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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

LITERATURA – INTERCULTURALIDADE – PEDAGOGIA

Ecos do holocausto na literatura portuguesa de potencial receção juvenil

Echoes of the holocaust in portuguese young adult or children’s literature

 

Maria da Conceição Dinis Tome*

*CEMRI, Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais), Universidade Aberta, Portugal.

mconceicao.tome@eidh.pt

 

RESUMO

A literatura do Holocausto, constituída por testemunhos de sobreviventes e por produções literárias ficcionadas, tem vindo a ocupar, desde o final da II Guerra Mundial, e de forma particular a partir dos anos 90, um papel importante no conhecimento deste acontecimento histórico. Tendo por base os estudos sobre a ideologia de Hollindale (1992) e Stephens (1992), e no contexto do debate sobre a representação do Holocausto, pretende-se descortinar neste artigo as posições ideológicas veiculadas pelas narrativas portuguesas de potencial receção juvenil que abordam esta temática.

Palavras chave: Literatura, Holocausto, ideologia, memória.

 

ABSTRACT

The Holocaust literature, consisting of testimonies of survivors and fictional literary productions, has been playing an important role in understanding this historic event since the end of World War II, and particularly since the 1990s. In this article, from studies on the ideology (Hollindale, 1992; Stephens, 1992), we aim to uncover the ideological positions conveyed in contemporary young adult and children’s contemporary young adult literature about the Holocaust by Portuguese writers.

Keywords: Literature, Holocaust, ideology, memory.

 

1. Introdução

No final da II Guerra Mundial, surgiu uma literatura "nova, interessante e comprometida" (Vándor, 1999: 323), denominada literatura do Holocausto, que tem vindo a atrair muitos leitores. Na literatura do Holocausto, encontramos, por um lado, os diários, as memórias e as autobiografias, e, por outro, a ficção literária, sobretudo novelas e romances, de autores que escreveram a partir dos testemunhos pessoais ou sem qualquer investigação prévia (Vándor, 1999).

As narrativas de sobreviventes são as mais emblemáticas da literatura do Holocausto, tendo sido sobretudo através dos relatos testemunhais que o acontecimento histórico foi dado a conhecer ao mundo. Parecem ter sido várias as razões que levaram os sobreviventes a escrever as suas memórias, sobretudo quando elas reabriam feridas tão profundas. As vítimas terão sentido necessidade de narrar o que viveram, não só para dar testemunho do que experienciaram, mas também para se libertarem do peso das recordações, numa perspetiva terapêutica, catártica. Por outro lado, terão procurado na escrita um sentido para todo o sofrimento vivido ou tentaram, numa dívida de memória para com todos os que morreram, deixar um legado para as gerações futuras. Finalmente, para alguns sobreviventes, a escrita constituiu um ato de denúncia ou um gesto humanitário (Seligmann-Silva, 2005; Vándor, 1999).

Alba Olmi (2009), investigadora que pretende demonstrar a importância e o alcance multidisciplinar e transdisciplinar da literatura oriunda dos sobreviventes do Holocausto em termos de memória pessoal e de memória histórica, apresenta, a partir do estudo de Stefano Zampieri (2004), a periodização da literatura do Holocausto. A primeira fase, surgida imediatamente após o final da II Guerra Mundial, abrange publicações impressas por pequenas editoras, dirigidas a um público restrito composto essencialmente por amigos, familiares e vizinhos dos sobreviventes, sendo o texto mais representativo desta fase Se isto é um homem, de Primo Levi. As urgências políticas e sociais do pós-guerra constituíram razões relevantes para a pouca importância dada a esta literatura. Nesta altura, surgiu um certo sentimento de culpa por parte dos sobreviventes, pelo facto de se encontrarem vivos, ao contrário de muitos dos familiares e amigos, o que originou a política do silêncio que vigorou até meados dos anos 50 (Olmi, 2009).

A partir de meados da década de 50, liderada pela obra emblemática Noite, do sobrevivente Elie Wiesel, surge uma segunda fase, marcada pelo mito da vítima, numa altura em que as pessoas estão disponíveis para ouvir/ ler os testemunhos. A terceira fase ter-se-á iniciado nos anos 60, após o processo de Adolf Eichmann, sendo A grande viagem, de Jorge Semprún, a obra considerada referencial. Nesta fase, estabelece-se o novo papel das vítimas, valorizando-se a sua dignidade enquanto testemunhas (Olmi, 2009).

Nos anos 90, para além dos livros escritos pelos sobreviventes, surgem outras obras igualmente comprometidas com a memória, com objetivos educacionais, assumindo responsabilidades morais, sociais, éticas e históricas (Olmi, 2009). Quer as publicações de sobreviventes, quer as de membros de ‘segunda geração’ ou as de escritores, todas têm contribuído para a reflexão filosófica, sociológica, literária e estética em torno do Holocausto (Seligmann-Silva, 2005).

2. Da representação do Holocausto

Nos anos subsequentes à II Guerra Mundial, o Holocausto não foi percecionado socialmente como algo particular dentro dos horrores vividos durante o conflito bélico que deflagrou naqueles anos. No entanto, a partir dos anos 60, essa situação foi-se alterando, tendo evoluindo, desde o final do milénio, da impossibilidade teórica de representação do Holocausto para a sua atual popularização e representação (Munté Ramos, 2011).

Questão polémica surgida logo após a II Guerra Mundial, a reflexão sobre a possibilidade de representação do Holocausto continua a alimentar debates e estudos. Theodor Adorno afirmou, em 1949, naquela que é considerada a reflexão inaugural sobre o problema ético da representação do Holocausto, que, "depois de Auschwitz, escrever um poema seria um ato de barbárie".[1] Esta frase passou a manifestar, utilizada fora do seu contexto inicial, a proibição solene da representação (Munté Ramos, 2011: 73), a impossibilidade, o risco literário que qualquer autor enfrentaria ao associar a arte ao sofrimento e ao horror vividos.

Os constrangimentos relacionados com esta questão, e que podem ser verdadeiros, na nossa opinião, para outros factos da História mais recente, como o genocídio do Ruanda, a guerra na Bósnia-Herzegovina, no Burundi ou no Sudão do Sul, prendem-se com a dimensão e a monstruosidade desse acontecimento histórico singular (Zamora, 2000). O Holocausto é considerado um acontecimento sem precedentes, um marco em termos históricos, sublinhando o historiador Saul Friedländer (1996: 3) que o que torna a Endlösung [Solução Final] um acontecimento ‘nos limites’ é o facto de se constituir como a mais radical forma de genocídio da História.

A questão da representação do Holocausto desencadeou um intenso debate nos meios de comunicação social e na arte, sobretudo a partir das décadas de 60 e 70, quando existia já visibilidade e conhecimento social do Holocausto, surgindo muitas vozes a reclamar que aquele não é passível de ser representado, porque é inenarrável, porque não há palavras ou imagens capazes de traduzir os atos de desumanidade infligidos, porque há limites, fronteiras éticas e estéticas que não podem ser transgredidas.

Os argumentos essenciais contra a representação deste genocídio subordinam o valor da imaginação e da ficção literária à narração histórica (Munté Ramos, 2011: 87), estando entre os seus principais defensores Elie Wiesel, Berel Lang e Claude Lanzmann. Em 1977, Elie Wiesel afirmou, num texto que se tornou referencial nesta questão da abordagem literária do Holocausto, que Auschwitz e inspiração literária eram termos contraditórios, uma vez que "A novel about Treblinka is either not a novel or not about Treblinka" (Wiesel, 1977: 7). Baseando-se no facto de considerar o Holocausto como um acontecimento histórico único, o autor questiona a utilização de eventos tão horrendos com objetivos literários, reforçando a impossibilidade, por parte de quem não tenha experienciado o Holocausto, do conhecimento da sua verdadeira e total dimensão.

Por seu turno, Berel Lang (2000), refletindo sobre os constrangimentos que limitam a representação do Holocausto – o que pode ou deve ser representado neste evento e como – reclama o respeito pelo acontecimento e pelos limites históricos e éticos por ele impostos a todos os que o abordam. Lang considera que apenas a não ficção, a crónica literal dos acontecimentos pode representar de forma autêntica e verídica o Holocausto. Por isso, segundo o autor, qualquer representação literária do genocídio apresentaria uma inferioridade moral em relação a um relato histórico (Munté Ramos, 2011: 107).

Finalmente, Claude Lanzmann advoga que a ficção é transgressão, associando-a à trivialização do sofrimento das vítimas do Holocausto, reportando-se o autor, de modo particular, à ficção cinematográfica sobre o genocídio. Com efeito, a série americana Holocausto, emitida em abril de 1978, desencadeou, pelo impacto que teve não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, uma acesa discussão sobre questões essenciais no contexto da representação do Holocausto (Baer, 2006). Refira-se que a série inaugura uma época em que os meios de comunicação de massa assumem um papel importante enquanto conformadores de perceções coletivas (Ibidem). Claude Lanzmann e outros sobreviventes, entre os quais Elie Wiesel, consideraram que Holocausto não passava de uma banalização ou mesmo um insulto para as vítimas, receando que as representações veiculadas pelos produtos da indústria cultural e com fins comerciais pudessem substituir a própria História. Procurando contestar o poder homogeneizador dos meios de comunicação social no controlo da memória coletiva (Baer, 2006)[2], Claude Lanzmann recolhe testemunhos de sobreviventes, em diferentes locais, e apresenta Shoah, o mais extenso documentário sobre o Holocausto, em 1985, no Festival de Cannes.

Narrar o Holocausto, sobretudo quando falamos de textos ficcionais, parece, pois, oferecer, desde sempre, constrangimentos particulares, apesar de alguns estudiosos defenderem a ficção como a melhor forma de representação (Kokkola, 2003). Lawrence Langer defende a imaginação literária para representar o Holocausto, sublinhando que a tarefa fundamental da crítica não é perguntar se se deveria falar de literatura do Holocausto, uma vez que já existe, mas julgar a sua eficácia e as suas implicações para a literatura e para a sociedade (apud Munté Ramos, 2011: 119). Os textos literários sobre o Holocausto possuem, de acordo com este autor, uma verdade literal (verdade factual, de documentar os acontecimentos e as ações que ocorreram durante o Holocausto) e uma realidade imaginativa (a capacidade de o escritor transformar a verdade literal numa nova realidade que apela à imaginação), com efeitos perlocutivos importantes nos leitores (apud Munté Ramos, 2011: 120).

Fernández López (2006: 5) sublinha que não é de estranhar que, desde a perspetiva dos escritores sobreviventes, das testemunhas e de todos os intelectuais que consideram o Holocausto como um acontecimento de profundas implicações éticas, filosóficas e políticas, se exija o que autor designa por "correta representação", uma representação que tem que estar ao serviço da verdade e da memória. Segundo este investigador, esta questão da representação do Holocausto torna-se ainda mais complexa quando nos deparamos, por um lado, com obras ficcionais com uma intencionalidade artística, anamnésica, de autores que não viveram os horrores perpetrados durante a II Guerra Mundial e, por outro, com as memórias mais ou menos ficcionadas da autoria de sobreviventes. No primeiro caso, os autores confrontam-se com o "desafio da ficção" baseada na construção historiográfica da realidade, enquanto o narrar dos sobreviventes sempre é acompanhado pela dúvida se o realmente vivido é comunicável através da representação ficcional. Sejam quais foram as opções da ‘ficção-realidade’, impõe-se, no entanto, uma ética do olhar (que ver e como ver) (Baer, 2006) .

3. O Holocausto na literatura portuguesa de potencial receção juvenil

Contrariamente ao que sucede nos países francófonos, na Alemanha, nos Estados Unidos ou no Canadá (Delbrassine, 2006; Hubert-Ganyare, 1998; Nilsen & Donelson, 2001), as manifestações literárias comprometidas com a História, com determinados períodos em particular, como a II Guerra Mundial, são escassas na literatura portuguesa de potencial receção juvenil.

A presença da temática do Holocausto na literatura de potencial receção juvenil da autoria de escritores portugueses é, na verdade, extremamente residual. A parca exploração deste assunto pode estar relacionada com o facto de Portugal não ter tido uma intervenção ativa no conflito. Com efeito, Portugal proclamou a neutralidade logo no dia 1 de setembro de 1939, aquando da invasão da Polónia, data em que se inicia a II Guerra Mundial, uma neutralidade que parece ter interessado a várias partes envolvidas na guerra (Muscznik, 2012).

Com efeito, é sobretudo a partir de publicações estrangeiras, traduzidas e editadas em Portugal, que os leitores portugueses mais jovens têm acesso a livros sobre este assunto, verificando-se, nos últimos anos, um investimento editorial significativo nesta matéria. Para além do livro O Diário de Anne Frank, traduzido por Ilse Losa em 1955, os jovens podem ler A ilha na rua dos pássaros (Orlev, 1998), A rapariga que roubava livros, (Zusak, 2008), O rapaz do pijama às riscas (Boyne, 2008) e o álbum Anne Frank (Poole & Barrett, 2005), todos recomendados pelo Plano Nacional de Leitura. No âmbito desta temática, os leitores encontram ainda o livro Quando Hitler me roubou o coelho cor de rosa, de Judith Kerr, autora nascida na Alemanha, publicado pela primeira vez em 1971 e editado em Portugal, com a chancela da Editorial Caminho, no início da década de 90 (Kerr, 1992), e os álbuns A história de Érika (Zee, 2008) e Fumo (Fortes, 2008). Refira-se que o livro de Judith Kerr, uma das primeiras narrativas sobre este assunto a ser traduzida e publicada em Portugal, e obra recomendada em contexto escolar na Alemanha, recebeu, em 1974, o Prémio Alemão de Literatura Juvenil. De cariz autobiográfico, narra a história da fuga da protagonista e da sua família da perseguição nazi.

Recentemente, foram publicadas em Portugal narrativas em forma de diário que testemunham na primeira pessoa os acontecimentos vividos no meio do horror, da maldade e do sofrimento. Destacamos, neste contexto, O diário de Rutka (Laskier, 2007); A rapariga do gueto (Bauman, 2008); Diário - o diário de uma jovem judia em Paris sob a ocupação nazi (Berr, 2008); Clara, a menina que sobreviveu ao Holocausto (Kramer, 2010); O Diário de Helga – A vida num campo de concentração pelos olhos de uma jovem (Weiss, 2013), entre outros textos de caráter testemunhal, como os livros Alice – lições de vida, fé e coragem da mais antiga sobrevivente do Holocausto (Stoessinger, 2012) e O rapaz do caixote de madeira (Leyson, 2014).

Noutros países, a abundância de livros sobre a temática do Holocausto a partir da década de 90 (encomendas feitas a autores, mas também aos sobreviventes e aos historiadores) parece estar relacionada não só com o crescente interesse na literatura infantojuvenil, mas também com a institucionalização da memória da Shoah. Nos Estados Unidos, na França e na Polónia, entre outros países europeus, assiste-se a uma verdadeira explosão editorial constituída por romances, testemunhos, banda desenhada e álbuns, alguns deles para leitores adolescentes e adultos (Delbrassine, 2002; Finet, 2013; Hamaide-Jager, 2010; Nilsen & Donelson, 2001).

Neste contexto, cremos ser pertinente referir a criação, em 1998, da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) constituída por 31 países membros e 5 países observadores. Os principais objetivos desta aliança estão presentes na Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust (IHRA, 2000), salientando-se o compromisso com a educação, a memória e o estudo sobre o Holocausto; a promoção da educação sobre o Holocausto nas escolas e universidades; o compromisso em honrar as vítimas e encorajar o estudo do Holocausto em todas as suas dimensões. Portugal tornou-se, desde junho de 2009, membro observador da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto.

Nos últimos anos, na sociedade portuguesa, têm vindo a ser desenvolvidas algumas ações que contribuem para o conhecimento do Holocausto. A II Guerra Mundial e o Holocausto são conteúdos curriculares abordados na disciplina de História, no 9.º ano de escolaridade e, de forma mais aprofundada, no 12.º ano, registando-se, em muitas escolas, projetos de articulação curricular em volta da temática do Holocausto, sobretudo a partir das bibliotecas escolares.[3] É pertinente salientar ainda a evocação do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, criado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas através da Resolução 60/7, em 2005, a 27 de janeiro, data da libertação do campo de concentração de AuschwitzBirkenau. Em Portugal, têm vindo a ser realizadas diversas iniciativas que visam evocar e preservar a memória daquele acontecimento trágico, considerando o Estado Português que é um imperativo promover a educação dos jovens sobre este período negro da História.[4]

Refira-se, ainda, neste contexto, a criação, em Portugal, da MEMOSHOÁ – Associação Memória e Ensino do Holocausto, no seguimento do primeiro seminário para professores portugueses sobre o ensino do Holocausto, que aconteceu em agosto de 2008, pela Escola Internacional do Yad Vashem (em Jerusalém). Esta associação foi fundada por Esther Mucznick, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, e por professores de História, e tem como objetivo o desenvolvimento do trabalho de educação e memória do Holocausto, de forma particular no meio escolar. Várias exposições e sessões de formação para docentes têm vindo a ser realizadas desde então, em colaboração com o Yad Vashem.

Por outro lado, é pertinente sublinhar que tem vindo a ser realizada investigação sobre o Holocausto no nosso país, o que demonstra um crescente interesse sobre o assunto.[5]Parece haver, no entanto, por partes dos autores portugueses, alguma resistência em tratar literariamente um assunto tão polémico, de abordagem tão complexa. Encontrámos sobre esta temática, e pensando nos leitores mais jovens, apenas as seguintes narrativas: O mundo em que vivi, publicado pela primeira vez em 1949 (Losa, 1987), Campos de lágrimas (Letria, 2001), Mouschi, o gato de Anne Frank(Letria, 2002), com ilustrações de Danuta Wojciechówska, e O caderno do avô Heinrich (Tomé, 2013).

O mundo em que vivi evoca, numa perspetiva de forte pendor autobiográfico, a infância, nos tempos que se seguiram à I Guerra Mundial, a adolescência, nos anos de crescimento do nazismo e do antissemitismo, e o início da idade adulta, no período imediatamente após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, da judia alemã Rose Frankfurter.[6] Tal como em Quando Hitler me roubou o coelho cor de rosa, de Judith Kerr, O mundo em que vivi não confronta os leitores com o Holocausto, mas com os acontecimentos que o precederam, nomeadamente a perseguição nazi e a fuga subsequente, protegendo-se os potenciais leitores da exposição a atos de barbárie.

Campos de lágrimas, de José Jorge Letria, narra a viagem de uma família portuguesa com filhos adolescentes à Alemanha, para visitar o campo de concentração de Buchenwald, na tentativa de reencontrar as memórias de um familiar (um avô) que ali possivelmente morreu.

Em Mouschi, o gato de Anne Frank, pela voz do animal de estimação, é dado a conhecer aos leitores o que aconteceu a Anne Frank durante o período em que esteve escondida no anexo em Amesterdão, fazendo-se referência ao seu diário e a alguns episódios presentes no mesmo (as dificuldades do quotidiano relacionadas com a alimentação, a higiene e os conflitos; o namoro entre Anne e Peter; a relação da adolescente com a mãe e com a irmã…), evocando-se também acontecimentos posteriores à detenção da menina judia.

Finalmente, em O caderno do avô Heinrich, um narrador alemão idoso, refugiado no nosso país, relata ao neto episódios da sua infância, na Alemanha, na década de 30; as dificuldades vividas nos anos difíceis da II Guerra Mundial, na Polónia; e os laços de afeto que criou com um rapaz judeu, em Varsóvia, amizade que mudou radicalmente a vida de ambos.

O mundo em que vivi é, tal como O Diário de Anne Frank, uma obra proposta pelo programa curricular de Português para o 3.º ciclo do Ensino Básico, fazendo ainda parte da lista das obras a ler no âmbito da Educação Literária (introduzida pelas Metas Curriculares de Português) no 8.º ano, além de ser um dos livros recomendados para leitura orientada na sala de aula pelo Plano Nacional de Leitura, para o mesmo ano de escolaridade. O caderno do avô Heinrich recentemente publicado pela Editorial Presença, foi o texto vencedor do Prémio Literário Maria Rosa Colaço, na categoria de Literatura Juvenil, em 2012, sendo recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para leitura orientada na sala de aula, para o 6.º ano de escolaridade.[7] Refira-se, no entanto, que há outros livros de potencial receção juve-

nil de autores portugueses, de caráter mais informativo, sobre a temática do Holocausto, como acontece com aqueles que dão a conhecer a vida de Aristides de Sousa Mendes, cônsul em Bordéus, na altura da II Guerra Mundial, nomeadamente: Chamo-me... Aristides de Sousa Mendes (Margarido, 2011) e Aristides de Sousa Mendes – Herói do Holocausto (Ruy, 2005), este último recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para o 6.º ano de escolaridade.

4. A ideologia veiculada nas narrativas portuguesas de potencial receção juvenil sobre o Holocausto

Quer ao nível da história quer ao nível do discurso, os textos ficcionais constituem-se como contextos especiais para a ideologia operar, porque os textos narrativos estão altamente organizados e estruturam discursos que podem ser usados para expressar deliberadamente certas práticas sociais instituídas ou veicular implicitamente normas e valores sociais (Stephens, 1992).

Hollindale (1992) identifica três dimensões no contexto da inscrição da ideologia nos livros de potencial receção infantil e juvenil: a presença explícita e deliberada das crenças sociais, políticas ou morais do autor e da intenção deste em transmiti-las; a ideologia presente de forma implícita (que Hollindale designa por "passive ideology", Idem, 29) e, por último, a presença inerente da ideologia na linguagem, veiculando os textos os valores e as crenças do mundo em que o autor vive: "A large part of any book is written not by its author but by the world its author lives in" (Hollindale,1992: 32).

A análise da ideologia nos textos de potencial receção juvenil sobre o Holocausto implica considerar o debate mais abrangente da representação literária do Holocausto. De acordo com Kokkola (2003), a literatura tem potencial para ser uma poderosa forma de apresentar o Holocausto aos mais jovens, mas, de acordo com a investigadora, a existência do negacionismo implica, necessariamente, maiores responsabilidades para os autores que escrevem sobre este assunto. Por outro lado, como destaca Nadine Majaro (2014), é também necessário compreender o que os autores tentam veicular: apenas a promoção do conhecimento sobre o Holocausto ou a evocação da grandeza do espírito humano relatando atos de resistência ou heroísmo? É o Holocausto apenas representado como uma tragédia que envolve o povo judeu? E que mensagens veiculam, neste contexto, as representações das vítimas e dos perpetradores?

No que diz respeito à evocação dos universos conotados com o mundo histórico-factual, é pertinente sublinhar que as narrativas em causa relatam, em retrospetiva, a partir de uma data mais ou menos próxima dos factos narrados, eventos relevantes no contexto do Holocausto. Verifica-se um grande respeito pelo potencial leitor, visível no modo como são facultadas e explicadas as informações, garantindo uma abordagem desta temática ao alcance dos mais jovens.

A leitura de O mundo em que vivi permite aos leitores conhecerem a situação económica, política e social que antecedeu a II Guerra Mundial e o Holocausto, que corresponde ao aumento da influência e vitória do partido Nazi e ações relacionadas (desemprego, antisemitismo, perseguições aos judeus e a todos os que não concordavam com o regime e primeiras deportações). Nesta narrativa são feitas várias referências às alterações na vida quotidiana dos judeus, marcando-se, de forma clara, um tempo anterior ao tempo sombrio do nazismo e um outro tempo marcado pela violência e discriminação dos judeus:

Houvera um tempo longínquo, distante – uma eternidade o separava de nós – em que eu e a minha gente nos tínhamos sentido bem ancorados, um tempo em que ocupávamos um lugar legítimo no mundo. Éramos os Frankfurter, fazíamos parte da comunidade, pertencíamos à cidade e ao país. Mas depois tiraram-nos o chão debaixo dos pés, excluíram-nos do povo alemão, transformaram-nos num "problema", um problema para os outros, um problema para nós próprios (Losa, 1987: 155-156).

As manifestações antissemitas são mencionadas pela narradora-protagonista, com mágoa: os colegas com a cruz suástica ao peito; as caricaturas monstruosas; a discriminação na escola; os insultos à mãe quando fazia compras (cf. Idem, 156), as limitações impostas ao relacionamento entre cidadãos judeus e não judeus.

A chegada de Hitler ao poder é referida de forma explícita nesta narrativa, sublinhando-se as consequências previsíveis que essa vitória traria à vida dos judeus: "o nosso futuro tinha-se decidido" (Idem, 183), afirma a narradora-protagonista, deixando antever o horror que assombraria a Europa nos anos seguintes. "Agora está mesmo por cima de nós" (Idem, 184), afirma a narradora, a propósito da vitória de Hitler, utilizando metaforicamente a imagem da tempestade que se vinha formando e que eclodiria nessa altura, sublinhando desta forma a difícil situação em que os judeus se encontravam naquele momento, na Alemanha.

De forma particular nos livros de José Jorge Letria, é promovido o conhecimento do que se passou nos campos de concentração. Em Mouschi, o gato de Anne Frank, chegam ao anexo "notícias terríveis da triste sorte de milhares de judeus holandeses, presos e levados para campos de concentração" (Letria, 2002: 16) e é conhecido o destino trágico da família de Anne Frank ("Mais tarde ouvi dizer que todos eles tinham sido levados para campos de concentração e que a minha querida Anne Frank tinha morrido no campo de concentração de Bergen-Belsen"; Idem, 33). É, no entanto, a narrativa Campos de lágrimas que dedica mais espaço à exploração desta questão dos campos de concentração, descrevendo-os como locais "de horror e miséria" (Letria, 2001: 9), espaços de grande "sofrimento físico e moral" (Idem, 14) para onde foi levado o avô de Francisco, o narrador, após ter sido preso pela Gestapo em França, onde lutava pela liberdade ao lado das forças que combatiam o nazismo.

Em Campos de lágrimas, quase em jeito de reportagem jornalística, os adolescentes (os filhos da família em viagem, mas também os potenciais leitores) são confrontados com a realidade da existência dos campos de extermínio, dando-se importância não só a aspetos históricos relacionados com a data de criação do campo de concentração de Buchenwald (cf. Idem, 19), mas descrevendo-se, de forma pormenorizada, o quotidiano dos presos, a partir do momento que chegavam a Weimar: a humilhação do transporte em vagões de gado, a separação de homens, mulheres e crianças, a falta de condições de higiene, a fome, os maus tratos, as experiências médicas monstruosas realizadas pelos nazis (cf. Idem, 22), os trabalhos forçados, a tortura e o assassínio. Os leitores são conduzidos até aos fornos crematórios (mencionando-se na narrativa também as câmaras de gás) e aos locais de fuzilamento, sendo referidos explicitamente factos de grande crueldade, como é caso das fábricas que faziam travesseiros e cabeleiras postiças com os cabelos cortados dos prisioneiros.

O facto de se fazer referência, de forma explícita, aos atos hediondos perpetrados ou à forma como eram executados pelos nazis em Campos de lágrimas deixa claro não estar latente nesta narrativa a intenção de proteger os leitores mais jovens de atos demasiado cruéis (Bosmajian, 2002: 6), mas antes o propósito de os confrontar com a verdade histórica.

Em O mundo em que vivi, a narradora, num altura que em relata momentos da sua infância, recorrendo a uma prolepse, afirma: "Havia de chegar o tempo em que o espectáculo de neve não me inspirava senão tristeza por saber os meus amigos a morrer de frio em campos de concentração. Mas como adivinhar isso nessa época, (…) e eu vivia despreocupada como toda a gente" (Losa, 1987: 60). Noutra passagem textual deste mesmo livro, é feita referência ao destino trágico de Marie, mulher do tio (Franz) da narradora-protagonista: "afeiçoei-me a ela. Marie morreu. No fim da guerra, o seu nome figurou, burocraticamente, entre os dos mortos em Buchenwald" (Idem, 113).

Da análise das narrativas em causa, concluímos que há algumas estratégias que parecem estar ao serviço da veiculação de uma certa ideologia. Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar que a narração realizada pelo protagonista surge, nos textos em análise, como um recurso poderoso. O mundo em que vivi e Mouschi, o gato de Anne Frank (ainda que neste último caso seja o gato da menina a contar a história) adotam um tipo de narração focalizada numa personagem que, através do ato de recordar, controla a informação, doseando-a, de modo a reter a atenção do leitor.

Na verdade, apesar de a narradora de O mundo em que vivi ser já adulta no momento em que evoca o período das perseguições que precedem ao Holocausto, relata os acontecimentos num "enquadramento (…) limitado pelo universo psicológico da entidade focalizadora – a criança e, mais tarde, a jovem judia" (Marques, 2001: 58), aproximando-se, desta forma, dos potenciais leitores e promovendo a desejável identificação. O mesmo parece acontecer em Campos de Lágrimas, devido ao facto de o narrador se dirigir a dois adolescentes, seus filhos, ao mesmo tempo que se dirige aos potenciais leitores. No entender de Stephens (1992), é importante considerar o papel do leitor implícito nesta questão particular da ideologia, uma vez que, pela sua análise, se poderão descortinar não só as intenções explícitas do autor real, mas também a ideologia passiva de que fala Hollindale (1992). O leitor implícito previsto nestas narrativas aproxima-se do perfil dos seus potenciais leitores.

Sublinhe-se ainda o facto de os narradores adultos em O mundo em que vivi e em Campos de Lágrimas assumirem uma função privilegiada, porque são capazes de relatar aquilo que uma criança ou um adolescente não seria, sendo detentores de um saber / experiência verosímil. É pela voz dos adultos que os leitores são conduzidos até ao Holocausto e a alguns dos momentos / espaços mais representativos, assegurando-se, deste modo, a compreensão da mensagem e a passagem da ideologia.

Em Campos de lágrimas, a narração é realizada por uma figura que transporta uma grande carga afetuosa: um pai, que recorda um avô, ambos da mesma nacionalidade que a globalidade dos potenciais leitores. A figura da criança / adolescente vítima tem também um certo poder atrativo, constituindo-se, como sublinha Delbrassine (2006: 317), como um "excellent mobilisateur de la sympathie du lecteur", o que acontece no caso emblemático de Anne Frank, convocada pela voz do seu gato de estimação, no livro de José Jorge Letria.

No que diz respeito às posições ideológicas veiculadas na caracterização das vítimas e dos algozes, há que sublinhar algumas diferenças, possivelmente relacionadas com as vivências dos autores. Ilse Losa, de origem alemã e ascendência judaica, viveu na Alemanha antes da II Guerra Mundial, tendo sido obrigada a abandonar o seu país em virtude da sua condição de judia e da perseguição iminente. A sua visão dos anos que antecederam a II Guerra Mundial é, claramente, feita de experiência vivida, refletindo-se esta sua condição de testemunha em O mundo em que vivi.

Em relação às vítimas, refere-se, em Campos de lágrimas, que os prisioneiros que chegavam a Weimar com destino ao campo de concentração de Buchenwald eram "judeus, políticos, ciganos ou outros" (Letria, 2001: 14), "presos políticos, criminosos de delito comum e testemunhas de Jeová" (Idem, 19), "comunistas ou socialistas, ciganos, homossexuais" (Idem, 20), "padres" e "doentes mentais" (Idem, 50), salientando-se, no entanto, que os judeus eram as principais vítimas do terror dos campos (cf. Idem, 19). Sublinha-se o facto de terem sido seis milhões os judeus mortos durante o Holocausto (Idem, 36), em vários campos de extermínio mencionados no texto (cf. Idem, 50), mas não se considera o Holocausto apenas uma tragédia judaica.

Na verdade, encontramos sobretudo personagens judias com grande protagonismo nas obras em análise: é o caso da alemã Rose (cf. O mundo em que vivi) e da jovem Anne Frank (cf. Mouschi, o gato de Anne Frank). Em O mundo em que vivi, os traços físicos que apoiam o estereótipo do indivíduo judeu são desconstruídos, uma vez que se apresentam aos leitores personagens de "rosto amachucado, de nariz comprido", como é o caso da avó Ester (Losa, 1987: 106), mas também a judia Rose Frankfurter, loira e de olhos claros. As imagens estereotipadas relacionadas com as características físicas dos judeus são, deste modo, questionadas em O mundo em que vivi, constituindo uma forma de veicular posições ideológicas promotoras do respeito pelos seres humanos, independentemente das suas especificidades. Nesta narrativa, demonstra-se a boa integração da comunidade judaica na sociedade alemã, apesar do antissemitismo latente que, à medida que, na narrativa, nos vamos aproximando da subida de Hitler ao poder, vai assumindo contornos mais violentos, construindo uma convivência incompatível entre os cidadãos judeus e não judeus.[8]

Apenas em O mundo em que vivi se dá a conhecer a comunidade judaica, nomeadamente no que se refere à sua singularidade cultural e religiosa. Com efeito, são várias as referências a festas ou a tradições religiosas[9], numa clara valorização da cultura do Outro, veiculando-se, deste modo, o conhecimento e o respeito pela diversidade cultural e religiosa.

Nas narrativas em análise, algumas vítimas do Holocausto são também opositores ao regime. É o caso de Kurt, amigo de Rose, considerado pela polícia um "tipo altamente perigoso" (Losa, 1987: 193), e do jovem que estava alojado na mesma casa que a narradora, em Berlim. O mesmo acontece com o avô de Francisco, o narrador de Campos de lágrimas, supostamente exterminado num campo de concentração por lutar contra as forças nazis. Os alemães são responsabilizados pela sua atuação, enquanto perpetradores ou observadores passivos, identificando-se os elementos da Gestapo e o próprio Hitler, considerado um grande líder político pela maior parte da população, mas também, por uma minoria, um criminoso ("Senti nojo daquele cúmplice do assassino cuja fotografia se exibia por cima da sua cabeça"; Losa, 1987: 193). Os funcionários nazis são caracterizados sobretudo na sua dimensão psicológica, acentuando-se, neste contexto, a agressividade e a falta de compaixão.

Entre os responsáveis pelo Holocausto parecem estar também os indivíduos que, pelo silêncio e pela passividade, acabam por ser cúmplices dos crimes, (cf. Losa, 1987: 165). A questão dos ‘bystanders’ é colocada em Campos de lágrimas como um dos principais problemas desses anos, apontando o narrador o dedo, de uma forma um pouco acrítica e sem a necessária contextualização, a todas essas pessoas que consentiram que o Holocausto ocorresse:

– Então as pessoas viam e não faziam nada?quis saber Sofia.[…] É que muita gente sabia o tipo de crimes que se cometiam e nada faziam para os evitar (Letria, 2001: 13)

Não há nada que explique o silêncio cúmplice de grande parte de um povo ao ver assassinar milhares de pessoas da mesma nacionalidade e de outras nacionalidades sem razão aparente. E a verdade é que houve milhares de alemães que colaboraram dia a dia com esta máquina de terror e destruição (Idem, 34)

Em O mundo em que vivi, veicula-se, no entanto, uma perspectiva crítica e reflexiva em relação a esta situação. Com efeito, há uma afirmação de um professor de religião hebraica na obra citada que, na nossa opinião, parece contrariar a visão algo maniqueísta presente noutras narrativas: "Em todos os tempos e em todos os países cometeram-se e cometem-se injustiças. A razão encontra-se sempre nas circunstâncias e nunca nos povos em si" (Losa, 1987: 76). Esta visão está também presente noutros momentos desta obra, veiculada pela forma tolerante como a narradora se refere ao amigo Herbert que lutava em França, pelo exército nazi:

Herbert tombaria em França combatendo por aqueles que eram os meus inimigos. Creio bem que não lhe foi fácil submeter-se a essa gente. Nunca quis penetrar em problemas complexos, era despreocupado e, talvez a seu modo, feliz. Há quem o inclua na lista dos culpados. Mas eu não o posso fazer. (Idem, 133)

Para além de se promover o conhecimento sobre o Holocausto, em todas as narrativas em análise evoca-se a grandeza do espírito humano relatando-se atos de resistência ou heroísmo. É o caso dos indivíduos de nacionalidade alemã que ajudaram os judeus ou outras vítimas, considerados seres humanos de grande coragem e valor, sublinhando-se nas narrativas os riscos que corriam aqueles que, não concordando com os horrores cometidos, o manifestassem publicamente (cf. Letria, 2001: 35).

Em O mundo em que vivi, a irmã de Hedwig Schneider, professora primária, é presa por ser contra o regime. Esta senhora acolhe Rose em sua casa depois de a ter ouvido chorar, revelando uma grande humanidade e compaixão pelo sofrimento de Rose e dos outros judeus:

Não posso ajudá-la. Pois quem sou eu? Uma simples professora primária desconhecida. Mas talvez a conforte um pouco se lhe disser que sinto simpatia por si e por todos os que sofrem. Tenho vergonha do nosso povo, que desceu tanto. A Rose amanhã será julgada por ter dito a verdade. Pois é verdade que esse homem é um criminoso. E são criminosos todos aqueles que condenam os seus semelhantes pela raça e não os apreciam pelas qualidades humanas. (Losa, 1987: 101-102)

Miep e os senhores Kluger e Kleiman, em Mouschi, o gato de Anne Frank, põem a sua vida em risco sendo solidários com a família Frank e as outras pessoas que viviam no anexo em Amesterdão ("Digo bem: grande coragem, pois ela arriscava-se todos os dias, se fosse vigiada e seguida, a condenar os seus amigos à pior das sentenças e a ser presa e talvez mesmo morta. Mas nunca desistiu", Letria, 2002: 31); o avô de Francisco, em Campos de lágrimas, é preso quando combatia as forças nazis e levado para um campo de concentração, sendo apresentado como um homem exemplar, altruísta. Afirma-se explicitamente que este avô "sempre fora uma referência de dignidade e de coragem para a sua família" (Letria, 2001: 9), estando sempre ao lado dos mais desfavorecidos, "um homem honrado e um lutador pela liberdade e pelos direitos dos outros" (Idem, 43).

Re?exões ?nais

As narrativas em causa neste artigo parecem estar comprometidas com os objetivos da Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust, ou seja, "o compromisso em recordar as vítimas que pereceram, respeitar os sobreviventes (…) e reafirmar a aspiração comum da humanidade a uma justiça e compreensão mútuas" (IHRA, 2000; versão portuguesa). Sobretudo, realça-se o facto de o Holocausto ter sido fruto da loucura humana e de mentes criminosas ("nenhuma delas cometeu crime de qualquer espécie. O único crime que podem ter cometido foi o de serem diferentes, o de serem judeus, ciganos ou apenas homens e mulheres que lutavam pela liberdade contra a tirania", Letria, 2001: 33).

Há intenção explícita em dar a conhecer os anos anteriores ao Holocausto (cf. O mundo em que vivi), o que ocorria nos campos de concentração (cf. Campo de lágrimas), registando-se uma fidelidade à História. As narrativas partem, pois, do factual para o ficcional, sendo a matéria histórica a base para a construção literária.

O nazismo é percecionado como algo imoral e terrível que levou a "uma das maiores tragédias de toda a história da Humanidade" (Letria, 2001: 12), sendo apresentados aos leitores verdadeiros heróis, capazes de mudar um pouco o mundo à sua volta, interpelando-os pelo seu comportamento exemplar. Esta dimensão pedagógica, educativa, que visa a formação de seres humanos respeitadores dos direitos de todos e das diferenças, está explicitamente patente nas narrativas em análise.

Em Campos de lágrimas encontramos a seguinte dedicatória: "Aos leitores mais jovens, para não deixarem que se repita o maior crime da história da Humanidade", parecendo evidente o objetivo formativo deste texto. A intenção preventiva é manifestada explicitamente na narrativa citada, responsabilizando-se os leitores pelo futuro: "De qualquer modo, nunca se sabe, e o melhor é pensarmos que sempre que o pior pode voltar a acontecer, se as pessoas onde quer que estejam e façam o que fizerem na vida, não lutarem pela defesa da liberdade e dos direitos dos seres humanos" (Idem, 14).

A igualdade entre os seres humanos, apesar das diferenças, é reforçada recorrentemente, de forma explícita, constituindo a opção ideológica a seguir para que o Holocausto não volte a acontecer. Evoca-se o passado, na tentativa de se construir um melhor futuro, comprometendo-se os leitores, para que o Holocausto não se repita. Neste contexto, apontam-se, em Campos de lágrimas, alguns indícios de preocupação no mundo atual (referência aos episódios racistas que envolvem a comunidade turca, ao negacionismo, aos grupos de jovens neonazis, ao partido de George Haider, na Áustria e à Frente Nacional, em França e às semelhanças que estes partidos apresentam com o partido nazi). Os leitores são envolvidos e convocados para partilhar uma ideologia de teor pacifista, condenando-se o nazismo explicitamente.

O narrador de Campos de lágrimas lembra ainda o atual conflito israelo-palestiniano, responsabilizando os descendentes dos judeus assassinados nos campos de concentração que, em Israel, utilizam métodos semelhantes aos dos nazis, ajudando os leitores a refletir sobre esta questão da discriminação e do ódio desde diferentes perspetivas.

Algumas das questões em debate no contexto da literatura do Holocausto, nomeadamente a discussão sobre a responsabilidade moral da literatura e a fidelidade à História, parecem evidentes nestes textos, sendo as narrativas em causa testemunhos ao serviço da verdade e da memória universal.

 

Referências

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[Recebido em 20 de julho de 2014 e aceite para publicação em 15 de novembro de 2014]

 

Notas

[1]"(…): nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch" (Adorno, 1963: 26). Anos mais tarde, e no seguimento da sua leitura do poema "Todesfuge" [Fuga da morte] de Paul Celan, Theodor Adorno corrigiria a sua visão da incompatibilidade entre a arte e o Holocausto (vd. Munté Ramos, 2011: 75).

[2]Outras produções artísticas, entre as quais o filme A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, em 1992, realizado a partir do livro do escritor australiano Thomas Keneally; o filme A vida é bela, de Roberto Begnini (1998), ou ainda a banda desenhada Maus – a história de um sobrevivente, de Art Spiegelman, publicada no final da década de 80 e inícios da década de 90 (editado em Portugal pela Editorial Bertrand), têm vindo a alimentar este controverso debate sobre os limites da representação. Baer (2006: 112) sublinha que o cinema e a televisão enfrentaram de diversas maneiras o verdadeiro desafio que constitui abordar a natureza extraordinária do Holocausto, ou seja, os tabus que pesam na sua representação, tendo contribuído, no entanto, inquestionavelmente, para o conhecimento histórico de uma forma mais efetiva do que qualquer outra aproximação historiográfica ou documental sobre o Holocausto.

[3]No sítio web da MEMOSHOÁ, encontramos a referência a vários desses projetos. (http:// w3.memoshoa.pt/index.php/projetos1314). Destacamos ainda o projeto aLeR+: o Holocausto (www.alermaisoholocausto.weebly.com), da Biblioteca da Escola Básica D. Luís de Loureiro (Agrupamento de Escolas Viseu Sul).

[4]In http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/ministerio-dos-negocios-estrangeiros/mantenha-se-atualizado/20140127-mene-holocausto.aspx

[5]Registe-se, neste contexto, a conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em outubro de 2012, subordinada ao tema "Portugal e o Holocausto"; os livros Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial (Pimentel, 2006), Portugueses no Holocausto (Muscznik, 2012), Salazar, Portugal e o Holocausto (Ninhos & Pimentel, 2013), ou ainda Portugal, Salazar e os Judeus (Milgram, 2010).

[6]Sobre a obra de Ilse Losa, veja-se Marques (2001) e Cavaco (2012).

[7]Por razões éticas, excluiremos da análise a realizar neste artigo o livro O caderno do avô Heinrich.

[8]Veja-se, a título de exemplo, o episódio no café com o músico húngaro Beloz Amadi, interrompido por um grupo de fardados com insultos e agressões (cf. Idem, 157) que, devido às suas características físicas foi considerado judeu; o episódio com a mãe de Rose quando dialogava com outro passageiro numa viagem: "Pensei em ir para uma praia, mas desisti da ideia. Estão cheias de judeus e eu não posso com judeus" (Idem,119); a questão do casamento dos judeus com não judeus (veja-se a forma como a irmã de Paul via o relacionamento do irmão com Rose), entre outros episódios mencionados na narrativa.

[9]As referências abarcam diferentes áreas: a alimentação Kosher; a celebração do shabat; os rituais das cerimónias fúnebres; a festa religiosa de Rosh Hashanah; do Jaumkipur, dia da reconciliação (cf. Idem, 80); a festa das luzes e da alegria, a Chanuka (cf. Ibidem); a festa da Páscoa (cf. Idem, 91); a barmizwoh de Bruno (cf. Idem, 134), a referência a personagens bíblicas.