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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.1 Braga  2014

 

Estrutura semântica de –ismo

Semantic structure of the suffix –ismo

 

Ana Vieira Barbosa*

*Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, Portugal.

ana.barbosa@ipleiria.pt

 

RESUMO

A análise dos nomes em –ismo formados em português, realizada no quadro da morfologia lexical, permite identificar os seus significados atestados e a tipologia de bases selecionadas pelo sufixo. Estes elementos viabilizam a identificação do sufixo como uma unidade polissémica bem como a análise da sua estrutura semântica, o cerne do trabalho. O sufixo –ismo é analisado como uma unidade polissémica cujos diferentes significados se organizam de acordo com a teoria do protótipo. Esta análise sustenta-se na conceção de significado da Linguística Cognitiva e da Semântica Conceptual. Assim, é possível reconhecer a estrutura semântica complexa de –ismo, organizada em dois níveis. O nível subjacente comporta os valores seminais de qualidade e sistematicidade; sendo qualidade o significado prototípico. O nível de superfície comporta os significados atestados de ‘princípio epistemológico’, ‘qualidade’, ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’, que, de acordo com a ordem apresentada, vão do mais próximo ao mais longínquo do significado prototípico.

Palavras chave: derivação, estrutura semântica, polissemia, significado, sufixo –ismo.

 

ABSTRACT

With the analysis of Portuguese names in –ismo, held in the framework of lexical morphology, is possible to identify suffix attested meanings and typology of the bases selected by the suffix. These elements enable the identification of the suffix as a polysemous unit as well as the analysis of its semantic structure, the core of this work. The suffix –ismo is analyzed as a polysemous unit whose different meanings are organized according to prototype theory. This analysis rests on meaning conception of Cognitive Linguistics and Conceptual Semantics. Thus, it is possible to recognize the complex semantic structure of –ismo, organized on two levels. The underlying level carries the seminal values of quality and systematicity; being quality the prototypical meaning. The surface level comprises the attested meanings ‘epistemological principle’, ‘quality’, ‘practice’, ‘attitude’, ‘phenomenon’ and ‘locution’, which according to the order presented, go to the nearest to the more distant from the prototypical meaning.

Keywords: derivation, semantic structure, polysemy, meaning, suffix –ismo.

 

Introdução

Em língua portuguesa, os nomes em –ismo apresentam uma grande diversidade semântica, aparentemente atribuível à espessura semântica do sufixo. Para aferir este pressuposto, o trabalho que se apresenta procura analisar os significados atestados nos nomes derivados por meio de -ismo por forma a que se possa compreender o perfil semântico do sufixo, confirmando a existência de uma estrutura semântica complexa e, portanto, da polissemia de –ismo. Ao confirmar-se a hipótese de polissemia do sufixo, torna-se necessário avançar para a compreensão e descrição de como os diversos significados funcionam no seu interior. Uma unidade polissémica não integra, desorganizadamente, um conjunto de significados, pelo contrário, assume-se que esses significados coabitam porque se relacionam, sendo portanto necessário determinar as linhas de relacionamento das diferentes significações, pelo que se recorrerá à teoria do protótipo.

Enquadrando a análise num conceito de significado devedor da Semântica Cognitiva (Geeraerts 2006b, Langacker 2006) e da Semântica Conceptual (Jackendoff 2010), é possível estabelecer um quadro descritivo que coerentemente, numa estrutura do protótipo (Cruse 2004, Geeraerts 2006a e 2006b), reflita a complexidade semântica de –ismo; esta complexidade é observável através dos significados atestados nos seus derivados. A estrutura derivacional dos nomes em –ismo, que fornecerá os dados sobre os quais trabalharemos, é concebida dentro da morfologia lexical (Corbin 1987, Rio-Torto 1998).

Inicia-se o trabalho com a apresentação do quadro teórico que sustenta a análise empreendida (1.). Proceder-se-á à exposição das linhas fundamentais da morfologia lexical (1.1.), dentro da qual o trabalho se desenrola e dentro da qual se realizaram trabalhos relevantes para o estudo do sufixo –ismo e que simultaneamente serão expostos. Conclui-se a exposição do quadro teórico com a dilucidação do conceito de significado que sustenta o trabalho e que foi tomado da Semântica Cognitiva e da Semântica Conceptual (1.2.).

Segue-se uma exposição dos significados atestados dos nomes em -ismo (2.), uma vez que esses dados servirão de base ao trabalho a realizar, e dos tipos de base encontradas nesses nomes (3.) porque também eles fornecem dados relevantes para o trabalho a realizar.

Por último, procede-se ao estudo da estrutura semântica de –ismo (4.), entendido como unidade polissémica. Nesta medida, determinar-se-á o significado central do sufixo (4.1.), bem como os significados periféricos (4.2.), dados que permitem definir a estrutura semântica do sufixo (4.3.).

1. Quadro teórico

1.1. O que se sabe sobre os nomes em –ismo

Os nomes em –ismo têm sido consensualmente associados à formação de nomes de sistemas, crenças, princípios, doutrinas e fenómenos linguísticos (Piel 1940, Ali 1964, Câmara 1976). Mais recentemente o estudo deste sufixo foi enquadrado no modelo associativista de formação de palavras e é dentro desse modelo que se desenrola a análise do mecanismo genolexical de –ismo. Ao adotar-se um modelo associativista do processo de formação de palavras, deve manter-se em mente a sua complexidade e o contributo prestado pelos vários intervenientes para a formação de novas palavras. Corbin sintetiza do seguinte modo este modelo:

l’application d’une RCM associe intimement la construction d’une structure morphologique et celle d’une structure sémantique: le mot construit se voit attribuer un ensemble de propriétés d’ordre syntaxique, morphologique, formel, sémantique, par la RCM et l’opération morphologique qu’il subie. (Corbin 1987: 469)

Tomam-se, portanto, em consideração as prestações morfológicas e semânticas do sufixo, da base e da regra que permitem gerar a palavra. Desta forma se constroem as estruturas morfológica e semântica das palavras complexas. Esta proposta tem sido desenvolvida e aplicada à língua portuguesa em trabalhos mais recentes que os já referidos. Em alguns desses trabalhos o sufixo –ismo é contemplado. Referimo-nos a Correia (1999 e 2004), Rio-Torto (1992 e 1998), Rio-Torto & Anastácio (2004) e Barbosa (2012).

Nestes trabalhos procede-se ou recorre-se ao enquadramento dos afixos em paradigmas, as Regras de Formação de Palavras, RFP. Estabelecer esse enquadramento possibilita a formalização de determinadas regularidades procedimentais, como as que dizem respeito ao tipo de operadores afixais, à operação semântica realizada, à tipologia das bases, à categoria gramatical do produto e ao seu significado. Nas palavras de Rio-Torto:

É, pois, da conjugação de determinado tipo semântico de base e de determinado afixo que decorrem significações convencionais que caracterizam os produtos de uma regra e as variantes que esta recobre. Só a consideração destes dois factores permite reconhecer o estatuto das regularidades semânticas e/ ou das significações convencionais que os derivados apresentam. (Rio-Torto 1998: 123)

Dentro deste quadro teórico, a autora enquadra o sufixo –ismo na RFP ESSIV, a regra que permite gerar nomes essivos a partir de bases geralmente adjetivais, mas que também podem ser “um nome (...), atributivamente considerado” (Rio-Torto 1998: 122). Os nomes essivos “são parafraseáveis por “o facto de ser x”, “propriedade/qualidade de ser x”” (Rio-Torto 1998: 122).

Numa leitura muito próxima, Correia enquadra os nomes em –ismo nos nomes de qualidade, tendo por paráfrase “o facto de ser objectivamente X” (Correia 2004: 294) e acoplando-se a bases adjetivais.

O trabalho de Barbosa (2012), devedor dos anteriores e que aqui será seguido de perto, afasta-se deles ao considerar que “o fator que melhor permite descrever as bases de –ismo é de natureza semântica e que percorre transversalmente as categorias de nome, adjetivo e verbo” (Barbosa 2012: 336) secundarizando a relevância do valor categorial das bases para o comportamento derivacional de –ismo.

Em suma, considera-se que as palavras construídas são estruturas formal e semanticamente complexas, devedoras de informações contidas nos diversos intervenientes do processo genolexical. Neste quadro, o sufixo –ismo é considerado como um dos sufixos formadores de nomes essivos (Rio-Torto 1998) ou nomes de qualidade (Correia 1999, 2004).

1.2. Que significado?

O trabalho dentro do modelo associativista de formação de palavras será conciliado com a conceção de que a construção do significado das palavras se reveste de contornos mais complexos do que os que a exposição supra pode levar a supor. De facto,

temos que abandonar o princípio da composicionalidade (estrita). O significado de uma expressão complexa não é simplesmente nem necessariamente a soma (função composicional) dos significados das suas partes mais as regras de combinação que derivam directamente delas; isto é, uma estrutura pode apresentar características não derivadas dos seus constituintes ou pode perder características que estes possuem (Silva 2010: 359)

Ao longo deste trabalho, na linha da Semântica Cognitiva, o significado é concebido como um constructo resultante de um processo de conceptualização, “Meaning is equated with conceptualization” (Langacker 2006: 30). Desta forma, o significado de uma unidade decorre sempre da atividade mental dos indivíduos e não, exclusivamente, de fatores linguísticos. É precisamente este pressuposto que leva Jackendoff a apresentar a Semântica Conceptual como “a theory of the information in a language user’s mind/ brain that is involved in understanding utterances, connecting them to perceptual evidence, and making inferences” (Jackendoff 2010: 655). Neste quadro, “Word meanings must be composite in order to encode relations among word meanings and in order to state properly general rules of inference” (Jackendoff 2010: 657). O significado das unidades constrói-se por fios informativos flexíveis e conceptualmente concebidos e articulados.

Deve então entender-se o significado como uma entidade dinâmica e flexível que se alcança por mecanismos de conceptualização. Na realidade, deve ser entendido não tanto como uma entidade mas sobretudo como um processo de criação de sentido, “The tremendous flexibility that we observe in lexical semantics suggests a procedural (or perhaps ‘processual’) rather than a reified conception of meaning; instead of meanings as things, meaning as a process of sense creation would seem to become our primary focus of attention” (Geeraerts 2006b: 137). Portanto, considera-se o significado como um processo de criação de sentido, dinâmico e flexível, que se realiza por meio de mecanismos conceptuais e de diversos fios informacionais.

Os trabalhos referidos para a conceção de significado centram-se principalmente no significado da palavra. Contudo, estas conceções podem ser transpostas para o nível dos afixos que podem ser entendidos como unidades semanticamente complexas, “À semelhança de um item lexical, também um sufixo derivacional tende a exibir um conjunto de sentidos conceptualmente relacionados entre si pelos mesmos mecanismos cognitivos” (Silva 2006: 241). Como se verá, o sufixo –ismo exemplifica bem o nível de complexidade semântica passível de ser encontrado nas unidades afixais.

2. Os dados: os significados atestados dos nomes em –ismo

A análise semântica do sufixo –ismo que se empreende parte da observação dos significados encontrados nos nomes por ele derivados. Como referido, estes nomes não se constituem como o objeto de estudo do presente trabalho, mas sim como o seu ponto de partida, fornecendo os dados iniciais para a análise a desenvolver. A observação das diferentes significações atestadas nos nomes derivados fornecerá as informações necessárias para a análise da configuração semântica de –ismo, sendo este o foco de estudo. Como significados atestados nos nomes portugueses em –ismo encontramos os seguintes:

 

Quadro 1: Significados atestados dos nomes em –ismo

Significados

Exemplos

‘qualidade’

amadorismo, amorfismo, camaleonismo, catonismo, poliglotismo

‘princípio epistemológico’

jacobinismo, luteranismo, molinismo, pancalismo, transformismo, vulcanismo

‘prática’

[1]

canibalismo, deambulismo, gregarismo, onanismo, tabaquismo

‘práxis’

cateterismo, dialogismo, divisionismo, pontilhismo, tantrismo

‘prática profissional’

faquirismo, funambulismo, ilusionismo, modelismo

‘prática desportiva’

alpinismo, hipismo, pára-quedismo

‘modo de vida’

bandoleirismo, inquilinismo, missionarismo, nomadismo

‘atitude’

benfiquismo, companheirismo, eleitoralismo, estrelismo, fanatismo, liberalismo, orientalismo, servilismo

‘fenómeno’

[2]

endomorfismo, galvanismo, magmatismo, microbismo, paralelismo

‘intoxicação’

alcalinismo, anilismo, barbiturismo, cantaridismo, nicotinismo, saturnismo

‘fenómeno patológico’

adenóidismo, albinismo, ananismo, daltonismo, gigantismo, traumatismo, tromboembolismo, uterismo

‘locução’

brasileirismo, galicismo, grecismo, italianismo, latinismo

 

Os significados apresentados no Quadro 1 tomam por referência o estudo realizado em Barbosa (2012), trabalho onde se procedeu ao levantamento dos nomes em –ismo atestados na edição de 2006 do Dicionário da Porto Editora complementados com fontes online avulsas. A análise da significação de cada um dos nomes sustenta-se na informação dicionarística complementada e/ou corroborada com a informação fornecida pela observação da palavra em contextos de uso. Estes contextos foram significativamente fornecidos pelo CETEMPúblico e, sempre que este se revelou insuficiente, por diversas outras fontes online.

2.1. Nomes de qualidade

O primeiro significado apresentado para os nomes em –ismo é o de ‘qualidade’. Nomes como os exemplificados no Quadro 1 são considerados formas de denominação de uma qualidade porque “se caracterizam pelo facto de serem substantivos predicativos, sincategoremáticos, não-contáveis, polissémicos, denominando entidades referencialmente dependentes e com ocorrências múltiplas” (Correia 1999: 140). Efetivamente, as propriedades evocadas nesses nomes apenas são observáveis nas entidades que as apresentam, pelo que não podem ser contadas e prestam-se a atualizar valores semânticos além do de ‘qualidade’. Tome-se como exemplo camaleonismo, nome para o qual se encontram os seguintes significados: “zoologia faculdade de certos animais, entre eles o camaleão, de mudarem bruscamente de pigmentação” (DPE 2006); “A justificação que dá para este camaleonismo militante tem o mérito de não esconder nada” (CETEMPúblico par=ext911942-nd-93b-2).

Neste nome, a entidade denominada, ‘a faculdade de mudar a cor da pigmentação da pele de acordo com o ambiente circundante’, é observável apenas nas suas ocorrências, dependendo delas para existir e ser observável, por conseguinte, apenas essas ocorrências, e não a faculdade em si, são suscetíveis de ser contadas. A segunda citação apresentada mostra a capacidade polissémica deste nome, que, partindo da denominação de uma propriedade morfológica de certos animais, consegue passar para a denominação de um traço psicológico, a capacidade de mutação atitudinal e de caráter aplicável a indivíduos caracterizáveis como humanos.

Seguindo a proposta de Rio-Torto (1998), estes nomes podem ser enquadrados na RFP ESSIV, apresentando as seguintes paráfrases para o seu significado: ‘o facto de ser x’ ou ‘propriedade/qualidade de ser x’ (Rio-Torto 1998: 122), sendo que x representa a base predicativa.

2.2. Nomes de princípio epistemológico

Como segundo significado apresentado no Quadro 1, encontra-se o de ‘princípio epistemológico’. Esta designação procura cobrir aquele que, em língua portuguesa, é provavelmente o significado mais imediatamente associado aos nomes em –ismo, ou seja, aquele que permite fazer a denominação de sistemas, doutrinas, teorias, ideologias, conceções, escolas, correntes, movimentos, etc. Muitos dos nomes em –ismo que apresentam esta significação são enquadráveis em linguagens técnicas e de especialidade, comportando um significado que pode requerer conhecimentos específicos dentro da área do conhecimento em questão para ser cabalmente compreendido. Tome-se o nome vulcanismo como exemplo:

1 GEOLOGIA conjunto de fenómenos vulcânicos; 2 geologia teoria que pretende explicar as causas das manifestações vulcânicas; 3 geologia hipótese que atribui ao fogo a formação da primitiva crusta terrestre; 4 geologia expulsão de lavas fundidas, fragmentos de lavas e gases, das partes profundas da Terra; plutonismo; 5 [fig.] erupção calamitosa (DPE 2006)

2.3. Nomes de prática

Este significado comporta uma dimensão acional, isto é, os nomes de prática pressupõem a realização continuada de determinada ação, denominando “um hábito, um uso, um costume, uma atividade ou o estudo sobre determinado assunto, uma vez que todos partilham precisamente a ideia de realização ou prática regular de determinada ação” (Barbosa 2012: 210211). Apresenta-se como exemplo o nome canibalismo, isto é, a prática recorrente do consumo de carne humana, como claramente se atesta na sua definição: “1 hábito de comer carne humana; antropofagia; 2 acto de um animal comer outro da mesma espécie” (DPE 2006).

O conceito de prática impõe a consideração das suas diferentes manifestações e realizações, resultantes em práticas específicas. Assim, é possível pensar numa prática sujeita a um modus operandi específico, numa prática associada a um desporto, a uma atividade profissional ou mesmo a um modo de vida. Ao considerar estas diferentes manifestações ou aceções de ‘prática’ definem-se subgrupos de nomes de prática que especificam as variantes identificadas. Por esta via se reconhece a especificidade dos nomes de práxis, dos nomes de prática profissional, dos nomes de prática desportiva e dos nomes de modo de vida.

2.3.1. Nomes de práxis

Estes nomes, enquadrando-se nos de prática mas apresentando especificidades, denominam um tipo de prática continuada que leva a ou requer o desenvolvimento ou utilização de uma técnica, método ou procedimento específicos. Trata-se de um tipo de prática para a realização do qual é necessário um desempenho específico e, de certa forma, regulamentado, pelo que o seu exercício requer algum nível de aprendizagem, de formação, de treino. Exemplifica este tipo de significado o nome tantrismo: “técnica de coordenação subtil entre a mente e o corpo humanos inspirada nos livros esotéricos hindus” (DPE 2006). Portanto, uma prática que só se alcançará depois de alguma aprendizagem e treino. A prática de tantrismo requer um conjunto de conhecimentos e treinos reiterados que levam à utilização de determinadas práticas e técnicas. Estes requisitos permitem a diferenciação do tantrismo relativamente a outras práticas de coordenação.

2.3.2. Nomes de prática pro?ssional

Também em língua portuguesa estes nomes identificam uma prática com condicionantes específicas no que toca às suas finalidades, bem como no que toca a modos, locais e momentos de execução. Deste facto decorre que o exercício de determinada prática profissional só possa ser assegurado por quem tenha desenvolvido as apetências necessárias à sua execução, isto é, por um profissional. Estes nomes foram definidos como constituindo a:

atividade principal realizada por um indivíduo e que serve como sua principal ou única fonte de rendimento, assumindo, por essa razão, um certo caráter de obrigatoriedade. Este caráter obrigatório decorre da necessidade que o indivíduo tem de garantir uma fonte de rendimento. O exercício da atividade em questão decorre de necessidades individuais, ainda que as normas desse exercício não sejam determinadas pelo próprio indivíduo mas antes resultem de uma imposição externa. Outro aspeto que ajuda a definir estes nomes é o facto de a ‘atividade profissional’ ser exercida não de forma permanente e continuada ao longo do dia, mas em horário e/ou local previamente definido(s) (Barbosa 2012: 215)

Os nomes de prática profissional podem ser exemplificados através do nome ilusionismo: “1 arte de produzir ilusões; 2 prática artística assente na ligeireza dos movimentos (principalmente de mãos) capazes de fazer desaparecer ou deslocar objectos sem que o espectador dê por isso; prestidigitação” (DPE 2006). Esta atividade só poderá ser exercida por quem detiver os conhecimentos necessários e em circunstâncias e local específicos.

2.3.3. Nomes de prática desportiva

Os nomes de prática desportiva denominam uma atividade “secundária do indivíduo, praticada de livre vontade, ou seja, sem qualquer caráter de obrigatoriedade ou de necessidade, além do que se assume de livre-vontade e por lazer e que não é imposta ao indivíduo por qualquer causa externa” (Barbosa 2012: 214-215). Tal como nos nomes de prática profissional, estas práticas requerem apetências específicas. Diferem dos anteriores nomes por apresentarem distinta finalidade, o lazer, e por serem praticadas sem caráter de obrigatoriedade. Veja-se como exemplo o nome alpinismo: “desporto que consiste em ascensões às grandes altitudes” (DPE 2006), cuja prática não é sujeita a imposição e que se realiza de livre vontade.

2.3.4. Nomes de modo de vida

Por ‘modo de vida’, considera-se um conjunto de práticas voluntariamente adotadas pelo indivíduo que definem e caracterizam a totalidade da sua vivência, não podendo ser limitadas a circunstâncias ou momentos (pré-) definidos. Deste modo, os nomes de modo de vida denominam um tipo de vivência que permite definir um indivíduo e que condiciona todos os aspetos dessa vivência. Por exemplo, o nome nomadismo, “1 modo de vida dos nómadas; 2 modo de vida de quem está sempre a mudar de habitação ou ocupação; modo de vida de pessoa errante” (DPE 2006), denomina muito mais do que uma atividade do indivíduo, denomina toda uma postura e conjunto de opções que se infiltram e refletem em todos os aspetos da vida desse indivíduo.

2.4. Nomes de atitude

Os nomes de atitude denominam uma postura afetiva e/ou intelectual assumida pelo indivíduo perante uma determinada circunstância. A ‘atitude’ reconhece-se por um conjunto de manifestações exteriores visíveis no comportamento, na postura, na maneira de ser do indivíduo. Há que sublinhar o facto de estes nomes não denominarem uma ação, mas sim o que, de inerente ao indivíduo, impele a essa ação. Insere-se neste grupo de nomes

o nome companheirismo, cujo significado se pode entender pela leitura da seguinte frase: “O conhecimento de África e dos africanos, o companheirismo existente entre combatentes brancos e negros era vacina mais do que suficiente contra o racismo” (CETEMPúblico par=ext48608-nd-95a-1). A ‘atitude’ denominada constitui-se como algo subliminar, observável através de um conjunto de comportamentos, posturas, gestos, etc. assumidos por quem tem determinada atitude.

2.5. Nomes de fenómeno

Em Barbosa (2012) apresenta-se a seguinte explicação para o que se entende por nomes de fenómeno: “Certos factos, acontecimentos e ações (voluntários ou não) resultam na transformação da entidade sobre a qual ocorrem. Os nomes em –ismo que denominam um ‘fenómeno’ são então aqueles que têm a capacidade de denominar o resultado ou consequência da ação exercida.” (Barbosa 2012: 224). Estes fenómenos estão frequentemente enquadrados em determinada área do conhecimento, veja-se o exemplo de paralelismo:

1 GEOLOGIA modificação da composição do magma, em resultado da assimilação de rochas provenientes do exterior ou de reacções com as rochas encaixantes; 2 matemática transformação linear de um espaço vectorial em si mesmo e, mais geralmente, um hemomorfismo de um conjunto (grupóide, grupo) em si mesmo (DPE 2006)

Nas suas diversas aceções, o nome é enquadrável em distintas áreas do conhecimento apresentando, em cada uma delas, um ‘fenómeno’ específico, cujo cabal entendimento requer um mais vasto conhecimento dentro dessa mesma área.

Em suma, estes nomes denominam acontecimentos, transformações, factos verificados e suscetíveis de ser observados, estudados.

Dentro dos nomes de fenómeno é possível recortar dois subgrupos, definidos pela especificidade do fenómeno denominado, os nomes de intoxicação e os nomes de fenómeno patológico.

2.5.1. Nomes de intoxicação

Destacando-se dos nomes de fenómeno, os nomes de intoxicação denominam a alteração do estado normal do indivíduo, com consequências negativas, desencadeada pela ação tóxica de determinada substância. Nestes nomes encontra-se nicotinismo, “medicina intoxicação devida ao abuso do tabaco; tabagismo” (DPE 2006); a denominação de todas as consequências negativas ou prejudiciais à saúde associadas ao consumo de uma determinada substância.

2.5.2. Nomes de fenómeno patológico

Igualmente recortados dos nomes de fenómeno, os nomes de fenómeno patológico denominam uma perturbação morfológica e/ou do regular funcionamento do organismo, independentemente das manifestações que apresenta e das suas causas. Ilustra este tipo de nomes o nome albinismo: “1 medicina anomalia orgânica que consiste na diminuição ou falta total de pigmento em zonas superficiais do corpo” (DPE 2006).

2.6. Nomes de locução

O último valor semântico identificado nos nomes em –ismo é o de locução, ou seja, a capacidade destes nomes para denominarem uma palavra ou expressão que apresenta relação com uma determinada região linguisticamente considerada. Neste grupo de nomes enquadra-se italianismo: “locução própria de Itália” (DPE 2006).

Em português, os nomes derivados por meio do sufixo –ismo apresentam uma enorme variedade semântica, de tal forma que a relação entre os significados apresentados não é evidente. Por esta razão, o maior desafio que os dados até aqui expostos colocam é o de compreender de que modo os significados identificados e expostos estão relacionados com a mesma unidade linguística, o sufixo –ismo. Tomou-se como ponto de partida a consideração de que esses significados residem inicialmente no sufixo e que será este a transportá-los para o nome derivado. A tarefa consiste, portanto, em compreender como esses significados se relacionam no interior do sufixo.

3. Os dados: as bases selecionadas por –ismo

Como anteriormente referido, o ponto central do presente trabalho não consiste no estudo genolexical do sufixo –ismo, contudo, este mecanismo não pode ser esquecido. Tal como preconizado pelo modelo associativista adotado, a análise dos nomes em –ismo revelou que a dimensão semântica das bases e do sufixo desempenha um papel determinante nos mecanismos genolexicais de produção destes nomes. Em Barbosa (2012) demonstra-se precisamente a relevância da informação semântica presente nas bases para determinar a sua seleção por –ismo. O trabalho referido, e cuja linha de pensamento se adota, procura demonstrar que a informação semântica presente na base é de tal modo relevante que tem capacidade de secundarizar outros habituais critérios de seleção de bases como o da classificação categorial.

Ao articular a análise da significação dos nomes em –ismo com a significação das bases selecionadas foi possível determinar regularidades e traços comuns às bases. Do ponto de vista categorial as bases revelaram-se heterogéneas, selecionando adjetivos, nomes, adjetivos/nomes[3] e verbos, mas foi possível aferir regularidades semânticas. Assim, tal como demonstrado em Barbosa (2012), independentemente da sua classificação categorial, a base constitui-se por um conjunto de predicados/atributos/propriedades/ qualidades dos quais o sufixo selecionará o(s) que mais adequadamente se presta(m) à construção do significado do nome derivado.

a base derivacional de –ismo pode definir-se como sendo semanticamente complexa, na medida em que comporta um feixe de predicados/atributos/ qualidades/propriedades, habitualmente associados às categorias predicativas, mas que não podem ser considerados alheios do processo denominativo. Categorialmente, e de modo não fundamentalmente relevante para o sufixo, as bases podem apresentar-se como adjetivo ou nome. (Barbosa 2012: 193)

Conclui-se então que a base de –ismo é selecionada por comportar um predicado/atributo/propriedade/qualidade sobre a qual o sufixo aplicará a sua instrução semântica. Se a base se caracteriza por considerável complexidade semântica, na medida em que é constituída por diversos feixes informacionais, o sufixo tem de deter capacidade para selecionar apenas o tipo de informação que a cada passo lhe é necessário para construir o significado do produto. Desta operação resultará o significado do nome em –ismo.

Contudo, a importância do valor predicativo da base não é igual para todos os significados. Este valor é fundamental para formar nomes de qualidade. A paráfrase de amadorismo será ‘propriedade/qualidade de ser amador’, portanto os predicados/atributos/propriedades/qualidades que constituem o semantismo da base são fundamentais para a construção do significado do nome. O mesmo não acontece, por exemplo, com os nomes de fenómeno patológico; em uterismo, a base não é tomada pelo seu valor predicativo, mas pela sua capacidade referencial em relação a um órgão.

Apesar de a configuração da base como predicado/atributo/propriedade/qualidade não se revestir de igual importância para todos os significados de –ismo, devemos assumir este traço da base como o seu valor fundamental para ser selecionada pelo sufixo. De facto, os nomes que se comportam como uterismo são escassíssimos, sendo o comportamento idêntico ao de amadorismo o que caracteriza a quase totalidade dos nomes.

4. Su?xo –ismo: uma unidade semanticamente complexa

Ao observar o significado dos nomes portugueses em –ismo encontra-se uma considerável dispersão semântica na medida em que se recolhem significações muito díspares e com graus de abstração muito distintos. O desafio colocado por estes nomes consiste em compreender de que modo o sufixo sustenta essa dispersão semântica, evitando uma desagregação/ desestruturação semântica que poderia levar a considerar a existência de mais do que um sufixo; essas unidades afixais teriam de ser formalmente idênticas mas semanticamente distintas.

O enquadramento do sufixo numa RFP contribui para prevenir a sua desestruturação semântica mas não é suficiente. Apenas a consideração da complexidade semântica de sufixo será capaz de explicar a sua capacidade para produzir nomes portadores dos significados já apresentados. A ancoragem dos significados a uma unidade afixal implica que estejam conceptualmente relacionados.

Nas secções anteriores verifi u-se a grande variedade semântica encontrada nos nomes em –ismo e o facto de as suas bases se caracterizarem por comportarem um determinado predicado/atributo/propriedade/qualidade que se articulará com a informação semântica do sufi o para gerar o signifi do nome derivado. A questão consiste agora, como se vem afirmando, em determinar a origem da variedade semântica encontrada nesses nomes e esta origem só pode residir no sufi o. Sendo assim, os signifi encontrados nos nomes em –ismo estarão todos inscritos no sufi o, pelo que deverá ser considerado uma unidade semanticamente complexa. Esta consideração afasta-se de trabalhos como os de Rio-Torto (1992 e 1998) e Correia (1999 e 2004) que propõem que essa diversidade surja ao nível dos nomes em –ismo.[4]

Na sequência dos significados apurados para os nomes em –ismo, considera-se que o sufixo comporta os seguintes significados:

1. ‘qualidade’

2. ‘princípio epistemológico’

3. ‘prática’

3.1. ‘práxis’

3.2. ‘prática profissional’

3.3. ‘prática desportiva’

3.4. ‘modo de vida’

4. ‘atitude’

5. ‘fenómeno’

5.1. ‘intoxicação’

5.2. ‘fenómeno patológico’

6. ‘locução’

Esta variedade semântica sugere que os significados possam não ser relacionáveis e essa impossibilidade de relacionamento semântico conduziria precisamente à desarticulação semântica que encaminharia, inevitavelmente, para a consideração de mais do que um sufixo –ismo. Tratar-se-ia, então, de sufixos formalmente idênticos mas semanticamente distintos. Contudo, e seguindo trabalhos como os de Rio-Torto (1998) ou Correia (2004), rejeita-se a hipótese de mais do que um sufixo. Tal como as autoras, considera-se que um significado de base poderá, por diversos mecanismos, sofrer inflexões. A análise que se faz diverge da das autoras por considerar que essas inflexões ocorrem no interior do sufixo, o que lhe permitirá gerar a diversidade semântica encontrada nos seus derivados.

Imputando a diversidade semântica dos nomes ao sufixo –ismo, assume-se que se trata de uma unidade semanticamente complexa e estruturada, ou seja, uma unidade polissémica, entendendo-se a polissemia como

um fenómeno de motivação, que introduz uma certa redundância no léxico mental, ao passo que a homonímia é um fenómeno acidental. O que daqui se pode concluir é que polissemia e homonímia não constituem uma dicotomia estrita, mas antes fazem parte de um continuum de relação de sentidos. E metodologicamente (...) uma análise polissémica será preferível a uma análise homonímica sempre que se encontrarem factores de coerência semântica num complexo de sentidos associados a uma mesma forma (Silva 2006: 49)

A citação apresentada pressupõe a capacidade de encontrar entre os diferentes significados conexões lógicas, portanto, os significados de uma unidade polissémica são relacionáveis. Efetivamente, “it is only with the advent of prototype theory that contemporary linguistics developed a valid model for the polysemy of lexical items” (Geeraerts 2006a: 144), modelo que permitirá a organização dos diversos significados dentro de uma estrutura semântica complexa. Como se verá, os significados apresentados para –ismo são relacionáveis, o que permite afirmar que o sufixo configura um caso de polissemia. Este conceito é habitualmente aplicado no estudo do significado de palavras, e não a unidades afixais, contudo “we should expect the polysemy we find in affixes to be a proper subset of regular polysemy” (Lehrer 2003: 217). Esta afirmação decorre do pressuposto assumido pela autora de que “A study of derivational affixes in English will show that polysemy is the norm and that few affixes have only one sense.” (Lehrer 2000: 144). Acredita-se ser este o caso do sufixo –ismo, uma unidade afixal que comporta distintos significados conceptualmente relacionados.

No interior da unidade polissémica, o peso relativo dos diversos traços ou feixes informacionais difere: “categories with a prototype structure are represented by a set of features. Unlike the classical features, however, these do not constitute a set of necessary and sufficient criteria, except perhaps for the prototype itself ” (Cruse 2004: 132). Por isso, ao assumir a polissemia de –ismo, impõe-se explicar de que modo os significados encontrados coabitam e como se organizam. Explicar o modo de coabitação e organização é fundamental para sustentar a polissemia do sufixo.

Parte-se então do princípio de que, embora de modo não explícito na significação dos nomes em –ismo, os significados atestados encontram uma relação constante ao nível do sufixo. Esta relação entre os diferentes significados decorre de mecanismos conceptuais, portanto o significado do sufixo deve ser visto como complexo e organizado. A chave para esta organização reside na noção de prototipicidade, isto é, no estabelecimento de um significado central para a significação do sufixo e a partir do qual se definem os restantes com maior ou menor grau de proximidade. Esta conceção enquadra-se na teoria do protótipo, que prevê a existência de um significado prototípico em relação ao qual os restantes se localizam numa posição de maior ou menor proximidade ou saliência.

Para determinar a posição dos diferentes significados de –ismo, deve ter-se presente que “The essence of the prototype theory lies in the fact that it highlights the importance of flexibility (absence of clear demarcational boundaries) and salience (differences in structural weight) in the semantic structure of linguistic categories.” (Geeraerts 2006b: 74). Compreende-se a importância do conceito de significado adotado, ao concebê-lo como um processo que admite a fluidez entre diversos valores e se torna possível a consideração de diferentes graus de saliência entre esses valores e, portanto, do seu diferente peso para a estrutura semântica da unidade. Deste modo, “a questão tem a ver com a identificação das diferenças de saliência e dos efeitos de prototipicidade na estrutura do complexo polissémico. Quais os sentidos prototípicos e como os determinar? Poderá uma palavra possuir mais do que um centro prototípico?” (Silva 2006: 37).

Trabalhar o significado em termos de prototipicidade implica, em primeiro lugar, determinar o significado central (4.1.) a partir do qual, num segundo momento, se pode definir a localização dos restantes (4.2.). Estes dados permitirão estabelecer a estrutura semântica de –ismo (4.3.).

4.1. Su?xo –ismo: o significado central

Para compreender qual o significado central do sufixo português –ismo, levar-se-ão em linha de conta três critérios:

i) O grau de abstração dos significados do sufixo –ismo,[5] que surgirá em grau mais elevado no significado central;

ii) As bases selecionadas pelo sufixo são-no em função do seu valor predicativo, isto é, por comportarem um predicado/atributo/propriedade/ qualidade, seja qual for o significado atualizado pelo sufixo;

iii) O significado central será aquele a partir do qual se podem gerar os restantes.[6]

Analise-se em primeiro lugar o valor de abstração do sufixo –ismo. Ao observar o significado dos nomes em –ismo, destaca-se o facto de apresentarem graus de abstração significativamente distintos. Tal como Correia, considera-se que o valor de abstração é “uma forma de dar conta da própria polissemia dos substantivos em análise [nomes de qualidade]” (Correia 2004: 64). Como referido, contrariamente à posição da autora, acredita-se que a variedade semântica encontrada nos nomes decorre da polissemia do sufixo, portanto, o estudo que em seguida se empreende recai sobre a polissemia de –ismo.

A abstração é então concebida numa perspetiva gradativa que vai do mais abstrato ao menos abstrato:

a distinção entre substantivo concreto e substantivo abstracto não é tanto uma distinção a estabelecer em termos de ser ou não ser, mas sim em termos de graduação: há substantivos concretos usados de forma abstracta, tal como há substantivos abstractos usados de forma concreta (...) há substantivos abstractos mais abstractos do que outros (Correia 2004: 80)

Quando inicialmente se expuseram os significados atestados dos nomes em –ismo e os significados do próprio sufixo seguiu-se a ordem da posição que estes nomes adotariam numa escala de abstração. Essa escala revela que os nomes de qualidade ocupam o extremo máximo, sendo os mais abstratos, enquanto os nomes de locução se encontram no extremo oposto, sendo os menos abstratos. A localização dos nomes na escala de abstração decorre da localização que os significados do sufi o assumem nessa mesma escala. O Quadro 2 apresenta a localização dos significados de –ismo na escala de abstração, bem como exemplos de nomes em que são atualizados.

 

Quadro 2: Escala de abstração dos significados de –ismo e dos nomes que os atualizam

> abstração < abstração

Qualidade

Pr. Ep.

Prática

Atitude

Fen./Loc.

Caráter categoremático

-

-

-

-

+

Pluralização/quantificação

-

-

-

-

+

Caráter material

-

-

+

+

+

Localização espácio-temporal

-

+

+

+

+

Exemplos

amadorismo amorfismo catonismo

luteranismo pancalismo vulcanismo

canibalismo hipismo pontilhismo

estrelismo fanatismo servilismo

ananismo traumatismo galicismo

 

Os critérios utilizados para determinar o grau de abstração dos significados em –ismo e elaborar o Quadro 2 foram expostos em detalhe em Barbosa (2012). Apresenta-se aqui uma síntese.

O caráter categoremático, retirado de Correia (2004), é negativo nos nomes abstratos, que são por isso nomes sincategoremáticos. Estes nomes consideram-se sincategoremáticos uma vez que “A propriedade essencial dos nomes abstractos reside na sua dependência ontológica: para poderem referenciar necessitam de um suporte ou de um argumento” (Rio-Torto & Anastácio 2004: 213), ou seja, a sua capacidade referencial depende da manifestação da qualidade em determinada entidade. Já os nomes categoremáticos têm capacidade referencial (autónoma), como sucede com os nomes de fenómeno ou de locução.

O critério da pluralização/quantificação diz respeito ao facto de os valores mais abstratos tenderem a refutar a pluralização ou a quantificação de contagem[7] (*uns amorfismos, *uns luteranismos, *uns pontilhismos, *dois fanatismos). Os significados mais concretos, como os de ‘fenómeno’ e ‘locução’, tendem a aceitar quer a pluralização quer a quantificação de contagem (dois traumatismos). Poder-se-ia admitir a expressão dois fanatismos como forma de referência ao fanatismo religioso e ao fanatismo clubístico, por exemplo. Contudo, fanatismo religioso e fanatismo clubístico constituem duas entidades conceptual e referencialmente distintas só reconhecíveis pela adjetivação que acompanha o nome fanatismo. O cerne de significado partilhado pelas duas entidades é o signifi do nome de atitude fanatismo (obtido por um processo genolexical) e este, por si só, sem acréscimo de informações contextuais, tende a apresentar-se relutante à quantifi de contagem. O mesmo sucede com a pluralização; a expressão todos os fanatismos pressupõe diferentes manifestações de fanatismo, só discrimináveis por informações contextuais. A pluralização recai sobre essas manifestações e não sobre o significado obtido por meio do processo genolexical.[8]

A distinção entre os valores de ‘prática’ e os de ‘atitude’, por um lado, e os de ‘qualidade’ e os de ‘princípio epistemológico’, por outro, faz-se através do critério da materialidade: “dizer de um substantivo que é concreto significa dizer que a entidade que ele representa é concreta e que é perceptível por qualquer um dos sentidos” (Correia 2004: 65). Os valores de ‘prática’ e de ‘atitude’, enquanto entidades conceptuais, são observáveis, captáveis pelos sentidos, através das suas concretizações.

A ancoragem espácio-temporal de um ‘princípio epistemológico’ ao contexto histórico que o gera retira-lhe algum grau de abstração, afastando-o do grau máximo da escala de abstração. Pelo contrário, o valor ‘qualidade’ é totalmente independente destas duas coordenadas, o que lhe confere maior grau de abstração.

Os dados expostos colocam o significado de ‘qualidade’ no grau máximo de abstração. Esta posição permite assumir os restantes significados como formas de concreção desse significado mais abstrato. Assim, os diferentes significados de –ismo podem ser relacionados na escala de abstração através de um elemento comum, o valor de ‘qualidade’, em relação ao qual os restantes se situam a maior ou menor distância. Subliminarmente, este valor encontra-se em todos os outros significados.

Há um outro fator, já abordado, que deve ser considerado e que concorre para a atribuição da posição central a ‘qualidade’: o tipo de bases selecionadas pelo sufixo. Como referido, os nomes portugueses em –ismo formam-se sobre uma base que comporta um predicado/atributo/propriedade/qualidade com o qual o sufixo se articulará para produzir o significado do nome derivado. Este tipo de base caracteriza os nomes essivos, “A base «x» é um adjetivo ou um nome «atributivamente considerado»” (Rio-Torto 1998: 122) ou nomes de qualidade. Considerando a tipologia das bases, deve-se, mais uma vez, conceder a posição central ao valor de ‘qualidade’, já que a tipologia de bases identificada para o sufixo –ismo corresponde à base característica dos nomes de qualidade. Deste modo, mesmo os nomes em –ismo que não atualizam o valor de ‘qualidade’ apresentam o tipo de base que permite gerar nomes de qualidade. A ser assim, ‘qualidade’ constitui-se, mais uma vez, como um valor subliminarmente presente nos significados com menor grau de abstração.

O terceiro fator a levar em consideração para determinar que significado ocupa o lugar central na estrutura semântica de –ismo consiste na identifi ção do significado que tem capacidade para gerar novos significados.

Observando o Quadro 2 à luz do exposto, e como já avançado, compreende-se que os significados situados à direita do de ‘qualidade’ possam dele decorrer através de um mecanismo de perda de abstração. A obtenção de significados por mecanismos de concreção é uma estratégia reconhecida, nomeadamente no que diz respeito aos nomes de qualidade:

Por médio de transferencias o extensiones semánticas, el sustantivo de cualidad puede expresar, en coexistência con el significado regular “cualidad de”, otros significados derivados de él. Así, en una determinada dirección, del significado “propriedad/cualidad de (ser) A” se puede passar a los significados:

(5) a) “actitude de (quien es) A” [...]

b) “acción de (quien es) A” [...]

c) “acto proprio de (quien es) un S (Pena 2004: 10)

Ao articular a informação fornecida pelos dados expostos, é-se levado a reconhecer a centralidade de ‘qualidade’. Esta capacidade de gerar novos significados articula-se com o que se disse em relação à perda de valor de abstração, tendo como referência um grau máximo de abstração representado por ‘qualidade’.

Assim, passar-se-á a considerar que em português o sufixo –ismo comporta como valor semântico central e subjacente o de qualidade. Este significado é detentor do mais elevado grau de abstração, requer uma base que apresente um predicado/atributo/propriedade/qualidade e tem capacidade para gerar os restantes significados. Estes dados levam à consideração de que qualidade se encontra num nível subjacente da estrutura semântica do sufixo, funcionando como um codificador genético suficientemente rico e versátil para possibilitar as diferentes atualizações que se encontram atestadas nos nomes em –ismo: ‘qualidade’, ‘princípio epistemológico’, ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’.

4.2. Su?xo –ismo: os significados periféricos

Uma vez estabelecido o significado prototípico de –ismo, é possível determinar que posição ocupam, em relação a ele, os restantes significados. Os critérios que permitem definir o lugar ocupado por cada significado são os mesmos que possibilitaram a identificação de qualidade como significado prototípico.

Mais uma vez, a compreensão de como o valor de abstração se comporta no interior do sufixo será esclarecedora para determinar a posição desses significados, por isso, mais uma vez, recorremos ao Quadro 2.

O quadro apresenta os diferentes significados numa posição determinada pelo grau de abstração, apresentado à esquerda o significado com maior grau de abstração e à direita o significado com menor grau de abstração. Os significados localizados à direita podem ser entendidos como formas de conceptualização, detentoras de maior ou menor grau de abstração, que se elaboram sobre um determinado predicado/atributo/propriedade/ qualidade fornecido pela base. Estes significados comportam o valor de qualidade como um codificador genético e apresentam, em relação a ele, menor grau de abstração.

O comportamento das bases, como já referido, não é igual para todos os significados do sufixo. O valor de predicado/atributo/propriedade/qualidade das bases é fundamental para gerar nomes de qualidade e, embora se encontre nos nomes de fenómeno e de locução, não lhes é indispensável. Verifica-se, portanto, que a escala que revela a perda do grau de abstração coincide com uma escala que apresentaria perda do grau de importância do valor de predicado/atributo/propriedade/qualidade para a seleção da base. Para os significados à esquerda, os mais abstratos, esse valor é fundamental, mas para os significados situados no extremo oposto, os menos abstratos, esse significado pode não se configurar como imprescindível.

Em síntese, os significados ‘qualidade’, ‘princípio epistemológico’, ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’ representam diferentes graus de especialização do significado prototípico de qualidade, que se encontra em posição subjacente. Os diferentes graus de especialização alcançam-se por mecanismos de concreção e por adequação da informação semântica do sufixo e da base. Sendo assim, o significado ‘qualidade’ é o que se encontra mais próximo do centro. Os restantes significados ‘princípio epistemológico’, ‘prática’ e ‘atitude’ vão-se afastando do centro até ao extremo mais longínquo ocupado pelos significados ‘fenómeno’ e ‘locução’.

4.3. Su?xo –ismo: determinação da estrutura semântica

Observou-se como os significados identificados nos nomes em –ismo se configuram como instanciações mais concretas de um significado seminal e com elevado grau de abstração, o de qualidade. Contudo, deve reconhecer-se a existência de constantes semânticas não imputáveis a esse valor seminal.

A análise dos significados atestados leva-nos a identificar um segundo valor que embora só possa residir a nível seminal, se revela fundamental para a estrutura semântica de –ismo, o de sistematicidade. Este valor também se constitui como um codificador genético de nível subjacente, a par do de qualidade. É impossível não reconhecer a sua participação como um dos feixes informativos para a construção de significados como ‘princípio epistemológico’, ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’. Um ‘princípio epistemológico’ resulta da organização em sistema de determinados predicados/atributos/propriedades/qualidades da base, pelo que contém em si em grau máximo o valor de sistematicidade. Os restantes significados atestados também o apresentam, ainda que em grau variável. Uma ‘prática’ requer que os predicados/atributos/propriedades/qualidades da base sejam realizados de forma reiterada de acordo com um sistema ou fórmula de regulamentação. Um ‘fenómeno’ implica que os predicados/ atributos/propriedades/qualidades que o caracterizam se manifestem de forma sistemática. Por fim, também uma ‘locução’ requer que os predicados/atributos/propriedades/qualidades se enquadrem nos sistemas linguísticos de origem e de chegada.

O valor de sistematicidade tem revelado um comportamento idêntico ao de qualidade, mas difere dele por não ter a capacidade de se constituir como significado atestado, ou seja, opera apenas a nível seminal, subjacente, não correspondendo a nenhum significado atestado nos nomes em –ismo. Além disso, qualidade está seminalmente presente em todos os significados atestados, ao contrário de sistematicidade que não se encontra presente em ‘qualidade’.

Os dados expostos revelam a capacidade geratriz de sistematicidade, contudo, este valor não satisfaz todos os requisitos necessários para ser considerado prototípico, o que acontece com o valor de qualidade. O facto de sistematicidade falhar na possibilidade de produção do significado atestado de ‘qualidade’ impede que seja considerado como valor prototípico.

Embora apresentem diferente estatuto, sistematicidade e qualidade[9] residem num nível subjacente da estrutura semântica de –ismo, como codificadores genéticos dos significados atestados.

Estão neste momento identificados os dois níveis da estrutura semântica do sufixo: um nível subjacente, que comporta os valores qualidade e sistematicidade, capazes de gerar os diversos significados, e um nível de superfície, onde se encontram os significados gerados e que surgem atestados nos nomes: ‘qualidade’, ‘princípio epistemológico’, ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’.

Como referido, estes significados atestados apresentam diferentes graus de saliência, ou seja, de proximidade em relação ao centro prototípico, “it shows the various semantic applications that exist within the boundaries of one particular category need not have the same structural weight within that category” (Geeraerts 2006a: 75). Na secção anterior iniciou-se a reflexão sobre o modo como os diferentes significados atestados se organizam em relação ao centro, essa reflexão irá agora ser consolidada.

Para determinar o grau de saliência dos significados atestados de –ismo recorremos a um conjunto de critérios, retirados de Barbosa (2012):

i) grau de abstração: quanto mais abstrato o significado, mais saliente;

ii) frequência: quanto mais frequente o significado, mais saliente;

iii) contribuição semântica da base: quanto mais relevante o valor de predicado/atributo/propriedade/qualidade da base, mais saliente o significado;

iv) sistematicidade: quanto mais forte for este valor, mais saliente o significado.

Destes critérios, o único ainda não abordado foi o da frequência. Para a avaliação deste critério tomam-se por referência os dados apresentados em Barbosa (2012: 246). O Quadro 3 apresenta os valores percentuais para a frequência dos diferentes significados dos nomes em –ismo.

 

 

Como se pode verificar, os dados de frequência dos nomes em –ismo e, portanto, dos significados do sufixo permitem elaborar uma escala que colocará os significados por uma ordem muito idêntica à que se encontra no Quadro 2. A única exceção, e que contribuirá decisivamente para a determinação do lugar ocupado por ‘qualidade’, reside nos nomes de qualidade que, apesar de detentores do maior grau de abstração, não são os mais atestados.

Verifica-se que os significados mais frequentes (que satisfazem o critério ii), referente à frequência) são, em simultâneo, i) os mais abstratos, iii) aqueles para os quais o traço predicativo da base tem um maior peso e iv) aqueles que mais fortemente apresentam o valor de sistematicidade (excluindo-se o significado de ‘qualidade’ que não o apresenta de todo). Os valores mais frequentes, os que aparecem num maior número de nomes derivados em –ismo, são os que reúnem as condições necessárias para ocuparem uma posição mais próxima do centro prototípico porque simultaneamente satisfazem os restantes critérios considerados. Recorde-se que estes valores tomam por base o corpus recolhido numa fonte dicionarística complementada com dados avulsos recolhidos online, tal como exposto em Barbosa (2012), fornecendo os elementos necessários para o estudo geno-lexical dos nomes em –ismo, mas não adequados para uma análise de frequência de uso.

Estes dados permitem desenhar a estrutura semântica para o sufixo -ismo que se apresenta na Figura 1. À esquerda, com sombreado mais escuro, encontra-se o significado atestado mais próximo do significado prototípico e à direita, com sombreado mais claro, o significado atestado que mais se afasta do significado prototípico.

 

 

A Figura 1 procura fornecer uma representação gráfica da estrutura semântica de –ismo. Encontram-se a nível subjacente os valores de qualidade e sistematicidade, funcionando como codificadores genéticos capazes de, por diferentes combinatórias, gerar os significados do nível de superfície que se identificam nos nomes em –ismo.

No nível de superfície registam-se os significados atestados nos nomes. A posição relativa que estes significados ocupam decorre da ponderação dos quatro critérios apresentados e que serão seguidos na exposição que se empreenderá. ‘Princípio epistemológico’ ocupa a posição mais próxima do centro prototípico por i) deter elevado grau de abstração, ii) ser o significado mais atestado, iii) requerer uma base fortemente predicativa e iv) deter em elevado grau o valor de sistematiciadade. Segue-se o significado ‘qualidade’; embora i) detentor do mais elevado grau de abstração e de iii) requerer uma base fortemente predicativa, não pode colocar-se na posição mais próxima do centro por ii) não ser o significado mais atestado e por iv) não apresentar de todo o valor de sistematicidade. Os valores de ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’ vão-se, gradativamente, afastando do centro na medida em que os critérios de i) abstração, ii) frequência e iii) valor predicativo da base vão perdendo expressividade na sua construção. O valor sistematicidade é aquele que menos parece enfraquecer-se à medida que nos afastamos do centro prototípico. A posição mais longínqua é ocupada por ‘locução’: i) detentor de capacidade referencial, o seu valor de abstração será residual, ii) como se verifica na Figura 1 apenas um reduzidíssimo número de nomes atesta este significado, iii) não impõe um forte valor de predicatividade à sua base. Contudo, tal como os restantes significados deste nível, iv) comporta o valor de sistemacidade.

Ao assumir a possibilidade de o sufixo –ismo apresentar uma estrutura semântica complexa, imputa-se ao sufixo a total responsabilidade da diversidade semântica encontrada ao nível dos nomes. Neste ponto, a proposta que se apresenta difere das anteriores porque, apesar de reconhecer a atuação de mecanismos como os de metonímia e pressões de natureza pragmática (“the combination of structure and use in the study of salience phenomena is essentially also a combination of semantics and pragmatics: semantics as the study of structure, and pragmatics as the study of use, combine when salience is seen as the structural reflection of pragmatic phenomena.” (Geeraerts 2006b: 75), situa-os ao nível da formação do significado de –ismo e não num momento posterior ao da formação do nome. Considera-se portanto que estes fatores atuam ao nível da construção do significado do sufixo.

Conclusão

Ao longo do trabalho procurou-se demonstrar que, em língua portuguesa, o sufixo –ismo, sendo uma unidade polissémica, apresenta uma estrutura semântica complexa. Enquadrou-se esta análise numa conceção do significado como um processo dinâmico e flexível que se estabelece por mecanismos conceptuais, sustentando-se assim a complexidade semântica do sufixo. Neste contexto foi possível analisar a estrutura do sufixo de acordo com a teoria do protótipo.

Retirando informação do mecanismo genolexical que produz os nomes em –ismo, foi possível compreender a sua estrutura semântica complexa, organizada em dois níveis: um nível subjacente que comporta os valores qualidade e sistematicidade que funcionam como codificadores genéticos e um nível de superfície que comporta os significados atestados nos nomes: ‘princípio epistemológico’, ‘qualidade’, ‘prática’, ‘atitude’, ‘fenómeno’ e ‘locução’, atestados nos nomes em –ismo.

Os significados de estrutura profunda detêm estatutos distintos. Ambos se comportam como codificadores genéticos versáteis e flexíveis dos significados do nível de superfície. Contudo, apenas qualidade se constitui como significado prototípico. Esta diferença deve-se ao facto de qualidade estar seminalmente presente em todos os significados atestados, ao passo que sistematicidade falha um significado, ou seja, encontra-se atestado em todos os significados atestados exceto no de ‘qualidade’.

Os significados atestados obtêm-se através dos codificadores qualidade e sistematicidade em combinatórias distintas. A posição destes significados relativamente ao núcleo foi definida através de quatro critérios, determinando-se ‘princípio epistemológico’ como o significado mais próximo do núcleo, seguido por ‘qualidade’, ‘prática’, ‘atitude’, fenómeno’ e, na posição mais distante, como significado mais afastado do centro prototípico, ‘locução’.

Com os dados expostos foi possível desenhar a estrutura semântica do sufixo –ismo.

A construção do significado dos nomes em –ismo resulta da articulação dos dados semânticos do sufixo, uma unidade afixal de estrutura semântica complexa, com os da base, que se define por conter um conjunto de predicados/atributos/propriedades/qualidades dos quais será(ão) selecionado(s) o(s) que se adequa(m) à construção do significado do produto.

 

Referências

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Notas

[1]Esta célula corresponde ao significado atestado ‘prática’ que surge em nomes como os exemplificados (canibalismo, deambulismo,...), tendo-se optado por não repetir a informação colocada na célula vertical. Os significados atestados ‘prática profissional’, ‘prática desportiva’, ‘ modo de vida’ e ‘práxis’ representam modalidades específicas de ‘prática’ (veja-se § 2.3.).

[2]Esta célula corresponde ao significado atestado ‘fenómeno’ que surge em nomes como os exemplificados (endomorfismo, galvanismo,...), tendo-se optado por não repetir a informação colocada na célula vertical. Os significados atestados ‘intoxicação’ e ‘fenómeno patológico’ representam modalidades específicas de ‘fenómeno’ (veja-se § 2.5.).

[3]Esta classificação para as bases é explicada do seguinte modo: “Formal e semanticamente, a observação, fora de contexto, de absurdo e de tirano não nos possibilita uma determinação inequívoca da sua categoria sintática, sendo necessária a criação de um contexto sintático que nos viabilize, sem dúvidas, a sua categorização. O português apresenta muitas palavras em situação idêntica, não sendo possível, ao nível da formação de palavras, determinar qual a categoria sintática selecionada para base, sobretudo quando se trata, como é o caso, de um sufixo capaz de se acoplar a bases que, de forma inequívoca, são enquadráveis em uma das duas categorias em questão. Categorizar as palavras nesta situação como nomes ou como adjetivos seria totalmente aleatório e, no que diz respeito ao processo derivacional em questão, não poderia ter qualquer fundamento. Como consequência, optou-se pela criação de um grupo no qual se colocaram as palavras que se encontram em idêntica situação.” (Barbosa 2012: 109).

[4]As autoras consideram que os nomes essivos ou nomes de qualidade, depois de formados, sofrem inflexões semânticas que lhes permitem atualizar novos sentidos: Rio-Torto defende que ao significado essencial do nome essivo acrescem, “Por metonímia (...) “atitude, acção de quem é x(PRED)” (...) Por efeito de uma regra semântica de concreção (...) “aquilo que é A” (...) “aquele que é A” (...) conjunto do que é (...)” (Rio-Torto 1998: 122).

[5]O estudo empreendido em Barbosa (2012) revela que “o maior número de nomes em –ismo se situa junto ao extremo máximo de abstração, os nomes de qualidade (14%), os nomes de princípio epistemológico (35%) e os nomes de prática (16%) constituem 65% do nosso corpus. Sublinhamos que o maior número de nomes em –ismo se situa junto ao extremo máximo de abstração e não no extremo máximo da escala (que é constituído pelos nomes de qualidade e que apenas representam 14% do corpus)” (Barbosa 2012: 297).

[6]“Two possibly more valid criteria are, first, the default meaning, that is, the one which comes first to mind when one is confronted by the word out of context, and, second the reading from which the others can most plausibly be derived by standard semantic processes. The latter criterion is most reliable when there are more than two readings.” (Cruse 1998: 259).

[7]Considera-se a quantificação de contagem ancorada na “noção de quantidade «discreta», que se aplica a domínios de objetos como as pessoas, os livros, as cadeiras ou os países” (Raposo, Nascimento, Mota, Segura & Mendes 2013: 771)

[8]Agradeço a leitura feita pelo Professor Doutor Rui Pedro Marques, alertando-me para a possibilidade de elaboração de enunciados como “todos os fanatismos devem ser combatidos” e “o fanatismo religioso e o fanatismo clubístico são dois fanatismos diferentes, mas com traços comuns”. Esta chamada de atenção permitiu-me clarificar a reflexão e desse modo responder por antecipação a objeções que poderiam ser feitas à análise exposta.

[9]Representamos a negrito qualidade, valor prototípico, para o distinguir de sistematicidade.