir nos detalhes, mas coincidem nos factos principais, e isso é quanto basta" (p. 299).

Num percurso que é também de aprendizagem identitária, individual e colectiva, o encontro com o passado traz consigo a pacificação no presente, o gérmen do futuro: Margarida envolver-se-á com Salamida, desejando que dessa relação possa nascer um filho, semente de Abril que há-de florescer no futuro. Da mesma forma que Ana Maria acabará por vencer o fosso de silêncio edipiano que a separa do pai, compreender o drama que o esmaga e evitar, pela palavra, a tragédia anunciada:

"Abra, por favor, abra. Pedi, durante duas horas, em voz baixa, para que os vizinhos não ouvissem. Depois pedi alto, e pedi de todas as maneiras que sabia e de que era capaz. Pedi-lhe continuadamente, para que nunca deixasse de ouvir uma voz que o chamava. Disse-lhe, através da porta, todas as palavras que nunca lhe tinha dito. (…) Eu não podia deixar o meu pai. Agora sim, eu tinha chegado ao coração do coração da fábula. E ela me retinha para si" (p. 329).

O romance Os Memoráveis é assim uma forma de resgatar do deserto de poeira que o tempo foi acumulando, da teia de interpretações e de contradições, dos perigos e fascínios do mito, os nomes e os rostos dos actores do ‘milagre português’. Sem incorrer na tentação fácil da epopeia e do culto dos heróis, antes sublinhando a sua humana condição (gesto simbólico patente na Escada de Jacob que Ana Maria desce para retirar da estante do pai a foto do jantar), evitando o registo dramático (trágico ou cómico), procurando antes o registo lírico, emotivo, intuitivo: no fundo, aquele que melhor pode dizer o dia em que "a poesia saiu à rua", parafraseando os célebres versos de Sophia que a pintura de Vieira da Silva transformará numa das imagens simbólicas do 25 de Abril.

Uma narrativa lírica, capaz de iluminar, com a sua visão interior, o propósito documental que subjaz à criação da série, capaz de auscultar e de sentir o latejar dos conflitos e dramas individuais como só a literatura pode fazer. Uma narrativa capaz de dar rosto e nome aos cinco mil homens que, na madrugada de Abril, "estavam a fazer rodar as agulhas sobre o mostrador da história". Dando corda a esse relógio que, no arco da Rua Augusta, parecera parado a Charlie 8, ao olhar para trás, quando a coluna militar avançava em direcção ao Carmo. O mesmo relógio que há-de vir a ser a imagem de abertura do documentário da CBS, produzido por Bob Peterson, cujo guião encerra o romance. Numa palavra, uma narrativa capaz de combater as sombras e tornar esses homens Memoráveis, antes que sobre eles caia o manto do esquecimento, a poeira do deserto, a abstracção do mito.

(por opção pessoal, de acordo com a antiga ortografia)

 

Notas

[1]Esta recensão surge na sequência da apresentação do romance Os Memoráveis que teve lugar na Biblioteca Pública de Braga, a convite do Conselho Cultural da Universidade do Minho, em 7 de Maio de 2014.

[2]"Um Dia Puro", Jornal de Letras, 16 a 29 de Abril de 2014, p. 28.

[3]Escritaria, 5 de Outubro de 2014.