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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

AMARAL, Ana Luísa, Próspero Morreu. Poema em acto, Lisboa: caminho, 2011.

Palimpsestos e travessias

Ana Gabriela Macedo*

*Dir. CEHUM, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

gabrielam@ilch.uminho.pt

 

Falar da poesia de Ana Luísa Amaral e mais ainda deste seu “Poema em Acto”, intitulado Próspero Morreu, é para mim um gosto muito particular, mas significa também a evocação pungente de um amigo comum que a ele está indissoluvelmente ligado, o Paulo Eduardo Carvalho. Urge recordá-lo aqui, porque a sua memória atravessa este texto cuja leitura em cena, que partilhei, ele projectara[1].

Acto Único: Uma ilha. Na ilha uma fogueira. Ao lado da fogueira, três mulheres: Bárbara (a escrava), Penélope e Ariadne. Ao fundo, em lado esquerdo, Luiz. Mais atrás, escondido atrás de Luiz, Teseu. A um canto superior, escondido atrás de todos, Caliban. Do lado direito, à boca de cena, de máscara branca, Ariel. (Próspero Morreu, Acto Único, p.11)

1º Andamento
Palimpsestos e Intertextualidade

Neste seu “Poema em Acto” surge-­-nos Ana Luísa Amaral dialogando consigo própria, algo que faz com mestria – o saber e a experiência poética adquiridos ao longo de 14 livros de poesia publicados, 4 textos poéticos de literatura infantil, 3 de adaptação dos clássicos para a infância, e quatro obras de tradução poética. Um coro de “vozes” diferenciadas onde ecoa sempre mais forte aquela que aprendemos a distinguir como a da poeta – polifónica sempre, desconcertante por vezes, e matizada com uma sábia dose de ironia e de travessura, que raramente é nomeada na sua poesia pela crítica, embora seja, a meu ver, uma das suas qualidades mais singulares. E indissociável da intertextualidade, já se vê. Mas sobre isso, mais falaremos adiante.

Desde sempre, e digo-o orgulhosa porque acompanhei a génese da primeira obra, Minha Senhora de Quê, a que se seguiu, Coisas de Partir, Epopeias, E Muitos os Caminhos, Às Vezes o Paraíso, Imagens, Imagias, a Arte de ser Tigre, A Génese do Amor, e muitos outros, até ao mais recente Vozes e ao poema dramático que aqui analisaremos, uma densa ‘teia’ de vozes, a palavra nunca monológica, mas antes sempre em diálogo consigo mesma, e com vozes outras da tradição poética, conceptual e discursivamente, inter- e intra-textualmente, fazendo-se e dizendo-se em espaços e tempos outros, tornados presente pelo gesto e pelo ritual da enunciação, atravessando tempos e lugares ora sagrados, ora profanos, ora míticos, e travessamente brincando, num piscar de olho à tradição, através do gesto confesso da apropriação especular, do gosto de dizer “outramente” a palavra partilhada, (do avesso, como a autora gosta de dizer), o palimpsesto consentido, as revisitações declaradas.

E veja-se assim três exemplos distintos: de Vozes, “Palimpsesto” (p. 45), de Epopeias “Quase de Tecelagem” (p.33) e de Minha Senhora de Quê, “Intertextualidades” (p.14).

2º Andamento
Travessias

Na poética de Ana Luísa Amaral a palavra é sempre encenada, e sempre o foi, desde o primeiríssimo Minha Senhora de Quê que ostenta na capa uma iluminura representando três mulheres, a partir de um códice medieval germânico, o Codice de Manesse, reunindo cantigas de amor (o Minnesang), deixando assim implícito o diálogo entretecido entre a voz da autora e as vozes ou melhor talvez, os silêncios dessas senhoras, construindo assim, sílaba a sílaba, verso a verso, um universo polifónico e desvendando a linha genealógica da palavra no feminino. E há claramente neste livro o eco de uma outra voz convocada / homenageada, a de Maria Teresa Horta em Minha Senhora de Mim (1967) e, de certo modo, a autoria colectiva das Novas Cartas Portuguesas também aqui se pressente.

A palavra poética de Ana Luísa Amaral ocupa espaço cénico, tem densidade dramática, produz ecos e reverberações, tem uma fisicalidade corpórea, uma sensorialidade que a torna quase palpável. Haveria umas centenas de poemas a coadjuvar esta minha afirmação, mas veja-se a título de exemplo, do livro Epopeias, “Leite-Creme” (p.46).

Não nos tomará assim de surpresa esta sua obra dramática, Próspero Morreu, se atentarmos, desde logo, nas suas adaptações dos clássicos para a infância e demais literatura infantil com que nos surpreende (entre as quais ressalto a História da Aranha Leopoldina e Gaspar o Dedo Diferente). Creio porém que é no livro A Génese do Amor (2005), onde a poeta se propõe “reaprender o mundo / em prisma novo”, assim nos diz, e que se entretece de diálogos múltiplos em que o amor é simultaneamente sujeito e objecto – que mais directamente achamos a génese deste seu Próspero, como um longo poema sobre o amor, ou, se quisermos, uma ‘inversa’ Tempestade. Assim dito pela voz de Penélope:

“Deste amor que aqui vejo,

A quem pude dizer:

‘não é poema de amor

O que te deixo,

Nem, apesar do resto,

Pequena antevisão de despedida,

Ou terror simples

De não saber nada?’

A quem, com quem posso falar?

Se eu própria me perdi

Em esperas e tão largos bastidores

E nem a mim me concedi lugar …”

(p.34)

3º Andamento
Do amor e do seu inverso

Reitero assim que a poética de Ana Luísa Amaral é uma poética do amor e de uma tradição recuperada “do avesso”, dita no feminino, transgressivamente assumida na sua voz onde se escutam, consentidas, vozes outras: de Sophia, de Dickinson, de Rich, assim como as vozes de Shakespeare, de Byron ou a de Camões. Do amor e do seu avesso nos falam em Próspero, as vozes, os ecos e as sombras.Como a de Luiz (Vaz de Camões) dirigindo-se à escrava Bárbara:

“Quero esquecer a voz

Que de dentro teima em voltar,

Essa de quem amei e já esquecera

Deixa-me que segure a sombra do teu rosto,

Nela me afunde, inteiro.

Que eu me possa insistir do teu olhar,

Porque metade de mim não foi já teu,

Porque metade de mim já não é teu – “

(p.37)

Ou, como diz Ariadne, a do Fio, desafiadora de labirintos e minotauros: “Que mais fazer / se as palavras queimam / e tanta coisa arde em tanta coisa / sarças ardentes do avesso / o fogo em labaredas que mais / fazer?” (p.37).

E assim de ecos, sombras, vozes, texturas, teias, travessias e reflexos múltiplos se constrói este Próspero Morreu onde Shakespeare é reinventado, tornado presente e quiçá feminino, pela voz de Miranda, que é também a de Penélope, a que tece infatigavelmente, alheia a desenganos e assombrações, ciente apenas da sua verdade. Penélope, Ariadne, Cassandra (ausente na voz mas presente no texto), três portentosas figurações do feminino que imperam nesta desmitologização mítica que Ana Luísa Amaral sabiamente constrói. A ousadia de enfrentar o poder, a perseverança na luta, a fé na palavra e na sua capacidade de “dar a ver” ou ainda subverter o mundo, a com/paixão, são partilhadas por todas elas e sempre presentes numa poética a um tempo visceralmente romântica (num sentido byroniano) e marcadamente clássica, que não canónica.

A tudo isto acresce, o riso paródico, a ironia fina, desconstrutora de mundos feitos e perfeitos. A sombra de Caliban perpassando no texto. Pois, como diz a poeta:

“Não foi a aura da sua magia

Aquela que fez outro Caliban.

Foi a magia do amor, a sua arte,

Que o transformou em ser de ouro [e paixão,

O fez falar palavras proibidas.

E a violência que o conheceu [informe,

feio, escuro,

Ele a trocou pela bênção do amor.

E a troca foi fatal.”

(p.50)

Importa assim desfrutar deste Próspero Morreu Poema em Acto, e reconhecer-lhe as múltiplas vozes, ecos e tessituras.

 

Notas

[1]Esta recensão provém do texto de apresentação do livro de Ana Luísa Amaral na Livraria 100ª Página, Braga, em Dezembro de 2012. A leitura encenada da obra referida teve lugar na Biblioteca Almeida Garrett, em Junho de 2010, e foi encenada por Nuno Carinhas. O Paulo Eduardo Carvalho falecera em Maio do mesmo ano.