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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.2 Braga  2013

 

Igualdade sem responsabilidade? Comentário a “justiça social e igualdade de oportunidades” (capítulo III)

Roberto Merrill*

*Investigador do Grupo de Teoria Política do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho e investigador associado ao CEVIPOF-Sciences Po Paris.

nrbmerrill@gmail.com

 

Introdução

No terceiro capítulo do seu livro Futuro indefinido: Ensaios de Filosofia Política, (Braga, 2012), intitulado “Justiça social e igualdade de oportunidades”, o Professor João Cardoso Rosas começa por distinguir entre a justiça social e outros conceitos de justiça (rectificativa, retributiva e distributiva). De seguida, concentra a sua atenção num dos princípios da justiça social, o princípio de igualdade de oportunidades, que constitui o tema central do seu capítulo. Como recorda Cardoso Rosas, a ideia de igualdade de oportunidades é das mais citadas no discurso público, e certamente que hoje em dia ninguém nega a sua relevância. No entanto, apesar deste consenso sobre a sua importância, é fulcral notar que o conceito de igualdade de oportunidades (IO) pode ser dividido em pelo menos quatro concepções diferentes: (1) IO formal; (2) IO equitativa; (3) Real IO; (4) IO perfeita.

O autor define cada uma destas concepções, expondo também as principais objecções a cada uma, e desenvolve os seus próprios argumentos para justificar a preferência por uma delas, a saber: a igualdade de oportunidades real. Neste artigo vou, numa primeira parte, seguir a ordem de exposição do Professor Cardoso Rosas, marcando alguns pontos de desacordo com o autor. Numa segunda parte, formulo quatro objecções. Antes de começar, gostaria no entanto de recordar a distinção entre a igualdade de oportunidades e a igualdade estrita, para colocar em contexto o sentido da igualdade de oportunidades. A igualdade de oportunidades distingue-se da igualdade estrita, ou igualdade de resultados, essencialmente pela razão seguinte: segundo a igualdade de oportunidades, e contrariamente à igualdade estrita, certas desigualdades podem ser consideradas justas, quando a responsabilidade dessas desigualdades pode ser atribuída aos indivíduos. Inversamente, as desigualdades injustas são aquelas cuja responsabilidade não pode ser atribuída aos indivíduos. O autor, no seu capítulo, não desenvolve explicitamente o tema da responsabilidade, mas julgo que é interessante ter em conta que cada uma destas concepções da igualdade de oportunidades dá um peso diferente à responsabilidade individual. Com efeito, o que está em jogo nestas definições da igualdade de oportunidades é a questão dos limites a colocar à rectificação das desigualdades, em nome de conceitos como “responsabilidade”, “liberdade” ou “eficiência”.

1. Quatro concepções da igualdade de oportunidades

1.1. Igualdade de oportunidades em sentido formal

Como escreve João Cardoso Rosas, a concepção de igualdade de oportunidades em sentido formal corresponde à ideia de “carreiras abertas às competências” e consiste num princípio de não discriminação que interdita o estabelecimento de barreiras legais ao acesso às diferentes funções e posições por parte da generalidade dos cidadãos. Esta concepção formal visa apenas eliminar barreiras de ordem legal, sendo assim incompatível com a discriminação legal de alguns tipos de cidadãos (mulheres, minorias étnicas, homossexuais, etc.). No entanto, esta concepção formal é compatível com a existência de grandes assimetrias sociais dependentes das circunstâncias sociais e naturais das pessoas. Como nota o autor, a objecção mais forte a esta concepção da igualdade de oportunidades no sentido formal é a seguinte: não permite justificar a rectificação das desigualdades que resultam das contingências sociais e naturais. Ora as desvantagens sociais e naturais são moralmente arbitrárias. Isto significa que os indivíduos não podem ser moralmente responsabilizados pelas desvantagens sociais e naturais existentes à partida. Assim, embora um regime que respeita a igualdade de oportunidades formal seja mais justo do que um regime legal discriminatório, esta concepção formal não permite justificar a criação de mecanismos de correcção das lotarias social e natural e é por esta razão que a devemos rejeitar, ou procurar superar.

1.2. Igualdade equitativa de oportunidades

Como escreve o autor, a concepção da igualdade equitativa de oportunidades critica a insuficiência da ideia de “carreiras abertas às competências” porque ela não garante as mesmas oportunidades para indivíduos com as mesmas capacidades mas pertencendo a grupos sociais mais desfavorecidos e, nessa medida, sem as condições materiais necessárias para o desenvolvimento das suas capacidades. De acordo com a concepção equitativa, o aspecto meramente formal da primeira concepção deve ser complementado pela garantia de certas condições materiais para indivíduos desfavorecidos pela lotaria social, como por exemplo a garantia dum sistema de saúde capaz de dispensar cuidados básicos a todos, ou a garantia dum sistema educativo, que permitem mitigar a influência das contingências sociais nas oportunidades de acesso às diferentes posições e funções. A concepção equitativa, ao permitir, por exemplo, o acesso efectivo à educação, torna possível que os menos desfavorecidos socialmente possam aceder às funções e posições a que acedem com maior facilidade os mais favorecidos, desde que igualmente dotados e motivados. No entanto, como salienta o Professor Cardoso Rosas, a concepção equitativa fica a meio caminho de um argumento moralmente consequente: se as contingências naturais – a saúde física e psíquica, a inteligência e a perseverança, a energia e a motivação, as habilidades e os talentos naturais, etc. – são tão moralmente arbitrárias como as contingências sociais, por que não corrigir também as enormes disparidades sociais que essas contingências naturais também geram? De facto, parece não ter sentido corrigir as contingências sociais e não corrigir as contingências naturais (ou vice-versa), ou seja não tem sentido tornar as pessoas responsáveis pelas contingências naturais mas não torná-las responsáveis pelas contingências sociais.

1.3. Real igualdade de oportunidades

Como escreve Cardoso Rosas, segundo a perspectiva da real igualdade de oportunidades, “as duas concepções anteriores são insuficientes e devem ser complementadas por um esquema distributivo da riqueza e dos rendimentos, inscrito na estrutura social” (p. 47). Existe um conjunto de propostas recentes que podem ser agrupadas na categoria de stakeholding, que permitem implementar este esquema mais igualitário proposto pela real igualdade de oportunidades. Segundo estas propostas, devemos colocar directamente nas mãos dos indivíduos os recursos necessários à criação de mais oportunidades, de acordo com as capacidades e motivações de cada um. Philippe Van Parijs (1995) propõe um rendimento básico e incondicional para todos, auferido em prestações regulares ao longo da vida. Por seu lado, Bruce Ackerman (2001) propõe uma herança social de cidadania depositada pelo Estado no momento do nascimento e resgatável pelos cidadãos aos 21 anos. A objecção exposta pelo Professor Cardoso Rosas a esta concepção da igualdade de oportunidades é dupla. Por um lado, para um individualista e amante do risco, uma sociedade estruturada pela igualdade real pode parecer aborrecida, pois nesta sociedade haveria uma maior aversão ao risco. Por outro lado, e mais fundamentalmente, esta concepção poderá ser considerada por alguns moralmente incorrecta, pois contribuir com os seus impostos para alterar a situação económica de outros implica uma intromissão excessiva na liberdade individual.

Sobre a igualdade real, gostaria de esclarecer o ponto seguinte: o Professor Cardoso Rosas afirma que Ralws seria a favor da igualdade real pois o princípio de diferença faria o trabalho necessário para transformar a igualdade equitativa em igualdade real (p.52). No entanto, julgo que John Rawls é explicitamente contra medidas como aquelas propostas por Van Parijs e Bruce Ackerman. Gostaria pois de perguntar ao autor de que maneira a igualdade real pode ser defendida, dum ponto de vista rawlsiano, sem que isso implique a defesa dum rendimento básico incondicional. É certo que o último Rawls defende uma “democracia de proprietários”, mas tenho sérias dúvidas em relação à sua aceitação dum rendimento básico incondicional.

1.4. Igualdade de oportunidades perfeita

A quarta e última concepção da igualdade de oportunidades é a “perfeita”, ou seja, uma concepção segunda a qual todas as desigualdades são consideradas injustas e por essa razão devem ser neutralizadas, e não apenas mitigadas. O autor recorda que a razão pela qual a igualdade de oportunidades não é perfeita é a existência da família, já que os dados sociológicos disponíveis demonstram que o ambiente familiar é determinante no desenvolvimento de motivações e talentos potenciais. Assim, só a abolição da família poderia fazer a diferença entre a concepção real e a concepção perfeita. A objecção principal à igualdade de oportunidades perfeita é que só seria viável mediante um regime ditatorial que intentasse a supressão das escolhas individuais na formação e manutenção da família. A concepção perfeita deve ser afastada, na medida em que colidiria com as liberdades fundamentais dos indivíduos.

2. Concepção formal, equitativa, real, ou perfeita?

Na segunda parte do seu capítulo, João Cardoso Rosas expõe o seu próprio ponto de vista sobre as quatro concepções em discussão. Tendo em conta os argumentos do autor, vou nesta secção propor três objecções, a do “moralmente arbitrário”, a do “peso moral”, e a da “neutralização”.

2.1. O moralmente arbitrário

Segundo João Cardoso Rosas, a igualdade de oportunidades equitativa é a menos defensável de todas as concepções, pois é instável e incoerente (p. 52). A ideia é a seguinte: sendo moralmente arbitrárias tanto a lotaria social como a lotaria natural, tanto podemos mitigar as duas como não mitigar nenhuma. O que é moralmente arbitrário pode ser corrigido, ou pode não o ser, precisamente porque é moralmente arbitrário. Segundo o autor, em ambos os casos estamos a tratar os indivíduos com igual consideração e respeito. Para a concepção formal, o valor da igualdade assenta na não discriminação. Tratar todos e cada um com igual consideração e respeito significa não discriminar ninguém no acesso a carreiras e funções (o que corresponde à utopia libertária de Robert Nozick). Para a concepção real, pelo contrário, o valor da igualdade assenta na garantia estrutural do maior número possível de oportunidades para todos os indivíduos. Tratar todos e cada um com igual consideração e respeito significa compensar os que têm um ponto de partida mais desfavorecido desde que a igualdade de oportunidades estruturalmente assegurada não ferisse o seu sentido moral e contribuísse para o respeito próprio de todos e de cada um numa relação de reciprocidade.

Tenho dificuldade em perceber esta equivalência entre a igualdade de oportunidades formal e a real, pela razão seguinte: se segundo a igualdade formal o que é arbitrário nunca é corrigido então os indivíduos que têm má sorte bruta (brute bad luck), em comparação com os que têm boa sorte, são discriminados de maneira injusta. Ou seja, se as pessoas com má sorte bruta (por exemplo as pessoas que ficam na pobreza devido a um terramoto que destrui os seus bens) são penalizadas por razões pelas quais não são responsáveis, então estamos a discriminar estas pessoas, ou seja, não estamos a tratar com igual respeito todas as pessoas. O que parece justo é manter a responsabilidade individual: as desigualdades provocadas por escolhas responsáveis são justas. Alguma má sorte devido a escolhas responsáveis pode não ser corrigida pois não deve ser necessariamente considerada uma exigência da justiça, mas a má sorte bruta deve ser corrigida. Logo, a igualdade de oportunidades formal, comparada com a real, parece injusta já que discrimina as pessoas vítimas da má sorte bruta, pois não as trata da mesma maneira em relação ao critério da sorte. Neste ponto, e contrariamente ao afirmado pelo Professor Cardoso Rosas, a igualdade de oportunidades real parece-me superior à formal pois, não discriminando as pessoas com má sorte bruta, considera-as todas com igual respeito.

Na minha opinião, a equivalência que o professor Cardoso Rosas atribui a estas duas concepções da igualdade de oportunidades provém também da sua defesa do pluralismo dos princípios de justiça. De facto, na página 55, o autor, contra Rawls, estende a aplicação dos chamados “fardos do juízo” (“burdens of judgment”) aos princípios de justiça. Ora, esta extensão do pluralismo fornece-lhe um argumento teórico para justificar que tanto a igualdade formal como a real têm peso moral. Mas não me parece que esse pluralismo que decorre da aplicação dos fardos do juízo se justifique neste caso, e na verdade o autor admite ter razões para considerar a igualdade real superior à formal.

2.2. O peso moral: algum peso, mas não igual

Acabamos de ver que, para o autor, as concepções formal e real da igualdade de oportunidades, ambas coerentes mas claramente contrastantes, têm ambas algum peso moral. No entanto, o facto de ambas as concepções terem peso moral não implica que tenham igual peso moral (p. 56). De que maneira propõe o Professor Cardoso Rosas avaliar se o peso moral de uma é maior do que o da outra? O autor considera que a igualdade real é superior à formal pois os indivíduos não devem ser penalizados por factores moralmente arbitrários (p. 56). Mas, apesar de considerar a igualdade real superior, afirma que isso não pode ser estabelecido objectivamente com toda a certeza.

Julgo que aqui o tema da responsabilidade individual é importante: as desigualdades de riqueza entre indivíduos são justificadas quando resultantes de escolhas pelas quais os indivíduos podem ser considerados responsáveis. Inversamente, as desigualdades causadas apenas pelo acaso ou pela má sorte bruta não são moralmente justificadas. Ora, a igualdade formal tem de admitir que os indivíduos são responsáveis pelas desigualdades provocadas pela má sorte bruta, mas isto é injusto. Este argumento parece decisivo contra a igualdade de oportunidades formal. Neste sentido, tenho dificuldades em aceitar o falibilismo assumido pelo autor (p. 56), pois não vejo de que maneira esta objecção pode ser razoavelmente rejeitada pelos defensores da igualdade de oportunidades formal.

Também me parece ideologicamente importante colocar o debate entre a igualdade formal e a real no terreno da responsabilidade individual: não nos esqueçamos que o pensamento de direita, naturalmente a favor da igualdade formal, acaba sempre por fazer apelo a ideias de responsabilidade individual para justificar as desigualdades. Ora, fazer apelo à responsabilidade para rejeitar a discriminação aparente da igualdade formal (que discrimina as pessoas vítimas da má sorte bruta) coloca os defensores da igualdade formal numa posição delicada.

No entanto, este argumento da responsabilidade individual pode também ser formulado contra a igualdade real, já que as medidas como as propostas por Philippe Van Parijs ou Bruce Ackerman não têm em conta a responsabilidade individual na distribuição das oportunidades: dar a todos um rendimento universal sem distinguir as vítimas da má sorte bruta das vítimas da má sorte opcional (bad option luck) que decorre de escolhas responsáveis também parece ser discriminatório em relação as vítimas da má sorte bruta. Assim, talvez fosse mais justo distribuir um rendimento mais elevado às vítimas da má sorte bruta.

No entanto, até que ponto devemos dar importância à responsabilidade individual? Embora para um igualitarista seja uma intuição comum considerar que um indivíduo deve suportar os custos das suas escolhas quando feitas em circunstâncias de igualdade de oportunidades, sejam elas formais, equitativas, reais, ou perfeitas, no entanto a verdade é que nem sempre, ou talvez mesmo nunca, se justifica exigir que os indivíduos suportem os custos das suas escolhas quando estas os colocam em situações de sofrimento extremo (mesmo quando são inteiramente responsáveis por elas). Julgo ser importante distinguir a ausência de oportunidade da oportunidade que não se sabe aproveitar. Neste sentido, devemos evitar concentrar-nos nas teorias subjectivas ou objectivas da escolha e perguntar: que ónus é razoável exigir aos indivíduos desfavorecidos vítimas de más escolhas? Se as consequências da escolha podem ter demasiado impacto no bem-estar dos indivíduos, podemos dizer que a escolha que leva a uma situação desesperante não permite uma oportunidade genuína mas formal. Neste sentido, a igualdade de oportunidades, associada à responsabilidade, deixaria de ser relevante. O importante é que certas escolhas, quando implicam ónus com demasiado impacto no bem-estar dos indivíduos, devem ser compensadas pelo Estado.

Porque os fundamentos da responsabilidade são frágeis e porque o igualitarismo da responsabilidade pode ser demasiado duro ou demasiado flexível, uma outra maneira de rejeitar o conceito da responsabilidade como uma justificação moral das desigualdades é considerar a liberdade como uma justificação alternativa da responsabilidade. Em vez de perguntar se um indivíduo é responsável pela sua posição desfavorecida na sociedade, podemos perguntar se a sua situação desfavorecida na sociedade corresponde à sua escolha livre quanto à orientação da sua vida. Do ponto de vista da liberdade, de que serve oferecer a possibilidade de morrer de fome sem poder fazer nada? Em detrimento da teoria da justiça distributiva fundamentada no conceito de responsabilidade, a teoria da igualdade proposta por Marc Fleurbaey (2008) faz do princípio de igualdade de liberdade o seu núcleo – este princípio funciona como um constrangimento que tem por finalidade assegurar um nível mínimo de autonomia a todos os indivíduos, independentemente da responsabilidade que possam ter pelas escolhas que os colocam em situações desesperantes. Além deste nível mínimo de autonomia, o aceso a um nível mais elevado de autonomia constitui uma questão de preferência individual. Esta alternativa está no entanto sujeita à seguinte objecção: seria uma teoria explicitamente perfeccionista, já que todos os indivíduos devem atingir um nível mínimo de autonomia graças às políticas sociais do Estado. Por outras palavras, os indivíduos nunca seriam considerados responsáveis das consequências das suas escolhas quando estas os colocam em situação de pobreza extrema, pois nesta situação não podem ser considerados indivíduos autónomos. Gostaria pois de saber se a igualdade de oportunidades real, tal como a concebe o Professor Cardoso Rosas, o levaria a abandonar a noção de responsabilidade individual.

3. Mitigar ou neutralizar as desigualdades?

Gostaria de formular uma última objecção ao autor, em relação à distinção entre mitigar ou neutralizar as desigualdades. Para o autor, o objectivo da igualdade de oportunidades é o de mitigar os efeitos provocados pelas desigualdades (p. 53). Um argumento para defender a mitigação e não a neutralização das desigualdades é precisamente o dos riscos autoritários da neutralização, riscos que são reais na igualdade de oportunidades perfeita. Mas se somos igualitários, por que razão apenas mitigar as desigualdades? Por que não tentar neutralizá-las? Sabemos que os indivíduos não são responsáveis por desigualdades provocadas pela má sorte bruta. Logo, estas desvantagens são injustas e por isso devem ser neutralizadas e não apenas mitigadas graças a impostos. Certamente que o proponente da neutralização não pode insistir em neutralizar as vantagens pela via institucional, pois isso apenas um regime autoritário pode fazê-lo. No entanto, nada impede os igualitaristas da sorte de exigirem que os princípios de justiça também devam informar a conduta pessoal dos indivíduos, assim como o ethos da sociedade. Esta exigência torna os neutralizadores moralmente mais coerentes, pois os mitigadores têm de admitir que não há nada de moralmente incorrecto no facto de contribuírem para aumentar as desigualdades injustas se depois pagarem impostos para mitigar as desigualdades injustas provocadas pelos seus comportamentos. Ora isto é moralmente e psicologicamente incoerente. Dou um exemplo: se eu colocar os meus filhos em escolas privadas para aumentar as suas oportunidades em terem uma vida com sucesso, estou a aumentar de facto as desigualdades injustas. Mas pagar impostos (que contribuam para o financiamento de escolas públicas) para mitigar as desigualdades provocadas pela minha motivação em favorecer os meus filhos parece-me uma atitude mais dificilmente compatível com as minhas convicções igualitárias.

Gostaria pois de perguntar ao professor Cardoso Rosas se não deveríamos, por exigência de coerência moral, pelo menos em certas situações tentar individualmente atingir a igualdade de oportunidades perfeita graças às escolhas que fazemos na nossa conduta pessoal, neutralizando as desigualdades injustas, em vez de apenas mitigá-las.

Referências

ACKERMAN, Bruce e Anne Alstott (1999), The Stakeholder Society, New Haven, Yale University Press.         [ Links ]

FLEURBAEY, Marc (2008), Fairness, Responsibility and Welfare, Oxford University Press.         [ Links ]        [ Links ]