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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

“Há quem diga que eu escrevo inglês traduzido”. Conversando com Luís Fernando Veríssimo

Sérgio Guimarães de Sousa*

*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

spgsousa@ilch.uminho.pt

 

Nascido em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), Luís Fernando Veríssimo é, não se duvide, dos autores mais populares do Brasil, senão mesmo o mais popular. Trata-se de um criador não pouco multifacetado: romancista, contista, poeta, dramaturgo, cronista, cartoonista, tradutor, músico, …. Filho do escritor Érico Veríssimo, Luís Fernando Veríssimo é essencialmente conhecido do grande público pelas suas crônicas, textos curtos e pautados por um sentido de humor e por uma veia satírica inconfundíveis, publicadas com regularidade em diversos jornais brasileiros. Se quiséssemos destacar uma biblioteca essencial da obra de Luís Fernando Veríssimo, não poderiam por certo faltar títulos como A Grande Mulher Nua (1975), Amor Brasileiro (1977), Ed Mort e Outras histórias (1979), Sexo na Cabeça (1980), O Analista de Bagé (1981), A Velhinha de Taubaté (1983) ou ainda O Jardim do Diabo (1987).

 

 

É conhecida a sua paixão pela música, em especial pelo jazz. Tanto assim é que chegou, inclusive, a integrar um grupo musical (Renato e seu Sexteto). Como é que compagina o seu lado de saxofonista com o de escritor? Existem conexões palpáveis? De outro modo ainda: a música influencia a sua escrita?

Luís Fernando Veríssimo: Toco, hoje, com outro grupo musical, o Jazz 6, que perdeu um dos seus componentes mas continua a se chamar assim, e portanto é o menor sexteto do mundo. O grupo é de profissionais mas eu sou amador, e por isto o saxofone não afeta muito minhas outras atividades, já que é passatempo. E não influencia, até onde possa notar, minha escrita. Já tentei desenvolver uma tese comparando uma crónica com uma interpretação jazzística – na crónica também se expõe um tema, se faz variações sobre o tema, etc. –, mas a tese não se sustentou.

O que dificilmente se imaginaria, creio, é o escritor Luís Fernando Veríssimo sem o jornalista e o redator publicitário Luís Fernando Veríssimo. De que maneira é que o jornalista-publicitário e o escritor se contaminam? Mais até: existiria o escritor sem o jornalista? Ou sem o publicitário?

Luís Fernando Veríssimo: Trabalhei 15 anos como redator de publicidade e acho que foi um bom aprendizado. O texto publicitário precisa ser atraente, conciso e, como se diz no Brasil, vender o seu peixe, com clareza, e isto é uma boa receita para crónica. O fato de escrever para ser publicado em seguida, na imprensa, também determina uma certa disciplina, mesmo quando a boa idéia não vem. Eu sempre digo que a minha musa inspiradora é o prazo de entrega...

Qual foi o impacto, à época, da publicação de A Grande Mulher Nua (1975), talvez o livro que decisivamente o projetou junto do público como um cronista de primeira relevância?

Luís Fernando Veríssimo: Não houve grande impacto. Isto veio depois, com O analista de Bagé, o primeiro dos meus livros que teve uma repercussão maior e vendeu mais um pouquinho.

O que é para si uma crónica conseguida?

Luís Fernando Veríssimo: O teste da boa crónica é o teste do tempo. Ela é a que a gente lê anos depois e até que gosta, e não lamenta por não ter feito melhor. A grande maioria não passa no teste, mas algumas resistem.

É igualmente um escritor de livros de viagens. O primeiro foi Traçando Nova York e resultou de uma estadia de 6 meses em Nova Iorque. A partir daí, e com certa regularidade, o Luís Fernando Veríssimo tem escrito sobre os diversos lugares por aonde passa. O que o levou a enveredar, a dado momento, também pela narrativa de viagem?

Luís Fernando Veríssimo: Sempre gostei de viajar e herdei isso do meu pai, com quem viajei quando era garoto. A série Traçando foi uma idéia do Joaquim da Fonseca, ilustrador de todos os livros, e incluiu relatos de visitas ou de temporadas passadas em Nova York, Roma, Paris, Madrid e Japão, e um livro dedicado a Porto Alegre, minha cidade natal. As temporadas mais longas, junto com toda a família, em NY, Roma e Paris eram assunto constante das colunas que mandava diariamente destes lugares para os jornais, e foi fácil reuni-las em livros.

O Analista de Bagé tornou-o, é lícito dizê-lo, definitivamente num fenómeno de massas. Atualmente o Luís Fernando Veríssimo é nada menos do que o autor brasileiro mais popular. Se dúvidas houvesse, basta dizer que vendeu no Brasil uns 5 milhões de livros. A que atribui a sua imensa popularidade? E como reage, sabendo-se que é tímido, a essa popularidade?

Luís Fernando Veríssimo: O Paulo Coelho vende mais do que eu, e as traduções dos seus livros são fenómenos de venda. Tenho alguns livros traduzidos mas nada parecido com a repercussão internacional da obra do Paulo Coelho, ou mesmo de outros autores brasileiros. Quanto à minha popularidade no Brasil, não sei explicar. Talvez se deva ao fato de fazer textos curtos, de fácil leitura, e quase sempre bem humorados. Sou constantemente convidado a dar palestras, geralmente para jovens, o que me envaidece muito. Sempre preciso vencer o meu pânico de falar em público, mas é bom saber que a garotada, principalmente, está lendo o que eu escrevo.

O humor está no cerne de tudo o que escreve. É, não sofre dúvida, a sua imagem de marca. Como definiria o seu humor? E, já agora, que características apontaria no tocante à especificidade do humor brasileiro?

Luís Fernando Veríssimo: Há quem diga que eu escrevo inglês traduzido, e concordo que fui muito influenciado pelo humor americano. Sempre fui muito ligado à cultura americana[1] e li muito os americanos e os ingleses. Não saberia definir o meu humor, só sei que não é muito espontâneo. É mais uma questão de técnica do que de vocação, já que, pessoalmente, não tenho a menor graça, e sou até mais para o depressivo do que para o cómico.

Circulam na net vários textos, alguns com uma qualidade notável, que lhe são atribuídos; mas que, em boa verdade, o Fernando Luís Veríssimo nunca escreveu. Como vê esse fenómeno que parece ser já uma forma extrema de popularidade?

Luís Fernando Veríssimo: Pois é, não dá para entender por que alguém põe um bom texto na Internet e o atribui a outro. E alguns textos são bons mesmo. Sou muito elogiado por textos que nunca escrevi. Como, pelo que sei, não é possível corrigir isto, o jeito é nos resignarmos. Uma dica: geralmente quando o texto é apócrifo, o Luís de Luís Fernando é com Z.

O Jardim do Diabo (1987) marca a sua estreia literária a solo no campo romanesco. Digo a solo porque anteriormente, mais especificamente em 1978, tinha já escrito Pega pra Kapput, só que em parceria com Moacyr Sclyar, Josué Guimarães e Edgar Vasques. Como foi essa passagem de cronista, ainda por cima cronista famoso, para outro registo assaz distinto, como o romance?

Luís Fernando Veríssimo: Meus primeiros romances têm uma peculiaridade: foram todos encomendados. O primeiro foi escrito a pedido de uma agência de publicidade que queria presenteá-lo aos seus clientes. O segundo, O clube dos anjos, foi pedido pela editora para uma série sobre os pecados capitais. Meu pecado era a gula. Também partiu das editoras as idéias para fazer Borges e os orangotangos eternos (para uma série de policiais que envolvessem escritores conhecidos), O opositor (cada autor escreveria sobre um dedo da mão, e escolhi o polegar) e A décima segunda noite (histórias baseadas em comédias do Shakespeare). “Encomendados” queria dizer que a idéia partia da editora, não que a editora determinasse o que deveria ser escrito. Finalmente escrevi Os espiões, que eu mesmo me encomendei. Comparo trocar a crónica pelo romance a trocar um veleiro por um navio ou, no caso de um romanção, por um transatlântico. Muda tudo, inclusive o número de personagens a bordo.

Cultiva como poucos escritores a paródia. O que o atrai nesse modo de desconstruir a realidade que é o discurso paródico?

Luís Fernando Veríssimo: Como a crónica é um género indefinido ela nos permite escolher a forma de escrever o que se quer escrever: com seriedade ou com ironia, com mais ou menos profundidade, com realismo ou com pura invenção. A paródia é um dos tantos recursos que a gente tem à mão. Funciona, principalmente quando a intenção é criticar sem atacar de frente.

Sempre que pode aponta Milton Hatoum como o grande escritor atual do Brasil. Porquê? O que é que o fascina na obra do Hatoum?

Luís Fernando Veríssimo: Eu já agradeci ao Milton em público por ter facilitado a minha vida. Antes, quando me pediam para citar os melhores escritores brasileiros, eu começava a nomear os que me vinham à cabeça – Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, etc. – sempre com o pavor de estar esquecendo algum. Hoje tenho a resposta pronta, sem medo de errar: Milton Hatoum. Porquê? Porque ele escreve muito bem.

Providence (Rhode Island), 4 de outubro de 2013

Fotografia: Onésimo Teotónio Almeida

 

Notas

[1] Veríssimo viveu boa parte da infância e da adolescência nos EUA.