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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

A filha (mais velha) de Joaquim Luís. Sobre As Três Irmãs

The (older) daughter of Joaquim Luís. About As Três Irmãs

Sérgio Guimarães de Sousa*

*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

spgsousa@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Em As Três Irmãs (1862), Camilo Castelo Branco, cedendo, segundo a leitura que desta novela tem sido feita, a valores burgueses (e, por extensão, à moralidade patriarcal), apresenta-nos uma protagonista, Jerónima, que parece encarnar os preceitos do Antigo Regime. Resistindo intransigentemente aos ideais do coração (o órgão que, muito romanticamente, expande idealizações), a moça, varonil e dotada de um espírito bem prático e empreendedor, compraz-se em ocupar-se com atividades comerciais. Este apego à família e à ordem patriarcal, ao que creio, mais não será, em boa verdade, do que uma denegação da ordem patriarcal e, consequentemente, da dominação masculina. Isto porque Jerónima, tudo bem visto, faz o que essa ordem não consente: não casa, apesar de sentimentalmente muito solicitada, e, num sinal evidente de subversão dos valores patriarcais, ocupa-se de tarefas eminentemente adstritas à condição masculina, como seja o empreendedorismo comercial e financeiro.

Palavras chave: patriarcado; casamento; Romantismo; empreendedorismo.

 

ABSTRACT

In As Três Irmãs (The Three Sisters, 1862), Camilo Castelo Branco, giving in to bourgeois values (and by extension to the patriarchal morality), according to the most frequent interpretation of this novel, introduces us to Jerónima, who seems to embody the principles of the Old Regime. Uncompromisingly resisting to the ideals of the heart (the organ which, quite romantically, expands idealisations), the young lady, quite manly and endowed with a practical and entrepreneurial mind, is pleased to dedicate herself to commercial activities. This attachment to family and patriarchal order, I believe, is in fact, nothing but the denial of the patriarchal order itself and, consequently, of male dominance. This is because Jerónima, when all is said and done, does precisely what that order does not permit: she doesn’t get married, though emotionally very sought after, and in an obvious display of subversion of the patriarchal values, undertakes tasks which are eminently restricted to males, such as commercial and financial entrepreneurship.

Keywords: patriarchy; marriage; Romanticism; entrepreneurship.

 

1. Jacinto do Prado Coelho não foi particularmente condescendente com As Três Irmãs. A certa altura de Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, reportando-se à influência pertinente, mas também (e talvez sobretudo) nociva, de Castilho, refere que o poeta

poderá ter estimulado Camilo a trabalhar a sua prosa, o que, de certo modo, foi um bem, porque o novelista soube explorar o tesouro dos clássicos e atingir aqui ou ali a sóbria elegância dum Frei Luís de Sousa, mas também foi um mal, porque a sua linguagem se tornou por vezes demasiado retórica, florida e amaneirada; e o culto da prosa rica sobrepõe-se por vezes em Camilo ao desejo de transmitir de modo exacto e sem rodeios as realidades humanas palpitantes. Felizmente, autor d’As Três Irmãs, é certo, mas criador também das Novelas do Minho, possuía as necessárias energias latentes para reagir contra a concepção da literatura ao mesmo tempo académica e burguesa, que o “árcade póstumo”, com os seus escritos, difundia. (Coelho, 2001: 113)

Como se nota sem custo, a desconsideração d’As Três Irmãs assenta, desde logo, numa demarcação de índole retórico-expressiva. Que é como quem diz: o novelista não terá sabido distanciar-se de Castilho através de uma prosa menos “florida e amaneirada” e, como tal, mais apta à transmissão das “realidades humanas palpitantes”, muito ao inverso do que sucede em Novelas do Minho, texto reconhecidamente pautado por um fino recorte realista. Mas não é só a fidelidade à lição estilística de Castilho, com o excesso retórico pressuposto, que parece estar em causa neste desmerecimento da novela. Há ainda o argumento decisivo de que n’As Três Irmãs, como nalgumas outras novelas, sobretudo as de pendor mais marcadamente folhetinesco,[1] Camilo como que terá cometido uma falha, por assim dizer, indefensável: subordinar a força romanesca ao serviço (ideológico) dos valores burgueses. De resto, esta censura de o novelista alinhar com a doxografia burguesa, digamos assim, enveredando por um postulado consentâneo com a ordem patriarcal, presume-se, bem mais adiante, quando a dado passo Jacinto do Prado Coelho, ainda sobre As Três Irmãs, refere: “Só há uma figura discordante, o estroina Duarte Pereira, devidamente punido. Tudo o mais insinua, com palavras melífluas, a doce alegria que resulta do cumprimento do dever” (Idem,267). E, já agora, veja-se que umas linhas antes, relativamente às novelas escritas sob os auspícios do jornal Comércio do Porto, entre as quais figura justamente As Três Irmãs, o sagaz crítico não deixa, com assinalável contundência, de apontar a capitulação de Camilo perante a moralidade burguesa: “Na série do Comércio do Porto, [...], é visível que ele forçou a nota, cedendo à moral burguesa, pregando a cada passo, com florinhas de retórica, a obediência aos pais, a honestidade, a gratidão, etc. Ao mesmo tempo, sofreou sarcasmos e ímpetos de revolta” (Idem,266). Numa palavra, o novelista, que em tantas outras narrativas soube com não pouco ímpeto apregoar os valores do coração sobre os da razão utilitarista, através de acesos envolvimentos passionais radicados num imaginário exacerbadamente romântico e pelo viés de uma corrosiva crítica à mentalidade utilitarista e ao espírito instrumental, aqui, socorrendo-se de uma retórica estilisticamente dúbia, porque, digamos, algo empastelada ou, pelo menos, assaz superficial (“palavras melífluas”, “florinhas de retórica”), esse mesmo novelista, recuando perante os (supostos) excessos da sua crítica noutras novelas, munido de uma retórica mordaz e penetrante, teria capitulado, através de um abuso de retórica sob a forma de um palavreado condescendente e vácuo, perante os duvidosos valores da moralidade burguesa em detrimento da sua sensibilidade romântica. Aliás, como observa com inteira justeza Alexandre Cabral, a crítica social, quando vem ao de cima, à conta das falcatruas levadas a cabo por alguns burgueses sem escrúpulos, essa crítica surge tintada de suavidade e brandura ou então de ironia (cf. Cabral, 1989: 636).[2]

Os leitores familiarizados com a ficção camiliana, verdade se diga, poderão concordar amplamente com esta leitura sem dificuldade de maior. É de resto fácil sustentá-la sem grandes obstáculos a partir da caracterização e do comportamento da mais proeminente das três irmãs, Jerónima, que parece concentrar em si a função de exemplificar a virtude da obediência filial. Ao arrepio do desejo sentimental, inscreve-se num trajeto que enfatiza o sentido do dever filial, facto particularmente visível na sua renitência em casar-se com quem quer que seja, não hesitando, ao inverso das irmãs, em sacrificar a possível felicidade conjugal em prol dos pais. Sobretudo do progenitor, a quem presta um auxílio precioso nos negócios e demais tarefas atinentes ao governo da casa parental. Mais tarde, falecidos os pais, Jerónima, embora continue a ser sentimentalmente solicitada, como muito faz questão de sublinhar a narrativa, persiste abnegada a favor dos parentes. Enquanto precetora das crianças de uma abastada família portuense, contribuiu decisivamente para o sustento da família. Antes disso, esteve, é bom dizer, quase para casar; e o matrimónio só não se fez porque, entretanto, Jerónima abdicou de casar a fazê-lo sem o consentimento do pai do noivo, por muito que este manifestamente a amasse. O que diz bem do facto de a obediência filial da personagem não se restringir a acatar as decisões do pai, mas constituir um preceito inviolável e, por isso, a respeitar em qualquer circunstância, quer dizer, seja com que tipo de pai for.[3] De outro modo: Jerónima constitui o pilar fundamental sobre o qual se apoia o núcleo familiar. Em clara sintonia com a moral burguesa, sacrificou-se em nome dos valores familiares, o que, como é evidente, a distingue, logo à partida, das personagens românticas que, imbuídas de um fervoroso e inapagável sentimento amoroso, procuram por todos os meios emanciparem-se da insuportável tutela familiar.

Ora bem, esta leitura, perfeitamente legítima, que se compraz em colocar a figura de Jerónima numa órbita bem distinta daquela em torno da qual gravitam as heroínas camilianas elaboradas sob o signo da mundividência romântica – e este é o ponto que pretendo salientar –, não arruína forçosamente uma perceção da personagem noutros moldes. Por outras palavras, creio bem ser possível definir Jerónima na proporção de uma protagonista notoriamente dedicada a resistir à moral burguesa, com tudo o que esta supõe e exige. Não quero com isto, sejamos claros, argumentar a inviabilidade de uma leitura ancorada numa personagem afeta a valores tradicionais e descomprometida com expectativas românticas. Mas também não desejo que essa leitura, em boa parte responsável pela subalternização da novela no seio da criação romanesca camiliana, se converta na leitura exclusivamente correta.[4] O texto, ao que presumo, é bem mais complexo e deixa entrever outra possibilidade de interpretação não menos plausível. Ou seja, existem diversos sinais suscetíveis de nos alertarem para a necessidade de aduzir um outro sentido ao desempenho de Jerónima. A filha do negociante Joaquim Luís da Silva, com efeito, parece ser uma daquelas raras personagens capazes de focarem em si leituras discordantes. Neste sentido, segundo julgo, é possível suspender uma das leituras e enveredar por outra. A clarividência de Camilo, nesta novela mal avaliada, está em que soube converter Jerónima, e isso à custa de uma arquitetura narrativa altamente sofisticada, convirá dizer, numa protagonista suficientemente enigmática para o leitor dela extrair duas visões incompatíveis. Se, por um lado, Jerónima é claramente insinuada de molde a apresentar-se como uma protagonista sem grande propensão sentimental e que, em consequência, se rege, a avaliar pelas suas atitudes e pelo seu inconfundível percurso biográfico, privilegiadamente por crenças, normas e valores propalados pela tradição; por outro lado, ao arrepio desta leitura, não será ilegítimo encarar a personagem sob um ponto de vista radicalmente diferente: aquele segundo o qual Jerónima se define pelos traços de uma filha que não consente, embora aparentemente pareça consentir, na ordem patriarcal instituída, resistindo, a seu modo, sem concessões a essa ordem que subalterniza sem mercê a condição feminina.[5] Consequentemente, a visão da novela como (mais) um deslize do autor no sentido de cativar a moralidade burguesa perde fôlego e, com isso, torna-se possível reabilitar o texto (se é que alguma vez foi ferido de morte).

2. Antes de mais, comecemos por afirmar que é, desde logo, impossível ignorar o facto de pouco sabermos, em bom rigor, sobre a personagem. Neste sentido, é difícil sustentar a presunção de esta corporificar exemplarmente os valores patriarcais-burgueses. Quer isto significar que o que sabemos de Jerónima não provém privilegiadamente do que a moça nos confidencia, mas radica essencialmente em leituras que dela Camilo, muito habilmente, nos fornece por interposta presença dos restantes protagonistas; e esta definição de Jerónima contribui decisivamente no sentido de a tornar um tanto enigmática, uma vez que as visões apresentadas por cada um sobre a filha do comerciante não coincidem forçosamente. Acontece até que uma mesma personagem se veja impelida a reformular o seu entendimento relativamente à filha do negociante Joaquim Luís, ao aperceber-se que a moça, no fim de contas, não corresponde ao juízo que dela fazia. Eis como começa uma fala de José da Fonseca, dirigindo-se a Pedro, com a intenção salutar de lhe desmistificar a imagem de Jerónima e de assim o levar a esquecê-la: “Sr. Pedro [...], convençamo-nos de uma verdade que eu tenho há muito escondido do justo ressentimento do seu coração” (Idem, 183). Essa verdade será a incapacidade de a filha do comerciante amar quem quer que seja como as outras moças da sua idade, completamente absorta em questões corriqueiras e empíricas e desta forma desfasada da metafísica amorosa, ou, pelas palavras de José da Fonseca, “[de ser] uma mulher que antepõe as razões do mundo às propensões da sua alma” (Ibidem). Tudo isso assume a clara evidência de Jerónima se apresentar sob diversas perspetivas, ainda que a distância entre umas e outras não se afigure suficientemente cavada para provocar antinomias. De qualquer maneira, julgo serem distâncias suficientes para fissurarem certezas inabaláveis em torno da personagem. Nomeadamente as verdades (supostamente) irrebatíveis que porventura a convertem numa indefectível partidária da moralidade patriarcal.

Dir-se-ia, se quisermos, que Jerónima se acha em notória situação de paralaxe. Ou seja, trata-se de uma personagem suscetível de oferecer uma visão distinta ou algo diferenciada em função de quem sobre ela se pronuncia. Objetar-me-ão que isso é inevitável com quem quer que seja. O que sucede, porém, aqui é que Camilo se compraz em fornecer a visão que os outros têm de Jerónima e abstém-se de ceder a palavra à própria – a não ser no essencial em situações de diálogo, como é evidente, não sendo Jerónima, note-se, particularmente loquaz –, como seria entregar-lhe parte do relato da intriga, conforme sucede quando o novelista entrega a narração a Pedro, por exemplo. Deste modo, Jerónima raramente se expõe, pelo menos através da fonte mais fidedigna para circunscrever a sua personalidade e que seria um relato da própria sobre si mesma. O que permitiria desfazer dúvidas e corrigir perspetivas menos acertadas sobre o que realmente pensa, especialmente nessa matéria sensível que é o coração. Mas proceder desta forma seria, inevitavelmente, desfazer a ambiguidade da protagonista e, com isso, creio, reduzir-lhe drasticamente a espessura psicológica, que é muito tributária, como se percebe, da sua indefinição, ou se se preferir, das diversas definições que circulam sobre ela a partir do escrutínio de terceiros. E refira-se que os traços decisivos do carácter da moça não o são tanto que inviabilizem, discutíveis que sejam, as leituras várias que dela tecem. O certo, em síntese, é que o leitor não acede verdadeiramente àquilo que Jerónima realmente pensa ou sente, a não ser talvez na carta que, já na condição de preceptora de crianças, escreve a José da Fonseca e onde enaltece a sua independência. Tudo nela tende, pois, a provir privilegiadamente através de fonte indireta. Sabemos o que sabemos de Jerónima essencialmente pelo que nos é dito dela. E o que dela nos é dito, como é lógico, varia consoante o ponto de vista, não sendo, como se disse, precisa muita argúcia para concluir daqui que Camilo, através desta estratégia discursivo-narrativa, resguarda a personagem de um entendimento estável e definitivo, que seria aquele que a própria fosse capaz de enunciar. Estão assim criadas as condições para tornar Jerónima numa personagem algo impenetrável. Como observa com indesmentível razão Slavoj Žižek: “C’est à l’endroit même où surgit une pure différence – une différence qui ne concerne plus deux objets existant positivement, mais se présente comme une différence minimale dissociant un seul et même objet de lui-même – que cette différence ‘comme telle’ coïncide immédiatement avec un objet insaisissable” (Žižek, 2008: 23).

3. Mas é outra a razão pela qual se afigura discutível compaginar Jerónima com a imagem tout court de uma donzela deliberadamente sacrificadora da sua felicidade sentimental em nome da instância familiar. Ao renunciar a propostas matrimoniais, trocando-as por uma inteira dedicação à casa familiar, a filha do comerciante, note-se com toda a clareza, não sacrificou forçosamente a sua felicidade pessoal. O inverso, em boa verdade, é que se afiguraria como um sacrifício incomportável. Se, a dada altura, José da Fonseca, em conversa com Pedro, assinala que “Jerónima crê que o mais sagrado dever neste mundo é a submissão de filha. Está naquela alma juvenil a sabedoria, a razão, a prudência e a idade de Joaquim Luís” (Castelo Branco, 1974: 179), a verdade é que a moça, que “crê que o mais sagrado dever neste mundo é a submissão de filha”, nunca acolheu de bom grado as propostas de casamento, não obstante o pai tentar convencê-la da pertinência em casar-se.[6] Joaquim Luís não a conseguirá demover, ou demover totalmente, de fazer aquilo que numa sociedade altamente conservadora como é a oitocentista, pelo menos a que radica nos valores patriarcais do antigamente, não anda longe da heresia: repudiar as propostas (vantajosas) de casamento e dedicar-se, como se de um homem se tratasse, ao comércio. O que de resto condiz à perfeição com o seu perfil um tanto robusto, varonil, laborioso e empreendedor (“o seu atrevido instinto comercial”, como a dado passo refere o narrador, Idem, 155). Dir-se-ia o filho varão de Joaquim Luís, como o próprio reconhece; ao passo que a esposa, a Sr.ª Mariana, talvez menos condescendente com esta troca de géneros, não se inibe, como quem constata uma anomalia surpreendente, de dizer repetidamente à filha: “Ó moça! Tu pareces-me um homem!” (Idem,21). Quanto aos colegas de ofício do comerciante, não lhe poupam elogios: “Quantas fortunas encerradas na atividade daquela moça, que os nossos filhos respeitam, e todos nós quereríamos para filha!...” (Idem,64). Não é descabido suspeitar que os comerciantes invejassem no perfil da filha de Joaquim Luís as qualidades laborais de que careciam os filhos. Linhas atrás, aliás, pronunciava-se o narrador assim sobre a capacidade de trabalho de Jerónima: “Jamais uma nuvem de enfado, um trejeito de aborrecimento, um visível desejo de repouso!” (Idem, 63). Ao lavrador António Pereira, que, ao arrepio de inclinações sentimentais, reduz o casamento das filhas do negociante à mera contingência de estas se acharem solteiras, confidencia, não sem algum desalento, Joaquim Luís: “Não é tanto assim, Sr. António. Aí tem Vossa Mercê a minha Jerónima que foi muito procurada e pedida, e nunca a pude convencer a casar-se” (Idem, 24). Como se vê sem custo, o que Jerónima faz é, a seu modo, contrariar a lógica do patriarcado, que converte a mulher num objeto de desejo transacionável através de um casamento conveniente; e que veda à condição feminina a possibilidade de se imiscuir em afazeres puramente reservados ao homem, confinando-a ao lar. Ora a moça não só não casa com quem o pai gostaria que casasse, e não chegará a casar com quem quer que seja, como ainda consegue a proeza de se impor num domínio por excelência circunscrito ao poder masculino, que é o mundo dos negócios.[7]

E fá-lo astuciosamente, subvertendo a ordem patriarcal a partir do seu interior. Se não casa com determinada pessoa, recomendável do ponto de vista da genealogia ou do capital, a recusa não se fica a dever ao que mais atemoriza o regime patriarcal – o desejo –, antes aos valores que o patriarcado precisamente supõe e propala: cuidar dos interesses familiares. E com este propósito irrepreensível, livra-se de uma presença tutelar masculina sob a forma de marido e escapa a um lugar social subalterno, que lhe seria fatalmente imputado por via matrimonial. Fica assim salvaguardada a plena autonomia de uma protagonista que alcança um estatuto profissional que não é suposto uma mulher desempenhar por força da mentalidade de uma sociedade tradicional.

Numa palavra, dando azo ao seu perfil empreendedor e independente, Jerónima, como não é difícil perceber, não sacrificou propriamente a sua natureza em função de interesses superiores, como seriam os da família; sacrifício, isso sim, seria forçá-la, custe o que custasse, ao matrimónio, enclausurando-a numa existência doméstica. Veja-se que quando o pai a instiga a casar-se com Pedro, a moça “respondeu com a negativa das suas propensões, humilde na resposta, e submissa ao sacrifício” (Idem, 59; itálico meu). E quando, mais tarde, o negociante volta à carga, eis o que lhe responde a filha: “Sempre submissa ao sacrifício, meu pai [...]; a minha felicidade tem de acabar; se meu pai lhe quer antecipar o fim, seja feita a vontade de Deus e a sua” (Ibidem; itálico meu). Estes dois excertos são ainda oportunos por darem conta da estratégia que Jerónima costuma mobilizar para convencer os interlocutores dos seus propósitos: primeiro, afirma sem concessões o seu desejo (neste caso, não casar), para depois então moldá-lo o mais possível à ordem vigente, desarmando com isso a pretensão patriarcal. Quer dizer, Jerónima não deixa de afirmar com veemência que não pretende casar, mas, acrescenta, cederá ao matrimónio se essa for a decisão inabalável do pai, ainda que essa decisão acarrete inexoravelmente a sua infelicidade, cenário para o qual, em jeito de sacrificada, se diz preparada e que, como é evidente e como a própria muito bem sabe, atendendo à condescendência do pai, não enfrentará. Portanto, a moça não procura impor irredutivelmente o seu ponto de vista pela força, como seria teimar não casar e ponto final; antes, perspicazmente, o que neste contexto significa socorrer-se do subterfúgio da chantagem (note-se), faz com que a postura paterna se torne inexequível. E isto, e aqui reside a perspicácia da personagem, consegue-o sem infringir as normas e os códigos patriarcais. Não correspondendo ao desejo do pai, não desobedece, contudo, à vontade paterna.

Vejamos outro exemplo. Com o intuito de melhorar o negócio, afora os cereais, o arroz e o café, que seu pai já comercializava, Jerónima perspetiva armazenar azeite. A semelhante empreendimento opôs-se-lhe o pai. Jerónima não capitula e orienta a sua saciedade de diversificar negócios para uma atividade mais consentânea com o seu estatuto de mulher:

Não pôde Jerónima levar à seriedade a galhofa de seu pai. Desistiu, e voltou o pensamento para outro lavor mais caseiro e adequado. Lembrou-se de fazer doce, mediante o ensino de uma criada de freiras Claras, que tinha sido de sua casa. Consentiram na empresa os pais, e Jerónima deu-se toda àquele pesado trabalho, nas poucas horas que dantes reservava ao repouso (Idem, 61.)

Em resumo, a moça não desistiu de empreender um novo desafio comercial, só que o não fez à custa da ordem patriarcal, encarnada pelos pais, o que fez foi adaptar-se a essa ordem, alcançando um equilíbrio razoavelmente consentido. Esta qualidade de saber adaptar-se às circunstâncias e, com isso, levar a efeito as suas intenções, ainda que com alterações pontuais, sem, porém, melindrar os propósitos de fundo (neste caso específico, empreender uma diversificação da atividade comercial), surge por diversas vezes. Mais um exemplo. Vendo a compleição da filha a dar sinais de fraqueza, à conta do excesso de trabalho, Joaquim Luís acaba por lhe interditar o fabrico de doces; e sem compreender o espírito empreendedor da moça, que é tão avesso ao que se espera de uma filha, o comerciante censura-lhe a ambição nestes termos: “Quem te assim vir abarbada de projetos de ganhar dinheiro, há de cuidar que estás devorada de ambição” (Idem, 61). Jerónima responde com uma franqueza à prova de bala: “E estou, meu pai” (Ibidem). O comerciante, desolado com a resposta, condena-lhe, ainda que sem excessivo poder persuasivo, a ambição, tão contrária ao seu feitio cristão e ao da mulher, como argumenta. É então que Jerónima, moldando-se astuciosamente à situação, especifica os termos da sua ambição. Diz ela: “Ambiciosa da sua vida, meu pai; ambiciosa do seu descanso, e da sua saúde. Cuidei que podia com mais algum trabalho poupar meu pai a cuidados e aflições. Nesta esperança, é que me pareceu preciso e estimável o dinheiro.” (Ibidem). E acrescenta, e este talvez seja um ponto decisivo, numa nota que nitidamente releva da revolta interior pela subalternização a que a restringe a sua condição de mulher, revolta, como se pode ver, que não hesita em exprimir, embora sem o alcance de uma resistência firme contra o socialmente injustificável, uma vez que se resigna à ordem instituída, como se de um fa(r)do perpétuo se tratasse: “Era feliz eu, se conseguisse realizar o meu desejo; mas vejo que uma mulher é sempre mulher. Paciência. Meu pai continuará a fatigar-se, e eu a ajudá-lo como até agora” (Ibidem). Nesta passagem, numa formulação bem significativa (“Mas vejo que uma mulher é sempre uma mulher”), salta à vista, é bom enfatizar, uma revolta da personagem sob a forma de flagrante deceção perante o cancelamento de qualquer hipótese de a mulher se emancipar um pouco que seja. Mas o mais importante no excerto talvez seja a deslegitimação dessa revolta contra a dominação masculina através de um recalcamento: aquele pelo qual Jerónima, recuando, dá como certa – melhor seria dizer: inevitável – a irrelevância social da mulher se comparada com a prevalência de que goza o homem (“Paciência”); e, como tal, conforma-se a servir o progenitor, ainda que tal signifique um estado de coisas tão pouco funcional que não impeça Joaquim Luís de se extenuar (“Meu pai continuará a fatigar-se”). Mas esta resignação, anote-se, não deixa de dar azo, mesmo descontando a referência à fadiga do comerciante, exatamente como na conversa a propósito do casamento, a um momento notório de chantagem baseado na ideia de felicidade (“Era feliz eu, se conseguisse realizar o meu desejo”); e o que essa chantagem enuncia, em rigor, é um ideal de felicidade através da concretização de um desejo[8] que é uma força que não circula na ordem do discurso tradicional: equiparar-se, para efeitos laborais, ao estatuto masculino;[9] e, refira-se, a audácia desta pretensão reaparece na hora de nortear comercialmente a casa familiar, como sucede, depois da morte de Joaquim Luís, quando a incansável Jerónima cisma importar café e açúcar do Brasil, apoiada numa premissa que diz bem do seu espírito arrojado: “Sejamos ousados para sairmos desta tarefa do pão de cada dia. Os perigos não hão de estar reservados só para nós. O pai está no céu, e ele guiará a nossa fortuna a porto de salvamento” (Idem, 156).

Mais do que isso: depois do falecimento do Joaquim Luís, Jerónima é constrangida a viver com José da Fonseca, a irmã e os filhos desta, que é como quem diz: sob a (patriarcal) tutela do cunhado enquanto chefe de família. Não é difícil imaginar que a partida (intransigente) de Jerónima, que prefere servir uma família portuense, mesmo com a desvantagem de se submeter a atividades puramente adstritas ao papel oitocentista da mulher (educar crianças e pouco mais), resulte da sua incapacidade em subordinar-se à dependência financeira, mas certamente também (senão sobretudo) simbólica, do cunhado, por muito que o negue, quando este, bem sintomaticamente, lhe pergunta: “Viu no meu rosto um sinal que lhe fizesse lembrar que era apenas irmã de minha mulher, e um encargo para o pobre chefe de família?” (Idem, 198). Esta suspeita de José da Fonseca é decerto, desde logo, a mais elementar evidência do constrangimento de a filha do falecido Joaquim Luís se sujeitar a uma figura masculina que, muito patriarcalmente, tomaria conta da sua subsistência. Mais adiante, tendo partido, escreverá a José da Fonseca. A carta principia, muito significativamente, assim: “Meu irmão. Obedeço a uma força superior. Sigo o meu destino” (Idem, 211). Esta ideia, bem camiliana, de uma providência a ditar a inexorabilidade do trajeto das personagens serve aqui para enfatizar a singularidade de Jerónima, que não é uma mulher (submissa) como as restantes, mesmo que, neste caso, se ache no papel de preceptora, incumbência tão inversa à sua vocação e tão condizente com o papel da condição feminina numa sociedade patriarcal. De resto, depois de referir ao cunhado razões de índole económica, eis algumas que convoca para justificar a saída:

Estou nova, tenho vigor, tenho vontade de trabalhar, e sinto-me doente da alma e corpo na ociosidade. Que posso eu fazer na sua companhia? Contar os meus dias de indolência e inacção. Sentar-me à mesa para tomar uma parte do produto da actividade alheia. Levantar-me da mesa para me empregar em trabalhos, quase inúteis, com que as mulheres costumam encobrir a sua ociosidade. (Idem, 212.)

Uma vez mais Jerónima insurge-se contra o papel passivo reservado à mulher, o que, no seu caso, contrasta manifestamente com um temperamento e um vigor sedentos de atividade. Logo a seguir, acentuando o valor da independência, reporta-se à satisfação – talvez mesmo melhor fosse dizer ao gozo – de não depender economicamente de quem quer que seja, apenas de si mesmo, no reconforto de receber o justo estipêndio pelo seu trabalho. Assim, esta missiva é a reiteração do que antes se disse de Jerónima: trata-se de uma personagem ancorada num ideal que é aquele de se elevar acima de uma condição de subalternidade ditada pelo género e não pelo desmérito laboral. Podemos ver nesta posição, que todos se apressam a louvar como exemplo de dedicação extrema ao lar – ao lar patriarcal, repita-se –, um desvio para uma autonomia contrária aos fundamentos da família patriarcal, sobretudo estando em causa o destino de uma mulher solteira. A saída de Jerónima do lar chefiado pelo cunhado foi a solução conveniente para que a moça desse azo à sua sede de emancipação que é, antes de tudo, um profundo anseio de se valer a si própria sem a intercessão benevolente dos demais. Não consentindo na dominação masculina, e numa atitude não pouco audaciosa, Jerónima proscreve a dependência. Pugna, em síntese, pela sua individualidade, numa sociedade em que a individuação, a existir, não foge muito de um interesse superior chamado família e onde os trajetos individuais se sujeitam à responsabilidade coletiva. O caso agrava-se tratando-se de uma mulher, como é lógico.

É preciso entender que neste tipo de sociedade tradicional, que torna os ordenamentos sociais a um tempo naturais e necessários, a família assume a unidade nuclear da sua necessidade e da sua naturalidade, e de tal forma que quem não dispõe de parentes se pode ver remetido para uma situação marginal e periférica. O sociólogo Niklas Luhmann fala em individualidade assegurada mediante o princípio da inclusão, para dar conta deste tipo de organização social que desconsidera o indivíduo situado à margem das relações sociofamiliares (cf. Luhmann, 1999: 146). Num tempo de transição mental e real como aquele em que Camilo viveu, a família ainda pode ser como que um recôndito que preservaria dos insensatos ímpetos sentimentais, impedindo emancipações individuais; em rigor, ela é interpretada já como esse recesso que preserva da debilitação moderna da hierarquia, da progressiva carência daquele símbolo central (Deus), da desordem que se afigura ter curso no largo mundo povoado de indivíduos inseguros, por isso que a sua vida consiste em errar de perigo em perigo. Por muito que os narradores camilianos possam por vezes desejar o contrário (e daí o papel ambíguo do patriarca nas suas ficções), esta família idealizada deve já compensar com alguma solidariedade afetiva da perda continuada da necessidade social. Ela existiria para proteger do mundo. Eis, que nem de propósito, o que diz António Joaquim, em Doze Casamentos Felizes, ao seu interlocutor, o autor-narrador:

A família, meu amigo, é a base fundamental da sociedade; e é refúgio das virtudes acossadas pelas paixões dos que vagabundeiam de escolho em escolho; é a arca santa que alveja no dorso empolado das tormentas do coração e do espírito. ‘Sem família, qual seria o destino da mulher?’ pergunta Legouvé. – Sem a família o que seria o homem? (Castelo Branco, 1979: 238.)

Uma família funciona em termos de “uma rede de trocas e apoios recíprocos, além de conflitos e de ódios, que reforça, desmantela e mistura as linhas de descendência e de pertença. Ela dura muito para lá do tempo de um núcleo familiar, vinculando e ligando ao mesmo tempo as gerações” (Saraceno, 1997: 63). Isto quer significar que o conceito de família do antigamente se afigura assaz distinto da noção de família moderna. Como é evidente, não se trata de um agregado composto simplesmente por pais e por filhos e que se renova de geração em geração. Em contraste com o que sucede na chamada família nuclear, a família das sociedades tradicionais, em conformidade de resto com a origem etimológica do lexema “família”, possui uma amplitude bem maior. Do ponto de vista sincrónico, digamos assim, abarca tios, primos, sobrinhos, donzelas e mancebos, bem como os criados da casa e caseiros, conglobando o parentesco por consanguinidade e por aliança. N’O Bem e o Mal, por exemplo, Rui de Nelas Gamboa de Barbedo refere-se aos filhos de um seu falecido caseiro como sendo “filhos do meu coração” e, ainda, como “filhos dele [do caseiro José Ferreira da Rechousa] que eu herdei” (Castelo Branco, 2003: 224). Na perspetiva diacrónica, estende-se por várias gerações. De resto, o prestígio no Antigo Regime define-se por três vetores fundamentais e inextricáveis, que são a ascendência, o parentesco e as alianças. A coesão de tais famílias assenta num mester (agrícola, comercial, artesanal, etc.) e não porventura num sentimento de intimidade familiar. Enquanto as famílias modernas existem em torno da coesão emocional dos seus membros, o que compensa a impessoalidade das relações sociais, as famílias tradicionais não convertem a intimidade sentimental num vínculo especial ou determinante. Mais do que a coesão sentimental, as famílias antigas servem para garantir a posição social dos seus membros. Como célula social básica de uma sociedade fortemente estratificada, a posição social de cada pessoa não provém de um esforço pessoal em cada geração, mas resulta, ao longo de sucessivas gerações, de um legado familiar. As relações hierárquicas são taxadas pela sucessão das gerações. Sem hipótese de mobilidade social, um comerciante é-o por ser filho de comerciante, sendo que o filho e mais tarde o neto também seguirão, por legado familiar, o mesmo ofício, e assim sucessivamente. Daí as dificuldades, para nos referirmos a outro exemplo camiliano, por que passa Fernando Gomes, o protagonista de Agulha em Palheiro.Decide estudar (é a educação laica como tentativa moderna de mobilidade social), mas debate-se com o senão de provir das classes baixas. É filho de sapateiro, condição que muito o apoquenta face aos remoques dos colegas fidalgos, a mostrar que os indivíduos não se definem pelas eventuais qualidades pessoais de que dispõem, antes pela linhagem a que pertencem, quer dizer, o lugar social que cada um ocupa – pressuposto sólido e, por assim dizer, intocável do Antigo Regime – provém de um preenchimento efetuado por hereditariedade:

Nos colégios, os mestres eram os primeiros a darem o exemplo das preferências. A aplicação no moço da baixa tracção era menos louvada que a preguiça no escolar de família ilustre. Este escárnio do Evangelho chegava até Coimbra, onde se digladiavam primazias de nobreza, e só com muita paciência para ultrajes e desprezos, conseguia formar-se o filho do artífice, que não se abalançava a entrar em comunhão de ciência com os privilegiados da boa fortuna. (Castelo Branco, 1904: 23.)

Regressando a Jerónima, cumpre assumir que o que tudo isto significa é o facto de a personagem se apresentar algo desenquadrada do ponto de vista cultural e histórico. Se infringe os preceitos da ordem tradicional ao não acatar a sugestão do pai para que se casasse com um partido a não desperdiçar, também não repudia tal imposição através de uma atitude tipicamente afeta à modernidade romântica, isto é, não age como age por querer desejar livremente em conformidade com o coração e por não querer subordinar o seu desejo ao do pai. Jerónima, cujo feitio desde a infância era pouco dado a manifestações de afeto e que trocava de muito bom grado a ternura de Joaquim Luís por um caderno onde pudesse ocupar-se com contas e trasladados (cf. Castelo Branco, 1974: 55), como que opta por uma terceira via: a que denega a pretensão da ordem patriarcal em prol, ou supostamente em prol, como ficou dito, dos valores que essa ordem apregoa (a situação, sob outra modalidade, repete-se quando, falecido o pai, a moça se vê constrangida a viver sob a dependência do cunhado, subordinação que repudiará, conforme vimos).

Cabe agora indagar: se Jerónima é assim tão manifestamente talhada para os negócios e tão pouco – ou aparentemente tão pouco – talhada para a vida de casada, desde logo pela interferência que essa vida acarretaria, é de crer, no sentido, muito provavelmente, de significar a impossibilidade de se devotar à atividade comercial que tanto parece apreciar; e se, além disso e por causa disso, é assim tão ciosa da sua (inviolável) independência, não obstante a sua inescapável condição de mulher oitocentista, então, nesse caso, qual a razão pela qual se torna crível insistir na tese do sacrifício, segundo a qual Jerónima só não casou porque se devotou inteiramente à família (tal como se pode argumentar, note-se, que partiu de casa procurando sustento noutra parte, à custa do seu labor, para não pesar no orçamento escasso do cunhado, o que tende a ser, uma vez mais, o exercício de um sacrifício)? Creio que essa tese colhe a sua legitimação fundamentalmente numa passagem em particular: aquele trecho em que o inconsolável Pedro encontra Eulália e a inquire sobre o que se passou com a irmã depois de esta se deparar com a (muito provável) resistência do pai de Pedro a que ambos casassem. Eulália faz então uma descrição nitidamente romântica do sucedido. Vale a pena recordar:

Pedi a Eulália que me contasse miudamente a morte de sua mãe.

– Pouco posso dizer-lhe – respondeu ela, querendo em vão sustar o choro. – Minha irmã Jerónima adoeceu...

– Quando adoeceu? – interrompi.

– Depois que recebeu a carta de seu pai.

– Sabe o que meu pai lhe diria?

– Penso que reprovava o casamento.

– Mas sua irmã adoeceu nessa ocasião, logo depois que recebeu a carta de meu pai?

– Logo depois; e dizia-me às vezes que levaria a Deus muitas acções de graças, se lhe mandasse a morte.

– Falava-lhe em mim sua irmã?

– Nunca falou... só uma vez, quando lhe disse a mana Maria que o Sr. Pedro estava a morrer.

– E que lhe disse?

– Que as mais felizes uniões se faziam no céu... Depois – continuou Eulália – minha mãe, vendo assim Jerónima, começou a adoentar-se e a dizer que não ia longe. (Idem, 186-187)

Como se constata sem dificuldade, tudo aqui surge notoriamente tintado de romantismo. É, por assim dizer, o momento alto em que Jerónima, ainda que com poucas palavras, desvelaria, através – é bom notar – do relato da irmã o que realmente lhe iria na alma; e o que lhe iria na alma corresponderia às expectativas românticas de Pedro, mesmo com o risco de contrariar parte do que antes se disse de Jerónima. Estou a pensar, evidentemente, sobretudo naquele momento em que Fonseca ajuíza Jerónima como moça austera e sem coração, ou melhor, com “um coração aleijado, ou degenerado pela influência dos costumes varonis em que se fez, e rapidamente consumiu a sua mocidade” (Idem, 183), e pede a Pedro “que tenha dignidade, que esqueça Jerónima, que volte à estima e confiança de seus pais, e, finalmente, que seja homem” (Idem, 184). Se prestarmos, porém, alguma atenção ao que nos é dito sobre a filha de Joaquim Luís, vemos que nada, na verdade, inviabiliza uma leitura consentânea com as palavras acabadas de transcrever de José da Fonseca. Como se disse, e repita-se, quem confidencia o teor romântico das palavras de Jerónima não é a própria, mas uma das irmãs; e quem ouve tais palavras é um moço imbuído de crenças e expectativas românticas e febril de amor por Jerónima; e é esse moço – repare-se – que arrasta uma paixão incurável e que idealiza sem fim Jerónima, que, por sua vez, transmite ao narrador a conversa. Creio que é necessário realçar que tudo isto cria um cenário de interlocução assaz passível de deformar a mensagem nos seus propósitos, uma vez que a frase “Que as mais felizes uniões se faziam no céu” se presta a que nela cada um deposite o melhor da sua imaginação. Mas mesmo que assim não fosse, é preciso notar o seguinte: por indesmentível que possa ser a afirmação de Jerónima, por doente que tivesse ficado logo após receber a resposta do pai de Pedro – o que não quer obrigatoriamente significar uma relação de tipo causa e efeito, embora seja evidente a sugestão da mesma – e por doente que ficasse a mãe de Jerónima por constatar a filha a padecer, isto tudo, esta convergência de atitudes com uma afirmação de cariz eminentemente romântico, não quer significar a certeza de que Jerónima no íntimo de si mesma amasse fulgurantemente Pedro e que desposasse intensamente a lógica do amor romântico. A única certeza com que ficamos é que se assim fosse – se fosse crível este romantismo sentimental – dar-se-ia uma reviravolta (romântica) bastante surpreendente na personagem, já que iria contra tudo o que dela tenderíamos a imaginar. Ora, a confidência de Jerónima à irmã, mesmo na convicção de não se apresentar deturpada, não chega, presumo, para revelar uma consciência romântica. De facto, podemos ler a afirmação filiando-a meramente num dizer moral e não suspeitar nela a feição de um eco dramático que seria a marca reconhecível de quem sacrificou, à conta de uma heroica penitência familiar, um grande amor para esperar vivê-lo onde se vivem os grandes e infindáveis amores – no absoluto. O que Camilo aqui fez foi porventura suscitar, digamo-lo deste modo, a dúvida relativamente à hipótese de uma possibilidade romântica na personagem no plano amoroso. Sobretudo ao não desfazer o imperativo romântico por que se guia Pedro, que sempre viu em Jerónima qualidades sentimentais e um devir romântico difíceis de vislumbrar. É claro que isto não quer dizer que a filha de Joaquim Luís fosse irremediavelmente nutrida por uma negatividade antirromântica. A força do romantismo de Jerónima, penso, mede-se essencialmente pela sua persistente demanda de emancipação das castrantes estruturas sociofamiliares oitocentistas, sendo que – ponto crucial – opera essa emancipação a partir do interior do imperativo patriarcal, conforme assinalámos. Ou, se se preferir, pelo facto de a personagem ansiar e conseguir, não sem resistência, a todo o custo manter uma liberdade, que a sociedade em princípio lhe negaria sem mercê em virtude do seu género, e fazê-lo, como se viu, dando a notória impressão de que se manteve fiel aos princípios advogados por uma sociedade que preza valores familiares e não tanto individuais, sobrepondo, em todo o caso, o homem à mulher. Todo o percurso de Jerónima evidencia a reivindicação de liberdade, não através de um conflito frontal com a ordem instituída, antes por intermédio de uma cesura na continuidade, liberdade que talvez atinja, paradoxalmente, o seu ponto culminante quando se vê ocupada em tarefas tipicamente femininas ao serviço de uma outra família que não a sua.

Poder-se-ia deduzir daqui um fracasso, na medida em que Jerónima, bem vistas as coisas, acaba confinada ao horizonte de uma matriz patriarcal através de um lugar que é aquele a que uma mulher de Oitocentos pode aspirar e não mais. Parece evidente que sim, porém é preciso não esquecer que esse sacrifício – e aqui, ao que creio, pode falar-se decerto em sacrifício – surge como solução para o que seria um sacrifício, esse sim, intolerável: depender de José da Fonseca. Significaria isto tornar-se naquilo que, verdade se diga, nunca foi: refém, em termos de subsistência, da família. Com a ida para o Porto, Jerónima, pelo menos, alcança o orgulho de se sustentar através do seu trabalho[10] e a não menor satisfação de escolher o rumo do seu trajeto.[11]

 

Referências

Castelo Branco, Camilo (1904), Agulha em Palheiro, 5.ª ed., Lisboa, Parceria António Maria Pereira [1863].         [ Links ]

––––, (1971), A Filha do Doutor Negro, 8.ª ed., Lisboa, A. M. Pereira [1864].         [ Links ]

––––, (1974), As Três Irmãs, 11.ª ed., Lisboa, Parceria A. M. Pereira [1862].         [ Links ]

––––, (1979), Doze Casamentos Felizes, 9.ª ed., Lisboa, Parceria A.M. Pereira [1861].         [ Links ]

––––, (2003), O Bem e o Mal, Porto, Edições Caixotim [1863].         [ Links ]

Badinter, Elisabeth (1985), O Amor Incerto. História do Amor Maternal (Do séc. XVII ao séc. XX), Trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio D’Água [L’Amour en plus, 1980] .         [ Links ]

Cabral, Alexandre (1989), Dicionário de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Caminho.         [ Links ]

Coelho, Jacinto do Prado (2001), Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, 3.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.         [ Links ]

Luhmann, Niklas (1999), Politique et complexité. Les contributions de la théorie générale des systèmes, Essais choisis, traduits de l’allemand et présentés par Jacob Schmutz, Paris, Éditions du Cerf.         [ Links ]

Matos, S. Campos (1990), História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus (1895-1939), Lisboa, Livros Horizonte.         [ Links ]

Saraceno, Chiara (1997) Sociologia da Família, Trad. de M. F. Gonçalves de Azevedo, Lisboa, Editorial Estampa.         [ Links ]

Žižek, Slavoj (2008), La parallaxe, Paris, Fayard.         [ Links ]

 

[Recebido em 5 de maio de 2013 e aceite para publicação em 20 de agosto de 2013]

 

Notas

[1] Como não deixa de ser o caso d’As Três Irmãs, novela inicialmente publicada sob a forma de folhetim em O Comercio do Porto entre janeiro de 1861 e fevereiro de 1862.

[2] Uma razão avançada por Alexandre Cabral para explicar a brandura de Camilo para com a moral burguesa é o facto, como sabemos, de o novelista por essa altura se achar na Cadeia da Relação do Porto, acusado de adultério. Assim, Camilo pretenderia através desta novela nada menos do que fornecer uma imagem “benigna”, como diz Alexandre Cabral, de si mesmo, capaz de lhe atenuar a má reputação junto da burguesia portuense, que tantas vezes satirizou inclementemente noutras novelas (Cf. Cabral, 1989: 636). Estratégia, tudo bem visto, que poderia não ser sem consequências no tocante a um julgamento mais favorável. Contudo, é preciso não esquecer que foi igualmente na condição de detido que Camilo redigiu Amor de Perdição, narrativa que enaltece a paixão tumultuosa e põe em evidência a família (a que é capitaneada por patriarcas autoritários e cheios de prosápia, pelo menos) como fonte de preconceitos e de uma generalizada infelicidade conducentes à tragédia irreparável; e não será despiciendo igualmente assinalar que, ainda na condição de preso, o novelista não se inibia, muito provocadoramente, de gozar o privilégio de passear ‘livremente’ pelas artérias do Porto, a despeito, é de crer, dos olhares estupefactos dessa mesma burguesia que supostamente poupa em As Três Irmãs.

[3] Quanto a esta questão da intransigente obediência (melhor seria dizer: devoção) filial, há que perspetivá-la, como é evidente, no contexto (ante-moderno) da época. Neste sentido, outorgava-se a missão ao chefe de família, que Elisabeth Badinter designa com justeza de “Pai-Marido-Senhor omnipotente” (Badinter, 1985: 28), a função de asseverar que os filhos sacrificassem sem reservas os seus desejos e os seus sentimentos a favor da comunidade a que pertencessem. Por outras palavras: numa ordem assente no primado do coletivo (a família) e na desconsideração do individualismo (as aspirações particulares), o pai é quem garante a domesticação do desejo individual, tido como uma manifestação de inaceitável interesse egoísta. Para relembrar, já agora, uma curiosa personagem d’A Filha do Doutor Negro, o latinista Januário Castro Silva, citemos a passagem em que este experiente pai de filhas, que já foram insubmissas, confidencia a João Crisóstomo o papel decisivo de seu pai na domesticação de seu então intrépido coração em tempos idos de juventude. Começa Januário Castro Silva por afiançar que “O coração é o demónio, sr. João!… Se a gente, quando chega aos dezoito anos, pudesse tirar isto do peito como quem tira um lobinho do espinhaço, outro galo nos cantara!…” (Castelo Branco, 1971: 74). E, a seguir, confia ao seu interlocutor o porquê de não ter sucumbido aos malefícios de tão indomável órgão: “Eu, na sua idade, sr. João, o que me valeu foi ter um pai que me trazia com cabeções; senão as asneiras haviam de ser tantas como os gafanhotos da praga. As mulheres, as mulheres, sr. João!” (Ibidem). Ora bem, a intervenção do pai em tais meandros só se afigura possível na inteira medida em que temos a configuração da família tradicional em termos de um universo totalitário, organizado e unido sob a égide da autoridade paternal (pater familias). A supremacia do pai assenta numa hierarquia de sentimentos que sujeita os membros da família ao seu arbítrio, dependência visível na identificação dos filhos e da esposa com a sua pessoa e na ideia da prevalência, em constância e força, do seu amor. A mulher identifica-se com o marido de acordo com o pressuposto dos Evangelhos, consagrado nas cerimónias nupciais, de que são “carne de uma carne”; de que a mulher procedeu do corpo do homem e a ele retorna através do matrimónio. No caso dos filhos, são amados no sentimento de que continuam os seus progenitores. O mesmo é dizer que um pai ao engendrar um filho se continua a si próprio. O filho faz parte da pessoa do pai. Isto explica que as ações dos filhos (injúrias, dívidas...) incidam diretamente na pessoa do pai; e que entre pais e filhos, regra geral, não se permitam negócios; e ainda que os ganhos patrimoniais dos filhos fossem adquiridos pelo pai. Numa palavra, a família funciona a uma só voz. A do Pai (não raramente tirano e cheio de prosápia, a avaliar pela maioria dos patriarcas da ficção camiliana).

[4] Aliás, se assim for, apetece afirmar que a desconsideração estético-literária da novela, fundamentada nos valores conservadores que o texto enfatizaria, procede, em bom rigor, mais de uma inculcada leitura conservadora desse texto do que propriamente do que vem de facto no texto (e da intenção de Camilo ao elaborá-lo).

[5] E Jerónima, diga-se, não é a única heroína oitocentista pautada por um comportamento que a faz superar o lugar (socialmente pouco relevante) que o poder masculino no século XIX reservava à condição feminina. Em História, Mitologia, Imaginário Nacional. A História no Curso dos Liceus (1895-1939), S. Campos Matos chama a atenção para este tipo de heroínas viris: “Não surpreende, pois, que numa conjuntura mental em que domina este paradigma do heroísmo, as raras heroínas escolares revelem frequentemente qualidades que, do ponto de vista cultural, remetem para o universo masculino (Deuladeu Martins, a corajosa defensora da praça de Monção contra os leoneses, a agressiva Padeira de Aljubarrota nos combates contra o inimigo externo, ou a determinada D. Filipa de Vilhena, que coloca o valor patriótico acima do valor maternal).” (Matos, 1990: 167)

[6] Daí que seja forçoso, creio, alguma distância critica na hora de ler a carta que Jerónima enviou ao pai de Pedro, sem que este soubesse. A certo momento da missiva, escreve Jerónima: “Creio que todos os pais são como era o meu; e, assim como eu seria incapaz de desobedecer-lhe, penso que todos os filhos devem ser iguais na obediência” (Castelo Branco, 1974: 182). É preciso ver que Jerónima escreve ao pai de Pedro por desconfiar fortemente de que este a aceite como nora, o que equivale a afirmar que, neste caso, a obediência se poderá saldar por não casar com Pedro. Por outras palavras, é difícil, penso, não desconfiar de que a carta mais não tenha sido, ao fim e ao resto, do que a ratificação da sua intenção, em boa verdade, de não casar com Pedro. Veja-se que a moça, quando anuiu casar com Pedro, fê-lo de um modo absolutamente desconcertante, porque desprovido da mais elementar manifestação sentimental: “Tenho uma palavra que lhe diga: casarei – respondeu ela [a José da Fonseca], e continuou a bordar” (Idem,170). Neste sentido, o que a carta vem dizer ao pai de Pedro é algo como isto: “se me não quiser como nora, terá, em nome da obediência filial que para mim conta mais do que tudo, uma indefectível aliada para que o casamento se não realize”. E como diria, parágrafos adiante, José da Fonseca, com o intuito de resfriar a paixão alienante de Pedro: “Jerónima não o amou nunca, nem o ama agora, mas o nosso caso está no presente e no passado. Se o amasse, era sua esposa há seis anos, e era-o agora e sempre, a despeito da vontade de seu pai. Rigor tal de sentimentos, não é próprio de mulher de vinte e dois anos, se ela sente algum afeto, não direi já paixão!” (Idem, 183).

[7] Se perto do final da novela a vemos ocupada no papel de preceptora de crianças de uma abastada família portuense, essa função feminina da personagem, convirá observar, resulta mais da contingência da vida do que de uma vocação interior.

[8] Desejo esse, note-se, que aqui se pode, quiçá, ler tanto no sentido de uma felicidade por cumprir, já que a moça não se conseguiu eximir à subalternização, mas ainda – e talvez esta deva ser, se calhar, a leitura mais apropriada – como um desejo não forçosamente inatingível. Quer isto significar que não deixa de ser digno de registo um possível caso de Double Talk: ou aceitamos que o sentido da frase seja somente aquele que presume como único destinatário (intratextual, entenda-se) da mesma Joaquim Luís; e nesse caso Jerónima exprime o seu desalento por não contrariar, não obstante o seu mérito laboral, uma hierarquia inamovível definida pelo homem; e não deixa, por extensão, de fazer notar ao pai que este, ao barrar-lhe o acesso ao desejo, veda-lhe a felicidade; ou, agora com um sentido razoavelmente inverso, podemos ler a frase já não na exclusividade de esta supor o comerciante como destinatário, o que equivale a convertê-la numa constatação, sibilinamente expressa, que Jerónima faz de si para si em jeito de monólogo; e se assim for, e não há como negar que também assim pode ser (sobretudo tendo presente que Jerónima persistirá em desempenhar tarefas masculinas e conseguirá até ao fim furtar-se à subalternização máxima que seria ceder a um casamento por conveniência), então a frase ganha a tonalidade de um desafio.

[9] A certa altura da novela, aquela em que Jerónima justifica a sua decisão inabalável de se tornar preceptora, diz a moça lapidarmente: “Todos aqui sabem a constância das minhas resoluções. Seria escusado embaraçar-me. Podem afligir-me, e arrancar-me o coração em lágrimas; mas não mudam o meu intento. Vou em busca de felicidade” (Castelo Branco, 1974: 200). Ou seja, infelicidade seria continuar na dependência familiar e não dispor de coragem suficiente para se emancipar / autonomizar.

[10] Ainda que, verdade seja dita, o equilíbrio das suas finanças se fique a dever à generosidade (clandestina) do morgado do Sobral. Cristóvão de Lebrim, com efeito, cobre-lhe as perdas de um mau investimento, salvando-a assim de apuros financeiros

[11] Quanto a Pedro, entre outros aspetos recenseáveis, uma palavra para evidenciar que é por demais visível o funcionamento da personagem, em termos de género, como um contraponto de Jerónima. Se esta surge varonil, ativa, enfim, pautada por um revestimento nitidamente masculino, o moço, em contrapartida, ostenta atitudes que facilmente se impugnariam à sensibilidade de uma natureza feminina (sobretudo o sentimentalismo acentuado). Reconhece-se aqui uma espécie de troca de géneros como foi muito típico do Romantismo. Interessante talvez na personagem é reparar que parece ser vítima de um desejo mimético (René Girard), em que a inflação do desejo por Jerónima é proporcional à indiferença desta (isto é, Jerónima, na condição de rival de Pedro, já que desempenha o papel de obstáculo ao resistir à pretensão do moço, instiga-lhe o desejo de si mesma) Leia-se: “Que forte amor era aquele meu, que se alimentava e inflamava com o desdém e o menosprezo de Jerónima!?” (Castelo Branco, 1974: 168). Além disso, o que, em clave psicanalítica, o moço parecia desejar em Jerónima mais não seria do que tornar-se no falo desta, falo desta em termos de figura materna, entenda-se. É, pelo menos, o que se conclui deste excerto, que é a resposta que Pedro dá ao pai, depois de este desprezar a família de Jerónima: “Na família pobre que meu pai despreza há lá uma mulher que há de ter por mim coração de mãe, e será ela a única, a verdadeira mãe de entranhas que conheci nesta vida” (Idem, 180).