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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

Índico e(m) Moçambique: notas sobre o outro

Indian and (in) Mozambique: notes on the other

Nazir Ahmed Can*

Pesquisador de Pós-Doutoramento, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, Brasil. Doutorou-se em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (Universitat Autònoma de Barcelona) com uma tese sobre o escritor João Paulo Borges Coelho, que teve orientação da Profª. Mar Garcia. É membro de LITPOST (Literatures i altres arts postcolonials i emergents), grupo de investigação dirigido pela Profª. Mar Garcia.

nazircann@gmail.com

 

RESUMO

Salientando contextos, imaginários e tensões que configuram a região do Oceano Índico, este ensaio pretende focar as representações do indiano na literatura moçambicana e mais especificamentena prosa de João Paulo Borges Coelho. Através da análise da personagem Valgy, o louco comerciante monhé do romance Crónica da Rua 513.2 (Coelho, 2006), procurar-se-á evidenciar os diversos regimes de alteridade vivenciados por esta personagem. A partir desta personagem e da sua geografia afetiva – que parece confundir-se ora com a história nacionalora com o mito da história – observaremos como Valgy revaloriza a fronteira ambígua das coordenadas de existência espaço / tempo, resgatando a virtualidade poética do Oceano Índico, e sinalizando, numa geografia comum, a particular complexidade da história.

Palavras chave: Literatura Moçambicana; Indiano; Outro/Alteridade; João Paulo Borges Coelho; Oceano Índico.

 

ABSTRACT

Highlighting contexts, imaginaries and tensions that characterize the Indian Ocean region, this essay addresses the representations of the Indian within the Mozambican literature and, more precisely, in the literary work of João Paulo Borges Coelho. Analysing the character of Valgy, the mad Indian [monhé] merchant of the novel Crónica da Rua 513.2 (Coelho, 2006), the aim is to emphasize the different faces and phases of the other, and the character’s multiple markers of otherness. The discussion of this character and its affective geography – which sometimes overlaps with national history and at times with the myth of history – will prove that Valgy re-establishes the ambiguous margin between the coordinates of the space / time existence, releasing the poetic virtual sense of the Indian Ocean, and thus sketching the specific complexity of history in a common geography.

Keywords: Mozambican Literature; Indian; Otherness / Alterity; João Paulo Borges Coelho; Indian Ocean.

 

*

Introdução. O Índico entre pontes e costas voltadas[1]

Imaginários cruzados e reformulados, oriundos de uma história milenar de contactos comerciais e culturais, fazem do Índico uma região de originais confluências. Mas também um laboratório de violências, quer pela resistência à hibridez, quer pela dependência (política e / ou financeira) face a nações ou organismos extrarregionais.[2] Isto é, se o contacto civilizacional existe no Índico desde tempos longínquos, o mesmo tem sido acompanhado, a um nível local, pela segregação comunitária e, a um nível regional, pela distância simbólica entre os territórios, efeitos nocivos de uma colonização não tão distante no tempo. A literatura contemporânea ilustra estes dois movimentos simultâneos e aparentemente contraditórios.

Os sistemas literários dos países da região possuem atualmente algumas semelhanças, cujo aprofundamento não caberia neste espaço, mas que passam sobretudo pelas temáticas postas em cena, pela predominância – ainda que em diferentes dosagens – das línguas eurófonas[3], pelas tensões identitárias e comunitárias existentes e pela dualidade cultural de grande parte de seus autores.[4] Além disso, estes sistemas caracterizam-se pela fragilidade institucional e, consequentemente, pela dependência face aos órgãos de legitimação internacional. De fato, este cenário de atrelamento institucional continua a pautar a agenda das produções nacionais do Oceano Índico[5] e a dificultar um contacto regional mais produtivo. De costas voltadas entre si, sobretudo quando as línguas de produção não coincidem, os sistemas literários em questão mantêm uma ligação muito maior com as antigas metrópoles colonizadoras (França, Inglaterra, Portugal),[6] fato que, indo de mãos dadas com dependências de índole política (as ilhas de Reunião e Mayotte são ainda hoje departamentos franceses) ou de natureza econômica e financeira (com o FMI impondo também sua batuta opressora), sem obviar questões de responsabilidade local (como as escassas e precárias políticas culturais), pode facilmente ser comprovado pelas edições dos livros (pensadas majoritariamente para o mercado europeu), pela inexistente circulação dos mesmos nos territórios vizinhos e ainda pela própria dificuldade prática em transitar de um espaço a outro.[7] Um dos resultados mais evidentes deste quadro é a reduzida representação, nas literaturas nacionais, das realidades sociais e históricas dos restantes países ou departamentos que formam parte da região. Pode-se mesmo afirmar, com certa margem de segurança, que as produções do Oceano Índico padecem de um sintoma comum, uma espécie de insularidade ensimesmada, pois representam, salvo raras exceções, apenas os próprios espaços internos. Quando a exceção aflora, isto é, quando outros lugares e imaginários são convocados e explorados pelos autores, ela se dirige normalmente a realidades que sobrepassam as fronteiras da região.[8]

No que concerne às literaturas de língua portuguesa, a ideia de Índico tem sido associada nas últimas décadas fundamentalmente ao universo cultural e simbólico da Ilha de Moçambique. Topos por excelência de uma autêntica “encruzilhada transnacional” (Noa, 2012), a Ilha alavancou uma parte significativa da produção artística moçambicana, tanto das duas gerações de autores que se consagraram como “os poetas da Ilha” (Rui Knoply e Vergílio de Lemos, numa primeira fase, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White e Júlio Carrilho, a seguir)[9] como ainda de alguns autores que, nas décadas seguintes, herdaram tal “ferramenta” de expressão (Nélson Saúte, Adelino Timóteo, Guita Jr., Sangare Okapi, etc.). Este espaço geo-poético, onde nasceu Campos de Oliveira (1847-1911), poeta moçambicano de origem goesa, constitui uma espécie de objeto de desejo e motor de escrita não só para os artistas que por lá passaram literalmente (escassos) como também por aqueles que apenas a viveram literariamente (a grande maioria). Apesar de diferenciados entre si, os projetos estéticos que focalizaram a Ilha possuem um elo de ligação: procurando ordenar as categorias “nação”, “imaginário cultural”, “mulher” e “palavra” em uma única e performativa dimensão, raramente refletiram sobre o outro índico. Isto é, não somente o erótico e paisagístico Índico – motor de lirismo e de uma concepção específica da palavra escrita – ou o índico-nação – que orienta a reflexão para os caminhos históricos, culturais e identitários do Moçambique independente –, mas esse outro que se coloca no lado de lá das fronteiras líquidas do país. Apesar de ter pensado e inventado de maneira altamente original os rastros de cruzamentos inigualáveis que se materializam na Ilha de Moçambique, a poesia moçambicana nunca ousou a travessia e o desbravamento de paisagens (históricas, culturais, sociais) vizinhas. A “relativamente escassa presença do tema do mar na literatura moçambicana” (Noa, 2012: 7) de que fala Francisco Noa, em recente artigo, confirma esta dinâmica simultânea de proximidade e distância. Sem embargo, convém recordar, seguindo ainda o estudioso moçambicano, que não se vislumbra “em nenhum desses poetas o fechamento existencial e cultural a que se convencionou designar de ‘complexo do ilhéu’” (Noa, 2012: 9). Antes pelo contrário. A incorporação do Índico, como eixo temático, extravasa a ilha em si, anunciando um cosmopolitismo e uma modernidade dos quais esses poetas foram os portadores primeiros. No entanto, insistimos, trata-se de um extravasar para dentro do próprio território e não tanto para o outro lado do oceano. Fato que, por um lado, se entende, pois em causa estava, e ainda está, uma reflexão profunda sobre a nação que se ergue, sobre as escolhas identitárias e culturais que se desejam, sobre as transformações que se impõem. Assim, na relação com a Ilha, que, no dizer de Rita Chaves constitui “metonímia de uma história maior”, projetaram-se sobretudo “as conturbadas relações com Moçambique, o país em composição, a nação em montagem, esse chão convulso onde, em movimento, se articulam desejos e tensões” (Chaves, 2002). O mesmo ocorreu, parece-nos, no tal outro lado, que, grosso modo, tende a situar Moçambique não tanto como um dos polos centrais da ideia de transnacionalidade índica, mas apenas como uma porta de entrada para a África Negra; ou então como um resquício (muitas vezes não desejado) do passado escravagista. Este cenário de espelhos sem reflexos deve-se, em grande medida, pelas tais condições materiais e simbólicas desvantajosas, que impedem uma real e recíproca imersão nesses territórios. Daí que a realidade de outros espaços banhados pelo Oceano Índico acabe por ser incorporada apenas parcialmente, através da representação de personagens que, sendo nacionais e simultaneamente diaspóricas, fazem ecoar o tal outro lado. Importa, neste sentido, salientar o viés “fantasmático” de algumas designações ao outro índico, visíveis em expressões que são já lugares-comuns nas respectivas sociedades. A título de exemplo, se em Craveirinha, que resgata um termo utilizado em Moçambique, os “comorianos” são os muçulmanos do norte de Moçambique, em Jean-François Samlong, romancista da Reunião que recupera uma terminologia habitual na ilha, “moçambicano” designa o “negro vindo da África”, como ilustra Une guillotine dans un train de nuit (Gallimard, 2012). Neste romance histórico, Sitarane, “le mozambicain” ou o “Nègre africain” (Samlong, 2012: 192), o assassino em série que entre 1909 e 1910 semeou o caos e que, hoje, paradoxalmente, é uma espécie de herói e objeto de culto em grande parte da ilha,[10] desempenha um papel de protagonismo na narrativa, embora sua real origem se mantenha no campo das interrogações. Tudo isso, claro, sem contar a panóplia de termos existentes para designar as comunidades de origem indiana na região.[11] De resto, algumas das tensões comunitárias no Índico tornam-se explícitas no tom pejorativo com que alguns autores costumam representar determinadas comunidades. Como exemplo, podemos mencionar a dificuldade em se representar o mulato em Maurício e o indiano em Moçambique.[12] Ou, em sentido contrário, por vezes didático, podemos pensar na tentativa de resgatá-los da invisibilidade em ambos os países.[13]

A propósito da presença indiana na prosa moçambicana, pudemos observar, em outro espaço, como a inscrição tipificada do monhé da loja é de ordem estratégica e assume variados contornos, estando subordinada a um ensejo de diferenciação dos autores no campo literário do país. Notamos como o estereotipo, enquanto definição por redução, reapropriação do outro e alicerce da própria linguagem, para além de fazer conectar a literatura colonial à pós-colonial em alguns momentos, rompendo a rápida separação de águas promovida por parte da crítica, pauta as representações sobre o indiano em Moçambique – que acaba por ser modulado em função do projeto estético e ideológico de cada escritor. E, nesta órbita, o monhé passa de “traficante a traficado”. Assim, após analisarmos a representação do indiano nos textos de Nélson Saúte, Lilia Momplé, Suleiman Cassamo, Mia Couto, Paulina Chiziane e João Paulo Borges Coelho [a partir de agora, JPBC], concluímos que este último autor cria um novo lugar no campo literário do país. Não só por inserir abertamente o doxa para anunciar o paradoxo, mas também por privilegiar o fictício, recusando-se a uma exposição fatual da História, por introduzir personagens de origem indiana pouco domesticáveis e por conferir relevância ao não-dito, visto que, sendo também historiador, conhece sobremaneira o “já dito” (Can, 2012). De fato, dos nove livros publicados até a data, cinco deles incluem personagens de origem indiana, algo revelador da importância que JPBC outorga a esta histórica presença em Moçambique.[14] Além disso, na construção destas personagens notamos um ensejo de experimentação: todas elas são representadas de maneira extremamente diversificada no que se refere às características, à importância que assumem nos universos ficcionais, ao enfoque narrativo adotado, à variabilidade de pontos de vista representados e, finalmente, aos espaços e tempos históricos aludidos.

Assim, dando continuidade à reflexão iniciada em referido artigo, focaremos nossa atenção na representação do indiano na prosa JPBC, atentando, desta feita, para as várias fases e faces do outro. Ou, mais concretamente, para os diversos regimes de alteridade vivenciados por uma única personagem, Valgy, o louco comerciante monhé de Crónica da Rua 513.2 (Coelho, 2006). Observaremos como este ser simultaneamente de e de , pode, em alguns momentos, equiparar-se à restante sociedade do romance – filtrando sua alteridade pela inversão estratégica – e, em outros, mostrar sua faceta mais demarcada, mais diferencial – quando entra num declínio comunicacional absoluto com a clientela de sua loja. De permeio, analisaremos alguns dos não-ditos de sua constituição, isto é, os espaços brancos que nem o próprio narrador consegue (ou pretende) preencher. Veremos ainda como, no tratamento desta obscura personagem e de sua geografia afetiva (que, cruzando vários territórios que orbitam o Índico, se confunde ora com a história nacionalora com o mito da história), aciona-se o intertexto clássico, nomeadamente da Grécia Antiga.

1. Alteridade em primeiro grau. Ou a cereja do bolo coletivo

Por ser de origem indiana, “este outro que é, concomitantemente, parte integrante do processo de formação colonial” (Thomaz, 2004: 272), e por atuar de maneira ambivalente mesmo com a chegada da independência moçambicana, momento em que a ideia de “bem comum” ganha finalmente contornos de possibilidade, Valgy é um ser deslocado no tempo e no espaço. De fato, como afirma Omar Thomaz, o estereotipo que recai sobre o indiano no período pós-colonial tem origem no período colonial e nas suspeitas várias de que este é alvo. Ao contrário da maioria dos indivíduos portugueses ou de origem portuguesa, ou da quase totalidade das comunidades grega e chinesa que abandonaram o país, os indianos, ou muitos deles, ficaram em Moçambique, embora seja questionável se ficaram moçambicanos. Isto porque são conotados com práticas desnacionalizadoras, com a fuga ao fisco, com acumulação de bens em período de crise, etc. (Thomaz, 2004: 274). Uma das novidades trazida por Valgy – no que se refere aos mecanismos de representação do indiano na prosa moçambicana – tem a ver com o fato de a personagem atuar de maneira estratégica e diversificada, utilizando o capital simbólico de sua origem para provocar, na sociedade ficcional, sentimentos que vão da indiferença ao compadecimento. Mas raramente de revolta. Não sendo nem moçambicano nem português, nem branco nem preto, nem revolucionário nem reacionário (pelo menos em full-time), vivendo, além disso, na casa número 3, Valgy personifica a derrocada do binômio totalizador e chama para si a análise da contradição existente em qualquer espaço social em construção, transitório e convulso. Este fato pode ser observado, por exemplo, nos momentos em que os moradores da rua deixam os seus afazeres privados e se reúnem em prol das novas premissas da nação. O monhé é, de certa maneira, o emblema do imprevisto, a mancha não contemplada dos novos tempos:

E, finalmente, o a xiphunta Valgy, equipado a rigor como se tudo aquilo fosse um desporto: sapatos e meias brancas, calças tufadas, camisa alvíssima com estranhos emblemas ao peito, muito diferentes dos nossos (‘Oxford University’, esclarece ele a quem pergunta, e nós sem saber que lugar longínquo será esse), e até um vistoso boné, branco também, com uma grande pala para lhe proteger os olhos do sol. Uma mancha de brancura brilhando no nosso seio – sujos e cansados que estamos – como brilha um sol. Mais preocupado com vincos e nódoas que com a parte do buraco que lhe compete aprofundar, Valgy pega na enxada com a elegância com que empenharia o bastão desse desporto para nós desconhecido. E ah!, deitasse o inimigo agora a bomba e Valgy a devolveria com uma magistral tacada do seu improvisado bastão, com o merecido aplauso da rua inteira. Home Run! (Coelho, 2006: 103)

Valgy exclui-se desta interlocução, como demonstra o escárnio de um narrador provisoriamente coletivo. Identificado na contramão da primeira pessoa do plural (“nós”) e do pronome possessivo correspondente, postos na fronteira do discurso narrativizado e do estilo indireto livre, Valgy é o espelho mais eloquente do fiasco no primeiro dia de trabalhos. De fato, estes elementos gramaticais são carregados de significado na medida em que determinam, em primeiro lugar, o espaço referencial que envolve o locutor, e enfatiza a distância existente entre quem olha e quem é observado. Além da oposição gramatical entre as pessoas do diálogo, outros marcadores acentuam a diferença produzida pelo monhé no ambiente da rua. A roupa branca e tufada, descrita dos pés à cabeça, a preocupação em não sujá-la, o orgulho nos símbolos de Oxford que alberga no peito, a comparação com o brilho do sol (que cega o coletivo) e a imagem de Valgy jogando um esporte estrangeiro (cricket) com a enxada instauram não só a derrisão como também o embate irredutível entre a personagem e as premissas públicas da nova época (entre as quais a do Homem Novo, voltado para os interesses do coletivo nacional). Por outro lado, a introdução de parênteses, em vez de bifurcar a frase, intensifica a ridicularização do monhé. Assim, a referência irônica àquilo que para todos é incógnito (“e nós sem saber que lugar longínquo é este”; “desse desporto para nós desconhecido”) e a comparação hipotética (“como se”) criam um efeito progressivo de estranheza e de humor à volta de Valgy, separando-o simultaneamente do (então já desagregado) coletivo.

O advérbio “finalmente” indica, por outro lado, que a referência ao monhé é a derradeira de uma longa lista. De resto, Valgy já havia sido o último morador a ser anunciado noutros capítulos que relatam desencontros entre os moradores e o ideal revolucionário: no “Prólogo”, no momento em que uma voz coletiva hesita perante o misterioso número fixado numa placa em frente à casa do comerciante(Idem, 22); num dos capítulos centrais, intitulado “O comício”, em que Nikolai Viktorovich debanda sem sequer acenar “ao louco Valgy, perdido do velho mundo e com um difícil lugar no novo” (Idem, 166); e no “Epílogo”, que culmina com uma referência ao lago que se forma à porta do comerciante: “Orgulhosa ilha solitária” (Idem, 332). A ordem de apresentação das personagens viabiliza uma leitura sobre a hierarquia de forças que se estabelece na sociedade do romance e sobre a mensagem que o mesmo procura formalizar. E neste sentido, ao irromper sempre como o último elemento nos momentos “coletivos” da rua, Valgy representa não só um ser em perda como ainda a lembrança viva do choque entre o indivíduo e a ideologia em pleno período de euforia revolucionária.[15]

No entanto, apesar da diferença de origem (monhé), de comportamento (louco) e de estatuto (comerciante) que o demarca das restantes personagens, o destino de Valgy encontra muitas semelhanças com o de outros moradores da rua, quer transitem estes do “passado colonial” quer se situem exclusivamente no “presente pós-colonial”. O monhé constitui a recordação mais insólita de que estes dois universos temporais ainda se cruzam, apesar dos esforços do novo poder em erradicar tudo aquilo que vem de trás. Mas não é o único a lembrar que o passado não se elimina por decreto. Teles Nhantumbo passa a ser denominado “Mamana Nhantumbo”, batismo inventado pelas crianças da rua, repetindo o passado experimentado pelo monhé: ‘“Mamana Nhantumbo! Mamana Nhantumbo!’, cantam elas como antes cantavam o a xiphunta Valgy, para embaraço da Professora Alice” (Idem, 326). Também com Arminda poderíamos estabelecer uma ponte, dada a “natureza” da atividade que ambos realizam. A diferença entre Valgy e a prostituta é de forma, já que no conteúdo ambos convergem para o mesmo efeito: “Ficou-lhe na natureza, de quando estava no ativo, o agradar a gregos e troianos (...) O futuro que tem é vazio” (Idem, 77). No momento da independência, Arminda de Sousa não se manifestou nem a favor nem contra a revolução, mantendo-se num ponto intermédio, tal como ocorreu, de resto, com outras personagens (Pestana, Sr. Capristano, Costa, Valgy, etc.). Neste período, a prostituta branca da Rua 513.2 não tem outra solução senão ficar, já que foi barrada no próprio avião, tendo experimentado na pele uma espécie de ambivalência forçada: “E por isso partia, mas ficava” (Idem, 79). O partir e ficar é, aliás, uma das ideias fortes do romance e de toda a arquitetura simbólica da rua 513.2. Quanto às relações familiares, Costa prova, tal como Valgy, o drama da separação conjugal (p. 66), assim como a “matemática” distribuição dos produtos racionados: “Um casal com quatro filhos mais um primo e uma sobrinha, quatro quilos; uma avó viúva com dois netos, quilo e meio. O camarada Costa ou Valgy, meio quilo cada um” (Idem, 258). Também a loucura do acadêmico Doutor Pestana é comparada diretamente com os delírios do monhé: “o Doutor Pestana, empoleirado no telhado, desmontava ainda algumas telhas, falando baixo para si numa atitude que no vizinho Valgy teria tido algum cabimento (...) mas que nele era deveras descabida” (Idem, 56). A ambivalência de Valgy pode equiparar-se ainda à duplicidade física do Dr. Capristano, que possui a metade esquerda – facial e ideológica – paralisada (Idem, 70): “enquanto o lado direito era capaz de exprimir o que lhe ia na alma e de mostrar respeito por Ferraz, o outro, sempre inerte e enrugado, não chegava a constituir expressão” (Idem, 299); sem esquecer, finalmente, a “equilibrista de mundos” Guilhermina, que vagueia entre dois mundos opostos, os compromissos com a igreja e a amizade com o Secretário do Partido Filimone Tembe: “Dona Guilhermina é uma equilibrista que caminha no fio alto que divide os seus dois mundos (...).É como se houvesse duas Guilherminas e não uma só dentro daquela casca tensa” (Idem, 241). O que distinguirá Valgy de todas estas personagens será, no entanto, sua loucura estratégica, os pontos por explicar de seu comportamento e sua estrangeiridade.

Personagem-máscara por excelência, Valgy caracteriza-se por sucessivos processos de alternância, sejam eles discursivos ou acionais. As causas reais desta inconstância são constantemente recordadas: abandono da mulher sul-africana e os fracassos no negócio, devido à “invasão” dos novos tempos. Além disso, sua permanente instabilidade estará na origem das renomeações que lhe são atribuídas (“louco”, “a xiphunta”, etc) e dos imprecisos indicadores temporais de progressão inscritos para narrar seus gestos (“por vezes”, “outras vezes”, “quando”, “nos dias”, “dias não”, “dias sim”, etc.). A própria verossimilhança de Valgy assentará, portanto, neste constante e alienante vaivém identitário. Assim, além de existirem algumas semelhanças com as restantes personagens da rua, a permanente inversão garantirá a alteridade familiar (Baudrillard & Guillaume, 1994: 12) do comerciante. De resto, para François Hartog, o princípio de inversão é uma maneira de traduzir e descrever a alteridade, já que cumpre um papel heurístico:

il permet de comprendre, de rendre compte, de donner sens à une altérité qui sans cela resterait complètement opaque: l’inversion est une fiction qui fait ‘voir’ et qui fait comprendre: elle est une des figures concourant à l’élaboration d’une représentation du monde. (Hartog, 2001: 334)

No exemplo que se segue,[16] as duas fases e as duas faces de Valgy são fornecidas de forma consecutiva. O que marca a passagem de um estado a outro é um elemento exterior:

Por isso quando saía vestido com um irrepreensível fato de três peças apesar de ser Verão, fazia questão de dizer que tudo na indumentária era britânico – fazenda cortada e, Saville Row, gravata Dunhill, sapatos de puro couro inglês – enfim, nada que viesse de Lisboa.
Por outro lado, nos dias em que saía de casa envergando a longa e alvíssima djelaba, na cabeça um cofió bordado com intrincados desenhos, umas sandálias de tiras finas nos pés enormes, toda a gente ficava a saber ainda melhor da distância que ele queria assim cavar. Era um monhé rico que ia tratar de negócios na cidade sem para tal precisar das boleias do velho Ford Capri do senhor Costa. (Coelho, 2006: 124).

A alternância de um regime a outro se relaciona com a mudança de roupa, com a passagem do fato britânico para a vestimenta de “monhé rico”. As duas formas identificam, de resto, os seus dois lados mais visíveis ao longo da diegese: a primeira reafirmando o orgulho de sua estrangeiridade cosmopolita, a segunda atualizando a vaidade de uma origem sumptuosa – ambas de difícil materialização após a independência. Por outro lado, a utilização do imperfeito do indicativo, tempo de continuidade de ações pretéritas, realça o caráter repetitivo de sua teatralização (“toda a gente ficava a saber ainda melhor da distância que ele queria assim cavar”). Será esta reiterada inversão a impossibilitar a radicalização de sua alteridade. Mesmo o preconceito que sobre si recai (“louco”) nunca é rebatido. Pelo contrário, Valgy chega mesmo a sentir falta das brincadeiras das crianças que, quando passam por sua casa, o chamam a xiphunta: “Valgy não consegue conter-se e vem cá fora espreitar, vai mesmo até à praia ver se as vê brincar. Criou-se esta situação em que o velho doido as ameaça mas não consegue passar sem elas” (Idem, 309). Nesta perspectiva, sua inversão pode ser lida como uma estratégia de intermediação e mesmo de dependência para com os restantes moradores. Enquanto é louco, possui uma função, é visível, tem um lugar no mundo, estando simultaneamente em relação e fora dela (de acordo apenas com as conveniências do momento). Daí que a loucura do a xiphunta da casa número 3 chegue mesmo a ser “relativizada” pelos restantes moradores da rua, habituados que estão às mudanças de regime do monhé – além de serem, eles também, afetados por um problema complementar: “Também todos procuravam – sem achar – o que comprar, e por isso sentiam o problema de quem queria vender e não tinha como” (Idem, 226). A dependência é, portanto, mútua, sendo leviano aferir uma total exclusão desta personagem do universo da rua. A alteridade familiar, filtrada pelas semelhanças com outras personagens, pelo batismo (“monhé”, “louco”) e pela previsibilidade de sua inversão, sugere mesmo a pertença total de Valgy ao espaço da rua:“Claro que a desgraça de Valgy não passava despercebida na Rua 513.2. Viam-no sair e chegar acabrunhado, haviam-se afeiçoado ao a xiphunta, conheciam e apiedavam-se dos seus esforços” (Ibidem).

Quando não são os moradores, será o próprio Valgy a aproximar-se, saindo de seu autoexílio (“orgulhosa ilha solitária”), sobretudo por questões de negócios. As novas lealdades voltam a fazer recordar as antigas alianças: “São as laranjas de Pedrosa que chegam. Afinal, o Pedroso bem-cheiroso cumpriu com o prometido! Valgy corre para a entrada a receber a carrada, com a mesma reverência com que antes recebia os cetins e as cambraias” (Idem, 231). Assim, a relação de Valgy com os vizinhos viabiliza, para além de autênticos golpes de humor, uma reflexão sobre as formas de continuidade do passado no presente (exceções, tráfico de interesses, engodo). De resto, as lealdades e as diferenças cruzam-se ininterruptamente, podendo Valgy, como vimos, tornar-se sócio de Pedrosa, a quem antes considerava um espião; ou ainda contratar Tito para satisfazer um pedido de Filimone: “E Valgy, pensando bem, concluiu que talvez não fosse má ideia atendendo ao movimento que a loja registava. Além disso, não ficava bem recusar um favor ao Secretário. Afinal, havia dias em que Valgy não era tão louco como parecia” (Idem, 125). Se atentarmos para os dois exemplos de filiação fornecidos, entendemos facilmente os objetivos do monhé: lucro, por um lado, na aliança com o poder empresarial da rua; conquista da simpatia daquele que detém o poder político, por outro. A loucura, um dos principais marcadores da constituição da personagem, adquire, assim, um relevo palpável e explicável, subordinando-se à lógica estratégica do comércio (ou das “dissidências económicas” de que fala Pedrosa) e da troca de favores (“uma mão lava a outra”, como recorda a personagem Costa). Este fato nos leva, uma vez mais, a constatar que em Valgy encontramos não apenas o modelo de um ser deslocado e em perda, mas também o agente de determinadas lógicas que, fugindo da lei, transitam de um tempo para outro. Naturalmente, isto se dá porque o monhé, em progressivo declínio com a chegada da independência, contrasta com o tempo político que se vai formalizando no país: “À direita, um olhar reprovador para as gelosias cerradas de Valgy que, estando em dia não, resmunga não querer recebê-los. Estivesse em dia sim e talvez chegassem a negociar” (Idem, 151). Enquanto alguns moradores procuram ocultar suas várias facetas, o morador da casa número 3 opta pela estratégia da extravagância, que, sem embargo, não deixa de ser outra forma de dissimulação. Por outro lado, as expressões que descrevem seu estado de espírito (“em dia sim” / “em dia não”) podem ser entendidas num sentido mais amplo (“tempos sim” / “tempos não”): sem lugar no novo mundo socialista, por se encontrar “à direita” de Pogdorni (representante máximo da “esquerda” política nos anos 80), o comerciante vê-se na total impossibilidade de dar continuidade a seu negócio. Ambas as personagens, Valgy e Pogdorni, parecem confirmar tacitamente a ordem dos novos tempos, segundo a qual esta relação resulta ser absolutamente inapropriada.

Se a postura camaleônica de Valgy não suscita grande surpresa entre os moradores da Rua 513.2, dado já estarem habituados às metamorfoses do comerciante, há elementos de sua constituição que carecem de explicação. O monhé não apresenta uma diferença de fundo relativamente aos “antigos” e atuais moradores da rua. O que o distingue é a forma, a maneiracomo guarda para si o segredo; ou o modo como por trás do dito consegue fazer aflorar o não-dito. Assim, mais do que a reiterada dualidade de Valgy, o mais interessante é a aura de ambiguidade que confere ao universo ficcional. A começar pela própria origem e a culminar na dúvida que paira, lançada pelo próprio narrador, sobre os motivos de sua permanência num momento histórico em que os indianos estavam sendo expulsos da antiga colônia.

O mais provável seria terem prendido, humilhado e deportado Valgy como fizeram com a misteriosa Buba do senhor Marques e tantos outros, após o fatídico ano de 1961. Afinal, Valgy era oriundo de Zanzibar e a sua família tinha ramificações obscuras no voraz subcontinente que engoliu Goa. Mas Salazar teve destes mistérios: Valgy escapou às redes do solitário ditador como um peixe que já preso e subindo, voltasse no derradeiro momento a cair na água. Terá sido por algo que disse? Por algo que calou? Nas excepções se encontram os mistérios do salazarismo para quem os quiser encontrar. (Coelho, 2006: 123)

Se a goesa Buba é traduzida pela estratégia de mise-en-abîme, com sua história sendo contada aos retalhos pelo mecânico português Marques num empoeirado caderno de capas negras, o traço fundamental de Valgy é sua própria ambiguidade. A inscrição da água, do mar e a referência a uma salvação milagrosa e excepcional (das “redes do solitário ditador”) intermedeiam a junção de elementos intertextuais e históricos, todos eles marcados pela fragmentação informacional e pela ironia. Perante a precariedade de dados de uma época, que ainda assim indicia uma fuga à lei (“nas excepções se encontram os mistérios do salazarismo”), a vida do monhé só pode ser descrita pela comparação (“como um peixe”) – essa espécie de mergulho no símbolo.

Outro exemplo flagrante dos não-ditos em torno desta personagem, referente já ao período que se segue à independência, é o “pacto açucarado” que estabelece com Maninho, filho/enteado de Tito Nharreluga – antigo empregado da loja do monhé:

Esperneando, foi levado para dentro daquela casa assombrada, e se ninguém deu o alarme foi porque era cada um por si a caminho da praia, sem olhar para trás [...].Em seguida, tacteando pela banca da cozinha, achou o cartuxo pardo do açúcar que Antónia Antonieta trouxera e não lograra levar, e passou-lho para as mãozinhas pequenas sem uma palavra. Apenas aqueles olhos girando furiosos, ameaçando saltar das órbitas. (Coelho, 2006: 251-252)

Após o encerramento da loja e o despedimento de Tito, a relação entre Valgy e a família Nharreluga ganha novos contornos, que, no entanto, são deixados em aberto pelo narrador. O ex-comerciante oferece secretamente açúcar a Maninho, prolongando uma relação que já parecia morta entre as duas casas. Trata-se de um ato de caridade do monhé? Ou de novo gesto com interesses próprios? Sobre as razões concretas, o leitor nada sabe. A própria estratégia do narrador potencia esta ambiguidade. A perseguição e a captura do menino possuem, como se constata, um duplo sentido: a monstrualização de Valgy (“esperneado”, “casa assombrada” “olhos girando furiosos”) contrasta com o gesto posterior (“passou-lho para as mãozinhas pequenas sem uma palavra”), profundamente humano. Aquilo que pode ser o seu lado mais caridoso e aquilo que vinca a demência de seus atos são postos num umbral de indefinição, fazendo com que a ambiguidade reine nestas passagens. Ao mesmo tempo, e como sempre ocorre neste romance, o corriqueiro acontecimento da rua convida-nos a uma leitura mais abrangente, segundo a qual o velho (país) auxilia (ou patrocina) o mais jovem. Este último, convém recordar, é o filho-enteado, condição que faz ecoar de alguma forma o esquecido norte de Moçambique, região de origem de Tito Nharreluga, onde, mais adiante, se viverá o terror da guerra.

A variação comportamental de Valgy (para lá do simples e consecutivo jogo da inversão), o não-dito e a fragmentação reduzem a possibilidade de totalização do outro e do mesmo.[17]E tudo isto apesar de o monhé “totalizar” as restantes personagem: “Mas os pretos são como os portugueses: todos ladrões!” (Idem,126). Nesta perspectiva, a poética da ambiguidade executada nesta obra e, em particular, nesta personagem, visa a prevalência do mundo humano, imperfeito e inacessível. A diversidade de elementos associados à inversão de Valgy acaba, pois, por estar subordinada à inscrição da ambiguidade no texto e, em último grau, a um projeto estético que recusa a definição absoluta do ser e das coisas. Perante esta insólita personagem, qualquer tipo de generalização se torna inconsistente, já que ela representa a própria derrocada da resposta unívoca.

Para além da familiriaridade e da ambiguidade, Valgy apresenta uma terceira face, a da estrangeiridade absoluta. Dedicaremos, a seguir, uma atenção especial ao espaço de sua loja com o objetivo de verificar dois movimentos que se cruzam e que dão conta deste fenômeno: a simetria entre o vendedor e seus produtos e a assimetria entre o vendedor e seus clientes – momentos em que aflora o abismo entre um (o monhé) e outros (portugueses e moçambicanos).

2. Alteridade em último grau. Ou o tráfico do tempo na loja

Valgy é, como temos vindo a sublinhar, um ser deslocado e ambíguo. O amor pelos produtos de sua loja revela, para além dessas duas componentes, uma vontade desmesurada, um louco e anacrônico idealismo, semelhante ao de outra personagem de JPBC, Rashid,[18] o também comerciante de “O Pano Encantado”, do volume de estórias Índicos Indícios (Coelho, 2005). As mercadorias de ambos os vendedores deixaram seu lado inerte e estático para passarem a ser dotadas de paixão e de delírio, prevendo, quase sempre, o lado mais trágico da história recente do país. Existe, nesta perspectiva, uma forte interdependência simbólica entre o vendedor e os produtos que vende. Por outro lado, se para Jean Baudrillard e Marc Guillaume reduzir o outro a próximo é uma tentação muito difícil de evitar, já que a alteridade absoluta é impensável (1994: 11), o comerciante da Rua 513.2 contraria por diversas ocasiões este postulado, sobretudo nos momentos em que é confrontado com a clientela de sua loja. O monhé constitui um desses casos raros (na prosa moçambicana) em que o outro assume sua faceta mais demarcada e diferencial. Comecemos pelo primeiro ponto, a relação simbiótica entre o delírio da personagem e os produtos que tenta vender.

Um aspecto digno de registro, e que revela uma elaboração artística ministrada com extremo rigor por JPBC, tem a ver com distribuição espacial e o valor simbólico dos produtos de Valgy. Para o comerciante, por exemplo, aquilo que está mais próximo do teto é mais valorizado. As cambraias, que se escondem entre os animais e a sujidade das prateleiras de madeira, no lugar mais inalcançável da loja, são, por excelência, seus objetos de afetividade:

(...) cá em baixo, com as mais diversas e inesperadas cores; um pouco mais em cima pardos; lá no alto, num território só habitado por aranhas, osgas grossas e alguma pomba municipal entrada por descaminho através de uma fresta do telhado, apavorada por se ver também tingida de luto e sem saber como sair dele. (Coelho, 2006: 128)

A “focalização externa” predomina nestas passagens: o narrador restringe o campo informativo da percepção para assumir uma visão exterior ao narrado, espaço inabilitado de certezas relacionadas com a intimidade das personagens e com a sequência dos fatos (Genette, 1983: 207). Isto é, a ausência de indicadores espaciais intensifica o valor simbólico da descrição. O leitor sabe que se trata de uma estante, mas não sabe exatamente onde está situada. Começa a ter um progressivo centro de percepção, de focalização, através das locuções preposicionais ou dos advérbios de lugar postos em cena. Assim, durante todo o processo de venda (ou melhor, de tentativa de venda) potencia-se um jogo de orientação espacial e temporal que sugere múltiplas escalas de valor e de significado. As coordenadas de existência poderão, como sempre ocorre em JPBC, indicar apenas o presente da narração e o espaço minúsculo da estante, como também indiciar algo mais amplo, como a guerra civil: a festa das cores “cá em baixo”, no sul; o caráter cinzento e “pardo” “mais em cima”, no centro; a vida animal “tingida de luto”, “lá no alto”, no norte. Toda a descrição da loja fundar-se-á nesta desdobrada mediação: a material e a simbólica.

Por outro lado, não só o espalhafato teatral de Valgy alimenta a comunicação entre o “pequeno” quotidiano e a “grande” histórico. Os próprios produtos participam desta representação, adquirindo vida graças ao reiterado uso de verbos de movimento: “Panos brilhantes e escorregadios como cobras vivas, a gente amachucando-os e eles deslizando para se porem outra vez como eram” (Coelho, 2006: 129). O termo “cobra”, frequentemente inscrito por JPBC para sugerir o imaginário do norte de Moçambique,[19] faz da estante suja do monhé um dos topos evocativos da guerra. A oscilação existencial da personagem é também subtilmente (su)gerida no movimento do produto. Assim, quando o pano é retirado da parte mais alta da estante, todas as transformações (de cores e formas) ocorrem. A cambraia chega às mãos do comerciante totalmente transparente, espelhando-se no que há à volta, como se refletisse o próprio ato do comércio, da política e da manipulação histórica:

A princípio parecia uma mancha de tinta negra, uma fuligem sujando o ar, a asa de um morcego adejando devagar. A meio do voo ganhava tons cinzentos-azulados aos olhos da pasmada clientela, virada para cima a tentar descobrir o que ali vinha. E por fim, uma lenta borboleta colorida brincando com a luz que lhe chegava antes de se desenrolar no balcão. E Valgy recebia nos braços, como quem recebe uma criança, uma cambraia finíssima de linho ou algodão a que fiapos de teias de aranha que trazia agarrados conferiam ainda maior leveza. Tão fina que não tinha cor, que não podia tê-la uma vez que a cor não teria matéria tangível a que se agarrar. Uma cambraia que se limitava a reflectir a cor das coisas em redor: o castanho escuro das mãos de Valgy – que a afagavam para melhor ressaltar o seu valor e qualidade – ou a própria cor do olhar das clientes, que a fitavam intrigadas. Quase, já, maravilhadas. (Coelho, 2006: 128)

A ausência de marcadores temporais e a metamorfose da cambraia, ocorrida em pleno percurso até chegar sem cor às mãos de Valgy, confere um sentido múltiplo à descrição. A semelhança entre o objeto e o comerciante atinge o seu auge tanto pelo reflexo do pano (que emana de suas mãos) como pela estupefação das clientes. A indicação espacial (de cima para baixo) reflete a desterritorialização do pano, só entendida pelo “ilusionista” vendedor; o olhar perplexo do interlocutor, por sua vez, acompanha as transformações do objeto. Ao mesmo tempo, a mutação do pano volta a poder indiciar duas realidades: em primeiro lugar, uma espécie de biografia compacta da vida do comerciante, descendo da Índia, passando por Zanzibar, chegando a Moçambique, perdendo aí definitivamente a matéria e provocando a estranheza generalizada – refletindo, em suma, o que há em volta ou a própria cor dos olhos de quem o vê; em segundo, e uma vez mais, a guerra civil, que desce lentamente do norte de Moçambique até perder a sua cor no sul, sendo aqui lida da maneira que mais convier ao cliente.

A omnipresença dum referente específico (loja), mais do que limitar o narrador a uma descrição mimética, produz uma desobrigação perante elementos normalmente inertes e inanimados (os produtos). Estes elementos, além disso, são indicadores dum olhar subjetivo, que se coloca num espaço de diferença e de ruptura com o esperado. Não se estranhará, assim, que, tal como o dono, os produtos da loja contenham uma dupla “qualidade”. A cambraia, como vimos, adquire autonomia própria e ressurge como uma revelação fantasmática para o monhé na parte final da narrativa, antevendo a guerra civil. Este pano reaparece no céu, rasgada por trovões, quando já era impossível encontrá-lo em sua loja, devido à forte crise. A cambraia passa, assim, do reino dos objetos para o reino dos signos, onde, como sabemos, tudo é mais complexo. Neste instante de delírio, o comerciante passa de controlador do objeto a controlado pelo mesmo. A relação entre o que se vende e quem o vende torna-se simétrica, não só pelo enigma que ambos emanam, mas também pelo fiasco que representam. Vindo de longe e orgulhando-se da sua condição (“vela enfunada”), Valgy esvazia-se com o passar dos tempos, numa lógica que vai do mais ao menos, da exaltação apaixonada ao silêncio disfórico das prateleiras vazias. Ambos, vendedor e produto, tiveram um “curto período glorioso” (Idem, 127), ambos terminam na escuridão do vazio.

Simultaneamente, como já anunciamos, o comerciante constitui o corolário assimétrico do outro: a distância de Valgy para com os seus interlocutores torna-se abismal no espaço de sua loja. A começar pelas duas portas que a decoram, que podem sugerir tanto a exceção à regra,[20] como também uma eventual afirmação do tahuid[21] no próprio lugar de trabalho: “– Porta de entrar e porta de sair, não vê?! Cada coisa de sua vez, nunca se faz uma antes da outra! Será que a gente morre antes de nascer? Será?” (Idem, 124). Com o despertar da crise, no entanto, o princípio divino é desrespeitado pela própria personagem: “E Valgy saía de rompante pela porta errada, já pouco se importando com as forças do além” (Idem, 226). Em primeiro lugar, torna-se evidente a valorização da “porta” se a ela associarmos os restantes termos da frase: a aliteração (“rompante”, “porta”, “pouco”, “importando”) amplifica o valor simbólico do gesto. Em segundo, as tais forças do “além” nunca são explicitadas pelo narrador, fato que põe num patamar de indeterminação o tempo político e o tempo religioso. Na conformação desta personagem estes dois elementos serão sempre indissociáveis:

E portanto, servissem as duas, melhor do que uma serviria, para trazer um pouco mais de luz àquele interior sombrio e algo misterioso. Quantas vezes, mesmo assim, obrigou Valgy um daqueles infelizes a voltar a sair para reentrar pela porta apropriada, para que o negócio pudesse prosseguir sem as obscuras interferências do além. (Coelho, 2006: 124)

A insistência do narrador em utilizar um tempo e um modo verbal (pretérito imperfeito do conjuntivo), que remete ao campo dos possíveis e da dúvida, assim como a dupla adjetivação, que acompanha quase todas as descrições do lugar (“sombrio e algo misterioso”), acentua a diferença de uma personagem que não se pode apreender totalmente. A materialização da dualidade pode ainda nos transportar para uma interpretação complementar, desta feita relacionada com a questão do hibridismo. Hibridismo problemático, neste caso, assente na lógica entrar y salir (Cornejo Polar, 1997). Segundo Cornejo Polar, o tom de celebração com que se aplica normalmente o conceito “hibridismo” pode facilmente conduzir a análise ao equívoco. Este engano se consubstancia na insistente ideia de abertura e de fusão de culturas e no esquecimento das contradições e da violência desse encontro (1997: 341). Enquanto microcosmo de “cheiros e cores” de “todos os lugares”, a loja de Valgy pode, num primeiro momento, sugerir tal equívoco. No entanto, uma leitura mais atenta verificará que este espaço obscuro e decadente é, sobretudo, um topos de desencontro, pois sinaliza violências do passado colonial e do presente. A loja causa perplexidade inclusive nos portugueses, clientes habituais de outrora e que, antes da debandada ao país de origem, buscam ali uma última lembrança: “Irrompiam agitados pelas duas portas, piscando os olhos para se habituarem à escuridão do interior” (Coelho, 2006: 127). A obscuridade, o desrespeito às “regras” da loja e a reação da clientela durante o ato de vendas indicam uma relação desde já problemática. Daí que, mais do que atentarmos para a vasta e mesclada gama de produtos de todas as cores, cheiros e proveniências da loja de Valgy (que poderia sugerir o tal encontro de imaginários índicos e português), nos pareça mais interessante (e mais condizente com os propósitos do autor) ressaltar a forma como, a partir destes mesmos elementos, se produz uma distância irreconciliável entre o universo da personagem e o de seus interlocutores.

Valgy, como Valgius,[22] é uma espécie de viajante estrangeiro que traz em seu barco mercadorias de espaços e tempos longínquos. Para além do intertexto bíblico, parece-nos também que o discurso de Valgy – sobre a variedade, a raridade e a proveniência de seus produtos – retoma e inverte os relatos de viagem da Grécia Antiga. A constituição da rubrica thôma (maravilhas, curiosidades), aspecto analisado por François Hartog em Histoires, de Heródoto, encontra diversos paralelismos com a descrição das maravilhas existentes na loja do monhé. Para o teórico francês, a enorme beleza e extrema raridade das coisas constituem o thôma que, por sua vez, funciona como tradução da diferença entre o que existe aqui e o que existe (Hartog, 2001: 357). Ao mesmo tempo, nos relatos de Heródoto, o indicador qualitativo parece acompanhar o indicador quantitativo das maravilhas (Idem, 361).Isto é, são tão melhores quanto mais houver. Por outro lado, nestes relatos de viagem, a qualidade intrínseca do lugar tem uma relação direta com a medida das maravilhas. Finalmente, o autor sublinha a escala de valores que define o lugar: não há um qualificativo puro para descrevê-lo, mas sim uma ordem de exposição, que vai do menos ao mais extraordinário (Ibidem).

A descrição dos produtos da loja do monhé, apesar das evidentes semelhanças discursivas e retóricas,[23] inverte Histoires: no que se refere à ordem de exposição, Valgy parte do mais excepcional (panos da Formosa) para o menos extraordinário (capulanas nacionais); quanto à relação qualidade/quantidade, tudo o que é mais raro é melhor e mais valioso; finalmente, apesar de o seu discurso deixar em aberto uma relação direta entre a qualidade do lugar e a qualidade do produto, a distância com o interlocutoré cada vez maior, fazendo com que o elemento fundamental para a relação, l’oreille du public (Idem, 359), isto é, a presença de um interlocutor, não baste para a comunicação.

Valorizando a Formosa e a Índia (Madras e Calecute), Oman e Zanzibar, a ordem de exposição dos panos de Valgy indicia uma geografia afetiva onde o mito e a história se confundem. Importa recordar que os portugueses, segundo a historiografia,[24] foram os primeiros europeus a chegar em referidos territórios. Parece evidente, pois, o afã de Valgy em agradar sua cliente, designada madame,através de uma possível identificação com a origem de seus produtos. Trata-se, no entanto, e como sempre, de uma origem fabricada, já que nem o próprio comerciante parece convencido daquilo que diz: “Sedas e cetins da Formosa, talvez – alvitrava ele” (Coelho, 2006: 128). O advérbio “talvez” e o verbo “alvitrar” confirmam essa hesitação. Não tendo conseguido avivar nenhum tipo de nostalgia em madame com as primeiras referências asiáticas, Valgy passa para o plano B, apresentando os panos do Paquistão. O gesto volta a acompanhar uma intenção de comunhão com a cliente: “Por processos quase idênticos, desciam agora os panos de algodão mais grosso do Paquistão, uma vez que madame estava partindo para os climas frios da Europa” (Idem, 129). A opção de Valgy volta a estar relacionada tanto com a eventual qualidade intrínseca do produto quanto com a qualidade do lugar. Como se sabe, Portugal encontrou no Paquistão um aliado na disputa contra a Índia nos anos 60, momento em que o império luso perdeu sua componente asiática; além disso, o país faz parte da tal “nação” muçulmana da qual Valgy tanto se orgulha (“djelaba enfunada”) em alguns momentos.

A incorporação massiva de elementos geográficos viabiliza, portanto, uma subtil leitura sobre os fatos (e mitos) históricos e sobre as manobras discursivas (e políticas) que lhes são inerentes. E, nesta perspectiva, a memória delirante do comerciante confere funcionalidade e simbologia ao objeto, elemento que, como já foi referido, normalmente é inerte. O anacronismo investido no espaço, isto é, o anacorismo (Westphal, 2007: 179), acentua a disparidade de Valgy relativamente a sua clientela. Ao mesmo tempo, a geografia histórica rememorada pelo comerciante é homogênea, feita de blocos estanques, como relembra o narrador num comentário avaliador posto entre parênteses: “(não especificar que Europa era essa fazia ainda parte da tal distância a que Valgy se situava)” (Coelho, 2006: 129). O desencontro é, finalmente, posto em evidência pela indiferença da cliente quanto ao “peso” (que, na poética de JPBC, é frequentemente um designador indireto de “tempo”) daqueles produtos:

Não era na Ásia distante que havia estado, dizia timidamente a madame. Não lhe tocavam portanto os seus mistérios. Era aqui, e daqui queria levar o que houvesse que lhe permitisse lembrar esta vida que teve, que de certeza lhe irá parecer dentro em breve distante e irreal.

Valgy, o comerciante capaz de entender todos os pontos de vista, por uma vez não entendia. (Coelho, 2006: 130)

O interlocutor, trate-se de madame ou da “humilde mulher das nossas” – a primeira sinalizando o passado frutífero de vendas, a segunda o presente de crise –, funciona não só como testemunha da profusão discursiva do comerciante, como também de sua progressiva derrocada. A própria ausência de nome desse interlocutor enfatiza esse desencontro. E isto porque o anonimato é muitas vezes apresentado “en antithèse aux moments de crises des personnages nommés (...) comme tel devient alors le signal d’une certaine dépossession de vouloir-faire pour le personnage nommé, même si son inscription dans le texte peut donner lieu à quelque effet d’ironie” (Hamon, 1983: 134). O discurso do monhé assenta, portanto, na extrapolação e na exteriorização daquilo que é contrário aos reais desejos dos visitantes. Estes, por sua vez, funcionam como contraponto radical da visão romântica do comerciante. Tanto as clientes como o comerciante parecem participar num tipo de comunicação que Francis Affergan denomina de “não simétrica”, já que “se fonderait sur la ‘maximalisation de la différence’ (1987: 248). A assimetria comunicacional que se pode antever nestes segmentos tem a ver, de resto, com a organização preferencial do discurso de ambas as personagens, cada qual com o olhar posto em momentos temporais discordantes (“Não era na Ásia distante que havia estado, dizia timidamente a madame. Não lhe tocavam portanto os seus mistérios”). Ou seja, a temporalidade dos objetos enunciados e a temporalidade do sujeito receptor da mensagem nunca são coincidentes, fato que alimenta o fosso entre uns e outros. Para Benveniste, aliás, o ponto mais delicado da relação com o outro reside na temporalidade: “Le temps dénoue la double identification et légitime l’intelligibilité” (1966: 263).

Também com os temperos a escala de valorização parece passar por um filtro espacial. A descrição de um inventário de produtos (cominhos, coentros, pimenta, noz moscada, tamarindo, sésamo, gergelim, farinha de grão-de-bico, cravinhos, canela, piripiris, etc.), quase todos provenientes de uma Ásia antiga e santificada, é disso reveladora. Tome-se como exemplo a distinção realizada entre as sementes de sésamo e as sementes de gergelim (termo mais usado no Brasil para referir-se ao denominado “sésamo” que, por sua vez, é mais utilizado em Portugal): “minúsculas sementes de sésamo trazendo em si todos os tons de castanho que há no universo; sementes de gergelim, pequeninos olhos mágicos e curiosos em ainda novos tons de castanho” (Coelho, 2006: 131). A obsessão pelo castanho pode tanto conotar o excesso “real” desta tonalidade nos produtos, como ainda denotar uma terminologia racial, assente na invenção da miscigenação, que eventualmente alimentaria o “imaginário brando” (e luso-tropical) de madame. Também aqui a reação de madame é de completa indiferença. Nada do que o vendedor expõe se aproxima do simples souvenir que pretende levar de uma terra que em breve deixará de ser sua.

Finalmente, os longos monólogos de Valgy parecem ser inversamente proporcionais à quantidade de maravilhas que deseja dar a conhecer. Neste caso, quanto mais raros são os panos, maior dedicação retórica lhes é conferida. O resultado desta quase litânica busca é, uma vez mais, o malogro: Valgy desanima-se quando deve apresentar os panos de fabrico nacional. Sua voz esfuma-se perante os mais recentes produtos da loja, que constituem uma espécie de ofensa a sua honra, precisamente por não relembrarem outros tempos:

Se madame não se decidisse, passavam às mais modestas capulanas estampadas de fabrico nacional, com estrelas e luas infantis, animais selvagens e ingénuas e congeladas expressões, dizeres revolucionários. Era um Valgy ausente quem as estendia, desinteressado já de um negócio que parecera tão promissor e afinal não passava da comezinha venda de uma capulana de algodão. (Coelho, 2006:130)

A fronteira entre o objeto material e seu valor simbólico volta a ser indiscernível: tanto conota aquilo que aparentemente mais importa ao vendedor (preço), como denota o valor intangível que lhe está associado (ideal). A única situação clara nestas passagens é o desânimo do comerciante perante os novosprodutos que, na prática, são os novos ideais (“estrelas e luas infantis, animais selvagens e congeladas expressões, dizeres revolucionários”). O que vem de longe é mais raro, tem mais qualidade e, naturalmente, é mais caro. Os panos nacionais espelham sua derrota, excluindo-o definitivamente dos novos tempos.

Conclusão

Se os restantes territórios e respectivas realidades sociais do Oceano Índico são, ainda, um elemento por desbravar na literatura moçambicana, as personagens provenientes de alguns destes espaços começam a ganhar relevo no campo literário do país. Valgy é, talvez, o exemplo mais carismático e complexo deste movimento. Ao invés de ser inscrito para assinalar as confluências de um imaginário indo-oceânico, que se cristalizaria em Moçambique, o monhé sinaliza as diversas fases e faces que pode experimentar esse outro nacional num determinado momento histórico. A forma privilegiada para representá-lo é a inversão. A repetição dessa inversão aparece, como vimos, ligada a algumas causas (negócios em declínio, abandono da mulher, etc.), assume distintas formas discursivas (roupas, gestos, ações), torna-se visível nas inconstantes relações com as restantes personagens e é indiciada, na narração, por imprecisos indicadores temporais de progressão. No entanto, a inversão não explica o monhé em sua totalidade, serve apenas de filtro à alteridade, tornando a personagem familiar a um espaço que lhe é, politicamente, cada vez mais hostil. Isto é, Valgy não se esgota em um simples jogo de contrários ou a partir duma mudança automática de papéis. O mais interessante nesta personagem é a irrupção do não-dito, isto é, daquilo que se parece esconder em seu alienante vaivém, em seu lado oculto e inapreensível – realidade prevista por um autor que, ao contestar toda espécie de totalitarismo, procura evitar totalizar o outro. Finalmente, no espaço da loja, a viagem alucinante proposta pelo comerciante aos seus perplexos clientes culmina numa espécie de implosão e de limite, de insatisfação irreversível, de desencontro radical com a clientela portuguesa ou nacional. Na sincronia destes três estados – de familiaridade, de mistério e de estrangeiridade – constrói-se um modelo excêntrico de desmistificação do discurso unívoco sobre a nação e seus percursos identitários. De fato, ao transformar o discurso histórico em mercadoria, o autor sublinha o caráter artificial de todo o tipo de concepções maniqueístas sobre o outro, seja ele autóctone ou diaspórico. A loja de Valgy, com seus produtos de todos os lugares, cheiros e cores,funciona, deste modo, como o laboratório de uma estética que faz da relativização sua pedra angular. Neste espaço podemos percorrer um longo caminho para conhecer não o encontro colorido da História – de um Índico ameno e intercultural –, mas sim a fábrica ilusória do discurso – com as tensões e instabilidades inerentes a uma (líquida) pertença comum.

Em suma, se parte da prosa moçambicana convoca o passado para refletir sobre o presente e se, como sugerimos na introdução, grande parte da poesia do país evoca a exterioridade índica para repensar a interioridade nacional, o surgimento de personagens como Valgy revaloriza a fronteira ambígua das coordenadas de existência espaço/tempo. Pauta de ressonâncias múltiplas, a escrita de JPBC resgata a virtualidade poética do Índico, sinalizando, numa geografia comum, a particular complexidade da história.

 

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[Recebido em 19 de agosto de 2013 e aceite para publicação em 23 de setembro de 2013]

 

Notas

[1] O presente texto é apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), no âmbito de nosso projeto de Pós-Doutoramento Imediações, mediações, consagrações: o campo literário moçambicano (1975-2010), orientado pela Profª Rita Chaves e realizado na Universidade de São Paulo (USP).

[2] Estes aspectos são trabalhados em duas das mais recentes publicações de LITPOST, grupo de pesquisa dirigido por Mar Garcia (Universitat Autònoma de Barcelona): a primeira sobre a questão do hibridismo problemático nas produções do Oceano Índico (Garcia, Hand & Can, 2010); a segunda sobre as violências simbólicas e institucionais nas literaturas desta mesma área geográfica (Garcia & Magdeleine, no prelo).

[3] A escrita em línguas locais é praticamente inexistente em Moçambique. Já Maurício e Reunião, onde o crioulo foi ganhando paulatinamente espaço, bem como Madagascar, onde o malgache possui uma já longa tradição, espelham outro tipo de movimentos, resultante de processos históricos, dinâmicas identitárias e opções políticas divergentes.

[4] No que se refere à dualidade cultural, chamamos a atenção para o caso da atual literatura mauriciana, que se configura de modo original no quadro das literaturas pós-coloniais. Um passeio pelas principais obras deste sistema literário nos permite aferir uma total apropriação por parte da comunidade hindo-mauriciana não só da língua francesa como também da prática literária. Praticamente todos os autores do país, que são hoje reconhecidos no estrangeiro, nomeadamente na França, são de origem indiana e não de origem francesa.

[5] Para o caso moçambicano, algumas considerações sobre essa questão podem ser lidas em um recente artigo de João Paulo Borges Coelho (2009: 57-67).

[6] Francisco Noa enfatiza de modo claro esta problemática: “Outro aspecto que concorreu para as escassas referências ou mesmo indiferença em relação ao Oceano Índico, no tocante à reflexão identitária ou enquadramento territorial, prende-se com a reiterada focalização, na maior parte dos estudos, no eixo vertical Norte (Ocidente) / Sul (África)” (Noa, 2012: 2).

[7] Não é descabido lembrar que, hoje em dia, é quase tão caro viajar de Maputo a Lisboa quanto de Maputo a Port Louis ou Antananarivo, por muito que Moçambique, Maurício e Madagascar pertençam à mesma região. É certo que os voos de Port Louis a Saint-Denis e vice-versa são mais frequentes e, como tal, menos caros, devido aos acordos de natureza comercial existentes entre a Reunião e Maurício. No entanto, quando se trata de dar o salto para o lado moçambicano, ou de Moçambique para o outro lado, onde as línguas também divergem, a distância torna-se intercontinental.

[8] Veja-se, a este propósito, o romance Voyages et aventures de Sanjay, explorateur mauricien des anciens mondes, do escritor mauriciano Amal Sewtohul (2009), em grande parte ambientado na Alemanha, ou Le tour de Babylone do também mauriciano Barlen Pyamootoo (2002), situado em Bagdad. Remetemos o aprofundamento destas e de outras questões, relacionadas com a evolução dos sistemas literários do Oceano Índico, para os textos de Mar Garcia publicados em <http://pagines.uab.cat/litpost/>, página web elaborada pelo grupo LITPOST (Garcia, Can & Berty, 2012).

[9] Nos últimos anos tem sido vasta a produção crítica que observa de perto essa original e complexa produção. Podemos mencionar, a título de exemplo, os estudos de Rita Chaves (2002), Ana Mafalda Leite (2003: 123-144), Jessica Falconi (2008), Carmen Secco (2010), Fátima Mendonça (2011) e Francisco Noa (2012).

[10] Em particular no cemitério de Saint Pierre, onde se realiza um culto quotidiano à volta de sua sepultura.

[11] Por um lado, utilizam-se indistintamente categorias vagas como indianidade. Isto é, de forma incongruente, os estudos sobre os indianos e os índios da América Latina acabam por possuir a mesma terminologia (indianidad, indianité, indianity), já que, em outras línguas europeias, como o espanhol, o francês e o inglês, a diferenciação terminológica não se faz (indio, indien, indian, respectivamente). Por outro, a essencialização que se verifica nesta terminologia desloca-se também as suas subcategorias. Esta situação é frequente em Moçambique, onde a utilização dos termos goês, monhé, baneane, canarim (de cú limpo), etc., predomina; é o caso ainda da terminologia utilizada no contexto índico das Ilhas Mascarenhas: malabarité, hinduité, coolitude.

[12] Permitimo-nos remeter estas questões a dois artigos nossos (Can, no prelo; Can, 2012, respectivamente). Por outro lado, esta constatação não invalida a dificuldade que também existe em Moçambique em representar o mulato, como anuncia o próprio Craveirinha na entrevista que concede a Michel Laban (1998).

[13] Como ocorre com duas de suas mais representativas autoras, uma mauriciana (Ananda Devi) e outra moçambicana (Paulina Chiziane), que procuram a subversão convocando personagens masculinos mulatos e indianos, respectivamente. Assim, tanto Zil, o mulato idealizado de Pagli (Devi, 2001), como o monhé, aludido estrategicamente por Chiziane em O Sétimo Juramento (2000), constituem os elementos mais problemáticos da relação, as figuras non gratas à teologia racial nas respectivas sociedades, funcionando como personagens-limite e, simultaneamente, como moedas simbólicas de um grito de liberdade realizado pela mulher.

[14] Rita Chaves valoriza essa “nova forma de escrita que é também um modo de investigar”, e que deve, pois, ser articulada ao projeto intelectual do autor. A autora verifica como JPBC, através da ampliação da “territorialidade literária do país”, na qual se inclui a costa índica, preenche lacunas, em especial na “constituição de um projeto cultural de que a literatura precisa ser parte” (Chaves, 2008: 188). A valorização que JPBC confere à dimensão regional do Índico, além de patente em sua obra literária e em alguns de seus mais recentes trabalhos de pesquisa, realizados no Centro de Estudos Sociais Aquino Bragança (CESAB), tem inspirado novas reflexões no campo do comparatismo literário. No que se refere ao possível diálogo entre a obra de JPBC e as produções de outras áreas linguísticas do Oceano Índico, veja-se Brugioni (2013).

[15] Apenas no capítulo 18, “A justiça dos pequenos privilégios”, outro momento em se juntam quase todos os moradores da rua, Valgy não surge como referência final. De fato, o monhé nem sequer aparece para receber sua quota alimentar mensal. No entanto, gera-se uma longa discussão entre Antonieta, Filimone, Guilhermina e os restantes vizinhos sobre a legitimidade do morador da casa número 3 para aceder aos alimentos (Coelho, 2006: 248-250). Assim, mesmo na ausência, a personagem funciona como núcleo desestabilizador da construção discursiva que assenta na ideia de uma comunidade sem vestígios de ambiguidade.

[16] Semelhantes aos das páginas 66 e 67, 126 e 127 deste romance.

[17] No sentido dado por Lévinas (1961: 45-79), que afirma a necessidade de preservar a separação entre o mesmo (eu) e o outro. Tal separação faz-se imperativa para que o outro conserve sua exterioridade (evitando, assim, a totalização de seu ser).

[18] Em outro espaço, onde analisamos esta estória, chamamos a atenção para o papel do narrador, este estrangeiro que observa perplexo a obscura “Alfaiataria 2000” e pressente as surdas lutas entre o patrão Rashid e o seu ajudante Jamal. Vimos como JPBC, ao apropriar-se de determinados lugares-comuns atribuídos às comunidades muçulmanas, situa esteticamente as antigas e atuais tensões das confrarias islâmicas de Moçambique e do Índico (Can, 2009).

[19] Sobre este aspecto, veja-se o primeiro romance do autor, As Duas Sombras do Rio (Coelho, 2003).

[20] No sentido dado por Agamben, para quem a exceção coexiste com a lei, fazendo, inclusive, com que esta última adquira validade e funcionalidade (2003: 27; 44). A reiterada inscrição do elemento “porta” na escrita de JPBC sugere este duplo movimento em que participam e se indeterminam o espaço da lei e espaço do “fora-da-lei”.

[21] Preceito islâmico segundo o qual só existe um Deus absoluto e poderoso.

[22] A vida e o discurso deValgy encontram flagrantes pontos de contacto com outras histórias. Uma delas é o relato da travessia de Valgius, descrito na Epístola 49 de São Paulino de Nola. Este marinheiro, desprezado pelos restantes por trabalhar na sentina de um barco, é abandonado por todos quando se dá uma tempestade e o perigo eminente de naufrágio visita o barco. Sozinho, ao sabor do vento, conduz o barco e consegue chegar, ao fim de 23 dias, à costa de Lucania (Foerster e Pascual, 1985: 13-14), interpretando sua salvação como um milagre divino. Por sua vez, Valgy, desprezado (no universo da rua) e abandonado (pelos conterrâneos que debandaram aquando da crise política entre Portugal e Índia), vivendo também ao sabor do vento durante os 23 capítulos do romance e sobrevivendo de forma misteriosa a todas as conjecturas adversas (no período colonial e, mais adiante, no pós-independência), é o morador que vive na zona mais baixa da rua, e quando chove, tal como na sentina do velho Valgius, a água concentra-se em sua porta (formando “um grande mar”). Não tendo abandonado o barco da nova nação, Valgy procura sobreviver aos desígnios dos novos tempos, mas, novamente como Valgius – que deixa de ser reconhecido no mar e na terra –, o monhé fica sem lugar no passado e no presente.

[23] É, de fato, surpreendente a semelhança de estilo entre as “alucinações” de Valgy e as histórias de Heródoto. A título de exemplo, veja-se o seguinte segmento: “Les Arabes récoltent l’encens en faisant des fumigations pour chasser les serpents ailés qui gardent les arbres où il pousse. La cannelle se cueille dans un lac habitée par des espèces des chauves-souris dont il faut protéger en s’enveloppant le corps entier de peaux de bœufs. ‘Encore plus extraordinaire’ est la récolte du cinnamome. (...). Quand au ladanum c’est ‘encore plus extraordinaire’, cet aromate au parfum si délicieux s’accroche, en effet, dans la barbe des boucs, lieu de grande puanteur. Ainsi ces admirables produits ne peuvent avoir qu’une provenance extraordinaire” (Hartog, 2001: 358-359).

[24] Sobre Formosa veja-se Cole (2006); sobre Madras, Muthiah (2004); acerca de Zanzibar, leia-se Davidson (1967).