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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.2 Braga  2013

 

Ler contra o tempo. Condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em hora de vésperas) Aires A. Nascimento, Lisboa, centro de estudos clássicos, faculdade de letras da universidade de Lisboa, 2012, 2 volumes, 1147 pp. ISBN: 978-972-9376-28-3

Virgínia Soares Pereira*

*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, 4710-057 Braga, Portugal.

virginia@ilch.uminho.pt

 

No peso dos seus dois volumes e das suas 1147 páginas, esta obra reúne uma parte muito significativa da investigação produzida ao longo de uma vida estudiosa, a de Aires Nascimento, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e durante largos anos Diretor da prestigiada revista Euphrosyne. Como escreve Cristina Pimentel nas “Palavras Prévias” que abrem o primeiro volume, Aires Nascimento tem sido “Filólogo de formação e paixão”.Este primeiro volume começa, aliás, com um Curriculum Vitae académico-científico e uma bibliografia do A., constituída por mais de 400 artigos e 30 monografias – para não falar das mais de quinhentas recensões e notas, dos quais são agora recompilados cinquenta estudos e artigos – que ilustram bem o seu labor constante. O “Prólogo”, a abrir o primeiro volume, dá a medida do conjunto, quando o A., que se confessa leitor atento de muitos textos, escreve: “só lemos com a alma, dilatando-a e sintonizando-a com os autores…” – uma forma de afirmar o seu grande débito a tantos textos nos quais se sedimentou a formação e a paixão de um grande filólogo. Compreende-se, assim, o irónico quadro escolhido para ilustrar a capa dos dois volumes: o “Bibliófilo”, ou, como lhe chama o A., o “Rato de Biblioteca” de Carl Spitzweg, um ávido leitor que nos aparece desconfortavelmente equilibrado no topo de uma escada, atento apenas à página de um livro, que lê, na penumbra de uma biblioteca antiga e veneranda.

A diversidade de estudos que compõem os dois volumes foi organizada em grandes secções, intituladas como se segue:

1. Clássicos: A permanência e o comprometimento cultural

2. Tradição e continuidade: Entender o livro, mais que texto

3. Idade Média: Inovação e recuperações na deriva

4. Humanismo e reencontro de tradições

5. Tradução em recepção de texto

6. Peregrinae voces.

Por seu turno, as publicações científicas enquadradas nestas secções encontram-se distribuídas por várias áreas de estudo, nomeadamente: 1) Filologia Latina Medieval e Renascentista – Edição de textos e estudos; 2) Codicologia e História do Livro manuscrito; 3) Literatura Latina (Clássica, Medieval, Renascentista e Moderna); 4) História da Tradução; 5) Tratamento de textos em Bases de Dados (um conjunto de estudos informáticos aplicados a textos em latim medieval); 6) Outras áreas (textos e reflexões sobre o ensino do Latim, os Estudos Clássicos, Epigrafia, o Património Clássico, as Litterae Humaniores, textos sobre Nuno de Santa Maria, efemérides, homenagens, entre outros).

Apesar da quantidade de textos aqui recolhidos e oferecidos ao leitor, eles constituem parte apenas da produção científica de Aires Nascimento. Como diz o A. (com evidente modéstia), em palavras que talvez descortinem um pouco o sentido algo enigmático do título da obra: “Aqui fica o que me foi reclamado como dever de colação no final de tarde, antes do Nunc dimittis. Não é completa a recompilação, até porque seria longo o registo e talvez nulo o benefício.”

O que particularmente agrada observar, no acervo de estudos aqui reunido, é ver como uma investigação que assenta no conhecimento profundo dos textos clássicos e bíblicos – e com tal bagagem faz incidir a sua atenção sobre as épocas antigas, os tempos medievais, os ideais humanístico-renascentistas, e ainda sobre a influência que todos esses tempos exerceram nos vindouros, até aos tempos de hoje –, alia, com uma agilidade notável, os estudos de mais pura filologia e o atento aggiornamento dos mais diversos temas, “combinando a leitura de ontem com os instrumentos de hoje” e retomando até alguns problemas, de resto já muito antigos, da tradução e da sua função de mediação cultural.

Olhando agora à variedade dos textos coligidos, diga-se que nesta “recompilação” são de notar duas grandes linhas de força, que conferem sentido e unidade ao conjunto: os estudos de medievalidade e do humanismo renascentista, por um lado, e as reflexões sobre o lugar dos Clássicos nos tempos de hoje, por outro.

Sendo o Autor um medievalista, compreende-se que na sua grande maioria os textos aqui reunidos versem matérias atinentes a textos e gentes da Idade Média, de que se destacam vários artigos, riquíssimos de informação, sobre o “Percurso do livro na história da cultura portuguesa medieval” (um estudo de cinquenta páginas que assenta a sua investigação em fundos manuscritos de bibliotecas e outras fontes documentais, como testamentos), “Os textos clássicos em período medieval: tradução como alargamento de comunidade cultural”, “Literatura religiosa medieval”, “A cultura bracarense no século VI: uma revisitação necessária”, “Livros e claustro no século XIII em Portugal”, “Em busca dos códices alcobacenses perdidos”, “As livrarias dos Príncipes de Avis”, “Tempos e livros medievos: os antigos códices de Lorvão – do esquecimento à recuperação de tradições”. Convém recordar ainda, neste elenco não exaustivo, o estudo de textos latinos e a sua tradução, que têm a virtude de pôr à disposição dos historiadores textos até há tempos conhecidos apenas em latim; tal é o caso dos artigos “A religião dos rústicos” (texto latino e tradução do famoso De correctione rusticorum” de São Martinho de Braga, do século VI), “A Vita S. Geraldi de Bernardo, Bispo de Coimbra” (texto e tradução), ou dois artigos que dão a conhecer textos de extraordinária importância histórica e documental, que se prendem com os primeiros tempos de Portugal, a saber: “O júbilo da vitória: celebração da tomada de Santarém aos Mouros (a.D. 1147)”, um texto considerado um poema em prosa, em boa hora traduzido e comentado com o saber de quem domina os tempos e os registos essenciais ao seu comentário: o bíblico, o clássico, o medieval. O mesmo se diga do artigo “Poema de conquista: a tomada de Alcácer do Sal aos Mouros (1217)”, que em parte retoma o anterior, dedicado a Santarém, no intuito de assinalar as semelhanças e as diferenças entre estes dois textos de vitória.

Ainda nesta vertente dos estudos de medievalidade, alguns artigos versam sobre o estatuto da imagem no texto, isto é, sobre a relação entre a palavra e a imagem, como no estudo “A imagem no texto: esplendor do livro e marcação de leitura no manuscrito medieval”, que à componente teórica alia uma pormenorizada análise e interpretação de alguns registos iconográficos, desde uma iluminura de um manuscrito identificado como “Apocalipse Gulbenkian”, entre outros Apocalipses, até ao tímpano da basílica de Santa Madalena de Vézelay, no qual a figura central de Cristo está rodeada de outros signos, os signos do Zodíaco e os relativos aos trabalhos agrícolas ao longo do ano. A exemplo destas, surgem outras reflexões em torno da imagem de capa, dos elementos auxiliares de leitura, e de outros temas, de que cumpre destacar: “O poder da imagem: encantos, ambiguidades e valorizações” (trinta páginas).

Sob a premissa de que “Le temps de l´Humanisme européen n’est pas homogène” (p. 643), outra secção remete para o Humanismo e o reencontro de tradições, começando com um artigo dedicado ao humanismo jesuítico dos primeiros tempos, passando depois ao estudo de alguns dos mais notáveis humanistas portugueses do século XVI, como sejam Damião de Góis, André de Resende (ambos analisados sob a perspetiva da tradição dos fundadores míticos de Lisboa e sobre a importância do mito no estabelecimento da identidade nacional), bem como um estudo centrado no pensamento de Cícero relacionado com o humanismo cívico, além de um precioso contributo de 25 páginas intitulado “Erudição e livros em Portugal no tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança”, consagrado ao estudo da riquíssima e vasta livraria do Duque D. Teodósio I, que faleceu em Vila Viçosa em 1563.

Passando agora à segunda vertente dos estudos de Aires Nascimento, que se revela sumamente enriquecedora (porque assente em sólidas e inovadoras referências culturais), atentemos na reflexão constante do A. em torno do modo como os Clássicos estão ou devem estar presentes no nosso quotidiano. Pela leitura de artigos com títulos tão sugestivos como “Aprender com a Musa… Ecos e presenças da Antiguidade Clássica na moderna poesia portuguesa” (uma significativa revisitação caleidoscópica de figuras míticas, em 25 páginas, pela pena de Pessoa, Miguel Torga, Sofia, Manuel Alegre, Eugénio de Andrade, José Augusto Seabra, Fernando Guimarães, Vasco Graça Moura, David Mourão-Ferreira), “As Línguas clássicas para uma formação cultural de hoje”, “Les Classiques de toujours pour les temps nouveaux: une réflexion necessaire”, “A Europa que fomos, a Europa que somos: identidade e inquietude num mundo sem fronteiras” (um ensaio que suscita questões e convida a meditar) ou ainda “Uma alma para a Europa: os Clássicos em desafio contra o tempo”, pela leitura destes estudos, dizia, percebemos estar perante um conjunto de reflexões do maior interesse e de uma forte densidade cultural. Do último (pp. 189-190), retiro uma citação extraída de Fernando Pessoa (Livro do Desassossego, 2005, ed. de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, frg. 55): “por mais que pertença, por alma, à linhagem dos românticos, não encontro repouso senão na leitura dos clássicos. A sua mesma estreiteza, através da qual a sua clareza se exprime, me conforta não sei de quê. Colho neles uma impressão álacre de vida larga, que contempla amplos espaços sem os percorrer.” Ou, como escreve Aires Nascimento (p. 190): “A leitura dos clássicos contamina com a sua dimensão”. Agrada-me concluir sublinhando, a negrito, esta feliz formulação de uma ideia tão verdadeira e, por vezes, tão esquecida: A leitura dos clássicos contamina com a sua dimensão. Estes dois volumes são uma prova desta afirmação. Por isso, cumpre agradecer a iniciativa e o trabalho de quem decidiu reunir tão rico acervo de estudos, dispersos em livros e revistas nem sempre acessíveis, e oferecê-los à comunidade científica, em particular àqueles que continuam a acreditar na perenidade, vitalidade e fecundidade dos Estudos Clássicos. Tendo consciência de que, como escreveu Fernando Pessoa (e Aires Nascimento cita, na p. 1122): “Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que foi”… Caberá, assim aos presentes e aos vindouros prolongar o eco dos antigos e devolver-lhes a voz que o tempo não conseguiu apagar.