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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.2 Braga  2014

 

DISCUSSÃO - "NAÇÕES, GERAÇÕES E JUSTIÇA CLIMÁTICA", DE AXEL GOSSERIES: COMENTÁRIOS E RESPOSTA AOS CRÍTICOS

Comentário ao texto "nações, gerações e justiça climática", de Axel Gosseries

 

José Colen*

*Universidade do Minho, CEHUM, Portugal.

jose.colen.pt@gmail.com

 

1. A actualidade da questão e o apelo aos direitos e deveres de uma justiça cega

O texto suscita-nos questões perturbadas e perturbadoras porque nos força a olhar para além do horizonte estreito, no espaço e no tempo, dos deveres e dos direitos morais e políticos em que nos movemos habitualmente. É que, embora a questão dos deveres para com as gerações futuras encha menos os escaparates das livrarias ou as parangonas dos jornais do que a crise económica que atravessamos, as oportunidades e os perigos da globalização (ou as catástrofes climáticas que nos ameaçam no futuro, para o qual o texto busca uma fundamentação moral), a questão está intimamente relacionado com todos eles e possui portanto uma evidente actualidade e é difícil não sentir a sua natureza perturbada senão angustiada.

O apelo à nossa intuição moral leva-nos imediatamente a uma resposta, ou melhor a um conjunto de respostas: devemos às gerações vindouras um mundo sem guerra, uma ordem internacional equilibrada e não dependente de nenhuma superpotência, um planeta mais verde e limpo, recursos suficientes para uma vida decente, um Estado (ou vários Estados) que providenciem algo mais que uma rede de segurança para os mais desfavorecidos, as condições para o exercício do direito efectivo ao direito trabalho. Em suma, um futuro pelo menos tão pacífico ou rico e mares ou rios e ares tão limpos como aqueles que respirámos e em que nos banhámos como aqueles que herdámos. Ou seja, tudo aquilo que sucessivas gerações de declarações de direitos humanos bem-intencionadas nos asseguravam antes que nos caberiam como herança a nós e às gerações futuras – e que agora parece estar em causa.

A questão proposta está desta vez formulada em termos de deveres ou de justiça e não de governo e é por isso também perturbadora, pois nunca aquelas declarações identificaram claramente o sujeito desses deveres. Mas o ensaio tão-pouco é perfeitamente claro – somos nós, individual e colectivamente o sujeito dos deveres e das políticas, ou principalmente os velhos Estados-Nação, talvez em concerto, ou uma sempre vaga ordem internacional justa?

Parece-nos que o problema, como conjunto de obrigações, morais e políticas – uma vez que nenhum indivíduo por si só parece capaz de as assegurar – e não apenas como políticas seria especialmente interessante, porque nos forçaria a reflectir sobre o fundamento desses deveres para além da busca de um padrão justo para avaliar as políticas. Porque estamos quase desprovidos de recursos para lhe responder, uma vez que, ao menos implicitamente, as respostas do passado a estas mesmas questões remetiam para algo mais antigo, ou mais elevado que nós mesmos, algo pelo qual os indivíduos deveriam sacrificar-se, com a sua própria vida e até, se necessário fosse, com suor e sangue. Mas hoje, não só já ninguém parece acreditar que o homem seja um órgão do corpo social, ideia que entretiveram ou consolaram pensadores do passado tão diferentes como Aristóteles ou Augusto Comte, como estamos conscientes dos perigos e abusos a que tais ideias conduziram em tempos menos remotos, em nome de amanhãs radiosos, já ao virar da esquina, capazes de justificar as maiores opressões. Todavia, mesmo numa versão mais benigna, como a de Burke[1] em que uma sociedade se apresenta como alicerçada no contributo dos antepassados e preparando no presente um legado para as próximas gerações"[2], a ideia desafia a nossa credulidade. E aqueles que ousam defendê-la não fazem mais que revelar pertencer a um mundo desaparecido.

É certo que, na sequência de Rawls, diversos autores tentaram reabilitar o apelo à nossa intuição moral e a um sentimento íntimo de justiça, convencendo-nos a vestir a pele dos outros e colocando-nos numa posição inicial com a venda de uma justiça cega ou, se preferimos, de um "véu de ignorância", recorrendo à parafernália de uma nova ciência política formalizada e até susceptível de representações matematizáveis, com o prestígio e o rigor que se encontravam antes apenas nas novas ciências naturais ou económicas. E edifícios imponentes como as catedrais do passado foram sucessivamente erguidos com a designação genérica de "teorias da justiça", primeiro limitadas ao velho Estado-Nação e depois alargadas ao mundo global da Justiça das Gentes ou da justiça inter-geracional.

Esta intuição central parece, à primeira vista, capaz de iluminar não só grandes panoramas na história humana, mas também a justiça entre as nações e todos os grupos humanos. Não por acaso, o ensaio de Gosseries, na sua busca dos fundamentos morais para as decisões políticas na questão ambiental colocou a ênfase no problema da justiça inter-geracional[3]. Com efeito só nesse horizonte mais amplo, no tempo e no espaço, muitas daquelas questões podem ter resposta. E o mesmo autor fez encabeçar o seu trabalho com uma epígrafe de Rawls[4]. Assim tentou chamar a atenção para a componente histórica e inter-geracional dos problemas e das políticas globais relativas não só ao clima, mas ao trabalho, à educação, à poluição, aos seguros sociais e à poupança.

2. O paralelo entre o tempo e o espaço e os limites e dúvidas desta via de interrogação

Esta visão permite-lhe formular duas questões, a da reposição ou da correcção das injustiças passadas. A primeira parece-nos, todavia, insuficientemente clara – a correcção das injustiças passadas é uma questão de prolongamentos indefinidos pois é difícil vislumbrar a última instância ou o momento privilegiado da história a partir do qual devemos recomeçar. Em compensação, é muito rica e potencialmente fecunda a questão dos direitos e deveres para com as gerações futuras, com recurso ao paralelo entre o tempo e o espaço. O paralelismo, muito sugestivo, entre as nações e as gerações, é todavia de alcance limitado, mesmo assemelhando as gerações encravadas no tempo com as populações limitadas por uma fronteira, pois como o ensaio reconhece as gerações não podem atravessar fronteiras como as populações e o decurso (ou a seta) da história é unidireccional, ou seja, é um rio que só corre para a foz, pois o tempo só se move numa direcção que é a do futuro. E, no fundo, insuficiente, pois a interrogação de base permanece e mesmo a nossa intuição moral parece orientar-se em sentidos opostos: à primeira vista, ao menos, parece justo deixar às gerações futuras um clima e um ambiente mais puros e limpos, mesmo se, como lembrava Keynes, no longo prazo estejamos todos mortos (e algumas mudanças climáticas, porventura as mais dramáticas não se darão nas nossas vidas, pelo que o dito se aplica literalmente). Pelo contrário, no que toca à poupança parece-nos injusto sacrificar a geração mais idosa, que já nada pode fazer, às gerações mais novas que ainda estão a tempo de alterar e melhorar o seu futuro.

E dificilmente podemos considerar uma negociação entre gerações, que aliás não estão atravessadas por nenhuma fronteira, mas coexistem no mesmo tempo, como o fundamento de um dever moral, excepto talvez no sentido restrito de um contrato regulado por uma justiça comutativa. Mas, como o autor parece defender, embora de modo pouco explícito, a justiça comutativa está ultimamente dependente de uma distribuição inicial dos direitos, sem a qual é até difícil pensar sobre o que é justo.

Se parece verosímil a sua crítica de Rawls, que sempre se recusou a aplicar o princípio da diferença à justiça global e inter-geracionais, do mesmo modo que excluiu do modelo os casos extremos de doença e miséria capazes de esgotar todos os recursos, a questão merece mais aprofundamento. Pois é, de facto, esta possibilidade extrema que detém não só Rawls mas muitas nações desenvolvidas, de uma ajuda internacional mais forte. A incapacidade de um país desenvolvido, digamos, um dos países nórdicos, de resolver a questão da poluição na China, ou a pobreza em África é real, mesmo ignorando as perdas que resultam de transferir riqueza com um recipiente que está cheio de fugas. Esta é a nossa primeira objecção de fundo: como evitar que os casos extremos, dentro e fora do estado nacional, esgotem todos os recursos? Talvez a mudança de posição de Rawls na aplicação do princípio da diferença seja mais aparente que real.

Além disso, no ensaio, a definição mais rica de "nação" e de legado inter-geracional prometidos fica rapidamente no oblívio, ignorando-se o património a legar que é composto por muitas riquezas que não se esgotam com o seu uso. Não temos que "poupar" igualmente ou do mesmo modo florestas e rios, conceitos políticos, composições musicais e obras de arte, línguas e educação – e de modo geral todos os bens públicos que não se consomem com o uso, mas pelo contrário se enriquecem com a acumulação. Não se trata meramente de relembrar que existem bens que são dificilmente avaliáveis ou irremediavelmente subjectivos. Nada nos impede de construir indicadores sobre a qualidade do Estado de Direito ou da literacia, que os tornem operativos, mesmo à custa de um certo empobrecimento do discurso.

A objecção fundamental que desejamos levantar é que nos parece que uma teoria da justiça intergeracional deve considerar que embora a conservação exija recursos, estes não são da mesma natureza e dimensão que os requeridos pela sua criação. A cultura musical dos alemães, ou individualmente uma composição de Mozart, e.g., implicam um investimento secular e em vidas, mas também em bens materiais e lazer, que não é da mesma natureza nem volume que o investimento que exige hoje a sua difusão – no limite a reprodução de um DVD. A mesma dificuldade se levanta em relação à educação, mesmo no sentido mais restrito da instrução escolar. Ou, num tom mais clássico podemos lembrar a metáfora da flauta que não deixou de ser usada de Platão a Amartya Sen. A flauta tem um componente material em madeira, exaurível, e uma ideia de flauta, que pode ser reproduzida ad infi itum. Uma teoria da justiça que ignore um dos componentes é necessariamente incompleta.

O que desejamos sugerir é que talvez o "estado estacionário" seja uma experiência mental tão pouco adequada como a de um progresso indefinido. Estes bens "imaterais", tal como os bens cujo consumo públicos ou não-rivais podem e devem, em nossa opinião ser tratados numa contabilidade intergeracional, seguindo a mesma linha das propostas que, desde Samuelson e.g., tentaram corrigir a contabilidade nacional com recurso a melhores indicadores como o Bem Estar Líquido ou outros semelhantes. Talvez seja impraticável manter de forma constante e consistente numa estatística tais indicadores, mas não deve ser impossível usá-los para nos ajudar a pensar os problemas.

Uma objecção mais forte é o género de autoridade necessário para "proibir tanto a poupança como a despoupança". Para proibir a poupança no (mítico) "estado estacionário", talvez seja necessária uma autoridade absoluta, que não parece desejável, e um critério infalível que estamos longe de possuir. A ideia subjacente é que um critério de justiça que exija um padrão de resultados finais (a igualdade estrita entre gerações), exige necessariamente um género de instituição que não queremos ter.

Não julgamos que seja o caso de qualquer tipo de exigência de justiça. Não se aplicaria a uma teoria da justiça que aceite diferenças de "riqueza" inter-geracional, o que parece inevitável, em certa medida, se nos recordarmos de que o passado não pode ser alterado. Não se trata tão pouco de baixar as exigências da justiça como referência, pois a variação da riqueza inter-geracional, de facto,está mais em consonância com o apelo à nossa intuição moral: não somos, hoje, indiferentes ao destino e riqueza das próximas gerações. O cerne do problema é o desenho das instituições capazes de as assegurar.

Estas duas críticas possuem entre si uma certa ligação. Lembremos que Aristóteles, que defendia que a cidade não devia ser um mero mercado protegido pela autoridade, julgava que a felicidade era impossível sem um mínimo de bens, das três espécies: bens externos, bens do corpo entre os quais o prazer, e bens da psichê, os mais importantes. O que se lhe afigurava difícil era ajuizar sobre a correcta proporção ou a justa medida em que cada um destes três bens devia estar presente. Tal juízo exigiria contudo uma grande intrusão das autoridades na vida dos cidadãos, que não fazia Aristóteles hesitar, mas que nos tolhe hoje. Talvez a proibição da poupança e a obrigação de grandes sacrifícios por gerações que ainda não nasceram esteja para além do que é politicamente factível ou mesmo desejável e para além do que um homem prudente pode ajuizar, para já não falar de absolutos.

4. O que devemos fazere que podemos fazer

Enfim, um princípio de ética política que, como Raymond Aron, devemos subscrever é o de que só temos o dever de fazer o que podemos fazer. Assim também o que devemos às gerações vindouras está, provavelmente, aquém da lista de desejos que trocamos nas épocas festivas, incluindo a paz no mundo, a coexistência pacífica de todas as culturas, a mudança democrática da China, um mundo mais ecológico, igualitário e justo. Por isso talvez se deva dar mais atenção às propostas que devem ser escritas em letra minúscula, e que não se baseiam em nenhum dos "ismos" e que aborrecem todas as palavras que sentimos a tentação de escrever com letras capitulares, para usar a expressão de Simone Veil.

A maior parte de nós não pode fazer muito em nenhum destes domínios, excepto talvez compreender melhor o nosso mundo como um "espectador comprometido", despoluir o mundo começando por varrer o que está à nossa porta e militar em movimentos que defendam as causas que consideramos justas, embora existam certamente momentos em que o dever para com as gerações vindouras exija um heroísmo, por palavras ou com actos, para o qual, nada infelizmente nos prepara, pois costumam aparecer de surpresa no meio das tragédias pequenas e grandes da história. Os cidadãos vulgares, entre os quais se contam a maioria dos filósofos políticos partilham um sentimento de impotência que os leva a esperar tudo do Estado, como se este não fosse humano, por vezes mesmo demasiado humano, como de uma alavanca a precisar somente de um ponto de apoio para elevar o mundo. Ou, pelo contrário, leva-os a lamentar a falta de liderança, ou a sua baixa qualidade, que já existiu outrora, no pós-guerra, ou na geração anterior de líderes europeus com visão, ou numa idade de ouro qualquer, sempre fugidia.

Um filósofo político tem, é certo, como tarefa, dizer o que devemos fazer ou falar sobre a melhor solução ou o "melhor regime" e depois trabalhar sobre um caminho realista para atingir esse objectivo. Tal não implica renunciar a identificar princípios e começar com o que as pessoas estão prontas a fazer, mas o que é ideal, mesmo o que é utópico ou está de acordo com as nossas preces é quase sempre formulado num contexto politico, seja uma república feita com palavras ou uma ilha sem lugar. Ou seja, implica um certo arranjo institucional e uma distribuição inicial de direitos. Provavelmente não há melhor solução em termos absolutos, para todos os tempos e lugares.

Talvez se possa compreender melhor esta afirmação se dissermos que todas as regras formuladas sem "ses", nem "mas" são necessariamente parciais ou falsas, pois não temos capacidade de apreender todas as situações em simultâneo. O melhor que podemos propor quanto à questão da justiça inter-geracional talvez seja o que um homem prudente decidiria pesando os diferentes bens nas circunstâncias em que se encontra. E a missão do filósofo político seria menos apresentar um modelo acabado do regime ideal, sem imperfeições e em estado estacionário, que propor claramente esses diversos bens, incluindo os bens futuros, reconhecendo que estão por vezes em conflito e que a escolha é necessariamente socialmente divisiva ou política e nem sempre consensual.

5. O estado estacionário e os homens do presente

A questão tem uma patente actualidade no momento em que se discute o equilíbrio entre os direitos das gerações inactivas ou em vias de reformar e o futuro das novas gerações, ou os perigos climáticos que parecem pesar sobre o planeta. Defendemos que há boas razões para sua teimosa persistência entre as questões genuinamente filosóficas, nem empíricas, nem a priori, para usar as palavras que Isaiah Berlin gostava de repetir. Apesar de parecermos desprovidos de recursos intelectuais e morais para lhes responder devido ao individualismo das nossas sociedades liberais, não somos por isso forçados a recuar a soluções antigas como as diversas formas de organicismo ou de nacionalismo. Mas é possível igualmente argumentar que as soluções formais que fazem apelo à nossa intuição moral mas assentam numa negociação desenhada sobre a matriz de um mercado são, no fundo, insuficientes e por vezes mesmo contraditórias, ainda quando parecem muito verosímeis.

A via que desejamos propor à guisa de conclusão é outra, ainda que a sua exploração exija muito mais que um ensaio. Uma tradição de reflexão filosófica sobre a natureza do tempo, desde Heráclito ou Agostinho a Heidegger, acentua a sua dimensão fugidia e as dificuldades de conceptualização. Um quadro kantiano e liberal, todavia, pode ser suficiente para sabermos ao menos como obter a resposta que a questão pede, ou que método nos permitiria desvendá-la.

É que os homens presentes são os únicos sujeitos possíveis de direitos e deveres[5]. A proposta de defender que as gerações futuras podem ter direitos futuros e que tal é suficiente para justificar deveres presentes, tem certa plausibilidade, mas não atribui suficiente importância às diferenças no tempo. Ou seja, a inexistência de autênticos deveres para com as gerações passadas, excepto talvez o da gratidão emocionalmente sentida, e a indesejabilidade de sacrificar os homens reais a amanhãs que cantam.

Tal não exclui que os homens, hoje e agora, se interessem e estejam dispostos a grandes sacrifícios pelo que recordam e pelo que desejam preservar, interesse que não termina sequer com a sua própria morte, sem necessidade de recorrer a valores impessoais hipostasiados num mundo ideal qualquer. Onde está a canção antes de ser cantada? O problema poderia ser apenas um ponto metodológico sobre a maneira de filosofar, que é finalmente, na nossa opinião, secundário ou penas preliminar e não susbtantivo, ou uma questão metafísica, a da realidade ontológica do "eu" dos homens no futuro. Mas a dificuldade em generalizar as nossas intuições fundamentais sobre o que devemos uns aos outros tem, neste caso, consequências práticas imediatas. Pode implicar, por exemplo, que nem todas as gerações, já existentes e do futuro estejam em situações exactamente iguais, pois o modo como os homens do presente encaram essas diferentes gerações é diverso: a dos seus filhos ou netos e a dos longinquos habitantes de Burma em 2100.

Enfim, o sonho de um estado estacionário parece-nos enganador. Porque a democracia a que devemos aspirar não tem necessariamente que ser uma forma de cortar as árvores mais altas e limitar aquilo que desejamos, com instituições baixas mas sólidas mas um melhor regime – que não deve de modo algum confundir-se com a politeia de Aristóteles, mesmo que nesta não existissem escravos naturais ou convencionais. A nossa democracia implica concessões e trade offs, mas não nos obriga a esquecer que os instrumentos musicais pertencem de forma justa, não ao que tem um título de propriedade, nem a quem fabrica as flautas, mas ao flautista que as usa hoje, ou aos flautistas que, nas gerações futuras, nós homens do presente desejamos que delas venham a dispor, no quadro de uma decisão que é no fundo política no sentido mais nobre da expressão.

 

Notas

[1]Burke, The Works of the Right Honorable Edmund Burke, Vols. I–XII, Revised Edition, Boston, Little, Brown, and Company, 1866, p. 95.         [ Links ]

[2]Cf. Ivone Moreira, A Filosofia política de Edmund Burke, Lisboa, Aster, 2012, p. 34.         [ Links ]

[3]Cf. Working paper «Nações, gerações e justiça climática» baseado em Gosseries, A. (2013), ‘Nations et générations’, in R. Chung & J.-B. Jeangène Vilmer (eds.),Ethique des relations internationales. Problématiques contemporaines, Paris, PUF, pp. 331-354.         [ Links ]

[4]Recolhido de Rawls, The law of Peoples, p.107.         [ Links ]