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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.2 Braga  2013

 

O caráter híbrido do conceito de referência em Ricœur

Bernhard Sylla*

*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, 4710-057 Braga, Portugal.

bernhard@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Este artigo pretende desenvolver uma análise do conceito de referência em Ricœur. Esta análise sustenta a tese de que o conceito de referência em Ricœur tem um caráter híbrido, porque se relaciona com dois paradigmas diferentes da filosofia da linguagem. A referência é concebida, por um lado, à maneira dos protagonistas da filosofia analítica, como referência a algo manifestamente extralinguístico. Este extralinguístico ultrapassa, porém, o estatuto do literalmente referido, aproximando-se novamente do referido como derivado do sentido, não obstante a função particular do simbólico, através da qual Ricœur pretende salvaguardar o estatuto extralinguístico da referência não-literal.

Palavras chave: Ricœur; referência; sentido; filosofia continental; filosofia analítica.

 

ABSTRACT

This article aims at developing an analysis of the concept of reference in Ricœur. This analysis supports the thesis that the concept of reference in Ricœur has a hybrid character, because it relates two different paradigms of the philosophy of language. Reference is intended on the one hand, the way of the protagonists of analytic philosophy, as a reference to something manifestly extra-linguistic. This extra-linguistic exceeds, however, the status of literality, conceiving reference again as determined by meaning, despite the particular role of the symbolic by which Ricœur seeks to safeguard the extra-linguisticity of the non-literal reference.

Keywords: Ricœur; reference; meaning; continental philosophy; analytic philosophy.

 

1. Introdução

Proponho-me a desenvolver, neste artigo, uma análise do conceito de referência em Ricœur. Esta análise sustenta a tese de que o conceito de referência em Ricœur tem um caráter híbrido. É óbvio que uma tal tese não se pode resumir a uma mera síntese daquilo que Ricœur diz sobre a referência, uma vez que Ricœur nunca diz que o seu conceito de referência é híbrido. A análise parte, pois, de uma visão diferente que exporei muito sucintamente.

Durante pelo menos um século, e grosso modo ainda hoje, costumava-se distinguir entre dois macroparadigmas da filosofia da linguagem, o anglo-saxónico e o continental. Não obstante esta distinção levantar uma série de questões, não obstante esta opinião não ser unânime e de se poder falar numa tendência para uma maior aproximação ou até um esbatimento das fronteiras entre estes macroparadigmas, penso que há uma diferença fundamental que vigorou durante um período razoavelmente extenso do século XX. Esta diferença tem a ver, segundo a minha opinião, com dois pressupostos diferentes.

O primeiro pressuposto, o da linhagem analítica, parte do princípio de que é inerente à linguagem uma indelével bipolaridade que se revela pela e na função da referência (entendido este termo num sentido extremamente lato, englobando a denotação, representação, referência no sentido restrito, etc.) da linguagem. Não interessam em primeira linha, sob este ponto de vista, as diferenças entre realismo(s) e anti-realismo(s), nominalismo(s) e realismo(s), etc.; o que interessa é que uma grande parte da empresa de investigação parte dessa bipolaridade. A linguagem estabelece uma ligação, seja qual for a sua especificidade, com uma instância extralinguística, e é isso que cunha determinantemente a maior parte das investigações da filosofia analítica, principalmente todas as questões relacionadas com a verdade, que estão por exemplo no centro das assim chamadas truth-conditional-semantics ou truth theories.

A outra abordagem que marca muitas das teorias chamadas ‘continentais’ parte do princípio de que não faz muito sentido assentar a filosofia da linguagem nesta bipolaridade, pois essa, em última instância, sempre se revela como unipolaridade. A linguagem faz, cria, constitui aquilo que é o mundo. Não convém, portanto, pressupor uma realidade nua e crua, uma realidade em si, pois a única realidade que temos é a realidade linguisticamente moldada, a que se chama ‘mundo’. É essa decididamente a posição que Ernst Cassirer defendeu, e que está na base de muitas outras filosofias ‘continentais’, e.g. de Nietzsche, Heidegger, Gadamer, Apel, Habermas, Derrida, etc. Não quer isso dizer que estas teorias, entre si, não possam divergir muito, e tampouco quer dizer que o fenómeno de referência esteja excluído das reflexões teóricas. Mas a referência perde o valor de um problema nuclear, pois é um fenómeno que brota da própria linguagem e que pode ser pensado satisfatoriamente no âmbito do seu domínio. Embora possa haver algo fora de mim, esse ‘fora’ apenas ganha contornos, cognoscibilidade, inteligibilidade se lhe for atribuída, consciente ou inconscientemente, significância, e essa significância advém e constitui-se na e pela linguagem. Não se adaptam aqui coerentemente as antinomias idealismo – realismo, ou construtivismo – representacionalismo, etc., pois o fundamental é apenas que a bipolaridade linguagemrealidade se torna aproblemática ou num problema menor, e foi esse talvez o aspeto que conferiu às teorias de Husserl, Heidegger, Ortega y Gasset a notoriedade de ter elegantemente vencido o problema tão antigo como difícil, da cisão entre objeto e sujeito.

Partindo então desta distinção entre os dois grandes macroparadigmas da Filosofia da Linguagem e os seus diferentes pressupostos fundamentais,[1] debruçar-me-ei sobre o conceito de referência em Ricœur. Baseio a minha análise sobretudo, se bem que não exclusivamente, no texto Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning[2] de 1975, publicado quase que imediatamente após a publicação de La métaphore vive. Tal como Ted Klein afirma no prefácio de Interpretation Theory, este texto contém “Paul Ricoeur’s philosophy of integral language” (Klein 1976: vii), exposta numa síntese densa e magnificamente lúcida.

2. A referência como ligação entre linguístico e extralinguístico

Na sua Autobiographie intellectuelle[3], Ricœur confessa que a conceção da referência como ligação entre linguístico e extralinguístico constituiu, ao longo de muitos anos, uma preocupação central da sua teoria da linguagem: “J’ai dit plus haut avec quelle véhémence je plaidais pour une conception du langage qui rendît justice à sa visée extra-linguistique” (AI, 46). A escolha destas palavras demonstra já por si que havia necessidade, na perspetiva de Ricœur, de combater uma conceção ‘errada’, uma conceção que falhava gravemente na empresa de entender o fenómeno da linguagem. É sabido que essa era a conceção estruturalista da linguagem, na altura bastante consagrada e divulgada.

A refutação da conceção estruturalista constitui, pois, o ponto de partida das reflexões de Ricœur sobre a linguagem. Esta refutação é motivada, em primeiro lugar, pelo facto de o estruturalismo desembocar numa desvalorização daquilo que é exterior à linguagem. Cientificamente valioso é apenas aquilo que se passa no sistema da langue, no interior da linguagem, de maneira que a ligação com o seu exterior seria, do ponto de vista científico, negligenciável. As palavras com as quais Ricœur termina a sua breve síntese do estruturalismo na parte inicial de Interpretation Theory expõem claramente a sua crítica a esta posição:

The last postulate [o do estruturalismo; este postulado sustenta que todas as relações são imanentes ao sistema] alone suffices to characterize structuralism as a global mode of thought, beyond all the technicalities of its methodology. Language no longer appears as a mediation between minds and things. It constitutes a world of its own, within which each item only refers to other items of the same system, thanks to the interplay of oppositions and differences constitutive of the system. In a word, language is no longer treated as a “form of life”, as Wittgenstein would call it, but as a self-sufficient system of inner relationships. (IT, 6)

Se bem que se saiba hoje que a redução da posição de Saussure a um rigoroso favorecimento da sincronicidade em detrimento da diacronicidade é falsa e um mito criado pelos editores da primeira edição do Cours, isso não alterará profundamente o pretexto da crítica de Ricœur. Pois é um pressuposto duro do estruturalismo que o código da estrutura determina a mensagem. Seja na linguística (e.g. Saussure, Círculo de Praga, Hjelmslev), na teoria da literatura (e.g. Barthes, Jakobson e o formalismo russo), na antropologia (e.g. Lévi-Strauss), a primazia dada ao código é um facto assumido, um essential, um axioma duro. As ciências estruturalistas que partem deste princípio de que aquilo que unicamente interessa é a investigação das regras que vigoram no interior de um sistema de signos são apelidadas, por Ricœur, de Semiótica. “The object of semiotics – the sign – is merely virtual” (IT, 7), pois assenta na arbitrariedade dos signos e nas suas interrelações intrasistémicas, na mera diferença que, segundo Saussure, é um princípio negativo. Mas não é a virtualidade em si que é o maior mal, mas antes a ignorância do facto de que a ‘exteriorização’ da linguagem é algo decididamente essencial. Só quando se prova que este último postulado é justificado, se prova ao mesmo tempo a insuficiência da Semiótica.

Convém intercalar aqui uma observação importante: o que rejeita Ricœur aqui é de facto uma posição que está na base de muitas teorias continentais da linguagem. Esta posição parte do princípio de que a estrutura da língua determina o pensar e o agir dos seus falantes, e foi defendida não só pela corrente linguística da Sprachinhaltsforschung na Alemanha (Weisgerber, Ipsen, Trier, Gipper etc.) durante meio século (de 1925 a 1975), mas também por filósofos como Cassirer, Hönigswald, o primeiro Apel, e de uma certa maneira também por Heidegger e Gadamer. Para além de Humboldt e Herder recorreu-se, nalguns autores, principalmente a Saussure, pela sua conceção da língua como um facto social que exerce um impacto sobre os seus respetivos falantes. Mas esta posição não se prende necessariamente com o estruturalismo, pois, a título de exemplo, não se encontra em Lévi-Strauss e apenas de uma forma fundamentalmente transformada em Barthes, ou foi rigorosamente contestada por Jakobson. Daí que possamos alertar para um facto importante: o pressuposto de que a língua e a sua estrutura, ou uma estrutura de um sistema de signos em geral, determina a ‘conceção do mundo’ não se prende necessariamente com o estruturalismo, tampouco como a defesa da tese da construção linguística da conceção do mundo não se prende necessariamente com o pressuposto de que a linguagem é um sistema fechado. É este facto que fornece o motivo deste artigo. Pois a minha tese parte do princípio que Ricœur, por um lado e devido à sua aversão à ‘clausura’ da semiótica estruturalista, quer provar que a linguagem necessita de algo extralinguístico, tese que leva diretamente à derrota da tese dura da semiótica sobre a linguagem como sistema auto-suficiente e fechado. Por outro lado, o próprio Ricœur defende uma posição que sustenta pelo menos de uma certa maneira que o mundo é, no fundo, linguisticamente construído. Como esta posição se encontra (para Ricœur) em ‘perigosa’ proximidade da semiótica, haverá a maior necessidade de marcar claramente as diferenças. E esta marcação das diferenças passa pelo conceito de referência.

Atentar-me-ei, após esta breve descrição do contexto subjacente do problema em questão, à análise do perfil que o conceito de referência adquire em Ricœur. Tendo em conta o aspeto mais fundamental, ‘referência’ significa para Ricœur que se sai da clausura do sistema dos signos. É esta ideia que alicerça e motiva a distinção entre semiótica e semântica que assinala o combate teórico com o qual Ricœur se compromete. Segundo Ricœur, a semiótica ignora que ‘a linguagem’, a vários níveis diferentes, implica uma saída de si mesma.

O primeiro destes níveis é indicado pelo entendimento de ‘semântico’. À semântica pertence a frase, à semiótica o signo. A frase, por sua vez, não se deixa reduzir à sua função de signo, não é apenas um signo, mas algo que, ao combinar um signo (nome) com outro (verbo), predica algo de um sujeito (IT, 6-9). Esta predicação apenas é entendida na sua plena essência quando se tem em conta a função da referência. Daí que apenas a semântica e não a semiótica possa entender o fenómeno da referência.

A um segundo nível, a saída do sistema fechado dos signos é implicada pelo discurso. O discurso, embora contenha em si as especificidades da langue e da parole no sentido saussuriano, é mais do que a mera soma de langue e parole, pois o emprego dos termos de langue e de parole, segundo Ricœur, levaria, de antemão, a um caminho errado, i.e. à visão de que a parole é a mera aplicação casual do código da langue. Muito pelo contrário, acontece algo no discurso que não é cientificamente previsível quando se investiga apenas a langue enquanto sistema semiótico. Embora o significado dos signos seja um momento que subjaz a cada discurso e que se deve à langue, este significado apenas ganha o seu valor predicativo no discurso, i.e. no momento em que se relaciona um significado com algo que lhe é exterior, com uma ‘coisa’[4]. Visto que o código, o sistema dos signos, se tornará atual e sairá do estado de virtualidade apenas quando um signo for relacionado com o exterior, e visto que este relacionamento ocorre no discurso enquanto ‘evento’, prova-se assim que o discurso é um termo muito mais abrangente do que os dois termos de langue e de parole. Pois o termo de parole não nos diz nada sobre o valor de verdade[5], sobre a adequação ou não da aplicação do código da langue, e a langue não é, em termos ontológicos, nada ou é apenas virtual se não for ligada àquilo que lhe é exterior.

A um terceiro nível, entra também em jogo o próprio conceito de referência. Neste âmbito, convém, no entanto, ter em consideração que o próprio Ricœur distingue entre dois tipos de referência, a referência ostensiva situacional e a referência estabelecida na escrita (cf. IT, 80ss.). No que concerne ao primeiro tipo de referência, este caracteriza-se por a ‘coisa’ referida estar presente ou acessível ao locutor e aos interlocutores aos quais se dirige o discurso. Aqui, a dimensão do extralinguístico está implicada de uma forma mais direta: a coisa referida ou o estado de coisas referido fazem parte da mesma situação ‘real’. No subcapítulo “Meaning as «Sense» and «Reference»” (IT, 19-22), encontram-se formulações absolutamente claras sobre o problema em questão. Relacionando as suas teses direta e explicitamente com as definições de sentido e referência em “Über Sinn und Bedeutung” de Frege, Ricœur realça as implicações ontológicas do conceito de referência:

This notion of bringing experience to language is the ontological condition of reference, an ontological condition reflected within language as a postulate which has not immanent justification; the postulate according to which we presuppose that something must be in order that something may be identified. This postulation of existence as the ground of identification is what Frege ultimately meant when he said that we are not satisfied by the sense alone, but we presuppose a reference. (IT 21)

Chegamos, por assim dizer, com esta visão ontológica sobre a referência, ao cume da posição de Ricœur, pois a demonstração da necessidade da pressuposição da existência autónoma da coisa referida implica indubitavelmente uma saída do círculo fechado da linguagem. Chegados ao cume, falta apenas confirmar quais as conexões entre os mencionados três níveis conceituais (semântica, discurso, referência). No que respeita à conexão entre semântica e referência, podemos ler o seguinte:

Finally, semiotics appears as a mere abstraction of semantics. And the semiotic definition of the sign as an inner difference between signifier and signified presupposes its semantic definition as reference to the thing for which it stands. The most concrete definition of semantics, then, is the theory that relates the inner or immanent constitution of the sense to the outer or transcendent intention of the reference. (IT, 21s.)

Relativamente ao discurso, aparece nele manifestamente não só a referência ao mundo, mas também às dimensões ilocucionária e ‘interlocucionária’ (ou ‘alocucionária’) (cf. IT, 14) do ato de fala. No âmbito do problema em análise neste ensaio posso negligenciar esta questão. Basta que fique claro que o discurso, segundo Ricœur, estabelece uma auto-referência ao locutor e uma referência ao mundo, pressupondo assim também ele a saída do sistema fechado da linguagem. Acrescento as passagens do texto de Ricœur que me parecem explicitar o assunto em questão com suficiente clareza:

Discourse refers back to its speaker at the same time that it refers to the world. This correlation is not fortuitious [sic], since it is ultimately the speaker who refers to the world in speaking. Discourse in action and in use refers backwards and forwards, to a speaker and a world. (IT, 22)

Em jeito de conclusão desta primeira parte, convém então salientar o seguinte: para combater a visão redutiva da semiótica estruturalista sobre a linguagem, Ricœur recorre ao conceito de referência na aceção que lhe foi dada por Frege em “Über Sinn und Bedeutung” e que cunhou fortemente o tipo das análises da linhagem analítica da filosofia da linguagem que se sucedeu. A referência pressupõe, assim, uma saída da clausura da linguagem, de modo que seria redutor conferir à linguagem todo o peso da ‘construção’ da realidade. Sem o seu correlato, a realidade ‘além da linguagem’, não há construção de um mundo. Esta conclusão, porém, vem a ser, de uma certa forma, contrariada pelo segundo tipo de referência que é a referência estabelecida pela escrita e, no último Ricœur, pelo texto.

3. A referência como exteriorização do sentido

A referência estabelecida pela escrita difere da referência ostensiva/situacional pelo facto de (geralmente) não existir uma situação comum entre locutor / autor de um texto e ouvinte / leitor, havendo, antes pelo contrário, um hiato espácio-temporal entre enunciação e receção do discurso. Mas esta “suspension or suppression” (IT, 81) da referência ostensiva não significa que não haja referência nenhuma:

Does this mean that this eclipse of reference, in either the ostensive or descriptive sense, amounts to a sheer abolition of all reference? No. My contention is that [poetic] discourse cannot fail to be about something. In saying this, I am denying the ideology of absolute texts. (IT, 36)

Esta afirmação sustenta não só a tese de que existe um tipo de referência não situacional, mas também que esta referência não é (ou apenas em raríssimos casos) ‘autoreferencial’, como pretendiam, relativamente ao discurso poético, os formalistas russos. Antes pelo contrário, a referência da escrita abre uma nova realidade, à que Ricœur chama mundo. “For me, the world is the ensemble of references opened up by every kind of text, descriptive or poetic, that I have read, understood, and loved.” (IT, 37). Esta realidade de segunda dimensão é uma realidade que só o homem pode ter, pois implica, bem à maneira de Heidegger, ter uma noção da temporalidade da nossa existência. Mesmo assim, mantém uma caraterística peculiar que marca a diferença para com o pensamento de Heidegger. Esta diferença diz respeito ao entendimento e à conceção da noção de realidade. Pois, segundo Ricœur, a escrita, mesmo estando separada da situacionalidade e ‘realidade’ direta ou, por assim dizer, ostensivamente alcançável, não se reduz ontologicamente à linguagem, porque “[l]anguage is not a world of its own. It is not even a world.” (IT, 20). O que é então o mundo e o tipo de realidade deste mundo, se não é nem a realidade de primeiro grau nem a linguagem? Estamos a chegar ao cerne da nossa questão: ficou, por um lado, claro que o discurso situacional pressupõe a referência de primeiro grau às ‘coisas’, à realidade de primeiro grau. Neste sentido, o recorrer a Frege é perfeitamente entendível. No que respeita ao entendimento do tipo de referência estabelecida pelos textos, já não temos a mesma certeza. Veremos esta questão mais de perto.

Para começar, relembro a convicção fundamental da filosofia continental nas suas mais variadas versões: segundo este paradigma, aquilo a que Ricœur chama mundo é uma realidade que depende essencialmente da conceptualização linguística, pois sem esta nem sequer haveria mundo, ou seja, se bem que possa haver algo fora do alcance linguístico, este algo apenas se transforma em mundo se passar pelo ‘tratamento’ linguístico. Pois a linguagem disseca, combina, forma e compõe a nossa visão das coisas, ou seja, dito à maneira de um Kant metacriticamente transformado, não há experiência ‘objetiva’ senão como experiência linguisticamente moldada. Ontologicamente, esta realidade brota do seio da linguagem e depende fundamentalmente dela, e não está oposta a ela ou separada dela, o que não quer dizer que ela própria tenha um caráter meramente ou exclusivamente linguístico. Será que Ricœur é capaz de contrariar definitivamente este paradigma ou de passar ao lado dele? Penso que não, e reservo esta última parte do artigo à justificação da minha posição.

(i) Num primeiro argumento sustento que Ricœur concebe a referência ao mundo, ou seja a referência que é o mundo, como conceptualização, como projeção realizada por meio da linguagem. As passagens que demonstram esta posição são numerosas. Cito apenas duas: na página 37 de Interpretation Theory, Ricœur dá razão a Heidegger e à sua análise da compreensão em Ser e Tempo: o que entendemos num discurso (da escrita) “is not another person, but a “pro-ject,” [sic] that is, the outline of a new way of being in the world.” (IT, 37). É sabido que o aspeto de novidade, mencionado na passagem citada, se prende, para Ricœur, essencialmente com a função da ‘metáfora viva’. É a metáfora viva que constrói novas perspetivas sobre o mundo, ou dito mais radicalmente, que constrói novos mundos. Daí Ricœur, em Interpretation Theory, cuja publicação sucedeu imediatamente à de La métaphore vive, poder resumir o teor nuclear da sua teoria da metáfora aí apresentada com a seguinte frase: “But metaphor theory (…) shows how new possibilities for articulating and conceptualizing reality can arise through an assimilation of hitherto separated semantic fields.” (IT, 57; itálico presente autor). E mais algumas páginas à frente, quando elogia o contributo de Max Black para os progressos nas teorias sobre a metáfora,[6] incidindo sobretudo sobre a função paralela de novos modelos teóricos e da metáfora, Ricœur anota:

As Max Black puts it, to describe a domain of reality in terms of an imaginary theoretical model is a way of seeing things differently by changing our language about the subject of our investigation. This change of language proceeds from the construction of a heuristic fiction and through the transposition of the characteristics of this heuristic fiction to reality itself. (IT 67; itálico presente autor)

Há que salientar aqui não apenas o traço fundamental da conceptualização e da sua ‘aplicação na’ ou ‘transposição para’ a realidade, mas também a distinção de duas realidades, uma de primeiro e uma de segundo grau, em plena correspondência com as referências de primeiro e de segundo grau. Pois a abolição da realidade de primeiro grau liberta o caminho para a apreensão da realidade de segundo grau que, aliás, segundo Ricœur, é intitulada de “realidade mais real”:

Considered in terms of its referential bearing, poetic language has in common with scientific language that it only reaches reality through a detour that serves to deny our ordinary vision and the language we normally use to describe it. In doing this both poetic and scientific language aim at a reality more real than appearances. (IT, 67; itálico presente autor)

Cito mais uma passagem que encerra o curso da minha argumentação relativamente a este primeiro ponto: pois parece que a realidade de segundo grau, produto da referência de segundo grau, não é senão uma realidade redescrita, i.e. uma redescrição, e daí fundamentalmente ligada à linguagem:

(…) This is why poetry creates its own world. The suspension of the referential function of the first degree affects ordinary language to the benefit of a second order degree reference, which is attached precisely to the fictive dimension revealed by the theory of models [of Max Black]. In the same way that the literal sense has to be left behind so that the metaphorical sense can emerge, so the literal reference must collapse so that the heuristic fiction can work its redescription of reality. (IT, 67s.; itálico presente autor)

(ii) Passaremos ao segundo argumento que sustenta que a realidade de segundo grau estabelecida pela referência de segundo grau não se deixa entender com base no conceito de realidade de primeiro grau estabelecida pela referência de primeiro grau. Em princípio, isto já é óbvio devido à afirmação de Ricœur que a realidade de segundo grau exige a abolição da realidade de primeiro grau. O que me interessa aqui acrescentar é apenas a confirmação de que Ricœur associava esta problemática de uma maneira explícita a autores da tradição analítica da filosofia da linguagem. Neste sentido, encontramos uma primeira alusão explícita a Carnap no capítulo sobre “The Theory of Metaphor”:

Within the tradition of logical positivism this distinction between explicit and implicit meaning was treated as the distinction between cognitive and emotive language. And a good part of literary criticism influenced by this positivist tradition transposed the distinction between cognitive and emotive language into the vocabulary of denotation and connotation. For such a position only the denotation is cognitive and, as such, is of a semantic order. A connotation is extra-semantic because it consists of the weaving together of emotive evocations, which lack cognitive value. (IT, 46)[7]

Esta posição é, segundo Ricœur, errada, pois a metáfora tem até um valor cognitivo muito elevado ao abrir novos acessos e ao fornecer novos modelos da conceptualização da realidade. Ou seja, o que a metáfora faz, sobretudo ao nível da semântica da frase, é a criação de um sentido que nos diz algo novo sobre a realidade. Pode-se até radicalizar a oposição entre realidade de primeiro grau e segundo grau, porque, segundo Ricœur, a “ordinary vision obscures or even represses” os “modes of being” (IT, 60) desvelados pelo discurso poético. E Ricœur continua assim: “We might even say that the poet’s speech is freed from the ordinary vision of the world only because he makes himself free for the new being which he has to bring to language.” (IT, 60; itálico presente autor). Sustenta-se, portanto, que a realidade de segundo grau só e somente se constitui se a realidade de primeiro grau for abandonada. Atentando a que Frege, em “Über Sinn und Bedeutung”, negou qualquer ‘Bedeutung’, i.e. valor referencial, a ‘sentidos’ ficcionais, mencionando a título de exemplo a figura de Ulisses (Frege 1895: 32s.), é óbvio que a realidade e a referência de segundo grau nada podem ter a ver com a referência como foi entendida nos textos mencionados de Frege e Carnap. Daí parecer pouco consistente que Ricœur, para enfatizar a realidade aberta pela metáfora, mencione numa breve passagem a teoria de Frege da distinção entre sentido e referência em “Über Sinn und Bedeutung” como uma das teorias com potencial de fundamentação desta sua posição (IT, 66). Pois segundo Carnap e Frege, uma suposta realidade poética, se bem que pertença àquilo que preocupa o homem, jamais nos poderá fornecer um conhecimento cientificamente válido. Na Autobiographie intellectuelle, no entanto, parece que Ricœur tenha plena consciência deste facto, quando diz, no tocante à sua tese da renarração da realidade:

Je ne renie pas aujourd’hui cette thèse, que je tiens certes pour aventurée, mais pour une autre raison que celle que l’on peut tirer, soit d’une position linguistique du type structuraliste, hostile par principe à tout recours à un facteur extra-linguistique dans le traitement du langage, soit d’une position épistémologique de type frégéen, selon laquelle seul le sens littéral d’un énoncé serait susceptible de se dépasser vers un référent extra-linguistique. (AI, 48)

Esta citação é reveladora não só no que diz respeito à avaliação das implicações da teoria de Frege, mas também por exprimir, implicita mas mesmo assim muito claramente, que deve haver outro modo para além da literalidade, na maneira como um sentido sai do círculo restrito da linguagem e se exterioriza “vers un référent extra-linguistique”. É esta a questão subjacente ao meu terceiro argumento com cuja discussão terminarei este artigo.

(iii) O terceiro argumento tem como base as seguintes premissas. Ao insistir que a exteriorização do sentido do discurso poético tem de e deve ultrapassar os limites da linguagem, Ricœur não se pode e, aliás, também não pretende basear-se nas teorias de tipo fregeniano ou carnapiano. Por outro lado, também não quer que a realidade e referência de segundo grau se conceptualizem como meros derivados da linguagem, pois, segundo Ricœur, esta referência de segundo grau leva a algo que é fundamentalmente exterior à linguagem. A visão segundo a qual o candidato natural para uma tal realidade é simplesmente o ‘mundo’ aberto pelas interpretações, é a mais óbvia, mas acaba por não explicitar onde está a diferença relativamente às teorias tradicionais da tradição continental, pois para esta (e.g. Cassirer, Heidegger, Gadamer) a realidade é no fundo a realidade interpretada, sendo esta não apenas de caráter ‘subjetivo’, mas antes uma realidade ‘presente’, ‘palpável’, sempre mediada e moldada pela linguagem. Esta conceção corresponderia no entanto, na perspetiva de Ricœur, à assim chamada via curta, segundo a qual o postulado de um exterior à linguagem é desnecessário. Ricœur, ao invés, insiste na necessidade deste postulado. Daí que a questão da existência e função do postulado da função essencial do ‘exterior à linguagem’ seja de importância crucial para entender a posição de Ricœur. Penso que é a função e o estatuto do simbólico que nos podem ajudar a esclarecer este problema.

É precisamente na Interpretation Theory onde Ricœur explicita claramente o estatuto do simbólico e onde corrige a sua posição anterior:

As regards the symbol, I defined it [em De l’interprétation e La symbolique du mal] in turn by its semantic structure of having a double-meaning. Today I am less certain that one can attack the problem so directly without first having taken linguistics into account. Within the symbol, it now seems to me, there is something non-semantic as well as something semantic (…). (IT, 45).

Dito por outras palavras, os símbolos têm duas dimensões, “one linguistic and the other of a non-linguistic order.” (IT, 53s.). A parte ‘semântica’ (ou ‘linguística’) dos símbolos é aquela que ‘vem à linguagem’, ou seja, é aquela parte do simbólico que se nos revela com alguma clareza justamente por ter adquirido sentido através de uma interpretação e graças ao poder da metáfora viva de criar novos sentidos partindo da base do material simbólico. A parte não-semântica (não-linguística), no entanto, recusa-se a uma transformação linguística definitiva, ou seja resiste a uma qualquer “transposition to language” (IT, 55). Há algo fundamentalmente não linguístico nos símbolos, algo que devido à sua natureza jamais pode ser alcançado pelo poder da linguagem, constituindo, por assim dizer, a parte ‘avessa’ dos símbolos. Esta parte prende-se com o bios, o fundamento bio e antropológico do ser humano, estudado por Ricœur nos campos da psicanálise, da poesia e da história das religiões, mas que, por princípio, ultrapassa o círculo restrito destas áreas. Aplicado aos símbolos, verificar-se-á que cada símbolo é como que um tesouro abismal do qual a linguagem e sobretudo a metáfora resgata e extrai umas certas faces de significação, ficando no entanto inesgotável o fundo por princípio infinito de outras possíveis significações. Desta forma, haverá sempre um excesso de sentido, inesgotável, indominável, que pertence por essência aos símbolos.

É neste âmbito que surge novamente a questão da referência. O elemento linguístico do símbolo, ou seja, aquela sua parte que se mostrou acessível à linguagem, refere, assim Ricœur, “to something else” (IT, 54). Mas o fundo comum, ao que pertence o referido, jamais se abre na totalidade à linguagem. E sem esta referência, sem este ‘sair das fronteiras da linguagem’ e o relacionamento com o extralinguístico, não se constituiria nenhum ‘mundo’. Esta é a visão sobre a via longa de Ricœur que se opõe à via curta de Heidegger que supostamente não necessita deste ‘desvio’ pelo exterior da linguagem.

É precisamente este elo da argumentação ricœuriana que levanta dúvidas. A questão crucial não é a da ‘existência’ ou não do extralinguístico, mas a da sua significação. Pois o próprio Ricœur postula que, por quão infindável que fosse o fundo significativo abismal do símbolo, este excesso de sentido apenas pode ser testemunhado se perpassar pelo trabalho do conceito, i.e. pela transformação e moldagem linguística: “But it is the work of the concept alone that can testify to this surplus of meaning.” (IT, 57). Comparando este caveat com a perspetiva de Heidegger, parece-me que as alegadas diferenças entre via longa e via curta se desvanecem. Pois Heidegger não nega que haja algo que está para além, ou melhor, para aquém da linguagem, e a co-originariedade do existencial do afeto com os outros existenciais é uma prova nítida disso[8], porém alega que não há significância desencoberta se não houver articulação linguística dela. A significância ‘cristaliza-se em palavras’[9], mas esta cristalização provém das vivências do Dasein. Daí que não haja mundo se não houver uma articulação das significâncias vivenciais. Mas o mesmo se pode dizer da conceção de Ricœur: o mundo, se bem que paire sobre um abismo de potenciais significações ou de vivências ainda não linguisticamente trabalhadas, só é mundo pelo e graças ao trabalho da conceptualização linguística. É essa ‘exteriorização do sentido’ que é o nosso mundo.

A questão que, afinal, marca a diferença entre Ricœur e Heidegger, e em geral entre Ricœur e outras posições da filosofia continental da linguagem é a do estatuto ontológico dos recursos donde a linguagem extrai a matéria para o seu trabalho. Ricœur insiste em que se deva atribuir ao extralinguístico o estatuto de uma instância primordialmente ontológica, fora do alcance do poder linguístico, nunca abnegando o seu dito anterior em Le conflit des interprétations “Il y a d’abord l’être au monde, puis le comprendre, puis l’interpréter, puis le dire.” (CI, 261). Se bem que Ricœur tenha estado plenamente consciente da “circularité” (CI, 262) lógica desta sequência, nunca renunciou explicitamente ao postulado sobre a primordialidade ontológica de um suposto extralinguístico aquém da linguagem. Como, no entanto, este extralinguístico apenas adquire significância realmente significativa (perdoe-se esta expressão aparentemente redundante que, no entanto, não o é) se perpassar a moldagem linguística, penso que não há nenhuma diferença fundamental entre a perspetiva de Ricœur sobre o papel da linguagem para a construção do ‘mundo’ e a perspetiva geralmente sustentada pela filosofia continental da linguagem.

4. Conclusão

Em jeito de conclusão, diria que a alegada hibridez do conceito de referência se justifica pelas seguintes observações: (i) Motivado pela rejeição de uma teoria da linguagem estruturalista que se encerra no domínio da linguagem, Ricœur coloca a ênfase no conceito de referência, sustentado por Frege no seu artigo sobre “Über Sinn und Bedeutung”. (ii) Contudo, não se quer comprometer com as restrições postas ao conceito de referência na esteira do primeiro Carnap. Para além da referência literal, situacional e ostensiva há uma referência de segunda ordem que constitui, constrói e cria o nosso mundo. (iii) Esta referência, no entanto, não se absorve no sentido, nem é apenas derivada dele, mas salvaguarda uma autonomia própria. A justificação desta autonomia prende-se com o domínio não linguístico do simbólico que é fonte e meta do trabalho linguístico que fornece, dá e cria sentidos. (iv) Referência é, no entanto, também a parte linguisticamente transformada do simbólico, i.e. aquilo que é o ‘mundo’. (v) Uma vez que a conceptualização é condição necessária para algo fazer parte deste mundo, parece-me que a ‘referência’ que mais peso tem para a construção/constituição do nosso mundo se prende, em última instância, primordialmente com o sentido (linguisticamente constituído), conceção essa que é sustentada pela generalidade das teorias ‘continentais’ sobre a linguagem. (vi) Daí que Ricœur se situe numa zona intermediária entre as duas grandes tradições da filosofia da linguagem, a analítica e a continental, sendo o conceito de referência a marca mais saliente do alegado fenómeno de hibridez.[10]

Bibliografia

Carnap, Rudolf (1931), “Überwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache”, in Erkenntnis 2, 219-241.         [ Links ]

Frege, Gottlob (1892), “Über Sinn und Bedeutung”, in Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, N.F. 100, 25-50.         [ Links ]

Heidegger, Martin (1977), Sein und Zeit, hrsg. v. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt/M., Klostermann, [Gesamtausgabe Vol. 2] [1927] [SuZ].         [ Links ]

Klein, Ted (1976), “Preface”, in Ricœur (1976), vii-viii.         [ Links ]

Lafont, Cristina (1999), The Linguistic Turn in Hermeneutic Philosophy, translated by José Medina, Cambridge, Mass./London, MIT Press        [ Links ]

Ricœur, Paul (1969), Le conflit des interprétations. Essais d’ hérméneutique, Paris, Éditions du Seuil [CI]        [ Links ]

–– (1975), La métaphore vive, Paris, Éditions du Seuil [MV]        [ Links ]

–– (1976), Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning, Fort Worth /Texas, TCU Press [IT]         [ Links ]

–– (1986), Du texte a l’action. Essais d’ hérméneutique II, Paris, Éditions du Seuil [TA]        [ Links ]

–– (1995), Réflexion faite. Autobiographie intelectuelle, Paris, Éditions Esprit [AI]        [ Links ]

 

[Submetido em 27 de agosto de 2013, re-submetido em 15 de outubro de 2013 e aceite para publicação em 18 de outubro de 2013]

 

Notas

[1] Cf. também Lafont (1999) que sustenta uma posição muito semelhante relativamente aos dois macro-paradigmas e a sua diferença específica.

[2] Doravante usarei, nas referências a este livro, a sigla IT.

[3] O título completo é Réflexion faite: Autobiographie intellectuelle. A própria autobiografia ocupa as páginas 9-82. Doravante usarei, nas referências a este livro, a sigla AI.

[4] Já em Le conflit des interprétations – usarei doravante, nas referências a este livro, a sigla CI – Ricœur se tinha virado decididamente contra o pressuposto da clausura do sistema dos signos nas teorias de Saussure e Jakobson. O último é acusado de estabelecer uma relação entre sequências de um texto tendo em conta apenas o código, e não a referência. A própria coisa, assim Ricœur, não interessaria a Jakobson, como se veria com toda a evidência numa frase do próprio Jakobson que rezava: “(…) les significations linguistiques constituées par le système des relations analytiques d’une expression aux autres ne présupposent pás le présence des choses.” (CI, 74; a fonte indicada por Ricœur é: Jakobson, Essais de linguistique générale, p. 42).

[5] Daí que Ricœur possa dizer que o termo de parole é epistemologicamente fraco (cf. IT, 9).

[6] Em La métaphore vive – uso a sigla MV –, a receção de Max Black (MV, 302-310), sobretudo do seu livro Models and Metaphors (Black 1962), destaca antes a contribuição de Black para os avanços na teoria da metáfora no sentido de ele ter reconhecido a função predicativa da metáfora, i.e. o seu entendimento a nível da frase que contrastaria com teorias que conceberam a metáfora a nível da palavra, sobretudo como tropo ou mero ornamento.

[7] Compare-se, relativamente a esta questão, o desfecho do artigo carnapiano “Überwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache” [“Superação da Metafísica através de uma Análise Lógica da Linguagem.”] (Carnap, 1931: 238-241).

[8] Cf., a este propósito, SuZ 133, 161.

[9] Cf. SuZ 161.

[10] Poder-se-ia alegar que há, no que diz respeito à conceção do conceito de referência, um caso afim que parte do outro lado da ponte, do lado analítico, situando-se nesta mesma zona intermediária, se bem que com base em argumentações bastante diferentes: Nelson Goodman. Também ele coloca o enfoque no conceito de referência (revestido de outras caraterísticas) que serve como antídoto numa teoria que, sem este antídoto, se aproximaria ‘perigosamente’ de um idealismo linguístico. Daí que não admire que a alusão que Ricoeur faz a Goodman em Du texte a l’action (TA, 222) seja de caráter claramente afirmativo, facto que, no entanto, não quer dizer que não haja diferenças entre os dois autores, como demonstra, aliás, a abordagem de Goodman em La métaphore vive (MV, 290-301).