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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.1 Braga  2014

 

A expressão do aspecto habitual

Coding the habitual aspect

 

Eccia Alécia Barreto*; Raquel Meister Ko. Freitag**

*Universidade Federal De Sergipe, Brasil, ecciaalecia@hotmail.com

**Universidade Federal De Sergipe, Brasil, rkofreitag@pq.cnpq.br

 

RESUMO

O aspecto habitual pressupõe uma iteração mais ou menos regular de uma situação, de tal modo que o hábito resultante é considerado como uma propriedade de caracterização de uma dada entidade. No português do Brasil, o aspecto habitual pode ser expresso pelas formas verbais de pretérito imperfeito (PI) e de pretérito perfeito (PP), no entanto, cada forma está associada a contextos de uso específicos. O presente trabalho tem por objetivo identificar os traços e contextos que caracterizam a ocorrência do aspecto habitual nas formas de PI e PP. Propomos uma abordagem baseada no uso (Bybee, 2010), articulada à noção de gradiência aspectual. Foram analisados 321 contextos de habitualidade. Os dados quantitativos sugerem as trajetórias de mudança que pressupõem estágios de menor estabilidade do sistema, na medida em que ocorre a sobreposição de formas (PP e PI) para o desempenho de uma mesma função: a expressão do aspecto habitual.

Palavras chave: Aspecto verbal, Composicionalidade aspectual, Aspecto habitual.

 

ABSTRACT

Habitual aspect presupposes a more or less regular situation iteration such as that habit effect is a property of a given entity. In Brazilian Portuguese, habitual aspect can be expressed by pretérito imperfeito (PI) and pretérito perfeito (PP) tenses, however, each form is associated with specific contexts of use. In this study, we aim to identify features and contexts that characterize the occurrence of habitual aspect related to IP and PP tenses. We propose a usage-based approach (Bybee, 2010), associated to the notion of aspectual gradiency. We identified 321 contexts of habituation. The quantitative data suggest that the trajectories of change require a reduced stability of the system, when the overlapping of PP and PI tenses occurs to express the same function: the expression of habitual aspect.

Keywords: Verbal aspect, Compositionality, Habitual aspect.

 

Introdução

Universais linguísticos, tempo, aspecto e modalidade são valores semântico-discursivos relacionados aos verbos. Nosso foco, neste trabalho, é a expressão do valor aspectual habitual no domínio do tempo passado. Para Comrie (1976), quando se fala em habitualidade, presume-se que, necessariamente, tem o mesmo valor que iteratividade, ou seja, a repetição de uma situação, a ocorrência sucessiva de várias instâncias de uma dada situação. No entanto tal discussão, segundo o autor, é enganadora em dois sentidos. Primeiramente, porque a interpretação da habitualidade não deve estar limitada à repetição de determinado evento em dada situação: é possível ter um item lexical que expressa frequência inserido em um enunciado sem necessariamente ocorrer a atualização do aspecto habitual. Se uma situação é repetida um número limitado de vezes, em seguida, todos esses exemplos da situação podem ser vistos como uma única situação. O autor nos apresenta a seguinte situação para explicar melhor esta questão: imaginemos, por exemplo, uma cena em que um professor se levanta, tosse cinco vezes e, em seguida, continua sua palestra. A mera repetição quantificadora de tossir cinco vezes não acionou o aspecto habitual. Comrie (1976) ainda acrescenta que, no inglês, não seria possível utilizar uma forma especificamente habitual, indicando costume do professor, como, por exemplo “*The lecturer stood up, used to cough five times, and said . .” (Comrie, 1976: 27).

Em segundo lugar, também é possível que se interprete o valor habitual em um enunciado que não indique qualquer frequência ou repetição. Em “The Temple of Diana used to stand at Ephesus” (Comrie, 1976, p. 27), não há nenhuma sugestão precisa de que houve várias ocasiões em que o templo estava em Éfeso, com intercalados períodos; com essa frase, a interpretação natural é que o templo estava em Éfeso ao longo de um determinado tempo (período único), sem intervalos (repetições). Em outras palavras, não há, necessariamente, a implicação de que o Templo de Diana tenha estado em Éfeso por diversas vezes de forma repetitiva. Logo, segundo Comrie (1976), a perífrase used to stand não é indício para a afirmação de que o aspecto habitual esteja atualizado na sentença. A mesma interpretação seria feita se adicionássemos o advérbio ‘always’ (sempre) na oração; isso acontece porque a interpretação se deve mais ao fato de o verbo stood, neste exemplo, não codifi r diversos estados (qualidades, características ou estadias) temporários e repetidos por Temple, impossibilitando a interpretação pragmática de que diversos “Templos de Diana” foram construídos, destruídos e reconstruídos na mesma cidade; portanto a habitualidade não poderia ser considerada aqui. Já em “Simon used to believe in ghosts”, há atualização do aspecto habitual por se tratar de situações de longa duração e que se repetiriam a cada novo dia.

Em suma, para Comrie (1976), uma ação habitual não é simplesmente uma ação iterativa, ou seja, uma ação que se repete várias vezes sucessivas, mas sim uma repetição sem regularidade, sem que seja possível contar o número de repetição ou a duração de cada uma das repetições, como em (1).

• saber escrever muito bem... no idioma inglês e no seu próprio idioma... inclusive pessoas de outros países a Google... costumava também contratar... para fazer as traduções... né? que a... que como o Google trabalha com o mundo inteiro precisa... (m 02)[1]

O aspecto habitual pressupõe uma iteração mais ou menos regular de uma situação, de tal modo que o hábito resultante é considerado como uma propriedade de caracterização De acordo com Bertinetto e Delfitto (2000), consiste em uma macrossituação não-terminativa, composta por uma série de microssituações terminativas. O valor do aspecto habitual reside na indeterminação do número total de ocorrências de microssituações, e não no caráter de indeterminação da duração de cada ocorrência das microssituações que compõem a macrossituação.

No português do Brasil, duas formas verbais podem, potencialmente, expressar o valor habitual: a forma de pretérito imperfeito (PI), em (2), e a forma de pretérito perfeito (PP), em (3).

• de passar aquele aquela... aquela ideia de afastamento no curso de química o curso de exatas... pelo menos no no meu tempo ele tinha... tinha essa visão os professores eram muito autoritários e ele eles passavam a todo custo aquela visão de de... de amedrontar o aluno... né? em relação aos alunos... em relação aos colegas eu sempre tive tive uma boa relação com com os meus colegas... agora no final do curso no final do meido meio pro final do curso... foi que eu me afastei muito... da universidade né? (m 01)

• e... oitenta por cento do curso foi foi exatamente isso né? que sempre preparou... (hes) o alunos com com cálculos... com memorização de fórmulas foi um curso muito voltado pra memorização... de fórmulas memo(hes) <<aprendimento>> conceitos matemáticos... foi um curso pouco voltado né? realmente para... formação do professor... era mais era cálculo... e... matérias técnicas né? com que que a gente nunca iria usar em sala de aula (m 01)

Em (2), identificamos o valor habitual pelo fato de que a situação passavam a todo custo aquela visão de de... de amedrontar o aluno... né? se repete várias vezes, em um intervalo de tempo indeterminado. A forma verbal passavam está no domínio da imperfectividade e denota uma situação passada habitual. Em (3), há valor habitual em sempre preparou.

O valor habitual não se dá exclusivamente pela forma verbal, mas é decorrente da composição da forma verbal, do traço aspectual específico e também pela presença de um modifi r aspectual; a composicionalidade indica que dado acontecimento tem lugar regularmente em uma linha de tempo, sem dizer respeito a nenhuma das realizações em particular. Estudos acerca do comportamento da fl modo-temporal do passado, em amostras de português falado no Brasil, mostram que existe uma tendência de a forma de PI estar associada à expressão do aspecto imperfectivo e a forma de PP à expressão do aspecto perfectivo (Campos et al., 2002), mas esta relação não é categórica. Assim, partindo da premissa de que fenômenos linguísticos derivam de processos cognitivos e de que a comunicação humana ocorre em função das experiências, que envolvem participantes e contextos não homogêneos (Bybee, 2010), investigamos os contextos de arranjo de traços que caracterizam o aspecto habitual no domínio do tempo passado dentro de uma amostra de fala de variedade do português brasileiro.

Nas seções a seguir, primeiramente, são discutidos modelos para o controle do aspecto habitual; depois, analisam-se os resultados quantitativos para a expressão do aspecto habitual, a fim de, a partir da frequência de uso, identificarmos os contextos de uso relacionados à expressão do aspecto habitual no domínio do tempo passado.

1. Aspecto habitual: proposta alinhada ao uso

Sendo a língua uma estrutura mental em constante uso e afetada por atividades processuais que mudam, nela podem existir, então, variação ou gradiência no mesmo processo (Bybee, 2010). Partimos da premissa de que a leitura aspectual não depende somente da forma verbal (aspecto gramatical), mas de sua interação com outras informações que trazem os outros constituintes do enunciado – aspecto inerente do verbo, modificadores aspectuais – e, até, o próprio contexto (Verkuyl, 1993, Wachowicz, 2003; Freitag, 2011; Bybee, 2010). Todos esses operadores linguísticos interagem na composição do domínio aspectual, definindo a leitura aspectual final. Dentre os modificadores aspectuais, destacamos o papel dos advérbios, que se encontram no nível externo de leitura da aspectualidade, e atuam como um recurso para modificar o valor aspectual decorrente do nível de leitura interna.

Com evidências de línguas crioulas, Bybee et al. (1994) mostram que existem fontes lexicais para o aspecto habitual, por exemplo, dois verbos lexicais que servem como fontes para auxiliares habituais e, eventualmente, para afixos, “viver” e “saber”, como em “Eu vivia trabalhando em um barco” (Bybee et al., 1994: 155). Os autores afirmam que o habitual é o significado aspectual mais comumente associado à reduplicação parcial do verbo. Porém, os autores advertem que é um caso específico e que não deve ser tomado de forma universal, uma vez que, em línguas como o português, a simples repetição do verbo não parece ser fator determinante para a codificação do valor habitual, é necessária a composicionalidade de outros recursos gramaticais, que juntos atualizam a habitualidade. Para o aspecto habitual, Bybee et al. (1994) propõem a trajetória de gradiência da Figura 1.

 

 

As expansões semânticas que baseiam essa trajetória são decorrentes da distinção formal entre reduplicação total e parcial; o número total de reduplicações diminui para a direção direita da trajetória, e o número de reduplicação parcial aumenta para a o lado esquerdo da trajetória. Assim, o aspecto habitual é a extensão do aspecto frequentativo (Bybee et al., 1994), porque, quanto maior a reduplicação da situação, de modo que não se possa contar o número exato, mais há a presença do aspecto habitual. O processo de gradiência (e, por conseguinte, a leitura aspectual) decorre da construção inteira, e não simplesmente do significado lexical do verbo, que é o precursor, e, portanto, a fonte do significado gramatical. Lidamos com o processo de gradiência porque buscamos identificar especificações de leitura habitual a partir do tempo verbal em uma amostra linguística de natureza sincrônica. No tocante à categoria aspecto, esse processo está correlacionado com a composição aspectual: lexical > gramatical > contextual; a leitura final de determinado aspecto depende, assim, da construção inteira, uma leitura composicional: as informações que trazem os outros constituintes (sujeito, complemento e expressões adverbiais) também influenciam na leitura aspectual.

Para Bybee et al. (1994), o habitual descreve uma situação que é repetida em uma ocasião particular e as noções de repetição são particularmente codificadas pelo traço [télico] – que não apresenta um ponto final definido. O aspecto habitual está sujeito a restrições lexicais e tem um significado aspectual específico. Embora a noção de repetição se aplique melhor a situações que ocorrem dentro de um único ciclo, ou seja, a uma situação que tem início, meio e fim inerentes, como ‘piscar’, ‘bater’, o valor habitual se aplica a situações que descrevem ciclos múltiplos e, nesse sentido, escopa um valor adicional de continuidade, decorrente do aspecto contínuo: a situação começa, atinge um ponto final e continua a se repetir. Além do aspecto contínuo, o aspecto habitual também mantém uma conexão semântica com o aspecto frequentativo, visto que a frequência da situação ocorre em múltiplas ocasiões durante um período de tempo específico. Observemos os exemplos apresentados para explicar o aspecto habitual:

(4) Cães ofegam para se refrescarem. (Bybee et al., 1994: 152)

(5) Meu cão ofega para se refrescar. (Bybee et al., 1994: 152)

Em (4) e (5), há a caracterização/declarações sobre o tema, cuja validade se estende por mais do que o momento atual da fala. Bybee et al. (1994) complementam que uma leitura habitual, por apresentar traço [+ dinâmico], detalhado mais à frente, cobre muitos casos diferentes de uma mesma situação, assim como ocorre no aspecto iterativo.

Outra característica é a noção de especificação da reiteração (Bertinetto & Lenci, 2010). A especificação numérica dos microeventos que compõe o aspecto habitual pode ser [+ específica] ou [específica]. Especificar o número dos microeventos é equivalente a explicitar a duração do macroevento (da situação com um todo). Quanto maior a frequência da repetição da situação, mais próximo da leitura aspectual habitual; ao passo que, quanto maior a quantificação da situação, mais distante de uma leitura aspectual habitual, porque, em uma leitura habitual, não se faz necessário entrar em cálculos (quantificação). Quando se especifica o número de vezes que uma situação se repete, considera-se como estilisticamente marcado, devido ao fato de se especificar o número dos microeventos (Bertinetto & Delfitto, 2000, Ilari & Basso, 2008; Bertinetto & Lenci, 2010). Outro traço que contribui para a caracterização de uma situação como habitual é justamente o fato de ela se prolongar por um determinado (ou longo) período de tempo de forma repetitiva; e a repetição não se refere ao número de microeventos, mas à sua frequência de ocorrência. O que interessa não é o número de vezes que a situação se repetiu, mas a interação mais ou menos regular de um evento; o resultante dessa repetição é considerado como uma propriedade de caracterização de um dado referente (Bertinetto & Lenci, 2010).

(6) e eu fiquei nervosa pensando que num ia saber fazer as coisas e depois disso eu percebi que... que a gente aprende tudo... peguei (hes)... experiência rápido até... quando outras pessoas chegavam pra trabalhar no meu setor eu que dava... explicação sobre o funcionamento dali sobre várias coisas então... (hes) aprendi muita coisa... (f 18)

Em (6), a situação de dava... explicação marca uma atividade, pois o desenvolvimento da situação não se encaminha para um ponto terminal, porque anteriormente há a referência ‘quando outras pessoas chegavam no mesmo setor’, que indica uma ação habitual de dar explicações sobre o funcionamento do local, ocorrendo uma situação [+ específica]. Já, em (7), as ocorrências de aspecto habitual – sempre enxerguei e sempre gostei - formadas por um modificador aspectual e uma forma simples de pretérito perfeito, denotam situações [específicas], já que as reiterações não são delimitadas, ou seja, não se tem uma noção de quantas vezes a ação foi repetida e nem em que momentos, assim como foi em (7).

(7) F: sim foi um sonho de infância... desde a oitava série do ensino fundamental... eu já tinha (hes)... certeza de que a minha... carreira seria na área da computação... eu sempre enxerguei a área de tecnologia em geral... cocomo uma área bastante promissora... e eu estava certo... é fácil perceber... que quem investiu... desde cedo... nessa área está colhendo os frutos hoje... foi isso que me motivou... que seria a oportunidade clara... de ter uma carreira sólida... em algo que eu sempre gostei de fazer (m 02)

Há diferentes propostas teóricas para lidar com o aspecto inerente; analisamos as que permitem definir o comportamento aspectual mínimo que é relevante para a expressão do aspecto habitual. Iniciamos com a proposta de classificação de Vendler (1967), que sistematiza grupos de verbos em várias subclasses com base em suas propriedades temporais. A ideia de Vendler (1957: 123) é a de que o uso do verbo pode sugerir uma maneira particular de como tal verbo pressupõe e envolve a noção de tempo. O autor mostra que, se focarmos a nossa atenção, principalmente, sobre os esquemas de tempo pressupostos por vários verbos, seremos capazes de lançar luz sobre algumas das obscuridades que ainda permanecem sobre esses assuntos. Esses esquemas de tempo são componentes importantes, pois a proposta de Vendler (1967) parte do princípio de que as noções vinculadas pelos verbos ultrapassam a mera codificação temporal centrada na distinção entre presente, passado e futuro. Segundo o autor, existem outras propriedades mais sutis, que podem sugerir a maneira particular de como o verbo pressupõe e envolve a noção de tempo – entendido enquanto tempo físico. Assim, as expressões verbais realizam diferentes esquemas de tempo que podem ser depreendidos da seguinte divisão: estados, atividades, accomplishments e achievements.

Dentro da proposta vendleriana, pensamos sobre a possibilidade de haver algo em comum entre atividades, accomplishments e achievements, que os diferencia de estados, o que é pela atualização do aspecto habitual. Para chegar a essa característica compartilhada entre esses tipos verbais, temos que lançar mão da proposta de Bertinetto (2001), em que as classes aspectuais de Vendler (1967) são desdobradas em três traços interrelacionados: duratividade, dinamicidade e homogeneidade. Para tanto, devemos observar qual/quais traços se cruzam entre atividades, accomplishments e achievements que não ocorrem nos estados. Bertinetto (2001) apresenta uma proposta de classificação aspectual baseada em três propriedades inter-relaciondadas: duratividade, dinamicidade e homogeneidade. A propriedade da homogeneidade refere-se à ausência de um limite interno inerente em uma dada situação, sendo fundamental para a distinção entre telicidade e atelicidade. Situações atélicas – estados e atividades – são definidas como: se uma situação s ocorre num intervalo de tempo I, então s também ocorre em cada subintervalo de I. Ou seja, uma situação homogênea é aquela que não muda de natureza. Em contraponto, accomplishments e achievements não são homogêneos porque são télicos.

A dinamicidade é uma propriedade caracterizada a partir da observação dos estados. Situações de estado são “densas”, não apresentam nenhum desenvolvimento interno e recebem o traço [-dinâmico], o que, em tese, justifica o barramento do emprego do imperfectivo progressivo (no caso específico , de passado imperfectivo), do que com os outros tipos de situação. Achievements, accomplishments e atividades são situações [+ dinâmico].

Nessa proposta de classificação, a sequência mínima de gestos que instancia uma dada situação dinâmica é denominada de átomo dinâmico, e os estados, compostos por átomos estáticos. Átomos dinâmicos correspondem à granularidade mínima definida pela situação, e, por isso, não são divisíveis indefinidamente. Os átomos estáticos podem ser subdivididos indefinidamente, por isso, os estados não apresentam granularidade. Essa diferenciação subsidia a hipótese de que as situações podem ser vistas como sendo compostas por conjuntos de átomos dinâmicos [homogêneo] e/ou estáticos [+ homogêneo].

A propriedade da duratividade é responsável pela diferenciação entre situações [durativas], como os achievements, constituídos por um único átomo dinâmico seguido de um átomo estático que instancia o ponto de culminação atingido pela realização da situação, e situações [+ durativas] como os accomplishments, que envolvem um conjunto de átomos dinâmicos seguidos de um átomo estático. Os accomplishments diferenciam-se das atividades – também [+ durativas] e constituídas por um conjunto de átomos dinâmicos – por apresentarem um ponto de culminação estático como resultado da realização da situação, ao contrário das atividades. A duratividade deve ser entendida como estritamente operacional, já que qualquer situação, por mais breve que seja, apresenta certa duração.

Na proposta de Bertinetto (2001), a característica em comum entre atividades, accomplishments e achievements responsável por diferenciá-los dos estados diz respeito ao traço dinamicidade, pois todos os três são [+ dinâmicos] e os estados são [dinâmicos]. Atividades, accomplishments e achievements se desenvolvem pela sucessão de suas fases enquanto estado é um continuum, não apresenta fases sucedendo uma a outra. Assim, verbos estáticos tendem a barrar o aspecto habitual; já atividades, accomplishments e achievements, por apresentarem o traço [+ dinâmico], colaboram para a atualização do aspecto habitual, principalmente atividades, que além do traço [+ dinâmico], é também [+ durativo] e [+ homogêneo].

Além dos valores aspectuais inerentes aos verbos, também consideramos a função dos modificadores aspectuais na composição do aspecto habitual. Quando uma ação se repete de forma habitual, o verbo, geralmente, é acompanhado por modificadores aspectuais – como, por exemplo, advérbios e locuções adverbiais – que indicam frequência, tais como: normalmente, sempre, todos os dias, dentre outros (Travaglia, 2006; Rodrigues, 2009). Estes, por sua vez, estão, tipicamente, associados a situações durativas.

(8) F: uma delas... hohoje em dia eu tento acreditar que ela não adoque ela não adoeceu que ela adoeceu de verdade que eu pensei que ela sempre tava fingindo que tava doente... tava doente... e nisso... (hes) a gente acabou que descobrindo que a outra Aricelha a mais velha do grupo era quem fazia as briguinhas ((risos)) foi... (hes) foi foi horrível assim foi bem estressante a monografia... (hes) digo pra você que você vai se estressar mesmo... ((risos)) se prepare... porque se você for como eu você vai se estressar bastante com essa relação... com esse trabalho (m 04)

Tomamos como pressuposto aqui que a habitualidade é dada pela junção de dois fatores principais: a flexão verbal (-ndo – imperfectivo) mais a junção do auxiliar estar no pretérito imperfeito, ou seja, além de auxiliar, estar passa a ter um valor aspectual, isso por causa da presença do modificador aspectual sempre. O verbo “estar” como auxiliar mantém o traço de duração, o que contribui para a codificação do aspecto habitual. Ele se junta ao verbo pleno no gerúndio e o modificador aspectual fazendo com que a sentença passe a ser habitual, sem contagem no intervalo de tempo, dando uma leitura de movimento/atividade. Ao juntar-se ao verbo pleno no gerúndio, a sentença passa a ter uma leitura habitual, porque esses auxiliares denotam intervalos de tempo durativos dentro dos quais se inclui o(s) intervalo(s) do verbo principal (Wachovicz, 2003). A repetição é ativada pela presença do advérbio sempre; a situação não é vista como única e durativa, mas sim como repetida, sem a informação sobre a duração de cada repetição. O modificador adverbial indica que as situações podem continuar acontecendo, porém de forma intermitente. Assim, podemos dizer que em (6) se atualiza o aspecto habitual: o significado aspectual final é o de que as situações ali expressas são vistas como se repetindo indeterminadamente ao longo do tempo, o que caracteriza o aspecto habitual manifestado. Advérbios e adjuntos adverbiais são considerados na análise com o objetivo de verificar a sua influência na expressão do aspecto habitual. Partimos do pressuposto apontado por Verkuyl (1993), Wachowicz (2003), Bertinetto e Lenci (2010) e Rodrigues (2009) de que advérbios e adjuntos adverbiais quantificadores podem modificar uma leitura aspectual, por exemplo, de valor episódico – que ocorre uma única vez – para habitual, como ilustrado na figura 2.

 

 

A fim de averiguarmos a produtividade do arranjo e a gradação de traços que sistematizam o aspecto habitual no português do Brasil, tomamos como corpus de análise a amostra composta por 20 entrevistas sociolinguísticas estratificadas quanto ao sexo dos informantes, pertencentes ao banco de dados Falares Sergipanos (Freitag, 2013; Freitag et al., 2012).

2. A expressão do aspecto habitual

Na amostra analisada, identificamos 321 contextos de expressão de aspecto habitual pelas formas simples, pretérito perfeito (PP) e pretérito imperfeito (PI).[2]

Nas seções subsequentes, apresentamos os resultados obtidos com as formas simples PP e PI e a correlação entre os traços linguísticos para a expressão da habitualidade. Por fim, apresentamos a correlação geral entre os traços linguísticos e as formas verbais (pretérito imperfeito e pretérito perfeito) para a expressão da habitualidade, culminando com uma proposta de gradiência, pautada na proposta de Bybee et al. (1994) e Bybee (2010).

2.1 Traços aspectuais

O nosso objetivo ao controlar os traços aspectuais consiste em constatar se de fato tais traços são salientes dentro de uma leitura composicional do aspecto habitual, assim como fora comprovado em outros estudos, como Rodrigues (2009) e Freitag (2011). Para verificarmos a correlação entre os traços aspectuais e o aspecto habitual nas amostras analisadas, controlamos os três traços aspectuais apontados por Bertinetto (2001), a saber: durativo ([+ durativo]; [durativo]), dinâmico ([+ dinâmico]; [dinâmico]), homogêneo ([+ homogêneo]; [homogêneo]). A nossa hipótese é de que os traços aspectuais tenderão para [+ durativo], [+ dinâmico] e [+ homogêneo], nas duas formas verbais (PP e PI), na expressão da habitualidade. Vejamos os exemplos (9) e (10):

(9) então... meu maior plano o o mestrado né? vou tentar em algumas universidades... fora de Sergipe... depois eu pretendo o doutorado pra me tornar efetiva né? porque eu sou professora substituta... e espero conseguir tudo isso é muita coisa eu sou uma pessoa... toda vida eu sempre falava ... isso desde pequenininha eu sou muito sonhadora... e eu eu me sinto muito realizada porque tudo que eu sonhei... eu consegui até agora é tanto que eu tenho que me preparar pra um... um não como foi o caso do mestrado até que eu reagi bem... (f 19)

(10) e... oitenta por cento do curso foi foi exatamente isso né? que sempre preparou... (hes) os alunos com com cálculos... com memorização de fórmulas foi um curso muito voltado pra memorização... de fórmulas memo(hes) <<aprendimento>> conceitos matemáticos... foi um curso pouco voltado né? realmente para... formação do professor... era mais era cálculo... e... matérias técnicas né? com que que a gente nunca iria usar em sala de aula (m 01)

Em (9) e em (10), temos os verbos falar e preparar, respectivamente, no pretérito imperfeito e pretérito perfeito, indicando uma atividade, em composição com o advérbio sempre. Como os dois verbos indicam atividade, o que pode ser entendido de acordo com o contexto, é que temos embutido neles os traços [+ dinâmico], [+ durativo] e [+ homogêneo], pois as situações apresentam subintervalos, prolongando-se de forma indefinida. Como não temos os limites temporais delimitados, vemos situações com o traço [télico], ou seja, as situações não se prolongam no tempo de forma contínua, mas com interrupções, o que viabiliza a interpretação habitual. A repetição é ativada pela presença do advérbio sempre. Assim, através do modificador adverbial, podemos ler que as situações podem continuar acontecendo, porém de forma intermitente.

Na tabela 1, observamos que uso do pretérito imperfeito na expressão da habitualidade está relacionado ao traço aspectual [+ durativo]. Das 308 ocorrências com o traço [+ durativo], 67,9% concentraram-se na forma de PI e 32,1% na forma PP. Independentemente da forma verbal, PI ou PP, na codificação do aspecto habitual, o traço [+ durativo] foi mais saliente, o que confirma a nossa hipótese inicial. No entanto, existe uma tendência de distribuição de frequências que aponta para a seguinte correlação aspectual: [+ durativo] >> PI; [durativo] >> PP (estamos considerando a quantidade absoluta dos dados).

 

Tabela 1. Atuação do traço aspectual duratividade na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

+ durativo

209

67,9

99

32,1

308

100

durativo

12

92,3

1

7,7

13

100

 

A forma PI na expressão da habitualidade é mais recorrente em contextos com traço [dinâmico], como podemos verificar na tabela 2.

 

Tabela 2. Atuação do traço aspectual dinamismo na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

+ dinâmico

152

70,0

65

30,0

217

100

dinâmico

69

66,3

35

33,7

104

100

 

 

Tabela 3. Atuação do traço aspectual homogeneidade na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

Mais homogêneo

154

66,1

79

33,9

233

100

Menos homogêneo

67

76,1

21

23,9

88

100

 

A homogeneidade diz respeito ao fato de tal situação não apresentar um fim inerente, estando ligada à noção de atelicidade [+ homogêneo] e telicidade [- homogêneo]. Nos resultados referentes ao uso de PP e PI para expressar aspecto habitual, no que tange ao traço homogeneidade, o traço [+ homogêneo] prevalece, com 154 ocorrências (66,1%) de PI e apenas 79 (33,9%) de PP. O mesmo comportamento apresenta o traço [homogêneo]: das 88 ocorrências, 67 (76,1%) se concentram na forma de PI. O resultado do traço homogeneidade refuta a nossa hipótese de que prevaleceria o traço [+ homogêneo] na expressão da habitualidade, pois, em termos de uso e aplicação, as formas de PP e PI apresentam tanto o traço [+ homogêneo] quanto o traço [homogêneo].

2.2 Modificadores aspectuais

Consideramos a função dos modificadores aspectuais na composição do aspecto habitual, pois, quando uma ação se repete de forma habitual, o verbo, geralmente, vem acompanhado por modificadores aspectuais, com advérbios e locuções adverbiais que indicam frequência, tais como: normalmente, sempre, todos os dias, dentre outros (Travaglia, 2006; Rodrigues, 2009). Estes, por sua vez, estão, tipicamente, associados a situações mais durativas. Segundo Wachowicz (2003), os modificadores aspectuais e o contexto desempenham um papel fundamental na escolha de, por exemplo, uma leitura habitual ou iterativa.

(11) e... oitenta por cento do curso foi foi exatamente isso né? que sempre preparou... (hes) os alunos com com cálculos... com memorização de fórmulas foi um curso muito voltado pra memorização... de fórmulas memo(hes) <<aprendimento>> conceitos matemáticos... foi um curso pouco voltado né? realmente para... formação do professor... era mais era cálculo... e... matérias técnicas né? com que que a gente nunca iria usar em sala de aula (m 01)

Em (11), temos o verbo preparar, no pretérito perfeito em composição com o advérbio sempre. As situações se prolongaram de forma indefinida. Como não temos os limites temporais delimitados, o traço [télico] está embutido, ou seja, as situações não se prolongam no tempo de forma contínua, mas com interrupções, o que viabiliza a interpretação habitual. A repetição é ativada pela presença do advérbio sempre, porque, com a entrada do modificador aspectual sempre, a situação é vista como durativa. Vale destacar que a situação não é vista como única e durativa, mas sim como repetida, sendo que não é informado se cada repetição durou ou não. Através do modificador adverbial podemos ler que as situações podem continuar acontecendo, porém de forma intermitente.

Ainda em relação aos modificadores aspectuais com valor habitual, um modifi r adverbial do tipo de normalmente, geralmente, etc., como em (11), torna a proposição indeterminada em relação ao seu estatuto factual. Assim, é possível propor que tais modificadores adverbiais modalizam a ação; ao valer-se de algum desses advérbios, o falante se descompromete com o estatuto factual do estado de coisas. O excerto (12) ilustra essa situação.

(12) tem que adequar a disponibilidade do entrevistado... e às vezes eles têm bastante receio também né? de se expor... de mostrar tipo de dar a cara a tapa digamos assim... então geralmente a resistência maior é dessas autoridades mas também eu é é... muito difícil eu não conseguir geralmente eu conseguia bastante... e têm muitos também que são bastante atenciosos muitos políticos que são atenciosos (hes) policiais e delegados também que dãque dão a entrevista numa boa assim geralmente... eu consigo é muito difícil eu não conseguir uma entrevista (f 11)

Na tabela 4 os resultados evidenciam que a forma de PI na expressão da habitualidade predomina em contextos de ausência do modificador aspectual. Por outro lado, a forma de PP predomina com a presença de modificador aspectual. Os resultados corroboram a nossa hipótese, mas ainda esperávamos que o fator presença de modificador aspectual favorecesse também a forma de pretérito imperfeito, como aponta a literatura.

 

Tabela 4. Atuação do uso de modificador aspectual na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

Presença

29

27,9

75

72,1

104

100

Ausência

192

88,5

25

11,5

217

100

 

Tal resultado aponta para um traço na leitura composicional do aspecto habitual: a presença de modificador aspectual tende a favorecer a forma de PP, já a ausência de modificador tende a favorecer a forma de PI.

2.3. Classes acionais

Seguindo outros estudos que controlaram valores aspectuais de acordo com o tipo de verbo, seguimos a proposta de classificação de Vendler (1967), mais a categoria dos verbos cognitivos (cf. Coan, 1997):

Atividades – consideramos como verbos de atividade aqueles que expressam situações dinâmicas, tais como trabalhar, escrever, estudar, andar etc.

(13) F: sei lá... eu num tenho a mínima ideia... do que eu faria deixe eu ver... primeiro... ia fazer uma casa mais confortável pra minha mãe... o pri- pra minha mãe parar de trabalhar com certeza... ia fazer minha mãe viajar duas vezes por ano pra ela curtir a vida que ela sempre trabalhou pra manter os filhos e... e nunca curtiu a vida nunca fez nenhuma viagem eu ia assim... (f 13)

Achievements - consideramos como achievements aqueles verbos pontuais, ou seja, sem duração inerente. Seu limite inicial coincide com seu limite final, respondem à pergunta “em que momento/hora”.

(14) Só que na época eu ajudava a minha mãe em casa, mas também era eu quem comprava as minhas coisas pessoais. (fnp43)

Accomplishments – consideramos como accomplishments aqueles verbos de duração temporal definida, isso porque apresentam limite final evidenciado (situações télicas). Evidenciam situações não percebidas como verdadeiras quando interrompidas. Respondem à pergunta “em quanto tempo”.

(15) então pensei muitos vezes em desistir porque estava no segundo período... era só eu... aí o que fazer? ficar esperando em Itabaiana não teria condições de ficar esperando na universidade... então tinha que pagar pra vim até Campo do Brito... em Campo do Brito eu ficava uma hora... uma hora e meia na chuva... no frio... sozinha aventurando se o carro iria ou não iria buscar... chegava em casa traumatizada... então pra mim foi muito difícil... (f 17)

Estados consideramos como verbos de estado os que delineiam situações também durativas, mas que não podem ser divididas em fases (homogeneidade). Não apresentam limite final inerente. São verbos que não remetem a ação/movimento, ou seja, são situações menos dinâmicas que exprimem propriedades, localização, condição, estado etc., como os verbos ser, estar, parecer, ter, entre outros.

(16) gostei mais pela parte dos professores que eu tive mais pela parte do conhecimento que eu adquiri aqui e do que eu pude vivenciar aqui dentro mas mas quando eu falo de vivência não é muito com as pessoas não é muito com os meus colegas mas da vivência que eu tive dentro dos ... com os professores sempre estive engajada com assuntos que diziam respeito ao curso e com o aprender mesmo porque eu realmente gosto eu gosto de tirar minhas dúvidas eu gosto de aprender (f 12)

Cognitivos: são verbos ligados ao processamento cognitivo, à percepção ou estímulo mental, tais como pensar, lembrar, entender, impressionar, agradar etc. Esta categoria não está presente na proposta de classificação de Vendler (1967), no entanto, Coan (1997) a controlou no estudo da expressão do tempo passado anterior a outro passado, sendo replicada por outros estudos de formas verbais; optamos por controlar separadamente a categoria para fins de comparabilidade com resultados de outros estudos.

(17) então a princípio eu escolhi fazer jornalismo... porque eu gostava muito de ler e escrever... mas depois eu vi que na verdade isso não é o suficiente pra você fazer... esse curso ((barulho da moto)) que exige uma série de outras coisas como você ser... (hes) não ser tímido... você saber fazer abordar a pessoa... e vários outros fatores... ene assim desde criança... eu eu sempre pensei... depois quando quando eu comecei a imaginar em faz a fazer um curso sempre imaginei jornalismo nunca tive... outra pretensão assim de ser professora ou fazer qualquer... outra habilitação mesmo sempre quis jornalismo e foi... o que aconteceu num num tive outro pensamento outra escolha (f 11)

Tomamos como hipóteses que: i) verbos de atividade acompanhados do advérbio sempre, preferencialmente, atualizam o aspecto habitual; o significado aspectual final é de que as situações expressas são vistas como se repetindo indeterminadamente ao longo do tempo (o que caracteriza o aspecto habitual), o que está correlacionado com verbos de atividade; ii) verbos de estado tendem a barrar o aspecto habitual.

 

Tabela 5. Atuação das classes acionais na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

Achievements

4

66,7

2

33,3

6

100

Atividade

157

72,0

61

28,0

218

100

Cognitivo

37

69,8

16

30,2

53

100

Estado

23

52,3

21

47,7

44

100

 

Quanto à atuação do tipo do verbo na expressão da habitualidade pela forma de PI, assim como tínhamos por hipótese, os verbos de atividade, preferencialmente, atualizam o aspecto habitual, por serem verbos com os traços [+ durativo], [+ dinâmico] e [+ homogêneo]. Em primeiro lugar, temos os verbos de atividade com 72,0%; em segundo, os de cognição, com 69,8%; os verbos de achievement com 66,7%, em terceiro; e, por último, os de estado, com 52,3%.

Em valores absolutos, os verbos do tipo achievement apresentaram poucas ocorrências (6, no total). Isso pode ser explicado porque os achievements são situações pontuais, ou seja, sem duração inerente; seu limite inicial coincide com seu limite final, por isso tendem a coibir a aplicação do aspecto habitual.

A segunda hipótese para o fator tipo de verbo era a de que os de estado tendiam a barrar o aspecto habitual, mas, aparecem, mesmo que em menor percentual, verbos de estado. Este tipo de verbos, por representarem um continuum, não apresentam grãos ou fases sucedendo uma a outra; são verbos com o traço [dinâmico], por isso não seriam tão expressivos em uma leitura habitual. No entanto, de acordo com nossos resultados, a forma de PP está relacionada a este tipo de classe de verbo, mas associado a um modificador aspectual, partindo, assim, da composicionalidade do aspecto; um fator está ligado ao outro, por isso temos ocorrências de verbos de estado na expressão da habitualidade.

2.4. Gradações de modalidade

As categorias gramaticais precisam ser vistas num continuum, que contempla uma gradualidade, formando um conjunto irregular, relativo e impreciso, dinamicamente organizado, cujos traços constitutivos não são partilhados igualmente por todos os itens que a constituem. Então, assim como outras categorias, a modalidade pode ser controlada de forma escalar, prevendo gradações, a partir das quais podem ser correlacionadas formas ou funções. Seguimos uma proposta escalar, distribuída em quatro graus, do [irrealis] ao [+ irrealis], levando em conta alguns critérios contextuais que indicam o maior/menor grau de certeza expresso no enunciado, conforme sugere Givón (2001) (quadro 3).[3]

 

Quadro 3. Escala de gradação de modalidade (FREITAG et al. 2013:108)

Irrealis 1 (grau 1) – corresponde ao realis; apresenta situações fortemente assertadas – factuais. No nível do analista, a factualidade se verifica no contexto linguístico concomitante à função ou pressuposta.

Irrealis 2 (grau 2) – corresponde ao grau mínimo de irrealis; está correlacionado a situações que provavelmente/eventualmente ocorreram. No nível do analista, a factualidade se verifica no contexto linguístico subsequente, inter/intratópico.

Irrealis 3 (grau 3) – corresponde a situações impossíveis de ocorrerem. No nível do analista, a não factualidade se verifica no contexto linguístico concomitante à função.

Irrealis 4 (grau 4) – corresponde ao grau máximo de irrealis, pois a asserção é negada. No nível do analista, se verifica linguisticamente pelo marcador de negação.

Os excertos (18) e (19) ilustram o grau 1 e o excerto (20) ilustra o grau 2. Podemos, evidentemente, ter um hábito negado – irrealis 4 (21); no entanto, não podemos ter a instância em que pode ou não pode haver o hábito.

(18) mas ele não só leciona... ele também ele já foi ele já foi auditor fiscal ele já teve uma empresa de consultoria... mas como ele mesmo falou que sempre ganhava bem em tudo (m 05)

(19) e eu estava certo... é fácil perceber... que quem investiu... desde cedo... nessa área está colhendo os frutos hoje... foi isso que me motivou... que seria a oportunidade clara... de ter uma carreira sólida... em algo que eu sempre gostei de fazer (m 02)

(20) e no domingo geralmente eu saía com minha família... com amigos... ou então em casa vendo um filme eu gosto muito de ver filme em casa também gosto de ver filme sozinho ((risos)) porque... já é eu acho que é costume mesmo tudo que eu gosto em casa eu gosto de ver só... ou com meu namorado... só a ((risos)) só a única exceção ((risos)) (m 04)

20 com minha mãe com minha mã- eu nunca morei com minha mãe... exatamente assim eu morei com minha avó... até o início da adolescência... depois morei com minha avó e com minha mãe mamais com minha avó... e quando... eu entrei naquela fase de rebeldia dos dezesseis dezessete anos... aí foi quando eu vim morar com meu pai... (m 04)

Quanto à correlação entre a gradação de modalidade e a expressão da habitualidade, os resultados evidenciam que o aspecto habitual, em termos de frequência, pode estar relacionado ao Grau 1. Como vimos, é o tipo de grau em que há um valor de assertividade na situação relatada, denotando um grau de comprometimento do falante com a situação enunciada.

 

Tabela 6. Atuação da gradação de modalidade na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

Grau 1

196

66,7

98

33,3

294

100

Grau 2

13

92,9

1

7,1

14

100

Grau 3

10

90,9

1

9,1

11

100

Grau 4

2

100

-

-

2

100

 

Há um maior número de contextos de Grau 1 com a forma verbal de pretérito imperfeito, de 294 ocorrências, 196 são de PI. Mas o pretérito perfeito também é predominante no Grau 1, principalmente quando acompanhado de um modificador aspectual. É importante destacar que, assim como defendido por Givón (2001) e Cristófaro (2004), o aspecto habitual também pode ser suscitado em contextos de [+ irrealis], pois temos ocorrências de graus 3 e 4, mais distantes do valor realis.

2.5. Especi?cação da iteração

A especificação numérica dos microeventos que compõem o aspecto habitual pode ser [+ específica] ou [específica]. Especificar o número dos microeventos é equivalente a explicitar a duração do macroevento. Quanto maior a frequência da repetição da situação, mais próximo da leitura aspectual habitual; ao passo que, quanto maior a quantificação da situação, mais distante de uma leitura aspectual habitual, porque, em uma leitura habitual, não se faz necessário entrar em cálculos (quantificação).

Segundo Bertinetto e Lenci (2010), os contextos que delineiam habitualidade serão [específico]; tendo em vista isso, analisamos a atuação da especificação da reiteração no uso do pretérito imperfeito para a expressão da habitualidade na fala e na escrita, a fim de investigar se de fato o traço [específico] auxilia em uma leitura habitual. Vale destacar que toda reiteração está associada a uma duração. Assim, em situações [+ específicas], pode-se perguntar: “quantas vezes?”. Já situações com o traço [específico] são tratadas em termos indefinidos, não respondendo assim à pergunta “quantas vezes?” (Ilari, 2001). Os excertos (22) e (23) ilustram situações com os traços [+ específico] e [específico], respectivamente.

(22) e eu fiquei nervosa pensando que num ia saber fazer as coisas e depois disso eu percebi que... que a gente aprende tudo... peguei (hes)... experiência rápido até... quando outras pessoas chegavam pra trabalhar no meu setor eu que dava... explicação sobre o funcionamento dali sobre várias coisas então... (hes) aprendi muita coisa... (f 18)

(23) eu gosto muito de jornalismo cultural... então justamente por isso que eu casei meu TCC com essa coisa da cultura sergipana porque é uma área que eu sempre me encantei desde desde o princípio um tema uma editoria... (hes) que eu sempre me encantei desde desde o princípio (f 11)

 

Tabela 7. Atuação da especificação da reiteração na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

+ específico

54

85,7

9

14,3

63

100

- específico

167

64,7

91

35,3

258

100

 

Os resultados apontam que o traço [específico] apresenta correlação acentuada no estabelecimento do aspecto habitual na amostra sob análise, pois, em termos de aplicação/total, de 321 ocorrências, 258 são do traço [específico], nas formas verbais de PI e PP; e, na escrita, de 47 ocorrências, 36 são do traço [específico], também nas duas formas verbais analisadas. Os resultados são bastante significativos, nos permitindo afirmar que o traço [específico] está correlacionado no uso do pretérito imperfeito e pretérito perfeito para a expressão da habitualidade, confirmando nossa hipótese.

2.6. Agentividade

Além dos traços linguísticos explicitados anteriormente, levamos em consideração, dentro do aspecto da transitividade, a agentividade, seguindo os parâmetros de Coan e Pontes (2012). Um evento é caracterizado de forma escalar quanto à sua transitividade a partir das propriedades semânticas do agente, paciente e verbo da oração analisada, que também são fornecidas em termos de graus. Consideramos este fator com a hipótese de que o agente ou paciente da ação influenciaria na aspectualidade verbal, assim como fora comprovado por Coan e Pontes (2012). Consideramos um sujeito ativo (24) aquele que é o agente da ação expressa pelo verbo, já o sujeito passivo (25) aquele que recebe a ação denotada pelo verbo.

(24) eu sempre fui um bom aluno em geografia e história eu sempre passava porque é aque- no ensino médio aquele negócio de (coletivo) num é como faculdade nunca é o que a gente pensa que vai ser só quando a gente tá lá é que a gente sabe... aí... em história eu sempre fui de decorar a data e isso e aquilo passava... quando eu cheguei lá que eu vi que era totalmente diferente que num era aquela história que eu estava acostumado a ser (hes) (m 04)

(25) e... oitenta por cento do curso foi foi exatamente isso né? que sempre preparou... (hes) o alunos com com cálculos... com memorização de fórmulas foi um curso muito voltado pra memorização... de fórmulas memo- (hes) <<aprendimento>> conceitos matemáticos... foi um curso pouco voltado né? realmente para... formação do professor... era mais era cálculo... e... matérias técnicas né? com que que a gente nunca iria usar em sala de aula (m 01)

 

Tabela 8. Atuação da agentividade na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

Sujeito passivo

24

58,5

17

41,5

41

100

Sujeito ativo

197

70,4

83

29,6

280

100

 

Na análise dos dados, a presença de um sujeito ativo está relacionada com a forma de PI na expressão da habitualidade.

2.7. Tipo de sequência textual

Com base em estudos como o de Rodrigues (2009), tínhamos por hipótese que a sequência textual narrativa favoreceria a ocorrência do aspecto habitual, já que a característica de cronologia das informações na linha do tempo da narração é um fator preponderante para o aspecto habitual.

Foram levados em considerações os seguintes tipos de sequência textual: narrativa, argumentativa/dissertativa e opinativa. Nas sequências narrativas, os fatos se desenvolvem progressivamente no tempo e ocorrem em um lugar. Também são caracterizadas pelas expressões adverbiais e pelos verbos de ação (movimento, transformação e dicendi), em geral em tempos do pretérito. Nesse tipo de texto são também encontradas as descrições de vida, como relatos pessoais, em que os eventos estão organizados em uma sequência temporal linear, ou seja, os fatos são narrados ordenadamente, fazendo com que a estória avance. Enquanto o texto narrativo trata de entidades em particular, o texto argumentativo faz considerações acerca de determinado tema e não apresenta temporalidade; não há progressão de acontecimentos no tempo, apresentando verbos no presente do indicativo. Outra diferença entre esses dois tipos textuais é em relação ao encadeamento de ideias, pois nos textos narrativos esse aspecto se dá por meio da sequência cronológica, já nos textos argumentativos se dá pelas relações lógicas entre os segmentos que os compõem, pois os enunciados irão se relacionarem por ideia de causa, consequência, oposição, etc. por isso se faz necessário o uso de conectivos para que se tenha um texto coerente e coesivo. O texto argumentativo se divide em: explanativo e opinativo, o primeiro há um distanciamento do locutor em relação ao tema a ser tratado e o segundo há uma maior aproximação, pois como o próprio nome diz é um texto de opinião. Vejamos excertos com as sequências textuais narrativa, descritiva e dissertativa, respectivamente.

(26) eu sempre gostava de ensinar as pessoas... por exemplo sempre ensinei banca as pessoas vizinhas... aos meus vizinhos entendeu?... e eu gos- eu gosto disso... eu... tá um curso (edificante) pra mim eu tou fazendo tou gostando... entendeu? e não era um sonho de infância que eu nunca tive sonho sonho... “ah eu quero ser médica... ah eu quero ser professora... não eu sempre quis crescer na vida independente de... em que ramo seja entendeu?... mas aí como quancomo eu me identifiquei com isso... aí foi de bom grado assim tou fazendo e tou amando o curso (f 14)

(27) minha infância tranquila sempre fui uma criança... que nunca dei trabalho a professora minha mãe ia lá na escola e... perguntava sobre o meu comportamento a professora dizia não... essa menina nem fala tal ... (f 18)

(28) então a princípio eu escolhi fazer jornalismo... porque eu gostava muito de ler e escrever... mas depois eu vi que na verdade isso não é o suficiente pra você fazer... esse curso ((barulho da moto)) que exige uma série de outras coisas como você ser... (hes) não ser tímido... (f 11)

 

Tabela 9. Atuação do tipo textual na expressão do aspecto habitual

FATORES

PI

PP

TOTAL

%

%

%

Descritivo

11

78,6

3

21,4

14

100

Narrativo

201

69,3

89

30,7

290

100

Dissertativo

9

52,9

8

47,1

17

100

 

O texto narrativo favorece a emergência do valor aspectal habitual, visto que, das 321 ocorrências de aspecto habitual, 290 são em sequências narrativas, com um total de 69,3%. O aspecto habitual é favorecido pela sequenciação temporal: o significado aspectual final é de que as situações ali expressas são vistas como se repetindo indeterminadamente ao longo do tempo, o que caracteriza o aspecto habitual. O aspecto habitual delineia situações que são características de um período de tempo extenso, tão extenso que a situação a que se refere é vista não como uma propriedade acidental do momento, mais precisamente como um traço característico de um período completo (Comrie, 1976). É interessante destacar que a amostra sob análise é composta, em sua grande maioria, por narrativas de relatos pessoais, que seguem uma cronologia das informações na linha do tempo. Dessa forma, pode-se afirmar que o favorecimento do tipo de sequência textual está ligado ao tipo de relato feito pelos informantes, que, por sua vez, favorecia o aparecimento do pretérito imperfeito na expressão de habitualidade.

3. Formas verbais, arranjo de traços aspectuais e contextos de uso

A sistematização dos resultados sugere que a expressão do aspecto habitual no português do Brasil apresenta especificidades de usos; no quadro 1, apresentamos as tendências de uso de PP e PI na expressão do aspecto habitual a partir dos resultados obtidos em relação aos traços controlados.

 

Quadro 1. PP e PI na expressão do aspecto habitual

PP

PI

Modificador aspectual

presença de modificador aspectual

ausência de modificador aspectual

Duratividade

+ durativo

- durativo

Dinamismo

- dinâmico

+ dinâmico

Homogeneidade

+ homogêneo

+ homogêneo

Classe acional

estado

atividade

Gradações de modalidade

grau 1

grau 1

Especificação da reiteração

específico

+ específico

Agentividade

sujeito ativo

sujeito ativo

Tipo de sequência textual

narrativo

narrativo

 

Quanto à presença/ausência do modificador aspectual, em contextos de PP, o aspecto habitual é atualizado com a presença de modificadores aspectuais, cujos principais encontrados nos corpora são: sempre, geralmente, todo (s) os dia (s). Já em contextos de PI, o aspecto habitual tende a ser atualizado sem modificadores aspectuais, porque o PI está no domínio da imperfectividade e, por si só, denota uma situação passada habitual. Em relação ao traço aspectual de duratividade, o aspecto habitual no âmbito do PP está relacionado ao traço [+ durativo], ao passo que com PI manifesta tendência a ser utilizado em situações com o traço [durativo]. No que se refere ao traço de homogeneidade, tanto em contextos de PP como de PI, na expressão da habitualidade, o traço [+ homogêneo] prevalece. Tal resultado ocorre porque o aspecto habitual é durativo e não é subdividido em fases. Já o traço de dinamismo sofre alteração, a depender da ocorrência de habitual se com PP ou PI. Quando o aspecto habitual é codificado por PP, a situação é [dinâmica]; já por PI, é [+ dinâmica]. Com relação ao traço semântico-cognitivo do verbo, verificamos que a forma de PP está mais relacionada aos verbos de estado, e a forma PI, aos verbos de atividade. É interessante destacar que esse resultado está associado ao fator presença/ausência de modificador aspectual, pois a forma de PP necessita da presença de um modificador aspectual e verbos de estado também o necessitam, porque sem a presença dariam indícios de aspecto contínuo e não habitual.

Levando em consideração a influência da modalidade realis no aspecto habitual, com nossos resultados, foi possível asseverar que de fato é o traço modal que está associado à habitualidade. Podemos, evidentemente, ter um hábito negado – Grau 4; no entanto, não podemos ter a instância de que pode ou não pode haver o hábito. No que se refere ao fator especificação da iteração, concluímos que quando o aspecto habitual é codificado pela forma de PI a repetição tende a ser [+ específica], resultado que não esperávamos, já que o traço [+ específico] na categoria especificação da reiteração, assim como assinala Bertinetto (2001), está associado ao aspecto iterativo, que são repetições “mais contáveis”. O tipo de sequência textual que favorece a ocorrência do aspecto habitual é o narrativo, o que é de se esperar, já que são nas narrativas que relatamos acontecimentos passados e costumamos utilizar o PI (imperfectivo). Considerando a transitividade verbal, a presença de um sujeito ativo favorece a ocorrência do aspecto habitual.

Considerando o processo de gradiência proposto por Bybee et al. (1994), a expressão do aspecto habitual se apresenta em um continuum que poderia sugerir uma trajetória da expansão/sobreposição das formas de PP e PI na expressão da habitualidade.

 

 

As trajetórias de mudança pressupõem estágios de menor estabilidade do sistema, na medida em que ocorre a sobreposição de formas para o desempenho de uma mesma função (aspecto habitual). Constatamos que as construções do tipo modificador aspectual + verbo estativo + PP atualizam o aspecto habitual, em que a situação é vista como única e durativa, sem interrupções no seu tempo de duração, mas se repetindo indeterminadamente, já que os limites finais não são visíveis. Também as construções do tipo verbo de atividade + PI ou modificador aspectual + verbo não estativo + PI atualizam o aspecto habitual, fazendo com que a situação seja percebida não como única, mas como se repetindo indeterminadamente. Além disso, por meio da decomposição das classes aspectuais de Vendler (1967) proposta por Bertinetto (2001), chegamos à conclusão de que os verbos estativos favorecem a emergência do aspecto habitual em interação com PP devido ao seu traço [– dinâmico] e pela presença do modificador aspectual. Em contrapartida, verbos de atividade favorecem o aspecto habitual em interação com PI e, em alguns casos, com a presença de um modificador aspectual, por compartilharem o traço [+ dinâmico].

Considerações finais

Os resultados apontam que, para se chegar a uma leitura habitual, é preciso observar um continuum, uma gradualidade. A caracterização por meio de traços linguísticos, dentro de uma gradualidade, proposta para a expressão do aspecto habitual no domínio do passado, considerando as diferentes formas de expressão (pretérito perfeito e imperfeito simples e perifrásticos), e as diferentes nuanças de significado em função da saliência de dado fator linguístico em função do contexto, pode auxiliar em um maior aprimoramento da categoria aspectual em análise, explicação de algumas questões inerentes ao processo de gramaticalização, por meio de gradiência, assim como proposto por Bybee et al. (1994). O cotejamento dos resultados a partir de uma escala de gradação pode contribuir para o refinamento do modelo teórico, além de referendar a importância de uma análise descritiva da categoria aspecto em termos de traços semântico-discursivos.

Os resultados evidenciam que o aspecto habitual surge em contextos específicos e, a depender da forma verbal, construções modificador aspectual + verbo estativo + PP podem atualizar o aspecto habitual, mas o que motiva a atualização é a presença de um modificador aspectual. Já em outros contextos, mesmo sem a presença de um modificador aspectual, o tipo textual escolhido pelo informante contribuiu para a atualização do aspecto habitual. Por isso, se faz necessário investir em pesquisas que lidam com a categoria aspecto observar todo o contexto linguístico: léxico > gramática > contexto.

 

Referências

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Notas

[1]Os dados foram extraídos do banco de dados Falares Sergipanos (Freitag, 2013; Freitag; et al., 2012). A sigla ao final refere-se à identificação do informante.

[2]Na mesma amostra, foram identificadas apenas 28 ocorrências de expressão de aspecto habitual por formas perifrásticas. Optamos por não considerá-las nesta análise.

[3]As modalidades epistêmicas da tradição lógica aristotélica, segundo Givón (2001), teriam equivalentes comunicativos: à verdade necessária da tradição lógica corresponde o equivalente comunicativo da pressuposição; à verdade factual, a asserção realis; à verdade possível, a asserção irrealis; e à não-verdade, a asserção negativa. A redefinição comunicativa para as modalidades epistêmicas da tradição clássica concebe a pressuposição como uma proposição assumida como sendo verdadeira por concordância anterior, convenção cultural, ou obviedade a todos os presentes na situação de fala. A asserção realis toma uma proposição fortemente assertada como sendo verdadeira. A asserção irrealis tem uma proposição fortemente assertada como sendo possível, provável ou incerta. A asserção negativa toma a proposição fortemente assertada como sendo falsa, mais comumente em contradição com a crença explícita ou assumida pelo ouvinte. A noção de realidade/factualidade remete à existência factual em algum tempo real (verdadeiro), ou a não-existência em um tempo real (falso) ou, ainda, à existência potencial em um tempo (possível), o que configura as possibilidades: i) a situação é fato; ii) a situação não é fato, mas tem grande probabilidade de sê-lo; e iii) a situação não é fato, e nunca vai sê-lo.