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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.2 Braga  2014

 

40 ANOS DE ABRIL

Novas Cartas Portuguesas 40 anos depois

 

Ana Gabriela Macedo*

*Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Braga, Portugal.

gabrielam@ilch.uminho.pt

 

"A liberdade hoje, manas, é a persistência do riso, de quem aguentá-lo pode, sem esgar"
(NCP)[1]

Novas Cartas Portuguesas (NCP), um texto que é quase uma "cooperativa literária" como diz Ana Luísa Amaral, e uma utopia do possível "com resultados práticos"[2], e que foi, hoje o lemos e o sabemos, um anunciar de Abril. Por isso urge, no contexto deste Colóquio, trazê-lo à discussão.

A nível literário é um texto que não só desmonta, desconstrói, o conceito de autoria/autoridade, como se constrói a si mesmo e à materialidade da literatura, como um imenso intertexto, um labor de arachné, um texto em rede, atento por um lado aos "ruídos do mundo" e às várias vozes que o percorrem – a guerra colonial, o analfabetismo, a iliteracia, a exploração física e psíquica dos trabalhadores e trabalhadoras portuguesas, a censura e a repressão política e sexual. Um texto que se assume enquanto narrativa insurrecional, já que se fundamenta "na rotura que inaugura na literatura portuguesa contemporânea, quer a nível discursivo, quer a nível meta-discursivo", tal como referi num meu artigo anterior[3]. As Novas Cartas Portuguesas, tal como afirmou Maria de Lourdes Pintasilgo no Pré-Prefácio à sua edição de 1980, apenas podem ser definidas "pelo excesso", "porque rompem, extravasam"[4]. Este é, contudo, um texto que tem, como foco primeiro, a exploração das mulheres e a sua invisibilidade e inviabilidade no social, na civitas, assim como o seu silenciamento pessoal, cultural e político, a sua rasura identitária enquanto sujeito e agente da cidadania. Em suma, o reclamar da sua humanidade por inteiro. O texto ergue-se assim como um "modo vigilante" de cultura, reclamando plenamente a capacidade interventiva da literatura como estratégia de auscultação da História e modo de interferência no mundo, recuperando as palavras de Edward Saïd, e recusando assim ao leitor/leitora o instalar-se no conforto da ficção, na sedução morna das palavras e no inebriante "murmúrio da mera prosa", de novo num eco de Saïd [5].

Mas o livro ergue-se também como texto ímpar, destacando-se entre as grandes obras do século XX da literatura portuguesa, pela polifonia de géneros e vozes literárias que o atravessam – a sua indomada raiz na poética trovadoresca, nas cantigas de amigo da lírica medieval ibérica, em Bernardim Ribeiro, Sóror Mariana Alcoforado, Florbela Espanca, Natália Correia, mas também Herberto Hélder, Alexandre O’Neill, Mário Césariny, Eugénio de Andrade – toda uma rede textual de intra e inter-dialogismos, heteroglossias e dessacralização da palavra. Sendo um texto eminentemente dialógico é assim radicalmente fundado na ambivalência, centrado na dissensão e na discórdia – desde logo, a escrita epistolar que o constrói, na senda das cartas da monja portuguesa ao cavaleiro de Chamilly, desconstrói-o simultaneamente como texto uno, isto é, de um género único e de uma autoria única – desafiando o princípio essencialista da autoridade literária. Um texto híbrido, um "livro monstruoso", como escreveu Raquel Ribeiro, "pela transgressão que instaura, pelo desafiante que é enquanto narrativa impura, ou poética contaminada"[6], e que assenta no princípio do riso, do jogo e da inversão, enquanto força demolidora, estruturante do questionamento anti-essencialista que desafia verdades e mundos estabelecidos, e "faz tremer o burguês". "Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto (…). Se a mulher se revolta contra o homem, nada fica intacto; para a mulher, o chefe, a política, o negócio, a propriedade, o lugar, o prazer (bem viciado), só existem através do homem" (p. 175). Mas este é, também e sempre, "livro político", como Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa o reclamam; não um avatar do Feminismo, mas sim o Feminismo reengendrado, sabiamente reinventado, materializado em palavras que foram (e são ainda hoje) armas. E assim o Poder de então reconheceu o desafio que as palavras impuras, contaminadas, teceram, e condenou-o de imediato, à falta de melhor motivo, ou por escassez de retórica e outros recursos credíveis – já que a literatura a poucos importa –, condenou-o por "pornografia e ofensa à moral pública". Provando assim afinal, malgré tout, o poder da literatura: "Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?", diz-se no texto (p. 254). O processo foi conduzido pela polícia judiciária e as autoras interrogadas pelo "Agente Parente", que era o que ouvia as prostitutas, os homossexuais … e as escritoras malditas. Já o advogado de defesa foi Luís Francisco Rebelo. Mas disso nos poderão falar com mais pormenor e maior justiça Ana Luísa Amaral e Marinela Freitas, já que o processo judicial a que o livro foi sujeito tem sido alvo da aturada investigação levada a cabo no âmbito do projeto As Novas Cartas Portuguesas 40 anos Depois (http://www.novascartasnovas.com)[7], a que ambas pertencem e que Ana Luísa Amaral coordena, projeto este que deu já valiosos frutos: uma reedição anotada do texto, várias conferências internacionais, um número especial da revista Cadernos de Literatura Comparadas (ILCML)[8], e outros que estão para vir.

Por último, este é um texto que celebra também a vanguarda de um Feminismo plural, reclamando a antinomia, o nomadismo e a diferença "avant la lettre", próximo sem dúvida de teóricas como Hélène Cixous e Luce Irigaray, mas apontando já o caminho da desestabilização das fronteiras de género, da política da localização, do empoderamento e das novas cartografias do corpo, presentes em intelectuais feministas contemporâneas como Butler, Grosz, Haraway, Lauretis, Braidotti ou Pollock, e como tal um anunciar dos Feminismos plurais do sec. XXI, de novo e sempre ainda, inquietos, inquietantes, isto é, consubstanciando uma poética do devir.

Escutamos hoje ainda a sua poderosa e salutar gargalhada! E hoje, talvez mais ainda do que em nenhuma outra altura da nossa História, temos tamanha precisão de a escutar e de assim reclamar que: "A liberdade hoje, manas, é a persistência do riso, de quem aguentá-lo pode, sem esgar".

Quero ainda dizer da minha alegria em poder hoje estar aqui a refletir sobre este livro mal/dito no belíssimo Salão Medieval da Universidade do Minho, ciente do facto de que, se não tivesse havido Abril de 74, este livro "desterrado" como alguns lhe chamaram, teria para sempre as suas páginas rasuradas pela Censura. E é também um privilégio estar hoje aqui em tão ilustre e tão amável companhia, e com tão empolgante tema: o Riso, como libelo contra a opressão e garante da Liberdade.

 

[Submetido em 15 de julho de 2014 e aceite para publicação em 2 de setembro de 2014]

 

Notas

[1]Barreno, Maria Isabel Horta, Maria Teresa e Velho da Costa, Maria, Novas Cartas Portuguesas, (Lisboa: Estúdios Cor, 1972); 2ª edição, (Lisboa: Futura, 1974); a 3ª edição (Lisboa: Moraes, 1980) tem um Pré-Prefácio de Maria de Lourdes Pintasilgo. A edição mais recente é organizada e anotada por Ana Luísa Amaral, (Lisboa: Dom Quixote, 2010).         [ Links ]

[2]Amaral, Ana Luísa, entrevista com São José Almeida e Raquel Ribeiro, As Novas Cartas Portuguesas regressam do deserto", Público, Ípsilon, 12/11/2010 (pp. 6-8).         [ Links ]

[3]Macedo, Ana Gabriela, "As Narrativas de Novas Cartas Portuguesas e Dores de Maria Velho da Costa. Reflexão sobre o intertexto de histórias no feminino e a História cultural e política", in Cadernos de Literatura Comparada 26/27, ILCML, Porto, (pp.163-179).         [ Links ]

[4]"Excessivas as situações, excessivo o tom, excessivas as repetições dum mesmo acto, excessivo afinal todo o livro que vai terminando sem realmente terminar, como se tal excesso não coubesse nas dimensões normais", afirma Pintasilgo (1980: 8).

[5]Saïd, Edward, "Opponents, Audiences, Constituencies and Community", Critical Inquiry, Sept. 1982, (pp.1-26).         [ Links ]

[6]Ribeiro, Raquel, "O híbrido é belo", in Público, 12 Novembro 2010, (p.9).         [ Links ]

[7]As Novas Cartas Portuguesas 40 anos Depois (http://www.novascartasnovas.com/), coord. Ana Luísa Amaral (Univ. Porto; ILCML), (PTDC/CLE-LLI/110473/2009).         [ Links ]

[8]Cadernos de Literatura Comparada 26/27, Novas Cartas Portuguesas e os Feminismos, org. Ana Luísa Amaral, Ana Gabriela Macedo e Marinela Freitas, ILCML, Porto, 2012.         [ Links ]