SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número1O tratamento do humor nos métodos de ensino de euscara para adultosMecanismos não-verbais e paraverbais na construção do ethos em L’étranger de Albert Camus índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.1 Braga  2014

 

Aspetos sociocognitivos da variação e da mudança semântica: haver e ter em estruturas de posse

Socio-cognitive aspects of semantic variation and change: haver and ter in possession structures

 

Maria José Carvalho*

*Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal.

mariac@fl.uc.pt

 

RESUMO

Como é sabido, em português europeu contemporâneo, a noção de posse é expressa com o verbo ter, confinando-se haver às estruturas existenciais. No português medieval, teer e auer como verbos providos de conteúdo lexical eram usados frequentemente no mesmo contexto, sem que houvesse diferenças significativas entre eles. Os estudos sobre estes verbos em estruturas de posse são abundantes, mas as motivações e condicionamentos da gradual substituição de auer por ter não foram ainda suficientemente esclarecidos. A nossa análise baseia-se na tipologia efetuada por Silva (1995), quanto à natureza semântica do complemento do predicado: estruturas do tipo AM e estruturas de tipo AI. Num corpus de natureza jurídica, analisámos a evolução desta substituição gradual de auer por ter, tentando responder a duas questões: por que motivo o verbo ter começa por substituir auer nas estruturas de posse do tipo AM? Por que condicionalismos externos (sociais, cognitivos ou culturais) ter avança para expressões do tipo AI ao longo do século XV?

Palavras chave: Cognição, Semântica cognitiva, Semântica histórica, Variação e mudança semântica.

 

ABSTRACT

In contemporary European Portuguese, as we know, the notion of possession is expressed by the verb ter, with haver confined to existential structures. In medieval Portuguese, teer and auer, when they had lexical content, were often used in the same context, with no significant differences between them. There have been numerous studies on these verbs in possession structures, but the reasons and conditions for the gradual substitution of auer by ter have still not been explained. The present analysis is based on Silva ´s (1995) semantic typology of the complement of the predicate: AM-type structures and AI-type structures. In a corpus of juridical documents, we have analyzed the evolution of this gradual replacement of auer by ter, attempting to answer two questions: what was the reason that ter began to replace auer in AM-type possession structures?, and what were the external conditions (social, cultural and cognitive) whereby ter moved into AI-type expressions during the 15th century?

Keywords: Cognition, Cognitive Semantics, Historical Semantics, Semantic Variation and Change.

 

In Memoriam Rosa Virgínia Mattos Silva

1. Introdução

Como é sabido, em português europeu contemporâneo, a noção de posse é expressa com o verbo ter, confinando-se o verbo haver a estruturas tipicamente existenciais (ex: « muita pobreza no mundo»). Contudo, no português medieval, teer e auer como verbos providos de conteúdo lexical eram usados frequentemente no mesmo contexto, sem que houvesse diferenças significativas relevantes entre eles. Os estudos sobre estes verbos (tener e haber, em castelhano) em estruturas de posse, nessa fase da língua portuguesa, são abundantes, mas as motivações e condicionamentos da gradual substituição de auer (< HABERE) por ter (TENERE) não foram ainda esclarecidos.

Relativamente à língua castelhana, e sobre os fatores sociais que estiveram na origem da distribuição destes dois verbos, pronunciou-se já Eva Seifert num trabalho, que se tornou clássico, onde propõe para “tener” a aquisição de um sentido de posse ligado aos favores jurídicos associados ao regime feudal da propriedade, que terá levado os notários a progressivamente adotar o verbo teer. Considerando que «las innovaciones de orden administrativo y las relaciones feudales exigieron un vocabulario nuevo» (Seifert, 1930: 245), a Autora prova que já no século XI um documento jurídico se revela precioso por «emplear habere designando la propiedad por herencia y tenere la posesión en feudo» (ídem, ibidem: 247).[1]

Quanto aos fatores linguísticos que converteram teer de “ajudante em usurpador”, e após ter traçado a evolução semântica destes verbos na língua espanhola, desde a língua latina até ao século XX, a mesma autora afirma que a substituição de “aver” por “teer” foi motivada pelo facto de «ser ambos verbos desprovistos de sentido propio, funcionando como cópula expresiva de una idea vaga de acción o posesión» (ibidem: 384).

No que diz respeito à língua portuguesa propriamente dita, a tentativa pioneira de contribuir para o esclarecimento de «um dos mais escuros problemas de evolução semântica» (Ali, 19575: 118) foi a monografia de Maria Lúcia Pinheiro Sampaio (Sampaio, 1978). Não obstante o caráter restrito do corpus analisado, constituído essencialmente por exemplos dispersos extraídos dos textos literários desde o latim clássico até ao século XX, a Autora prova que em textos do século XIV estava associada ao verbo aver uma “posse atenuada, uma espécie de posse espiritual” (idem, ibidem: 20), concluindo que no português arcaico «haver e ter, como verbos independentes, tinham empregos diversos e não eram usados indiferentemente, um pelo outro, como acontecia quando expressavam a posse» (idem, ibidem: 36-37).

Uma pesquisa que viria a revelar-se um marco importante para toda a reflexão subsequente em volta de teer e aver, é o de Rosa Virgínia de Mattos Silva (Silva, 1995: 306-307). A nossa análise baseia-se na tipologia efetuada por esta autora quanto à natureza semântica do complemento do predicado[2]:

(i) Estruturas do tipo AM [o complemento expressa objetos materiais adquiríveis, externos ao possuidor]: «hua uinha que de nos t? Pero Perez» (1289 MA 1), «que téém ca?aria enteira» (1342 Alf30), «dhua herdade que teue» (132 MA 47), etc. Trata-se de um tipo de posse que pode ser designada por “posse prototípica”[3].

(ii) Estruturas de tipo AI [o complemento expressa qualidades morais, espirituais, intelectuais, afetivas, sociais]: «mal e rrancor que delle auja» (1402 MA 67), «graças, mercees que dello poderiades auer» (1405 MA 70), «todo o derreito que agora entendya (…) d’ auer» (1436 Alf 93), «nõ averedes poder» (1452 MA 106), etc. Trata-se de um tipo de posse normalmente considerada “não-prototípica”.

Uma análise sistemática dos dados permitiu-lhe concluir, com fundamentação empírica mais segura, que:

a) Haver, na primeira fase do português arcaico, era o verbo generalizado na expressão das estruturas de posse; b) A expansão de ter sobre haver se origina nas estruturas do tipo AM e se difunde para as do tipo AI (…); c) Na 2ª metade do século XV, haver e ter se apresentam como variantes nas estruturas de posse, mas já se evidencia o recesso de haver. (Silva, 1995: 306-307).

As duas questões lançadas pela Autora no final desse estudo revelam-se, na nossa opinião, cruciais na fundamentação da substituição gradual de aver por teer: «1) Por que o verbo ter começa por substituir haver nas estruturas de posse do tipo AM? 2) Por que ter avança para expressões do tipo AI (...) ao longo do século XV?» (idem, ibidem: 308). Recorrendo aos valores semânticos de tenere e habere, uma das constatações é que «as mais antigas documentações de ter em estruturas de posse, quando o complemento tem um referente concreto, podem ser explicadas pela história semântica do tenere latino em direção ao ter português» (ibidem: 309).

Seduzido, igualmente, pelas motivações internas e/ou externas que levam à difusão do uso de teer sobre aver, e na pista de Eva Seifert,[4] Amadeu Torres procura também na etimologia os valores semânticos dos dois lexemas:

Dois campos semémicos nada estanques (…) em cujo futuro de maior ou menor implantação irão influenciar os condicionamentos sociais por um lado, os de objectividade temática e de intersubjectividade emotivo-cultural por outro (Torres, 1997: 305).

Assim, coloca, também, a sedutora questão que, a nosso ver, poderá fornecer a chave para o entendimento linguístico, cognitivo e sociocultural desta mudança:

Será por causa das duas últimas razões aqui aventadas que na Eneida, poema heróico de esforço e luta, de tragédia e drama, prevalece tanto o verbo teneo e, por exemplo, na Peregrinatio Aetheriæ (séc. IV d. C.), de tessitura descritivamente calma e marginando o grau zero da escrita como diria Roland Barthes, o habeo vence folgadamente por 47 a 3? (idem, ibidem: 305)

Num corpus de natureza jurídica, constituído por um conjunto de documentos oriundos dos fundos do mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (sécs. XIII-XVI), e por nós transcritos, analisámos a evolução desta substituição gradual de auer por ter, tentando responder a duas questões cruciais: por que motivo o verbo ter começa por substituir auer nas estruturas de posse do tipo AM (objetos materiais adquiríveis, externos ao possuidor), tal como já referiu R. V. Mattos Silva)? Por que condicionalismos externos (sociais, culturais e cognitivos) ter avança para expressões do tipo AI ao longo do século XV?

Para esse fim, parece-nos útil recolher os contextos em que surge invariavelmente teer, desde o período arcaico, pois esse uso atesta a existência de traços sémicos defi tórios de teer que poderão ter invadido paulatinamente outras esferas de sentido (cf. secção 2.1). Ora, se teer e aver são dois itens lexicais com uma margem de distinção sémica tão ténue, é natural que a sua oposição semântica tendesse a ser progressivamente neutralizada.

2. Análise do corpus

2.1. A semântica de teer

2.1.1.Teer/auer como verbos predicativos de opinião/atitude/ perceção[5]

Os dados do nosso corpus apontam contextos em que o verbo teer aparece quase invariavelmente em algumas construções, que são transversais ao tempo. Nestes usos, que não consideramos como ocorrendo em “estruturas de posse” (tal como estas têm sido estudadas na literatura), o verbo ter surge integrado em expressões formulares estereotipadas (provavelmente traduzidas do latim) e, por isso, sedimentadas pela tradição. Em documentos compreendidos entre 1337 e 1532 contam-se 36 ocorrências da expressão «ter por bem»: «o que por b? teuermos», «o que por bem teuer», «e por bem teuer», «o que por bem teue??», «teemos por bem», «e por bem teverr?», «per b? tever», «por b? tever?», etc. Apresentamos a seguir cerca de metade dessas ocorrências, distribuídas ao longo do eixo temporal:

 

Tabela 1. Algumas ocorrências, no corpus, da expressão «ter por bem»

Documentos

Teer, ‘considerar’ (na ordem de valores do sujeito)

1337 Alc 27

1345 MA 33

1359 MA 42

1362 MA 44

1375 MA 48

1385 MA 54

1397 MA 64

1405 MA 70

1413 MA 75

1423 MA 83

1436 Alf 93

1455 MA 108

1471 MA 119

1472 TC 120

1477 MA 121

1484 MA 127

1489 MA 130

1505 MA 138

1532 Tur 149

«por b? teu[er]mos»

«o que por b? teu[er]mos»

«o que por bem teu[er]mos»

«o que por bem teu[er]mos»

«o que por b? teu[er]mos»

«o que por bem teu[er]»

«o que por bem teu[er]mos»

« por bem teu[er]mos»

«o que por bem teu[er]mos»

«o que por bem teu[er]mos», 2 v.

«e por bem teuer»

«o que por b? teue??»

«e por bem teue??e»; «e por bem teue??em»

«teemos por bem»

«e por bem teue??e »

«e por bem teuer»

«e por bem teverr?»

«per b? tever»

«por b? tever?»

 

Nesta expressão, o verbo “ter” expressa a subjetividade extrema do sujeito, na medida em que no seu semantismo está projetada uma avaliação ou apreciação que tem como fonte um sujeito e por base um sistema de valores morais. Estamos, assim, perante um caso extremo de aproximação do sujeito ao “objeto possuído”. Tendo em conta que esse objeto está inscrito no seu sistema de valores morais e éticos, diríamos que existe uma coincidência total.

O que se pode inferir destes usos (que, como foi dito, já deveriam existir nas expressões formulares dos textos latinos)[6] é que ao verbo TENERE deveria estar associada uma dimensão axiológica não reconhecível em HABERE, porventura mais neutro.

Importa salientar que nesta aceção há apenas quatro exemplos no corpus (10%) que permitem diagnosticar “fugas” ao que a língua fixou por standard. Os dois primeiros exemplos situam-se na década de 80 do século XIV e provêm de zonas rurais e periféricas; os dois últimos são já tardios (quinhentistas). No seu conjunto, falam em uníssono: revelam um afã de erudição que, se no primeiro caso marginam a ultracorreção (sintoma da confusão que já corria na língua oral), no segundo deveriam ter correspondido à tendência tardia para reabilitar o verbo auer, já completamente esvaziado de sentido, criando com ele construções cultas:

 

Tabela 2. Ocorrências da expressão «auer por bem», «auer por bom», ao longo do corpus

Documentos

«auer por bem, bom»

1380 Alv 52

«o que por bem ouu[er]»

1383 Alj 53

«a quem por bem ouu[er]»

1529 MA 148

«asy ho aviã por bem»

1565 Alc 153

«aviã por boa»; «o aviã por bom»

 

Também Rosa Virgínia Mattos Silva, ao analisar as cartas de D. João III, situadas entre 1540 e 1553, refere 21 ocorrências em que haver surge em contextos formulares, 14 delas na expressão «aver por bem» (Silva, 2002b: 150-151). Aludindo a estas expressões, e apresentando alguns exemplos das Décadas de João de Barros e Diogo Couto, Said Ali afirma que constituem uma «homenagem tardia a um verbo em época na qual, dada a escolha, se preferia de ordinário o verbo ter» (Ali, 1957: 121). Na verdade, se repararmos em alguns exemplos citados por este Autor, talvez seja possível propor uma variação condicionada semanticamente, neste tipo de expressões. Assim, o verbo ter está associado a contextos em que está projetada a subjetividade máxima do sujeito, decorrente da assunção de um juízo associado a um sistema de valores. Senão, vejamos:

«E segundo a gente da terra t?, foi desta maneira…TÊM que ha paraiso…e TÊM que ha inferno» (idem, ibidem: 121).

No mesmo contexto sintático, mas remetendo o conteúdo do verbo para uma realidade alheia aos valores do sujeito (com o sentido de ‘acreditar em’), surge aver em outro exemplo:

p>«Haviam que na India se não fazia conta daquelas ilhas» (idem, ibidem: 121)

Já nos Lusíadas, segundo o mesmo Autor, excetuando em uma passagem («Fala verdade, havida por verdade») predomina igualmente o verbo ter, com um semantismo associado ao sistema de valores do sujeito: «ter por grande», «ter por santo», «ter por certo» (idem, ibidem: 121-122)

Contudo, como verbo predicativo de atitude ou perceção intelectual, teer existe, todavia, em variação complementar com aver, variação essa que está condicionada por restrições de natureza socio-pragmática. Quando, ao complemento direto do verbo se consigna uma qualificação descritiva ou descritiva-identificadora, preferiu-se, ao longo do período medieval, o verbo auer. Ao contrário da expressão “ter por bem”, nestas expressões desenha-se um espaço de veridição que é decorrente do contexto jurídico-formular em que surgem. Assim, o termo predicativo está vinculado a forças sociais externas ao sujeito (como as leis e instituições), que conferem a essa veridição um certo grau de mobilidade e, portanto, de relatividade espácio-temporal. Expressões como “aver [uma carta] por firme e estável”, “aver uma apelação por direita/deserta”, “aver por ratas e gratas”, “aver [alguém] por revel”, “aver [alguém] por desobrigado e desatado”, “aver [alguém] por prioll”, ou, ainda, as estruturas jurídicas tautológicas (tipicamente medievais) “partir e aver por partida”, “meter e aver por metido”, “outorgar e aver por outorgado”, etc., não decorrem da interiorização da pauta de valores morais do sujeito, mas sim dos valores jurídicos (e, por isso, sociais) estabelecidos, que são temporalmente móveis e, como se sabe, alheios ao contexto espácio-temporal em que são produzidos. Apresentam-se os exemplos encontrados:

 

Tabela 3. Ocorrências de auer ‘considerar’, ‘ter por’, ao longo do corpus

Documentos

Auer ‘considerar’, ‘ter por’

1298 Alc 6

1304 Alc 9

1328 Alj 21

1379 Alc 51

1388 MA 57

1399 MA 65

1402 MA 67

1405 MA 70

1415 MA 77

1425 MA 84

1430 Cós 89

1438 Ped 95

1450 Alv 104

1451 MA 105

1455 MA 108

1460 MA 113

1462 Mai 114

1467 Mai 117

1471 MA 119

1489 MA 130

1490 MA 131

1491 Alj 133

1505 MA 138

1509 Ped 140

1526 Ped 145

1529 MA 148

1532 Tur 149

1536 SC 150

1536 SC 151

«prometemos á áuer [por] firme e e?tauel»

«auemos [por] firme»

«auemos por firme»

«e nos auem[os] e liuremos firme»

«e prometo a au[er] por firme»

«e prometo a au[er] por firme»

«que o dicto dom Abbade ouue?? por ??eu (…) a??y como o ?enpre foy»

«aujad[e]s e prometiades a au[er] por firme e ?taujl»

«que a partyo e auya por partida»; «avya a dicta partilha por fecta»

«e ?e auja dellas por entregue»

«foy auudo por ?o?peito»; «auja a dicta apellaçam por dereita»

«ouuerõ por firme e e?tauel»

«quall ante mays por uo??a proll ouu[er]d[e]s»

«e foy aujdo por rreuel»; «ouueo por rreuel»

«au?do o ??obre dito (…) por de?obrjgado e de?atado»; «e os auja por ?cãpados»

«ouue a dicta apelaçom por de?erta»

«metyãm he avjãm por metidos»

«e avya por mjtydos»

«e que o aujam por metido»; «e que os auja por metidos»

«tudo ha por arenuçiado»

«e de as aveer por ratas e gratas»

«como jujz apo?tollyco ho ha por pryoll»

«e o avya por outorgado»

«e os ouuerã por mjtidos»

«ouverã (…) por metido»; «?e ouve por metido»

«e o trespasarã e ouverã por trespasado»

«os metjã e avjãm por metjdos»

«e ouveram por po?to»; «ouveram por metydos»

«?e ouve por emtrege»

 

2.1.2.Teer com signi?cado de ‘obrigar moralmente’ (= ‘prender, reter por obrigação moral’)

Trata-se do único caso em que o sentido de teer é exclusivo deste verbo, não existindo no seu homólogo aver. Segundo José María García Martín:

La dependencia con respecto a lo solicitado, en la cual se encontraba el sujeto del pasivo teneri, es la misma que la del catalán ésser tengut y, expresada en forma activa, que la de la persona que ‘tiene’, ‘administra’ (té) un bien del poseedor verdadero, importante para la lengua del feudalismo (Garcia Martín: 2001: 60)

Em documentos dos séculos XIV e XV são frequentes as expressões: «erã teudos correger», «erã a nos teudos e obligados», «teudo obriguado de dar», «teudo e obriguado a serujr», «e sam teudos he obriguados a paguar», etc.:

Apresentam-se a seguir os exemplos que foi possível extrair:

 

Tabela 4. Ocorrências de teer ‘obrigar moralmente a’

Documentos

Teer ‘obrigar moralmente a’; (= ‘sujeitar por uma obrigação moral’)

1304 Alc 10

1304 Alc 10

1304 Alc 10

1321 Alc 17

1324 Alc 18

1402 MA 67

1402 MA 67

1467 Mai 117

1467 Mai 117

1482 MA 125

«erã teudos correger»

«erã a nos teudos e obligados»

«teudos a nos correger»

«a u?da nõ ualha n? tenha»

«nõ ?eia ualyo?a n? tenha»

«teudo obriguado de dar»

«teudo e obliguado a ?erujr»

«e ?am teudos de lhe dar»

«eram teudos he obriguados a paguar»

«lhe nõ po??a valler ?omente teer»

 

2.1.3.Teer com sentido de ‘guardar’: ‘guardar apreço’, ‘ter propósito de’ («ter em vontade»); ‘observar’, (= ‘cumprir’), por vezes em fórmulas tautológicas

Em sentido literal, encontra-se apenas a expressão «que os teue?? ? segredo» (1414). Por extensão semântica, ter poderá funcionar como operador de ligação numa estrutura predicativa, significando ‘ter intenção de’ (constituindo «ter em vontade» uma lexia complexa), ‘guardar apreço’, ‘prezar’, ou ainda ‘observar’, ‘cumprir’:

 

Tabela 5. Ocorrências de teer com sentido de ‘guardar’ (‘guardar apreço’, ‘ter propósito de’, ‘observar’)

Documentos

«Teer meerçe» ‘guardar gratidão’

Documentos

«Teer em vontade» ‘ter propósito de’

Documentos

Teer ‘observar’, ‘cumprir’ [7]

1402 MA 67

«e lho tjnha

1366 MA 46

«? que

1321 Alc 17

«nõ teu[er]des n?

em grande

tenho ?

guardardes»

mercee»

minha

võntade»

1436 Alf 93

«lho

1495 MA 134

«(…), tendo elle e

teuerom em

per?oas como dicto

meerçe»

he (…)»

1456 MA 109

«que lho

1500 MA 136

«t?do elles e con-

tjnham

pryndo»

em muyta

merçee»

1502 MA 137

«t?do elles e con-

pryndo»

1505 MA 138

«tendo elles e con-

prindo»

1507 MA 139

«a todo teer e con-

prir»; «tendo elle e

pe?oas todo ho que

dito he»

1529 MA 148

«a todo teer e

comprir»

 

2.1.4.Teer, numa expressão cristalizada, a par de manter (“ter e manter”= ‘observar’, ‘cumprir’)

Esta expressão cristalizada, de natureza tautológica, desenvolveu-se na segunda metade do século XV, acentuando-se o seu emprego a partir dessa altura na linguagem jurídica, por afã de rigor conceptual:

 

Tabela 6. Ocorrências de teer em expressões formulares

Documentos

Teer, em expressões formulares (‘observar’, ‘cumprir’ [cláusulas])

1459 MA 111

«terem e manterem»

1462 Mai 114

«teer e mãteer»

1467 Mai 117

«teer e mãteer»

1479 MA 124

«teer e mãteer»

1482 MA 125

«mãteer e teer»

1484 MA 126

«teer e mãteer»

1485 MA 128

«a teer? e mãteerem»; «teer e mãteer»

1505 MA 138

«teer e mãteer»

1519 MA 142

«ter e mãter», 3 v.

1522 MA 144

«ther e manter», 2 v.

1527 MA 146

«ther manter»; «ter? manter?»

1528 MA 147

«ter? manter?»; « ter? manter?»

1529 MA 148

«a todo ter he mãter»

1536 SC 150

« ter e manter»

 

Ora, em todos os sentidos de teer referidos até este momento está presente uma dimensão importante que é a dimensão axiológica. Assim, se a expressão “o que por bem tever” se situa na esfera dos valores morais, “ter”, quer com o sentido primitivo de ‘não tornar público’, quer nos mais abrangentes de ‘obrigar moralmente’ ou ainda de ‘cumprir’ (cujo semantismo decorre da existência prévia de uma obrigação moral), situa-se na esfera dos valores ético-sociais. Em todos estes sentidos permanece uma noção importante que caracteriza o predicado ter: não existe uma relação de controlo entre um sujeito e um objeto, tal como numa relação de posse, uma vez que “os objetos” são, neste caso, intrínsecos ao sujeito, fazem parte da sua mundividência moral e social, constituindo o próprio sujeito.

É possível que a transferência desse sentido de ter, aliado à perceção e obrigação de natureza moral, para o domínio da posse (eventualmente já verificada na língua latina) traduza uma nova mentalidade humana, que anseia por controlar o mundo, pela conquista do que é material. Trata-se, em suma, da necessidade de organizar um conceito sociocultural (a posse) que, consistindo num controlo sobre as entidades possuídas, confere direitos sobre elas (o sujeito outrora submetido transforma-se agora em agente que submete).

2.2. Análise quantitativa dos dados

Perscrutemos, pois, os dados que o nosso corpus, substancialmente diferente do que serviu de fonte a Rosa Virgínia de Mattos Silva, permite evidenciar, aliando o critério quantitativo ao critério qualitativo[8]. Com expurgo das ocorrências já mencionadas, analisando os dados relativos a ter e auer em estruturas de posse, podemos ver que um gráfico de linhas que englobe as ocorrências de auer e teer, ao longo das várias etapas epocais,[9] tem a seguinte configuração:

 

 

Não obstante a distinção semântica que permite diagnosticar uma tendência precoce para o uso de teer em AM (bens materiais adquiríveis), essa tendência fica refreada em determinada época da história da língua, que parece ter elegido o verbo aver para qualquer tipo de posse. Entre aproximadamente o último quartel do século XIV e 1425/1430 deverá ter existido uma pressão “normativa” no sentido da standardização que obrigou a selecionar o verbo aver na documentação notarial. Parece que teer, ao aproximar demasiado o sujeito ao “objeto possuído” deixava transparecer a ancoragem do eu da enunciação às suas coordenadas espácio-temporais, o que não condizia com a formalidade estilística requerida nos textos notariais.[10]

Uma comparação com o estudo levado a cabo por Mar Garachana Camarero relativamente ao mesmo fenómeno na língua castelhana conduz-nos, curiosamente, a resultados muito idênticos. A propósito das duzentas cartas que analisou da Chancelaria da Coroa de Aragão, refere a Autora:

Durante los primeros sesenta y nueve años del siglo XV tener se empleó fundamentalmente en el terreno de la posesión prototípica (…), donde su predominio sobre aver fue absoluto desde el primer momento (…). En este mismo espacio de tiempo tener no tuvo una representación signifi tiva en la posesión no prototípica (…) En cambio, de 1470 a 1498 el desfase entre los valores prototípicos y no prototípicos de tener se redujo considerablemente (idem, ibidem: 222).

Quanto à cronologia da substituição de um verbo por outro, a mudança observada por volta da década de 80 do século XV parece ter coincidido, historicamente, com os novos horizontes socioculturais soprados pelos ventos dos Descobrimentos e do Humanismo italiano, mas a exiguidade do corpus agora em estudo não permite avançar muito mais relativamente a esta constatação.

Cabe apresentar aqui um outro exemplo, não incluído na quantificação dos dados, que configura um tipo especial de posse, a meio caminho entre o “possuir” e o “guardar”. Trata-se da expressão eufemística “Que Deus aja”, que veio substituir o aposto nominal «já fi «?ua tja ja fjnada» (1422); «uo??o padre e madre ja fynados (1450). O facto de surgir apenas a partir de 1460 contraria a ideia de “arcaísmo”, defendida por Mar Garachana Camarero.[11]

 

Tabela 7. Ocorrências, no corpus, da expressão cristalizada «que Deus haja»

Documentos

Expressões

1460 MA 113

1491 Alj 133

1500 MA 136

1541 Sal 152

«el Rej Duarte que Deus aja»

«do prynçjpee no?o Senhor que Deus aja»

«?eu pay que Deus aja»

«da ca?a do cardeall que Deus tem»

 

Estamos, inequivocamente, em presença do que representa o grau extremo de abstração a nível de entidade possuída (e, por isso, da posse não-prototípica), uma vez que se trata da alma humana, e, assim, do que existe de mais espiritual. É curioso verificar que só em pleno século XVI o verbo aver cede lugar a ter, revelando-se interessante a passagem de uma construção optativa (com o presente do conjuntivo) a uma outra de natureza declarativa (com o presente do indicativo).[12]

Note-se que auer foi exclusivo na expressão formular «[bens] auidos e por auer», ao longo de todo o período medieval, contando-se 45 ocorrências de expressões desse tipo. Para essa cristalização com aver deverá ter contribuído a indefinição espácio-temporal do objeto relativamente à perspetiva do eu da enunciação. Semanticamente conectada com esta fórmula, existe o atual substantivo haver, com o sentido jurídico de coisa por adquirir mas também de coisa adquirida, e na linguagem da Contabilidade é bem conhecido o «deve» e o «haver». O português atual conserva ainda algumas expressões cristalizadas, consagradas pelo uso, como «bem haja!», «mal haja!», ou ainda a expressão proverbial «Por bem fazer mal haver», onde o valor incoativo foi preservado até ao limite.

2.3. Análise contextual dos dados

Uma análise mais finamente contextualizada revela ainda que aos deíticos temporais, locativos e anafóricos áácima, hy, (h)ora, agora, enquanto, ou ainda às expressões temporais «do tempo que», «ao tempo que» anda associado, nos contextos de posse de bens materiais adquiríveis (AM), o verbo teer e não aver. Estes deíticos ou embrayeurs discursivos emprestam ao semantismo de ter a noção de posse temporária de um bem, cujo ponto de referência é a perspetiva do eu da enunciação.

 

Tabela 8. Ter associado a deíticos e a expressões temporais[13]

Doc.

Auer

Teer

%

1289

«que eles aiã a dita herdade»; «aiã as ditas almu?a e a via e o junçal»;

«a todo dereyto e a toda demãda que auíam[os] ou at?diamos ou poderíamos auer»

«hua uinha que de nos t? Pero Perez»; «[carta] que de nos téén ááçima»; «que teu[er] a no??a grangya»; «téém[os] hua [carta]»;

«téém[os] [a outra

56

1321

«que os [herdam?tos] aiamos»;

«?éélo (…) nõ auemos»

«que hy morar? e teuer? fogo»

33

1343

«vinhas que ela auya»; «cou?as que eu ey»; «polo affan que au[er]a»;

«herdades que nos auem[os]»

«enquanto ela e?to teu[er]»; «vinhos que ora téémos en cubadas»

33

1352

«e?ta ? po??e d’auer (…) baleas»

«[barca] que hj tijnhã pre?tes»

50

1362

«[ca?a/herdade] que nos auemos», 2 v.; «nõ aiades poder»

«[ca?a] a qual hora de nos tinha»

25

1412

«o? beés que elle? auyam»; «que o que fica??e por pagar pode??e

au[er]»; «outros béé? que auyam»

«do t?po que teuerõ rr?dado? o? seu? moinhos»; «ao t?po que teu[er]om rr?dado? o? dicto? moinhos»

40

1444

«?eus b?es de rraiz que elles ham»; «quaaes quer b?es que elles ouue?? m»

«que ell nom tijnha agora (…) dinheirros»

33

1448

«lhe de?e a dita ca?a (…) pola guj?a que a ouuera»

«tjnham hua ca?a»; «e hu thoujo que a dicta ca?a tem»; «que ha [a dita ca?a] a?y teuerom»

75

1460

«hua terra (…) que ora tijnham

em pomar»

100

1485

«que elle e per??oas ajam o dicto mortoreo»

«que ora tem cargo»; «[dicto mortoreo] que a dicta jgreia tem»

67

1536

«ho dito ca??all era e elles (…) ho

ouueram do dito mo?teyro»

«tenha cuydado de rreger»;

«po??e rreall e autoall domjnjo que no dito ca??all e ??ua ffazenda ate’guora teueram»

67

 

Cumpre recordar, a propósito dos deíticos locativos, a interessante passagem do Cantar de Mío Cid, a que não foi indiferente a sensibilidade intuitiva de Eva Seifert:

Grado al Criador e a santa Maria madre

Mis fijas e mi mugier que las tengo acá (Seifert, ibídem, 249)

Diz-nos a Autora:

Este discurso da personagem no pone el énfasis en el verbo tengo, sino en el complemento local acá, ‘que las tengo ahora cerca de mí’, ‘que están ahora aquí’. (…) Tenemos, en cambio, el verbo haber para la expresión de posesión genérica, de simple posesión: commo sirva a doña Ximena e a las fijas que ha (idem, ibidem, p. 249-250).

Associada a esta noção de ancoragem ou não ao momento da enunciação, afigura-se igualmente importante, em outros contextos, a noção de modalidade enquanto expressão da atitude do eu da enunciação em relação ao valor factual do seu enunciado. Revela-se pertinente a variação entre teer e aver num documento 1453 que, ao lado de «hu quer que os [b?es] ouuerdes» apresenta «do tenpo que os dictos b?es teuerdes». Assim, o verbo teer está, neste enunciado, associado ao real/factual e o verbo aver ao hipotético, sendo que apenas teer permite ancorar/localizar a ação expressa pelo verbo num determinado segmento temporal, ainda que projetado no futuro.

Não obstante ambos os verbos surgirem em condicionais não factuais ou hipotéticas (características das cláusulas em que se prescrevem as sanções), aver surge inserido numa sequência em que o conteúdo proposicional do consequente se refere a um mundo não real ou eventual[14]:

(i) «E ??e uos (…) qui?ermos demãdar a jujzo, (…) per ??ua sentença ou sentenças ??eer fecta exucacõ, venda e rremataçõ em vo??os b?es e da dicta per??oa hu quer que os ouuerdes (…)» (1453 MA 107)

Diferente é a perspetiva adotada quanto ao valor de verdade do enunciado em que surge o verbo teer, uma vez que, apesar de surgir igualmente numa construção condicional hipotética, o conteúdo proposicional do consequente a que o verbo se associa (“ter os bens”) é assumido como tendo existência no mundo real (futuro):

(ii) «Jtem ?? uos (…) nõ conprirdes (…) que nos (…), po?amos filhar os dictos no??os b?es e herdam?tos (…) ficando uos ?obre dictos e per??oa ??enpre obrigados a nos pagardes a dicta pen??õ e foro do tenpo que os dictos b?es teuerdes (…)» (1453 MA 107).

A ideia de teer associada aos bens efetivos (ou assumidos como tal, ainda que no futuro) e aver aos hipotéticos encontra eco no nosso corpus se nos lembrarmos que foi corrente o emprego de teer associado às cópias dos documentos que se entregavam às partes interessadas: «tenhades hua de??as cartas», por exemplo. Mas, curiosamente, as “cartas de graça” ou de “merçe”, usadas em construções de sentido hipotético, surgem sempre associadas ao verbo aver. Como se trata de uma posse futura que implica a ideia de “alcançar”, “obter” (direitos, privilégios e não objetos concretos, como uma carta manuscrita), compreende-se que se tenha preferido o verbo aver, que melhor exprime o sentido incoativo.

Detenhamo-nos agora sobre os complementos de predicado do tipo AI, e sua distribuição cronológica:

 

Tabela 9. Cronologia dos verbos teer e aver com complementos de predicado do tipo AI (Síntese)

Até 1484[15]

Aver

teer

demanda, preço ‘valor’, m?te, pena ‘castigo’, poder, afã, direito(s), acção [judicial], prol, conhecimento, possessão [16], mandado, mal, rancor, cumprimento, compaixão, preito, perda, autoridade, confirmação, cumprimento, engano, mantimento, jurisdição, custas, foros, honras, liberdades, graças, mercês [17]

encargo e direito

A partir de 1484

Aver

ter

recurso, temor e poder

«posse, propriedade e liberdade»; cargo, paz, jurisdição, autoridade, poder, cuidado, embargos, benefício, irmãos

 

O comportamento dos itens lexicais direito, poder, autoridade e (en) cargo merecem algumas considerações. O item direito selecionado por teer surge, pela primeira vez, no segundo quartel do século XV, mas alterna nesta fase com auer. Ambos os verbos aparecem em dois contextos associados a dois tipos de modalidade discursiva:

(i) «??em os herdeiros (…) e ??ua molher teer? (…) alguu d[e]rr[ei]to» (1438)

(ii) e «outros direit[os] (…) que ouue?e» (1442),

Este facto, aliado à inexistência de outras abonações posteriores, não autorizam resultados conclusivos. Quanto a autoridade, o comportamento do predicado que o seleciona poderá contribuir para a delimitação cronológica operada, mas é igualmente possível que esta variação entre auer e teer não seja apenas de tipo diacrónico mas sim uma variação ativada por restrições sintático-semânticas específicas. Senão vejamos:

(iii) «e quando a?y ouuer? a dita autorjdade» (1482)

(iv) «nem que autorydade tendes»; «o trellado (…) da autorydade que tend[e]s»

(1491).

No exemplo (iii), o advérbio temporal quando, ao situar o conteúdo expresso pelo verbo num momento posterior ao da enunciação mas não definido, hipotético, eventual (expresso através do conjuntivo), contrasta com a embrayage no momento de enunciação verificada nos exemplos do documento de 1491, e expressa através do modo indicativo. Relativamente a poder, abundantemente representado ao longo do corpus, surge invariavelmente com aver até 1519. A partir de 1522, aver cede, unidirecionalmente, lugar a ter: «e nã tera poder» (1522) e «nã terão poder» (1528).

A questão que se poderá colocar é a seguinte: por que motivo «ter poder» é uma construção tão tardia se «ter (en)cargo» surge já em 1399? A resposta a esta questão reside, na nossa opinião, nas restrições semântico-cognitivas ativadas pelo teste da anteposição do artigo defi a este item lexical, ou seja, na forma como são captadas cognitivamente estas predicações defi Assim, se em «o encargo», a unicidade do referente só poderá ser apreendida num contexto específi de enunciação, em «o poder», a identidade do objeto é passível de ser descodifi pelo alocutário sem que haja um contexto específi de enunciação. Por outro lado, o item poder, ao contrário de encargo, não poderá ser núcleo de uma predicação indefi (* ter um poder).[18]

Ao comparar, na língua espanhola medieval, os diferentes verbos usados com cargo e nuevas (o primeiro selecionado por tener, o segundo por aver), Jean-Claude Chevalier intuíra já uma explicação semelhante (que se aproxima da noção de lexia complexa), recorrendo à fenomenologia do conhecimento:

Les premières – et cargo est de celles-là affirment leur compatibilité foncière avec tener, les secondes – et nuevas en est avec aver (…). Si j’essaye de réduire tout cela en formule: parmi d’autres éléments cargo, avant même que je songe à le faire entrer dans une phrase, me montre un être y à qui, à un certain moment de sa durée, est affectée une tâche, ou un ensemble de tâches, que j’appellerai o. L’appréhension conjointe de y et de o ainsi définis et ainsi reliés est ce qui a reçu pour traduction physique cargo (Chevalier, 1977: 38).

Uma captação cognitiva diferente é a que é activada por nuevas: «Nuevas, lui, porte en soi l’irruption dans la durée d’un être y d’une information i qu’il ignorait» (idem, ibidem: 40).

2.4. Das orações existenciais com aver às estruturas equivalentes com teer: sobre a origem desta particularidade no Português do Brasil

Como é sabido, a estrutura existencial era expressa, no latim, com o verbo ESSE. A transferência de ESSE para HABERE consistiu, segundo cremos, numa redução do estatuto ontológico dos objetos e numa maior projeção do mundo exterior em que eles se situam, tendo constituído um mecanismo cognitivo bastante interessante, mas que fi fora do escopo do nosso estudo. Do antigo verbo funcional, semanticamente existencial, subsistem alguns resíduos no português medieval, apesar de se poderem recortar duas etapas distintas: a mais arcaica, em que o verbo ser faz parte de uma “construção locativa”, e uma outra, mais tardia, em que o verbo ser substitui auer com nomes caracterizados pelo traço [+ abstrato]. São estas as ocorrências do corpus:

 

Tabela 10. Ocorrências do verbo seer/ser por auer

Documentos

Formas

1291 Alc 3

«outro? fruyto? que hj for?»

1353 Vid 39

«b?es a?y mouíis come rrajz que erã no dicto logo»

1460 MA 113

«preito e demãda fora», «sobre e?ta mee?ma cau?a fora letigyo

e dada determjnaçõ per el Rej»

1527 MA 146

«e que a?y hera mayor honra»

 

Como os dados revelam, o verbo seer, que acompanhou em finais do século XIII nomes caracterizados pelo traço [+ concreto] ressurgiu no terceiro quartel do século XV, acompanhando agora nomes com o traço [+ abstrato], eventualmente para ocupar o lugar de auer. Assim, ser apresentou-se igualmente como concorrente para o lugar de auer, que começava a ficar vazio, a partir do terceiro quartel do século XV.

No século XVI o aumento das estruturas de posse com o verbo teer deve-se igualmente à mudança de estrutura das orações existenciais com aver, que selecionam um sintagma nominal interpretado como objeto direto e um elemento locativo expresso por um sintagma preposicional ou um adverbial. Essa mudança deveu-se, muito provavelmente, ao esvaziamento semântico do verbo auer, verificado em finais do século anterior. Apresentam-se a seguir os dados exemplificativos das estruturas existenciais com auer ao longo do corpus:

 

Tabela 11. Estruturas existenciais com auer, ao longo do corpus

Documentos

Ocorrências

1306 Cós 12

«tabaliõ nõ auia»

1329 Evo 22

«e auudo cõcelho»; «que nõ leyxauã (…) a au[er] derect

1336 Alj 26

«ca t?po auya hy pera todo»; «hy auya ?ete dias»

1352 Ped 38

«e ouue ? ella dez quintaes e meyo»

1391 MA 59

«que nos carualhaaes (…) aia tam poucas landes»

1402 MA 67

«que auja anos e tenpos»; «demãdas e de?uairo ouue?? n antre elle

1430 Cós 89

«que auja dez e (…) annos»; «e que auja quatorze annos»; «ataa

podja ora au[er] tres ou quatro annos»

1433 Ped 90

«e aja ao deante»

1452 MA 106

«e ha em ella uma geyra»; «ao tenpo que hy tall demãda ouuer»

1453 MA 107

«que hy tall demãda ouue[r]»

1459 MA 111

«em guj?a que ajom qujnze noujdades»

1465 MA 116

«ao tenpo que hy tal demanda ouuer»

1467 Mai 117

«que lhe ouve?? a ello rremedeo»[19]; «ambos quaaees avya grãde

t?da na rrepartyçãm da jente»; «que havya antre os ?obre ditos»

1472 TC 120

«nom auja hy nhuua das dictas cou?as»

1495 MA 134

«quando hy tall demãda ouue[r]»

1502 MA 137

«e que aujriã e~ elle de terra proveytada sete ou oyto eyrras»; «e nõ avendo hy filho ou filha»; «em o qual avyria quinze ou dezasejs pees d’oliveyrras»

1519 MA 142

«e aja hy algu~a denjfycac¸a~o»

1527 MA 146

«aver ahi´ e~ elle mais casas»; «averia em elle mais moradores», 2 v.

1529 MA 148

«se ho ouuer»

1565 Alc 153

«na~ avia comtradic¸am»; «ne~ devia aver dema~da»[20]

 

As novas estruturas de posse resultantes da mudança de estrutura das orações existenciais diferem das habituais estruturas de posse (ter/haver), não a nível sintático mas semântico, na medida em que o “possuidor” deixa de ser um ser humano dotado de capacidade agentiva e volitiva, capaz de controlar a entidade possuída. Assim, este tipo de posse pode incluir-se num tipo de posse inalienável, mas agora estabelecida em termos de uma relação entre objetos. A tabela seguinte apresenta este tipo de posse, já com o verbo teer:

 

Tabela 12. Novas “estruturas de posse”, resultantes da mudança de estrutura das orações existenciais

Documentos

Ocorrências

1505 MA 138

1528 MA 147

1532 Tur 149

1541 Sal 152

«hum pedaço de chãoo (…) e tynha hua holiveyrra»

«os quaees pardieiros tem de conprido sete varas e mea de craueira»

«e t?m de cõprjdo dezanove covados»

«os quaes [marcos] todos tem tres telhas»; «e a dyta souereyra tem hua cruz»

 

Finalmente, foi ainda possível encontrar alguns indícios de que, mesmo em estruturas que não sofreram as mudanças sintático-semânticas aludidas, o verbo teer começara a substituir aver em orações existenciais (com advérbio locativo explícito), já na década de 60 do século XV. Esta constatação permite, assim, corrigir a cronologia apresentada por Maria Lúcia Sampaio que afirma ser no século XVI que «ter invade a esfera da oração existencial» (Sampaio, 1978: 59).[21] Mais tardiamente (1536), regista-se o verbo teer por seer, fenómeno que caracteriza o português popular do Brasil e que revela que a invasão de teer não só se verificou nas orações existenciais mas também nas estruturas “situativas”. Apresentam-se a seguir os dois exemplos aludidos:

 

Tabela 13. Ocorrências de teer por auer em orações existenciais e em estruturas “situativas”

Documentos

Ocorrências

1460 MA 113

1536 SC 150

«nom em e?ta vila da Pedarnejra por ?eer do senhoryo do moe?teiro onde nom tijnha oficyaes»

«como na çedolla tem declarado»

 

Esta difusão de teer a estruturas “situativas”, verificada num documento redigido após a descoberta do Brasil, deverá ter surgido na sequência da propagação de teer à esfera do existencial, fenómeno que deverá ter tido igualmente um cunho popular, segundo Maria Lúcia Sampaio:

Entretanto, a parcimônia com que o verbo “ter” era empregado na oração existencial nos faz supor que se tratava mais de um fenómeno da língua falada que da escrita. A língua falada que evoluiu mais depressa que a escrita sentiu a necessidade de substituir totalmente “haver” por “ter”, pois o verbo “haver” por ter-se esvaziado semanticamente dificultava a comunicação (idem, ibidem: 60).

Refira-se que, ainda na esfera do existencial, a linguagem jurídica conserva, ainda, a expressão cristalizada «haver lugar» («Haver lugar a recurso», por ex.) e ter e haver são hoje permutáveis em alguns enunciados, pragmaticamente ancorados. A título de exemplo, relembrem-se os enunciados, igualmente possíveis no Português contemporâneo:

Já não tem remédio! ~ Já não remédio!

Resta referir, por último, um outro uso cristalizado que se verifica tardiamente no corpus por nós selecionado e que consistiu na substituição de ser por aver. Referimo-nos à expressão «aver mester» que veio substituir «ser mester»/«ser necessário».[22]

 

Tabela 14. Expressões cristalizadas «seer mester» e «auer mester»

Documentos

«ser mester»

Documentos

«auer mester»

1291 Alc 3

«for me?ter»

1478 MA 123

«cada uez que o ouuerem me?ter»

1328 Alj 21

«?e me?ter for»

1479 MA 124

«que me?ter ouuerem»

1372 MA 47

«?e uos neçe?ario for»

1496 Sal 135

«n? auja me?ter»

1379 Alc 51

«?e me?ter for»

1405 MA 70

«?e me?ter for»

1422 MA 82

«for cõpridoiro e neçe?ario»

1465 MA 116

«que lhe me?ter for»

1478 MA 122

«que lhe naçe??arío for»

1482 MA 125

«for neçe??areo»

1522 MA 144

«que lhe for ne?eçario»

1529 MA 148

«se neçesario ff »

 

Uma análise detalhada da tabela permite concluir que, no corpus agora em estudo, a partir da década de 70 do século XV o predicado ser passa a selecionar «necessário» em vez de «me?ter». A recuperação de mester foi feita a partir daí mas este nome ressurge agora com aver, que entretanto já tinha sofrido um desgaste semântico considerável. Eva Seifert testemunha que «el neologismo tener menester no alcanzó gran popularidad, ni pudo mantenerse» (Seifert, ibidem: 352). Apresenta, contudo dois exemplos que se fazem acompanhar dos deíticos locativo e demonstrativo: «mas defensa no tobo hi menester» e «tomá esta navaja…, ya veo que vos no la tenéis menester».

2.5. Teer com sentido de ‘desembocar’

A lexia complexa “ir ter” (‘desembocar em’, ‘intersetar’) documenta-se igualmente no nosso corpus, em documentos das últimas décadas do século XV e primeiro quartel do século XVI, substituindo a estrutura trecentista “ir ferir”. Recordamos, a esse propósito, a perífrase que se documenta no século XIV para transmitir essa noção:

(i) «como uay ferir ?u?o» (1321 Alc 17)

(ii) «uã ferir ao rrio de Selir» (1321 Alc 17)

(iii) «uã ferir aa varz(ea) (1321 Alc 17)

(iv) «uã ferir aa ponte» (1321 Alc 17)

As abonações quatrocentistas e quinhentistas exibem o verbo ter neste contexto, refletindo uma extensão tardia à noção de ‘intersetar’:

(v) «(…), e e?to do camjnho que uay da ponte noua pera o porto de Muja atee o Tejo e do camjnho pera çima a ter o camjnho de Meos» (1478 MA 122)

(vi) «(…) o quall a?entamento parte do abrigo com as cabaceeyrras, e de hy ?e vay a rrebeyrra (…) e da paarte do agujã vay teer ao outeyrro do careyrro e per hy affondo per o Vall de Froles e vay teer a ffonte » (1500 MA 136)

(vii) «e por quanto o dito mo?teiro e?taua ? po??e de tanto tenpo que memoria dos hom?s nõ he ? contrairo, rreçeber e aver todalas cou??as que ?aem e vem ter aos portos e co?ta do maar» (1515 SM 141)

(viii) «(…) a?y dos taes pexes rreaes como de todalas outras cou?as que ?a? e v? ter haa co?ta do dito maar» (1515 SM 141)

Como se pode inferir, o sujeito da oração não é a entidade que “tem”, já que este é captado cognitivamente como a entidade que interseta, identificando-se o “objeto” intersetado com uma espécie de locativo. Eventualmente devido a essa ambiguidade, surge a perífrase “ir dar”, cujo núcleo verbal se associa agora à noção de ‘possuir’, tratando-se de um exemplo único e tardio no corpus agora em estudo. Nesta construção, o sujeito da oração é, efetivamente, o sujeito de “dar”, continuando a entidade que “recebe” a assumir a função de locativo:

(9) «ate hir dar nas teras llauradyças» (1541 Sal 152)

Atualmente, como é sabido, coexistem em variação livre os dois tipos de construção: «ir ter a» e «ir dar a». Curiosamente, constituem, quando extraídos destas expressões gramaticalizadas, dois predicados cujos conteúdos semânticos são funcionalmente opostos. Esta constatação constitui um argumento a favor da natureza cognitiva de alguns processos de gramaticalização, quando operados em expressões fraseológicas constituídas diacronicamente.

3. Conclusões

É possível que a transferência do sentido inicial de ter, aliado à perceção e obrigação de natureza moral (cf. “ter por bem”), para o domínio da posse concreta (eventualmente já verificada na língua latina) traduza uma mentalidade que anseia por controlar o mundo, pela conquista do que é material. O que parece depreender-se é que, com o avanço do Feudalismo, a dimensão axiológica de ter difundiu-se à noção de posse de bens materiais, concretos, como se a noção de ‘ter, possuir bens’ integrasse paulatinamente essa dimensão humana de âmbito moralístico. Os dados analisados permitem concluir que só a partir das décadas de 80/90 do século XV as percentagens de teer relativamente a aver começam a sobrepor-se, deixando de existir os documentos que continham aver em exclusividade. Tal sobreposição traduziu-se na transferência de teer para a esfera da posse “não-prototípica”, invadindo decididamente a esfera dos complementos de predicado que traduzem AI (o complemento expressa qualidades morais, espirituais, intelectuais, afetivas, sociais). Entre aproximadamente o último quartel do século XIV e 1425/1430 deverá ter existido uma “pressão” normativa no sentido da standardização (caracterizada pelo grau zero da escrita) que obrigou a selecionar o verbo auer na documentação notarial.

Uma análise mais contextualizada permite concluir que aos deíticos temporais, locativos e anafóricos áácima, hy, (h)ora, agora, enquanto, ou ainda às expressões temporais «do tempo que», «ao tempo que» anda associado, nos contextos de posse de bens materiais adquiríveis (AM), o verbo teer e não aver. Por outro lado, ao longo do nosso corpus, foi comum a ideia de teer associada aos bens efetivos (ou que se assumem como efetivos no futuro) e de aver aos hipotéticos ou eventuais. Uma outra conclusão que este estudo permite extrair é a de que, no discurso notarial medieval, entre direito, autoridade e poder, houve uma gradação na escolha, cronologicamente faseada, do verbo teer, no sentido [+ controlável/alcançável] > [controlável/alcançável]. Assim, se direito usufruiria desse predicado, já no segundo quartel do século XV, autoridade só viria a angariá-lo na década de 90 e poder só no século XVI abandonaria a noção de posse mitigada, “espiritual”. As restrições semântico-cognitivas ativadas pelo teste da anteposição do artigo a este último item lexical, ou seja, a forma como é captado cognitivamente este complemento de predicado (ter o poder mas *ter um poder) atuaram na resistência ao verbo ter.

Enfim, pensamos não estar longe da verdade ao afirmar que os novos horizontes socioculturais soprados pelos ventos do Humanismo italiano, trazendo consigo uma nova crença no Homem e nas suas potencialidades, e acelerando o florescimento das línguas vernáculas em detrimento do latim, trouxeram, igualmente, com maior ou menor resistência, o triunfo de ter sobre auer. O grau extremo de abstração a nível de entidade possuída (e, por isso, da posse não-prototípica) a alma humana, o que existe de mais espiritual – só em pleno século XVI admitiu o verbo ter. Como se sabe, a expressão “que Deus haja!” conserva-se ainda em algumas zonas rurais portuguesas, em variação com “que Deus tenha”. Conserva-se, igualmente, o verbo haver em outras expressões cristalizadas: «bem haja!», «mal haja», ou ainda na expressão proverbial «Por bem fazer mal haver». Por outro lado, ao contrário do que acontece no Português europeu, na variedade brasileira do Português é o verbo ter que está presente nas expressões existenciais (ex: «Tem muita pobreza no mundo»), perpetuando assim, como ficou documentado, uma herança linguística dos tempos medievais.

 

Referências

Ali, M. Said (1957) Dificuldades da língua portuguesa. Estudos e observações, 5ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Académica.         [ Links ]

Benveniste, Émile (1966). Problèmes de linguistique générale 1. Paris: N.R.F., Bibliothèque des sciences humaines.         [ Links ]

Carvalho, Maria José (2006) Documentação medieval do mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (sécs. XIII-XVI). Edição e estudo linguístico. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras de Coimbra.         [ Links ]

Chevalier, Jean-Claude (1977) De l’ opposition «aver-tener». In: Cahiers de Linguistique Hispanique Médiévale. Sous la direction de Jean Roudil. Publiés par le Séminaire d’ Études Médiévales Hispaniques de l’Université de Paris-XIII, nº         [ Links ] 2.

Ferreira, José de Azevedo (1980-1981), Les verbes «haber», «tener» et l´emploi de l’ anaphorique «y» dans «Le Libro de los gatos». In: Boletim de Filologia, tomo 26.         [ Links ]

Garachana Camarero, Mar (1997) Acerca de los condicionamentos cognitivos y lingüísticos de la sustitución de «aver» por «ter». In: Verba. Anuario Gallego de Filología, vol. 24.         [ Links ]

García Martín, José María (2001) La formación de los tiempos compuestos del verbo en español medieval y clásico. Aspectos fonológicos, morfológicos y sintácticos. Anejo nº XLVII de la Revista Cuadernos de Filología. Universitat de València: Facultat de Filología.         [ Links ]

Harre, Catherine (1991) “Tener” + Past Participle. A Case Study in Linguistic Description. London and New York: Routledge.         [ Links ]

Ribeiro, Ilza (1993) A formação dos tempos compostos: a evolução histórica das formas “ter”, “haver” e “ser”. In: Ian Roberts & Mary A. Kato (Orgs.), Português Brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas, S.P., Editora da Unicamp, p. 343-386.         [ Links ]

Sampaio, Maria Lúcia Pinheiro (1978) Estudo diacrônico dos verbos TER e AVER, duas formas em concorrência. São Paulo: Assis.         [ Links ]

Seifert, Eva (1930) “Haber” y “tener” como expresiones de la posesión en español. In: Revista de Filología Española, tomo 17 (3 e 4), Madrid.         [ Links ]

Silva, Rosa Virgínia Mattos de (1995) Variação e mudança no português arcaico: “ter” ou “haver” em estruturas de posse. In: Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in Memoriam Celso Cunha. Org. por C. Pereira e P. Pereira. São Paulo: Ed. Nova Fronteira.         [ Links ]

Silva, Rosa Virgínia Mattos e (2002a) Vitórias de “ ter” sobre “haver” nos meados do século XVI: usos e teoria em João de Barros. In: Rosa Virgínia Mattos e Silva & Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.), O Português quinhentista: estudos lingüísticos. Salvador/Feira de Santana: Editoras da UFBa/UEFs, p. 121-141.         [ Links ]

Silva, Rosa Virgínia Mattos e (2002b), A variação “ser/estar” e “haver/ter” nas cartas de D. João III entre 1540 e 1553: comparação com os usos coetâneos de João de Barros. In: Rosa Virgínia Mattos e Silva & Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.), O Português quinhentista: estudos lingüísticos. Salvador/Feira de Santana: Editoras da UFBa/UEFs, p. 143-160.         [ Links ]

Torres, Amadeu (1997) Na pista do Prof. Azevedo Ferreira: os verbos “ter” e “haver” em dois cartulários nortenhos. In: Actas do XII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística (Braga-Guimarães, 30 de Setembro a 2 de Outubro de 1996). Editadas por Ivo Castro. Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística, vol. 2, p. 303-313.         [ Links ]

 

Notas

[1]A mesma ideia foi apresentada por Said Ali: «A noção feudal de tenere, que creou os têrmos franceses tenant, tenancier, reproduz-se em Portugal com o verbo ter». (Ali, 19575: 120). José de Azevedo Ferreira testemunha que: «dans un document du XIe siècle apparaît déjà la distinction entre habere désignant la propriété par ‘herencia’, et tenere, la possession en 'feudo'. Ce sera peut-être le reflet d'un nouvel ordre juridique, en conséquence d'un nouvel système politico-social qui s'instituait à cette époque - la féodalité - et, en conséquence, la langue essayait de traduire les nouveaux concepts par de nouveaux signifiants ou élargissant le champ sémantique des signes déjà existants». (Ferreira, 1980-1981: 247).

[2]Para a localização das abonações apresentadas neste artigo, o documento é identificado pela data, local de redação (MA - Mosteiro de Alcobaça; Alc. - Alcobaça; Alf - Alfeizarão; TC - Torre das Colmeias; Tur - Turquel; Alv - Alvorinha; Alj - Aljubarrota; Ped - Pederneira; Mai - Maiorga) e número, dentro da coleção.

[3]Como é sabido, a importância da categorização em termos de prototipicidade tem sido extremamente valorizada pela Semântica cognitiva. Sobre a aplicação dos princípios da categorização e da estruturação das categorias radiais à noção de posse (com haver e ter), consulte-se Garachana Camarero, 1997: 215 e sgs.

[4]Após ter arrolado os significados de HABERE e TENERE na língua latina, a Autora evidencia o «estrecho e ideal parentesco entre ambos verbos». (Seifert, 1930: 243).

[5]Apresentaremos, de seguida, os matizes semânticos de «ter por» e «aver por» no português medieval, que contrariam a convicção de Said Ali de ter existido variação livre entre as duas expressões: «vemos utilizados os dois modos de dizer, e talvez com mais freqüência haver por do que ter por (…)» (Ali, ibidem: 122).

[6]Said Ali reconhece igualmente que «devia ser do falar corrente a expressão ter por já no português antigo, pois que nos diálogos das obras de Gil Vicente sempre assim se diz» (Ali, 1957: 122)

[7]Com este sentido, a expressão formular “ter e cumprir” veio precisamente substituir, a partir dos últimos anos do século XV, a mais antiga «guardar e cumprir».

[8]Incluímos alguns exemplos que representam fórmulas jurídicas cristalizadas, de carácter tautológico: «tenha e aya e??a adega» (1297), «huas ca?as que tem e ha na dicta villa» (1495), «tem e ham as dictas ca?as» (1495). Mar Garachana Camarero constata, igualmente, que «la presencia de aver en estas estructuras binomiales [huuiessen e teniessen] y trinomiales [hauia tenia e possedia] obedece más a una costumbre del lenguaje jurídico, caracterizado por su afán de precisión, que a un uso efectivo por parte de los hablantes». (Garachana Camarero, 1997: 222).

[9]A delimitação temporal agora efetuada decorreu, não só do que foi possível averiguar na investigação levada a cabo aquando da nossa tese de mestrado, mas também da observação das tendências gráficas e linguísticas, a partir de um levantamento exaustivo dos dados deste corpus, e que corroboram, no essencial, os resultados que então apresentámos. Tivemos, igualmente, em conta as propostas de periodização conhecidas e os marcos balizadores dos diferentes períodos, já propostos por consagrados periodizadores da história linguística do Português. É, igualmente, nossa convicção que a delimitação das etapas epocais deverá ser feita em função do que nos dizem os documentos sobre os fenómenos, em termos de tendências evolutivas, e não em função da perspetiva de um investigador atual. Ou seja, é a própria evolução do fenómeno observado que deve proporcionar a informação sobre os segmentos temporais, pois só assim chegaremos a saber se a evolução da língua se produz a um ritmo sempre igual ou se, pelo contrário, as mudanças se acumulam em determinadas épocas.

[10]Também Eva Seifert se refere a esse processo histórico, salientando o seguinte: «La viva fantasía del hombre fantasía del hombre meridional sintió con más intensidad la fuerza de tenere y le dio cabida em su habla. La sustitución de habere por tenere es, en su origen, resultado de la expresión concreta de un concepto cuyo término usual se encontraba débil y gastado a consecuencia de una excesiva normalización». (ibidem, 1930: 237).

[11]De acordo com a Autora, «La presencia de aver en el espacio de la posesión metafórica en este último período (1470 a 1498) casi puede calificarse de arcaísmo, pues acostumbra a emplearse en construcciones complejas (“aver menester”, “que Dios haya” o “aver lugar”) en las que aver ha seguido empleándose, incluso después de su desaparición del ámbito de la posesión». (Marachana Camarero, ibidem: 224).

[12]Recorde-se que, segundo Eva Seifert «es notable, por fin, que las expresiones de miedo, temor se interpretasen frecuentemente por haber». (6HLIHUW: 353).

[13]As percentagens indicadas referem-se, naturalmente, ao verbo teer, dentro do documento em causa.

[14]Eva Seifert testemunha que «en proposiciones imperativas, hipotéticas, condicionales y optativas, haber es mucho más frecuente que tener, y haber se mantuvo en ellas largo tiempo». (Seifert, ibidem: 249).

[15]Não obstante reconhecermos o artificialismo metodológico de qualquer corte cronológico, referimo-nos ao segundo documento do nosso corpus com esta data.

[16]Note-se que a expressão «aver possessão» é, sobretudo a partir da segunda metade do século XV, substituída por “ter em posse”, o que corrobora os matizes semânticos já mencionados.

[17]Os itens selecionados constituem uma extensão metonímica de carta (baseada na relação de contiguidade conteúdo/continente), que a partir de meados do século XV se começou a difundir. Assim, e porque todos eles têm implícita a noção de ‘direito’, ‘privilégio’, é normalmente o verbo aver que os acompanha, mesmo que por vezes venha explícito o item carta (trata-se de uma expressão consagrada dos formulários jurídicos). A inclusão destes itens nesta tipologia de posse poderá, assim, revelar-se controversa. É num documento de 1433 (é curioso constatar que a forma tenha encontra-se aí repetida, o que poderá revelar uma hesitação eloquente, por parte do notário) que surge, pela primeira vez, o verbo teer associado a carta de rogo, espaço, graça ou merçee, expressões que aparecem muitas vezes substituídas por graças ou merçees, por metonímia. Sendo assim, esteja ou não explícita a lexia carta, o sentido desta expressão está associado a ‘direito’, ‘privilégio’, pelo que tem algo de [alcançável], marginando a posse de tipo AI.

[18]BPelo menos, em construções sintaticamente neutras.

[19]“Haver remédio” e “ter remédio” sobrevivem no português atual, em distribuição complementar, encontrando-se o verbo haver associado a orações existenciais que não selecionam SN sujeito mas um SP ([«Para isso, não há remédio», por exemplo]). Contudo, “Não remédio” e “Não tem remédio” poderão ser enunciados pragmaticamente equivalentes, em alguns contextos de enunciação.

[20]É ambígua a expressão «como se por el avia clara m?te», contida neste documento e não mencionada na tabela.

[21]Saliente-se que num exemplo da Crónica de D. João I de Fernão Lopes, é igualmente possível descortinar a presença de teer numa estrutura existencial: «temdo ja dias auia mandado com recado (...)». Apud: Harre, 1991: 131. A primeira abonação permite recuar a datação desta estrutura para o século XV, antecipando, assim, em cerca de um século a que foi apresentada por Ilza Ribeiro, extraída de Os Lusíadas (Ribeiro, 1993: 373) ou, ainda, as de Rosa Virgínia Mattos e Silva, extraídas da Década Segunda de João Barros (Silva, 2002: 138) e das Cartas de D. João III (Idem, ibidem: 156). Assim, deverá procurar-se o lugar do “encaixamento laboviano” (expressão usada por esta Autora na página 158 da última obra citada) no cenário histórico do português já no terceiro quartel do século XV (antes, portanto, do transplante do Português para o continente americano) e não apenas em meados do século seguinte, como a mesma sugere.

[22]Na verdade, a expressão mais frequente ao longo do corpus é «fazer mester», que ocupa 82% do total.