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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.1 Braga  2014

 

Identidade em lusofonia: territorialidade e pertença

Identity in lusophony: territoriality and belonging

 

Dina Maria Martins Ferreira*

*Universidade Estadual do Ceará/UECE, Brasil.

dinaferreira@terra.com.br

 

RESUMO

Este estudo pretende discutir a questão de identidade lusófona, partindo das expressões “nunca dantes” e “nunca antes”, utilizada, respectivamente, por Camões em Os Lusíadas e por Lula, Presidente do Brasil em seus discursos políticos. Discute-se a questão de territorialização e pertença que estas expressões evocam como dinâmica identitária. Utiliza-se das prerrogativas derridianas sobre o caminho bustrofédico da linguagem cujo arado sempre traz à tona resíduos de outras histórias pelo reaproveitamento e ressignificação de signos. Questiona-se, a partir do reaproveitamento ufânico de “nunca dantes”, se ele se constitui vetor de um continuum de identidade lusófona.

Palavras chave: territorialização, pertença, identidade, linguagem.

 

ABSTRACT

This study aims to discuss the issue of Lusophone identity based on the “never before” expression used respectively by Camões in The Lusiads and by Lula, President of Brazil in his political speeches. We discuss the question of territorialization and belonging that these words evoke as an identity dynamics. We use the Derridean prerogatives of ‘bustrophedical’ way of language whose plow always brings up wastes from other stories by reusing and re-signifying signs. We question if the reusing of “never before” constitutes a vector of a continuum of Lusophone identity.

Keywords: territorialization, belonging, identity, language.

 

1. “Nunca dantes”

Vejo-me diante de uma reportagem do colunista Reinaldo Azevedo, conhecido como o ‘cristo’[1] do Presidente Luis Inácio Lula da Silva (mandatos 2002/2010). Este colunista comenta sarcasticamente que os discursos de Lula, continuamente, em seu tom exaltador e messiânico, se não demagógico, apresenta em seus pronunciamentos a expressão “nunca antes (nesse país)”, e algumas vezes “nunca dantes (nesse país”). Imediatamente o verso de Camões, em Os Lusíadas, “mares nunca dantes navegados” veio ao pensamento. Tenho aí uma questão sobre a identidade lusófona: pergunta-se por que uma expressão como “nunca dantes” sacralizada, em obra do século XVI, no território Portugal, ainda se repetia no século XXI, no mesmo tom de uma saga no território brasileiro em discurso político, muitas vezes eleitoreiro.

Não aventamos que o uso dessa expressão por Lula seja decorrente de recurso estilístico resultante de conhecimento da literatura portuguesa e consequentemente da literatura portuguesa, com o objetivo de se comparar nem a Camões nem ao ufanismo das descobertas de novas terras. A crença dessa prerrogativa também não se ancora no preconceito em relação ao nível de escolaridade do então Presidente – 5ª série do ensino fundamental ?, até porque o uso dessas expressões só ocorre em discursos que improvisa na prática do poder. Não há em seus discursos revisados e editados por sua equipe nenhuma ocorrência dessa ordem. Muitas outras justificativas podem ser levantadas: ter ouvido essa expressão de seus membros ministeriais, tais como do Ministro da Cultura, e tê-las reutilizada tendo em vista a percepção de seu tom ufanista; ser uma expressão ouvida durante a sua vida, mesmo sem noção de que teve um uso camoniano; ser resultado de um conhecimento enciclopédico; e simplesmente porque se apropriou da autoria da boca do povo. Seja qual for a justificativa do encontro de Camões com Lula, nenhuma delas é relevante para nosso estudo.

Enfim, o que verificamos são territórios que se cruzam em lusofonia, atravessando tempo e espaço – tempo dos séculos e terras diferentes na travessia de um rastro de identidade lusófona na prática ufânica.

O referido colunista, Reinaldo Azevedo, em constante crítica à fala do presidente fornece dados quantitativos nos pronunciamentos presidenciais brasileiros: a expressão“nunca antes” teria em torno de 3000 ocorrências e a “nunca dantes”, 126. Muitas brincadeiras jocosas, muitas críticas ao tom ufânico dessa expressão, seja qual for sua variação de uso:

Mais cultura, “menas” humildade .

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem considerar repetitiva a expressão “nunca antes neste país”, que costuma preceder a enumeração de feitos do governo em seus discursos: “Mas é verdade”. “Está uma coisa tão repetitiva, (...) esse negócio de que “pela primeira vez, nunca antes, nunca dantes” (Jornal Folha de São Paulo, 9/1/09: 5);

“nesse” país (...)

É a expressão preferida do presidente do Brasil, na sua retórica demagógica. Subjetivamente, porém, ao espezinhar a Gramática, no desconhecimento do emprego dos pronomes demonstrativos, Luiz Inácio demonstra, claramente, não saber onde está, afora não ver nada e não saber de nada. Não é “nesse” país, Exmo. Sr. Presidente, mas, sim, neste Brasil que gostaríamos de ver realizadas as maravilhas do seu discurso. Por certo, na sua desorientação encontra-se a origem de tudo. A certeza é a de que V. Exa. refere-se a uma terra hipotética – a terra dos seus delírios –, que respira emanações de ebriedade coletiva. Neste Brasil, entretanto, não enxergo razões para muita euforia, ao menos enquanto países como Azerbaijão, Etiópia, Quênia, Zimbábue, Coreia do Norte, Cazaquistão, Cuba, e mais trinta outros merecem mais medalhas do que nós (Espíndola, 2003: serial)

Não deixe de votar, divulgue entre os seus amigos; nunca se sabe quando (...) não menos importante, o uso indiscriminado dos Cartões Corporativos. (...) rios nunca dantes bundeados,[2] existem dois cubanos (...) em campanhas eleitorais e nunca antes pagamos tantas taxas bancárias: é o bolsa-família, dos banqueiros (...)

Claro, escrever rápido implica no uso de fórmulas, mas quem disse que não se pode (...) esse negócio de que: ‘pela primeira vez, nunca antes, nunca dantes’(...). Senhor General, que nos últimos anos? ao mesmo tempo que mais se aproxima a assaltam preocupações nunca dantes vividas. Refiro ao revanchismo de pessoas desqualificadas (Revista Veja, 2003: 35).

Apesar de tantas ironias a respeito do uso dessas expressões pelo presidente, nosso objetivo não é nem questionar o certo e errado de seu uso em relação às normas da língua portuguesa, nem discutir a filologia das mesmas – seja “nunca antes”, seja “nunca dantes”, seja “nunca d’antes” – e muito menos levantar questões sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Sabemos que “dantes” é contração da preposição “de” mais o advérbio “antes”. A forma e composição dessas expressões não são os únicos caminhos que desvendam o processo identitário, e sim os sentidos que elaboram em sua prática discursiva.

A questão é nos perguntar como esse significante chegou até nós, do século XVI ao XXI, tendo em vista a manutenção e intenção de louvar e aplaudir uma pátria, seja em uma epopeia literária, seja em um do discurso político brasileiro.

2. Caminho bustrofédico da linguagem

O primeiro degrau de nossa argumentação é ler o jogo designativo “nunca dantes” e “nunca antes” a partir da ideia de que a língua é ecológica. Entende-se que a linguagem tem em sua natureza a capacidade de ressignificar a cada momento de sua materialização em língua, uma vez que a linguagem não exclui significações ao longo de seu percurso no espaço-tempo histórico; ao contrário, a cada expressão significante, resíduos significativos se processam e se remodalizam.

E é pelo movimento da escritura (Derrida, 1999: 351) que se postula ter a linguagem natureza ecológica: “Trata-se da escritura por sulcos. O sulco é a linha, tal como a traça o lavrador: a rota – via rupta – cortada pela relha do arado. O sulco da agricultura, também o recordamos, abre a natureza à cultura. E sabe-se também que a escritura nasce com a agricultura, que não se dá sem a sedentarização.”

Derrida pleiteia para escritura um movimento bustrofédico,[3] isto é, um movimento contínuo, da esquerda para direita e da direita para a esquerda, como o arado do boi sulcando a terra. Sob a ótica bustrofédica da linguagem, verifica-se que nesse movimento não há interrupção, e essa continuidade permite reafirmar que a linguagem é ecológica, isto é, processo de contínuo re-aproveitamento da terra-linguagem em que o vaivém do arado (movimentando-se no espaço, no tempo e em sua história) produz um ‘des-velar’ de significações. Se o processo de cultivo é contínuo, a cada plantio linguageiro resíduos remanescentes de uma antiga plantação revolvem-se para se agregar à próxima; a terra na qual as designações são plantadas não consegue eliminar e substituir os rastros de antigas plantações; é no revolver da linguagem-terra que novos grãos designativos se encontram com resíduos de outros grãos remodalizando-se em novos jogos de linguagem. Um momento histórico da linguagem não elimina o anterior e nem se excluí do posterior.

O movimento bustrofédico, realizado metaforicamente pelo arado do boi, deixa sulcos e marcas, sulcos profundos ou não, dependendo do instante histórico em que são realizados, cujas marcas culturais e suas significações podem ser re-descobertas para além do momento de sua aragem, pois, dependendo da força histórica do arado, os sulcos sedimentados e cristalizados não se dissolvem tão facilmente: “Ora, como procede o lavrador? Economicamente. Chegando ao fim do sulco, ele não volta ao ponto de partida. Dá meia volta ao arado e ao boi. Depois, parte novamente, em sentido inverso. Poupança de tempo. De espaço e de energia. Melhoria do rendimento e diminuição do tempo de trabalho. A escritura de volta de boibustrofédon ? (...).” (Derrida, 1999: 351-352).

A linguagem, então, movimenta e sulca seu terreno (re)semeando seus produtos de significação, que vai deixando resíduos. Sulcos pressupõem marcas e traços, e ecologia tem por quesito fundamental o reaproveitamento. Por essa tessitura metafórica permite-se pensar ser a estrada-sulco o fazer da linguagem. O percurso da linguagem recebe os adubos de forma e conteúdo a cada espaço-tempo percorrido, pois não se nega às especificidades socioculturais dos jogos de linguagens.

E por esse raciocínio já se pode conhecer os resíduos de sentido da expressão “nunca dantes” do XVI presentes no uso de “nunca dantes” e “nunca antes” do século XXI.

3. Jogos de sentido

A expressão “nunca dantes” ou “nunca antes”, tanto no caso de “mares nunca dantes navegados” e “nunca (d)antes nesse país”, semanticamente, trabalha com dois pontos: ação e tempo.

No quesito ação, a negação “nunca” elimina a realização da ação, presente ou passada ou futura. É o caso das sentenças – nunca navego, nunca naveguei, nunca navegarei, nunca navegadas –, que elimina a possibilidade de realização da ação de navegar, ou seja, a ação de navegar é impedida de se realizar.

No quesito tempo, a marca “antes”, à primeira vista, apenas indicaria um tempo passado, anterior ao presente. Mas, ao se aliar sintático-semanticamente ao “nunca”, reforça a eliminação da ação, no caso a ação passada. Ao excluir qualquer ação do passado, hiperboliza-se a ação do presente e seus louros futuros. Se os mares nunca foram navegados, a navegação presente ou futura clama por ação, e se nunca antes nesse país nada se fez, a ação presente é forte com maravilhas de futuro.

Nesse jogo de sentido, pontua-se, então, pela exclusão da ação passada, pela presença da ação do presente e pela promessa de ação futura, o colorido ufânico das terras louvadas – Portugal e Brasil.

4. Territorialidade e pertença

Abordando as pátrias Portugal e Brasil, estamos nos referindo a territórios, não só geográficos, mas caminhando para a ideia de fronteiras simbólicas do ufanismo, logo é mais coerente tratarmos a noção de território pela vertente “simbólico-cultural: [que] prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.” (Haesbaert, 2006: 40). Ou seja, a dimensão simbólica da territorialização habita um espaço organizando-se pela historicidade e geograficidade. Vale a observação que historicidade e geograficidade podem ser valores construídos no próprio território ou designados por outro território. No caso, o território geográfico Brasil, pela fala política do presidente, revela sagas de um outro território, Portugal, pela voz de Camões. E a fala de Lula transforma o território brasileiro em uma geografia simbólica de grandes sagas, em que o “comandante da nau brasileira”[4] agora navega pelos rios da riqueza e do desenvolvimento.

Também na questão de territorialização simbólica outros eixos são pertinentes: historialidade e historicidade. A historicidade estaria para o motivo de usar a expressão “nunca antes nesse país”, na medida em que “nasce da autoapreensão do homem em relação ao vivente e à vida” (Derrida, 2002: 49-50), ou seja, o presidente tem consciência de sua popularidade, que se torna o motivo para exercer o ufanismo simbólico do “nunca dantes navegados”. Historialidade seria o efeito identitário da narrativa da historialidade porque provoca e acolhe a posição de pertença; pertença a um grupo, a uma nação, a um povo. A historialidade seria então “um processo objetivo no qual estamos inseridos (...) é um modo de estarmos conscientes dessa pertença.” (Vattimo, s/d: 11). No caso da história política brasileira, a consciência de pertença à nação é pontuada pelo momento de uma nau-pátria que nunca foi comandada por um presidente que veio do povo, que passou fome, mesmo com pouca instrução escolar. Como diz o então “comandante do Brasil”, “quando cheguei a São Paulo[5], só tinha barriga e língua, tão barrigudinho de tomar água de açude com esquistossomose. Muitas vezes, nós, nordestinos, somos tratados como se fôssemos de segunda categoria. E eu fui vítima disso durante a vida inteira. (Revista Veja, 2003: 34).

Historicidade e historialidade se movimentam em direções diferentes, ao mesmo tempo que se constituem simbioticamente. A historicidade, o motivo – ter popularidade –, explode no discurso para dar conta de uma identidade político-governamental dirigida por um representante que faz o que “nunca dantes” foi, naquele momento histórico, realizado por ele. Já a historialidade, a noção de pertença à pátria Brasil de então, tem o movimento inverso, ou seja, faz o cidadão recuar para trás para se reconhecer no motivo. O movimento exploratório de pertença é efeito da historialidade. Enquanto o motivo trabalha com o instante do utilitarismo de determinado momento político, a pertença é um movimento mais denso, pois trabalha com símbolos socioculturais. Pertença aciona a tradição, reconstruída ou não, pois se alimenta de símbolos que se performatizam pela memória. A tradição mostra os desbravadores, os descobridores de terras, os lutadores pelo desenvolvimento da nação. Sem motivo não há história, e só há pertença se houver história. Ambos – motivo e pertença – trabalham na reivindicação da identidade.

5. Encontro de histórias lusófonas no ufanismo

Ratificando a ecologia da linguagem e seu percurso bustrofédico, chegamos ao encontro simbólico do ufanismo de momentos históricos diferentes.

Cada cultura e seus momentos de uso linguístico são uma queda em história, e como tal está circunscrita a um tempo e um espaço próprios. O que se está propondo é a percepção de que “os símbolos são diversamente vividos e valorizados: o produto dessas múltiplas atualizações constitui em grande parte os ‘estilos culturais’ (..) (e) como formações históricas, essas culturas não são mais intercambiáveis; estando já constituídas em seus próprios estilos, elas podem ser comparadas no nível das Imagens e dos símbolos.” (Eliade, 1996: 173) (grifo da autora).

O contato de uma ‘mesma’ língua em momentos culturais e históricos diferentes seria possível por seu caráter ecológico que espalha resíduos de significação na estrada bustrofédica da linguagem. O toque de usos e sentidos se dá pelos resíduos do caminho ininterrupto, até porque símbolos são convenções muito fortes, cristalizações sociais, signos difíceis de se desmantelarem no cansaço do percurso histórico. O símbolo do ufanismo até hoje se estabelece em várias pátrias, haja vista as guerras que se estabelecem pela luta de pertença e de manutenção de sua história. Por que então, tendo à disposição uma expressão sacralizadora desse símbolo no universo lusófono, ela não seria reaproveitada e utilizada para fins políticos?

E na medida em que se entende símbolo como cristalização e solidificação de significado, resíduos de significação simbólica se fazem duráveis ao longo das araduras da linguagem, uma vez que significações de vida cultural não são trituradas e dissolvidas imediatamente à passagem do arado do boi. Ao contrário, nesse raciocínio metafórico, mas não menos lógico, entendem-se símbolos como resíduos duráveis de significação encravados nos sulcos, cujas marcas profundas de expansões significativas são relembradas em significantes adequados a seu contexto histórico; é nesse ‘relembrar’ do universo simbólico que é possível perceber o contato entre histórias de uma mesma língua.

Junto à questão de durabilidade do significado simbólico, a própria etimologia do termo símbolo já ratifica a natureza ecológica e bustrofédica da linguagem. O vocábulo grego súmbolon (de sun = junto, com e ballein = atirar, lançar) tem o sentido de “ ‘lançar com’, arremessar ao mesmo tempo, ‘com-jogar’. De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste, confronto, permitia aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito de equivalência.” (Brandão, 1986: 38) (grifo da autora).

É justamente nos jogos designativos que se estabelecem os jogos de equivalência. Ao se permitir a equivalências de significado, o símbolo, vivendo nos sulcos da linguagem, não se imobiliza no tempo e espaço em que se manifesta. Sua natureza estável mais a de “com-jogar” significações em marcha bustrofédica permite que caminhe em direção a outras histórias sem anular as anteriores, refazendo em sua contínua aradura outros modos de existência.

A natureza do símbolo foi caracterizada por dois traços, durabilidade e equivalência de significações: a durabilidade se mostra na repetição de usos linguísticos que se expandem no trans-histórico da significação; e a equivalência se apresenta na dimensão dos significados que se estabelecem em formas linguísticas. Não há ponto de saturação na reticulação significativa, nem mesmo na simbólica, uma vez que “é situada e sensível a fatores contingentes de coordenadas espácio-temporais que marcam sua produção (...). É dispersão e disseminação em um interminável processo” (Rajagopalan, mimeo: 3).

6. “Uma pátria imaginada”?[6]

Não há no jogo político do uso “nunca (d)antes nesse país” o oferecimento de uma “pátria imaginada” (Rushdie, 1991: 9)? A pátria do sebastianismo? A pátria brasileira? Rushdie ao mirar no espelho sua pátria Índia apenas recolhe em sua memória “vidros quebrados” que chegam ao presente. Lula, ao usar “nunca dantes”, não estaria recolhendo vidros quebrados? A forma pode ser a mesma, mas a simbologia do ufanismo é alimentada diferentemente. Lula não recolhe nem o “espelho da nostalgia”, mas simplesmente mostra que o uso de uma mesma forma lusófona tem resíduos de significação, mas com políticas de representação diferentes. É justamente “na natureza parcial dessas memórias que suas fragmentações são evocadas, [adquirindo] status e ressonância justamente por causa de sua permanência” no presente (Rushdie, 1991: 12). São as fragmentações de historicidades que fazem com que “coisas triviais adquiram o status de símbolos, com até qualidades numenais”[7] (Rushdie, 1991: 12). Rastros de um passado “mares nunca dantes navegados” –, se fazem presentes no “nunca (d)antes nesse país”, mas sempre ressignificados. Como diz Charles Taylor (apud Appiah, 2005: 128), “como indivíduos nós valoramos determinadas coisas, encontramos certos complementos bons, certas experiências satisfatórias, certos prognósticos positivos. Mas certas coisas podem ser boas em determinados meios ou satisfazer suas formas particulares, porque o conhecimento do passado se desenvolve em nossa cultura.”

Mesmo que pensemos que a continuidade e uso de “nunca dantes” signifique “formação de práticas, instituições e compreensão de sentido às nossas ações – um local de utilidades -, suas naturezas não outorgam que tais utilidades sejam sociais” (Appiah, 2005: 128), ou seja, determinado fragmento do passado não necessariamente transita no universo ufanista, apenas reside em um mundo imaginário, alimentando a construção de uma “pátria imaginada”.

 

Referências

APPIAH, Kawame A. (2005), The ethics of identity, United Kingdom, Princenton University Press.         [ Links ]

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DERRIDA, Jacques. (1999), Gramatologia,. 2a. ed., São Paulo, Editora Perspectiva.         [ Links ]

––––,. (2002), O animal que logo sou, São Paulo, Editora UNESP.         [ Links ]

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JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO (9/1/2009). Disponível em: http://www.folha.com.br; acesso em maio de 2010.         [ Links ]

HAESBAERT, Rogério (2006), O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade, 2a. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.         [ Links ]

ISIDRO PEREIRA, S.J. (1976), Dicionário grego-português e português-grego. 5a.ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa        [ Links ]

RAJAGOPALAN, Kanavillil (s/d), The world as a stage magic realism and the politics of representation, CNPq nº 306151/88-0, mimeo.         [ Links ]

REVISTA VEJA (14 de maio de 2003).Disponível em: http://www.veja.com; acesso em maio de 2009.         [ Links ]

RUDSHIE, Salmon (1991), Imaginary Homelands-essays and criticism 1981-1991, London, Penguin Books.         [ Links ]

WATTIMO, Gian (s/d), O fim da modernidade – Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, Rio de Janeiro, Presença.         [ Links ]

 

Notas

[1]Uma pessoa ser o ‘cristo’ do outro é uma gíria da língua portuguesa do Brasil, que indica ser uma pessoa tão ofensiva que se torna o motivo de grande sofrimento do outro; faz o outro caminhar igual a Cristo, carregando uma cruz. Logo cruz pode ser considerado sinônimo de cristo pela equivalência de sentido de sofrimento.

[2]“Bunda” é um termo de baixo calão no uso da língua portuguesa no Brasil; refere-se às nádegas, parte traseira do corpo humano; trata-se de um termo chulo pois há equivalência de sentido do local traseiro do corpo com o local de defecar. No caso, o verbo “bundear”, também é de uso chulo, porquanto designa pessoas desocupadas e preguiçosas que não trabalham e que ficam sentadas sobre a “bunda”.

[3]Palavra de origem grega que significa ao pé da letra volta do boi: bous (ßo??) boi, e strophá (St??f??), o que se move dando voltas (Pereira, 1976); e referindo à escrita teríamos uma escrita que vira de uma linha para a outra, como fazem os bois ao passar de um sulco para outro, isto e, escrevendo alternadamente da esquerda para a direta e, depois, da direita para a esquerda.

[4]Expressões tais como “comandante da nau brasileira”, “comandante do Brasil”, “senhor general” são expressões irônicas encontradas no site http://www.veja.com.br/ que por questão de economia não estão no corpus analítico mencionado na primeira parte deste artigo. São utilizados metaforicamente para ajustar o tom de crítica da mídia ao tom de crítica deste artigo.

[5]A menção da chegada de Lula a São Paulo, reforça o lado nordestino como local da pobreza e o sudeste como o das oportunidades.

[6]“Pátria imaginada” é expressão traduzida do título do livro de Rushdie, Salman. Imaginary Homelands – essays and criticism 1981-1991. London: Penguin Books, 1991.

[7]Númeno, noumenon (????µe???), termo introduzido por Kant para indicar o objeto do conhecimento intelectual puro, que é a coisa em si.