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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.1 Braga  2013

 

Gramaticalização e especialização funcional: o caso do conector pois

Grammaticalization and functional specialization: the case of the connector pois

Maria da Conceição de Paiva*; Maria Luiza Braga*

*Professora do Programa de Pós-graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq, Rio de Janeiro, Brasil, paiva@club-internet.fr.
**Professora titular do Programa de pós-graduação em Linguística da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq, Rio de Janeiro, Brasil, malubraga@terra.com.br.

 

RESUMO

Nosso objetivo neste artigo é discutir a hipótese de que a gramaticalização de orações obedece a um cline de [-integradas] > [+integradas], ou seja parataxe > hipotaxe, com base em um estudo diacrônico do conector explicativo pois. Mostramos que, embora no português contemporâneo, as orações introduzidas por pois só admitam a posposição, até o século XVIII, elas podiam ser antepostas, interpostas ou pospostas à oração núcleo. A perda desta flexibilidade, que, aparentemente, viola a trajetória prevista por princípios mais gerais, é discutida à luz de características discursivas das orações introduzidas por pois. A análise destas propriedades conduz à conclusão de que este conector sofre uma especialização funcional. Em estágios anteriores da língua, ele podia introduzir tanto orações explicativas que codificavam informação nova como orações que introduziam informação já compartilhada pelos interlocutores. Ao longo do tempo, pois se especializa na introdução de informação nova.

Palavras chave: Conector pois; ordenação; gramaticalização.

 

ABSTRACT

Our aim in this article is to discuss the hypothesis that the grammaticalization of clauses follows the cline [-integrated] > [+integrated], i.e., parataxis > hypotaxis, based on a diachronic study of Portuguese explicative connector pois. We show that, although the clauses introduced by pois can only be postposed in contemporary Portuguese, up to the 18th century, they were allowed to occur before or after their nuclear clauses. The loss of that flexibility, which apparently violates the path assumed by more general principles, is discussed considering the discursive characteristics of the clauses introduced by the connector pois. The analysis of those properties leads us to conclude that the observed changes are the result of a functional specialization of pois. In former stages of the language, this connector could introduce clauses that codify both new and given information. Through the time, however, pois specializes in introducing new information.

Keywords: connector pois; position; grammaticalization .

 

*

1. Introdução

Os estudos sobre a origem e evolução de conectores e de períodos complexos vêm acumulando evidências que permitem aferir a validade de princípios relacionados aos processos de gramaticalização. Dentre esses pressupostos, destaca-se o da unidirecionalidade que, aplicado à articulação de orações, prevê um cline de evolução na forma parataxe > hipotaxe. Em outros termos, estruturas mais dependentes e mais integradas derivam de empregos anteriores com menor grau de dependência e de integração. Evidências de estudos mais recentes permitem problematizar esta hipótese, atestando múltiplos casos de evolução de estruturas mais integradas para estruturas menos integradas.

Neste artigo, buscamos fomentar esta discussão, a partir de uma análise diacrônica das orações introduzidas pelo conector pois no português, mais particularmente no que se refere às suas restrições de posição. A partir de dados atestados nos diferentes períodos desta língua, sustentamos que a trajetória de pois pode ser descrita como um caso de especialização funcional que envolve, principalmente, a natureza da informação codificada pelas orações que ele inicia. Mostramos que a perda de flexibilidade das orações encabeçadas por pois, ao longo da história do português, reflete a perda de uma possibilidade discursiva, qual seja, a de codificar orações com informação velha, o que conduz à especialização de pois como introdutor de orações com informação nova e, necessariamente, pospostas à oração núcleo.

Os dados analisados foram coligidos em diferentes textos do século XIII ao século XX. Até o século XVIII, o corpus é constituído por textos de gêneros diferenciados.[1] Para os séculos XVIII e XIX, a amostra é constituída do gênero cartas e inclui subgêneros diferenciados como cartas pessoais, administrativas e de negócios, cartas de leitores e redatores de jornais de diferentes cidades brasileiras. Finalmente, a amostra para o século XX, compreende cartas de leitores publicadas em quatro jornais de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro.[2]

O artigo está organizado da seguinte forma: na seção 2, caracterizamos o conector pois no português contemporâneo e destacamos algumas particularidades sintáticas e semânticas das orações que eles introduzem. Na seção 3, retomamos pontos centrais acerca dos processos de combinação de orações e da gramaticalização de cláusulas, enfatizando a necessidade de concebê-los numa perspectiva não dicotômica que considere um continuum de integração. Na seção 4, analisamos a evolução das orações encabeçadas por pois no que tange à sua posição no período e examinamos a correlação entre ordenação e domínio da relação de causalidade. Na seção 5, apresentamos argumentos para uma interpretação das mudanças depreendidas na posição das orações com pois em termos de especialização funcional deste conector. Seguem-se as considerações finais.

2. O conector pois no português contemporâneo

Nas descrições gramaticais do português contemporâneo, pois é incluído, mais frequentemente, no conjunto das conjunções coordenativas, tanto na sua função de introdutor de orações explicativas como de orações conclusivas. (Cegala, 1970; Cunha, 1970). Os valores semânticos instanciados nas orações com pois remontam às origens do português, como já destacaram, por exemplo, Barreto (1999), Lima, (2002), Paiva e Braga (2013) e derivaram de empregos anteriores deste elemento como advérbio temporal. Segundo interpretação mais corrente, pois deriva da partícula latina post (post > pos > pois), que podia funcionar como advérbio ou preposição, com valores locativos e temporais (Said Ali, 2001 [1921]; Mattos e Silva, 1989, 2006; Barreto, 1999; Lima, 2002). A forma fonte post teria dado origem, não apenas ao conector pois, como também à locução conjuntiva causal/explicativa pois que e as temporais depois de, depois que (cf. Nunes, 1975; 1962). Para Nascentes (1955), todavia, a evolução de pois como conector envolveria uma mistura dos contextos de post e da forma postea, já no baixo Latim. Segundo Barreto (1999), adotando a posição de Corominas e Pascual (1991), a forma post assimilou o valor semântico da locução conjuntiva latina postquam, sinalizadora de posterioridade de um estado de coisas em relação a outro, mas capaz de introduzir também uma explicação. Assim, a evolução de pois exemplificaria uma trajetória de gramaticalização advérbio > preposição > conjunção, através de sucessivas etapas de recategorização que, envolvem, dentre outras mudanças, a fixação do elemento no início da oração.

No português arcaico, coexistia com pois explicativo e conclusivo, o emprego deste elemento como conector temporal (Olinda, 1991; Barreto, 1999; Lima, 2002; Braga & Paiva, 2013), o que indica sua polissemia desde períodos mais remotos. A passagem de conector temporal para conector causal/explicativo é interpretada por Lima (2002) como umaconsequêncianatural dainterdependência entre as noções de tempo e causa, ou seja: se A precede B, A pode ser entendido como a causa de B (cf. Paiva 1991, 1996), um processo de mudança semântica sustentado em evidências translinguísticas (Traugott & König 1991; Traugott 1995, 2010).

Como já destacado por diversos autores (Olinda, op. cit.; Barreto, op. cit.; Paiva & Braga, op. cit.), nos séculos XIII e XIV, pois podia alternar com pois que/poys que na introdução tanto de orações causais/explicativas e conclusivas como de orações temporais. Segundo Barreto, já no século XVI, o uso dos dois conectores com valor temporal é suplantado pelo das locuções conjuntivas depois de/depois que.

Embora não constitua foco deste artigo, vale mencionar que a multifuncionalidade de pois é mais ampla, incluindo usos deste elemento como continuativo, marcador discursivo (reforço de afirmação), ou partícula fática para Lima (2002), que, ao que tudo indica, lançam raízes no português antigo (Barreto, op. cit.; Cândido 2009). É plausível que estes diferentes usos de pois sejam o ponto extremo de um continuum espaço > tempo > texto, produtivo no desenvolvimento de elementos de conexão interoracional (cf. Barreto, op. cit.; Cândido, op.cit).

No português contemporâneo, o conector pois se particulariza tanto nas suas propriedades sintáticas como semântico-discursivas. Diferentemente de porque, elemento mais produtivo e versátil, capaz de instanciar relações causais nos domínios referencial, epistêmico e conversacional (cf. Sweetser, 1990; Paiva, 1996; Dancyeger & Sweetser, 2000, Braga & Paiva 2010), o uso de pois é mais restrito, encabeçando, mais frequentemente, orações que apresentam uma evidência para uma conclusão (domínio epistêmico) ou uma justificativa para um ato de fala (nível conversacional). Em outros termos, orações com pois realizam uma causa da enunciação (Lobo 2003, 1999) ou nos termos de Lopes (2004), uma causa explicativa. Esta particularidade demonstra bem que pois ocupa apenas parte do espaço conceitual da causalidade, o que se evidencia na impossibilidade de parafrasear qualquer ocorrência de porque por pois.[3]

À maioria das análises das orações introduzidas por pois subjaz um pressuposto de simetria entre posição e significado. Assim, a interpretação de pois como conector explicativo decorre, em grande parte, da sua posição no início da oração, enquanto a interpretação conclusiva emerge mais naturalmente com a sua posposição ao verbo Considerando que essas duas relações se imbricam, por constituírem duas formas distintas de perpectivização do mesmo raciocínio inferencial, (Pedro não está em casa pois as luzes estão apagadas/As luzes estão apagadas, Pedro não está, pois, em casa), pode-se presumir que elas são originadas por uma mesma cadeia de mudanças semânticas.

Do ponto de vista sintático, a inclusão das orações explicativas encabeçadas por pois no rol das coordenadas não é tão consensual, visto que, como destaca Lobo (2003:54), as estruturas com pois “possuem um estatuto pouco claro a meio caminho entre a coordenação e a subordinação”. Por um lado, as orações com pois compartilham diversas propriedades com outros tipos de orações coordenadas: não admitem mudança de posição, não se incluem no escopo de uma negação, de uma partícula focalizadora ou de um elemento modalizador, não podem ser objeto de interrogação, não admitem operação de clivagem e não podem ser encadeadas por uma conjunção coordenativa ou constituir argumentos de um predicado (cf. Peres, 1997; Lobo, 2003; Matos, 2005; Lopes, 2004; Peres, 1997; Braga & Paiva, 2011).

Como o conector pois não partilha todas as propriedades das conjunções coordenativas, alguns autores o excluem deste conjunto (Quirk et al 1985, Matos 2005). Matos (2003), por exemplo, convoca particularidades como o fato de pois não poder coordenar sintagmas abaixo do nível da oração ou ligar mais de dois constituintes oracionais para classificá-lo como subordinativo. Lobo (2003) e Lopes (2004), ao contrário, o catalogam como elemento de coordenação. Para Lopes (2004), as particularidades no comportamento de pois não chegam a comprometer sua análise como elo de ligação paratática, uma posição partilhada neste estudo.

Outros autores incluem pois em um grupo distinto, como é o caso de Bechara (1999) e de Peres e Mascarenhas (2008). Bechara (op. cit), embora reconheça que pois explicativo partilhe algumas propriedades dos coordenativos, o insere no conjunto das unidades adverbiais, que podem estabelecer relações interoracionais ou intertextuais. Peres e Mascarenhas (2006), conjugando argumentos sintáticos e semânticos, consideram que as orações com pois são instâncias de estrutura de suplementação, ou seja, em que uma oração estabelece uma relação semântica de dependência semântica com outra sem que haja integração sintática entre elas.

Enunciados construídos com pois se particularizam igualmente quanto às suas propriedades discursivas: apresentam a relação causal entre A e B como pressuposta, isto é, “conforme às expectativas” (Lopes 2004:24), assegurada como possível pelo conhecimento compartilhado pelos interlocutores. Constituem, na maioria das vezes, instanciações de estados de coisas mais gerais, normalmente relacionados por causa-efeito. Aproximam-se, portanto, de um raciocínio baseado na “normalidade das relações que se instauram entre os estados de coisas” (Lopes (op. cit: 36), garantida pelo nosso conhecimento de mundo. A natureza pressuposicional da relação entre A e B é independente do tipo de informação codificada pela oração encabeçada por pois, que pode introduzir informação dada ou nova. Há argumentos, portanto, para considerar que, em períodos complexos com pois, no português contemporâneo, instanciam-se dois atos de fala distintos e independentes, frequentemente acompanhados, inclusive, de pausa entre as duas orações.

3. Gramaticalização de orações complexas

Segundo a hipótese de unidirecionalidade, central nos estudos de gramaticalização, pode-se postular que os processos de combinação de orações seguem uma trajetória de [- integração] > [+ integração], ou seja, estruturas hipotáticas emergem de estruturas paratáticas. Nesta perspectiva, a evolução de processos de combinações de orações obedece à unidirecionalidade, segundo o qual estruturas mais gramaticais se originam de estruturas menos gramaticais ou lexicais.

De fato, a proposta acima é simplificadora, se consideramos que uma concepção dicotômica das formas de articulação de orações, traduzida na oposição coordenação/subordinação, se mostra limitada para explicar a evolução da articulação de orações e dos elementos conectores. Diversas objeções podem ser levantadas quanto à dicotomia coordenação/subordinação: a concepção destes conceitos em termos de primitivos (Haiman & Thompson, 1984); sua caracterização com base em critérios semânticos e sintáticos que podem conflitar entre si; o fato de que ela não consegue distinguir classes coerentes de orações e, menos ainda, os casos fronteiriços[4]; a dificuldade de aplicar os critérios a línguas com outras formas de codificação de uma mesma relação semântica (Cristofaro 2003). Uma das críticas mais severas diz respeito à amplitude do termo subordinação para tratar, indistintamente, orações que funcionam como argumentos da oração núcleo e as denominadas adverbiais, que não possuem função argumental.

Diversas alternativas propõem uma divisão tripartida, (parataxe, hipotaxe, subordinação), para dar conta da natureza particular das orações adverbiais e das relativas explicativas em relação às completivas e adjetivas restritivas (Halliday 2004; Mathiessen & Thompson 1988; Hopper & Traugott 1993, 2003). Nesta perspectiva, a parataxe relaciona dois núcleos independentes, ambos assertivos, e constituiria uma forma mais simples de combinação de cláusulas; na hipotaxe, a margem ou satélite preserva certa independência sintática, pois não integra a estrutura argumental da cláusula núcleo; na subordinação, uma cláusula constitui um termo sintático daquela com que se liga. Na formulação de Hopper e Traugott (2003), as diferenças entre estes processos podem ser esquematizadas como:

 

Parataxe >

Hipotaxe >

Subordinação

– dependência

+ dependência

+ dependência

– encaixamento

– encaixamento

+ encaixamento

(Reproduzido de Hopper & Traugott 2003 : 78)

 

De forma ainda mais radical, diversos autores propõem escalas mais detalhadas, ou seja, um continuum de dependência/independência entre as orações. Nesta perspectiva, maior ou menor dependência entre duas orações resulta da confluência de diversas propriedades, cada uma delas independentemente motivada. É o caso, por exemplo, de Lehmann (1988) para quem diferentes graus de vinculação entre duas orações se definem a partir da combinação de parâmetros como “dessentencialização” da oração; gramaticalização do verbo principal; entrelaçamento das orações; grau de explicitude do elo interoracional. A vantagem desta concepção é a de fornecer descrições mais adequadas de diferenças tipológicas.

Uma concepção não binária dos processos de articulação de orações permite compreender de forma mais clara as mudanças no uso de conectores. Assumindo que princípios atinentes aos processos de gramaticalização podem ser estendidos para o estudo da evolução de conectores e elos interoracionais, pode-se pressupor a generalidade da trajetória unidirecional [- integrado] > [+ integrado] (cf. Hopper e Traugott, 1993) na combinação de orações.

Uma primeira objeção a esta hipótese é colocada em Heine e Kuteva (2007), para quem, na verdade, o esquema acima constitui apenas um dos mecanismos de evolução de períodos complexos, aquele em que duas orações independentes são integradas em uma única sentença. Como consequência desta integração, as duas orações podem apresentar propriedades comuns, como: referentes compartilhados (mais frequentemente o referente do sujeito); simultaneidade ou adjacência temporal; compartilhamento de localização espacial e contorno entonacional único. Este processo é particularmente produtivo no desenvolvimento de relativizadores e de complementizadores.

O desenvolvimento de conectores que introduzem orações adverbiais envolve, predominantemente, um mecanismo de expansão, ou reinterpretação de sintagmas adverbiais, nominais ou verbais, como elos de conexão interoracional. Este é o caso de pois, que, como vimos na seção anterior, deriva de uma fonte adverbial com valores locativos e temporais. Na grande maioria dos casos, essa mudança é acompanhada de mudanças semânticas, igualmente unidirecionais, no sentido de [- subjetivo] > [+ subjetivo] (Traugott & König, 1991), ou, na versão proposta por Traugott (2003, 2010) [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [intersubjetivo]. Nos seus estágios iniciais como conector, um elemento seria convocado para a expressão de relações entre estados de coisas (enunciado) e se estenderia, gradualmente, para sinalizar relações no mundo das crenças e atitudes (enunciação) e, numa última etapa, se estenderia para usos intersubjetivos, ou seja, como forma de regulação das relações entre os interlocutores.

Esta hipótese de mudança semântica tem sido questionada em diversos trabalhos. Contrariando o cline previsto, são identificados casos em que significados subjetivos emergem antes de significados objetivos, referenciais, que surgem apenas em estágios mais avançados da língua. Assim Paiva e Braga (2013) mostram que, além de marginal, o uso de pois para relações causais no domínio referencial, [- subjetivo], é mais tardio. Nos estágios iniciais do português, o uso de pois, ao que tudo indica, fica mais restrito às relações nos domínios epistêmico e conversacional. Concluem que, se o uso de pois como conector temporal, ainda frequente no período arcaico, pode ser interpretado em termos de subjetivização, há fortes evidências de que as mudanças semânticas subsequentes operam no sentido de [+ subjetivo] > [- subjetivo].

Um exemplo ilustrativo é o estudo diacrônico de Evers-Vermeul sobre os pares de conectores causais/explicativos omda/want, dus/ daarom do holandês. A autora destaca dois pontos: a possibilidade de intercambialidade entre eles, pelo menos até o holandês médio, e a acentuada estabilidade das propriedades destes elementos, ao longo de 800 anos. As mudanças no uso destes conectores envolvem uma redistribuição de acordo com os domínios de causalidade. A autora atesta que, embora o par omdat e want, por exemplo, pudesse alternar no holandês antigo, ao longo do tempo, o primeiro se especializa na expressão de relação causal no domínio do conteúdo e o segundo no domínio epistêmico. Conclui que, mais do que subjetivização, a evolução de um conector envolve uma especialização em relação a outros membros do conjunto a que ele pertence. A esta especialização pode estar subjacente tanto subjetivização como objetivização.

Uma outra questão, até certo ponto superposta à natureza mais ou menos subjetiva da relação causal, envolve o estatuto sintático das orações introduzidas por estes elementos: na sua trajetória de gramaticalização, eles obedecem a um cline de paratático > hipotático? Análises de diversas línguas permitem depreender padrões regulares de mudança de uso dos conectores no sentido de ligações paratáticas para ligações hipotáticas. No entanto, outros estudos têm apontado evidências contrárias a essa trajetória, a partir de análises que atestam não apenas o desenvolvimento de estruturas paratáticas a partir de estruturas hipotáticas, ou mesmo subordinadas (cf. Hopper & Traugott 1993; Harris & Campbell 1995; Frajzyngier 1996; Ziegeler 2004; Gunther 2010; König & Van der Awera 1988, Pereira et ali., 2010; Evers-Vermeul, 2005). Pereira, Paiva e Braga, por exemplo, defendem que a formação das locuções conjuntivas temporais na hora que, no dia que resultam de uma complexa reanálise de construções relativas. Concluem, então que, neste caso, ter-se-ia um desenvolvimento de estruturas menos integradas, hipotáticas, a partir de estruturas subordinadas. Uma hipótese semelhante é aventada por Fiéis e Lobo (2008) para algumas conjunções causais/explicativas do português, particularmente para pois. Comparando propriedades sintáticas das orações introduzidas por este conector em diferentes estágios do português e com base na possibilidade de que elas sejam antepostas ou precedidas de uma conjunção coordenativa, as autoras concluem que, em estágios anteriores do português, tais orações se comportavam como subordinadas periféricas. Propõem, então, que pois teria passado por uma mudança de conector subordinativo para conector coordenativo.

4. Diacronia da posição das orações explicativas encabeçadas por pois

Como foi visto na seção 1, uma particularidade das orações encabeçadas por pois, no português contemporâneo, é a sua posição fixa, posposta à oração núcleo. No entanto, emestágios anteriores da língua, elas admitiam flexibilidade (cf. Fiéis & Lobo, 2008), podendo ser antepostas, intercaladas ou pospostas à oração núcleo, como mostram, respectivamente, (1), (2) e (3):

(1) Pois estamos em tempo de restituir, restitua-me Vossa Mercê a sua graça. Se espera que eu o mereça, para mi será desesperação essa esperança. Mais há de quinze dias que ainda a pouca saúde que tinha se foi por aí. E segundo eu estou longe dela, tarde tornará (Séc. XVII. Carta pessoal)

(2) As cartas pera as India vos iram dentro nesta semana, prazendo a Noso Senhor. Emcome(dovos muyto que, pois estam tam cedo, prestes trabalheis por nõ perderem tenpo. E dõ Gonçalves Coutinho he jaa llaa, ha quatro ou çimquo dias, e nõ amda quaa pesoa allgu(a por que ellas ajam de sperar. (Sex. XVI- CRB)

(3) o corpo do home~ he adoptado e co~uinhauel aa me~te e~ deuuda ygualdança, da qual desuayraria, se lhe fosse e~adudo algu~a cousa de afeytame~to, mayorme~te das cousas baixas. E merece pore~ de se vingar Deus do home~, pois lhe faz e~juria co~ os afeytamentos. (Séc. XV, OE)

Um aspecto merece ser ressaltado em relação à possibilidade de intercalação. Mesmo se a maioria dos casos são similares a (2), ou seja, interposição da oração com pois no interior daquela à qual se liga.são também recorrentes nos estágios iniciais, enunciados como (4), em que a oração interposta é antecedida de um conector coordenativo.

(4) E isto comvem que seja em tamanho numero que, posto que lhe tan asynha na~o venha socorro, que se possa mamter, ca, pois ha servemtia de vosso rregno na~o pode ser sena~o per agua, he de emtemder que na~o aveis de ter o vemto a vosso mamdado, mas cuydai que se pode seguyr tall azo que estara~ os navios em vossos rregnos tres & quatro meses & no~ averem tempo de viage~ (séc. XV, DPM)

Casos como (4) poderiam ser analisados como anteposição da oração encabeçada por pois. (Fiéis & Lobo, 2008). Acreditamos, no entanto, que, do ponto de vista discursivo, eles constituem casos de inserção de uma oração explicativa no interior de outra oração causal, no caso a introduzida por ca. Um argumento favorável a esta interpretação é a tendência à sequenciação de diversos conectores no português arcaico. É necessário considerar, ainda que uma parte significativa de dados desta natureza envolve a coocorrência com ca, elemento que, dentre outras funções, podia ser usado para sinalizar continuidade textual (cf. Barreto, 1999).

A análise de 294 orações, distribuídas de forma bastante desigual ao longo de oito séculos (século XIII ao século XX), permite constatar o enrijecimento da ordem nos enunciados construídos com o conector pois, na forma de oração núcleo + oração causal/explicativa, a partir do século XVIII, como mostra o gráfico 1:

 

 

No que se refere à anteposição das orações introduzidas por pois, observa-se sua predominância nos séculos XIV (33%) e XV (26%), períodos em que se verifica também maior ambiguidade categorial e semântica do item pois: seu emprego original como advérbio coexiste com seu uso como conector (cf. Lima, 2002; Barreto 1999; Paiva & Braga, 2013) e, nesta função, pois podia instanciar relações semânticas diferenciadas como tempo, causa e conclusão (Paiva & Braga, 2013). Nos séculos XVI e XVII, observa-se relativa estabilidade de orações antepostas com pois, com índices aproximados de 22%. A partir do século XVIII, não se atestam mais ocorrências de enunciados em que a oração explicativa preceda a oração núcleo.

A tendência para a interposição de orações introduzidas por pois ao longo do tempo é mais irregular, com picos mais acentuados nos séculos XIV (33%) e XVI (31%). Já no século XVII, decresce de forma significativa a frequência de orações com pois intercaladas (7%), possibilidade que desaparece completamente no século XVIII.

A posposição de orações com pois à oração núcleo se destaca como ordem não marcada, pelo menos em termos de frequência, já no século XIII. De fato, dos 6 casos de pois explicativo coligidos neste momento, 5 são de posposição. No entanto, a posposição de pois decresce nitidamente no século XIV, mantém-se relativamente estável entre os séculos XV e XVI, com percentuais próximos de 50%. A partir do século XVII, momento em que o índice de posposição alcança 70%, a direção da mudança parece ser irreversível e a posposição torna-se categórica, a partir do século XVIII. Neste sentido, este estudo confirma a afirmação de Fiéis e Lobo, acerca do enrijecimento da ordem das explicativas com pois.

A questão central, a nosso ver, é se a flexibilidade observada em períodos anteriores do português poderia ser interpretada como evidência de mudança no estatuto sintático do conector pois no sentido de introdutor de orações hipotáticas para orações paratáticas. Um primeiro aspecto a considerar é a inter-relação entre a ordenação das orações e o domínio em que se instaura a relação de causalidade. Como já discutido em Paiva (1991), uma disposição icônica, consoante ao pressuposto de antecedência da causa ao efeito, seria mais previsível para as orações que codificam causa estrita, ou seja, em que A e B constituem estados de coisas. Embora ao longo de todo o período em análise o emprego de pois prevaleça para relações nos domínios epistêmico e conversacional, ou seja, introduzindo explicações e justificativas (cf. Paiva & Braga, 2013), podem ser atestadas ocorrências, ainda que marginais, de enunciados que admitem uma interpretação de causa no domínio referencial, como no exemplo (5):

(5) Sahimos no dia 25, ás 8 ¾ e a 27 ás 8 ½ da manhã, encontramos uma pequena canoa de casaca, chegando ás 8 e 50’ em um porto onde havia três canoas. Desembarcamos depois de ter eu dado algumas providências pois, desconfiava não serem estas canoas de bakairis. (Séc. XIX, Cartas Administrativas)

Em (5), a oração encabeçada por pois parece se situar numa fronteira bastante tênue entre causa estrita e explicação, admitindo duas interpretações possíveis. Na primeira delas, introduz uma explicação (a desconfiança de que as canoas encontradas representassem algum perigo) que justifica a necessidade de providências prévias ao desembarque. Considerando, no entanto, a organização mais narrativa do trecho e o fato de que tomar providências constitui um estado de coisas agentivo e intencional, não fica excluída uma leitura da oração com pois como a causa das precauções adotadas para o desembarque. Esta interpretação é favorecida, ainda, pela presença da oração temporal que precede a oração com pois.

Ao que tudo indica, a posposição das orações encabeçadas por pois é inteiramente independente do domínio em que se instaura a relação de causalidade. Um ponto merece, porém, ser destacado. No período em que se constata maior flexibilidade na posição da oração com pois, qual seja, do século XIV ao século XVII, há diferenças mais sutis na distribuição para as diferentes posições das orações com pois.

Devido à severa limitação no número de dados para os séculos XIII e XIV, nos restringimos aos períodos subsequentes. Ainda assim, é necessária cautela na interpretação dos resultados resumidos na tabela 1, em razão, sobretudo, do número muito escasso de pois no domínio referencial nos séculos XV e XVI. O ponto digno de nota diz respeito, portanto, ao uso de pois nos domínios epistêmico e conversacional. Para o domínio epistêmico, observa-se um nítido corte entre os séculos XIV e XV, por um lado, e o século XVII, por outro, principalmente no que se refere aos valores para a posposição: índices muito próximos nos séculos XV e XVI e aumento significativo no século XVI (77%). Este aumento é acompanhado do recuo de orações com pois intercaladas e antepostas.

 

Tabela 1- Ordenação de orações com pois de acordo com o domínio da causalidade

Século

Epistêmica

Referencial

Conversacional

Antep.

Interc

Posp

Antep.

Interc.

Posp.

Antep.

Interc.

Posp.

XIII

0

0

3

100%

0

0

1

100%

1

50%

1

50%

XIV

1

50%

1

50%

0

1

100%

0

0

0

XV

4

31%

2

15%

7

54%

2

20%

2

20%

6

60%

XVI

4

50%

4

50%

6

22%

7

26%

14

52%

XVII

8

17%

3

6%

37

77%

1

14%

1

14%

5

72%

11

31%

3

9%

21

60%

 

Para as orações com pois no domínio conversacional, configura-se uma situação mais compatível com estabilidade da posposição, associada a altos índices desde o século XV. Quanto à anteposição das orações com pois, surpreende seu aumento no século XVII (31%), após um período de estabilidade, com índices similares para os séculos XV e XVI. As orações com pois intercaladas, por sua vez, apresentam uma trajetória mais regular, com frequências próximas para os séculos XVI e XVII e nítida redução no século XVIII. Os fatos mais relevantes parecem ser, portanto, o enrijecimento na posição de orações introduzidas por pois e o decréscimo da possibilidade de intercalação.

5. Da hipotaxe à parataxe ou especialização semântico-discursiva?

Os resultados discutidos até este ponto constituiriam, em princípio, argumentos favoráveis à postulação de uma trajetória hipotaxe > parataxe para o conector pois). Uma objeção a esta conclusão é que, apesar da sua flexibilidade até o século XVII, as orações encabeçadas por pois resistem a operações como inserção no escopo de uma interrogação ou de uma negação ou, ainda, de um advérbio enunciativo. Além disso, não podem constituir complemento de uma outra oração nem serem clivadas.

Outras propriedades apontam pistas para uma reflexão. Dentre eles, destaca-se a independência prosódica das orações com pois. Ainda que a imprecisão da pontuação em textos de estágios anteriores imponha cautela, a alta frequência de exemplos como (6) é mais compatível com uma interpretação de estatuto paratático das orações encabeçadas por pois.

(6) Duarte Coelho me dise a muyto bõa vomtade e obras que achara no duque de Nemurs, irmãao do duque de Saboya, meu muyto amado e preçado irmão, pera as cousas de meu serviço, e muyto bõo fora tardes levado carta para elle. E porem, pois a nam levastees, aguora volla mando na forma que a mamdaeis pedyr (séc.XVI, CDJ)

No trecho (6), a oração com pois, separada por vírgulas daquela com que se liga, adquire características de um comentário parentético, adicional, acrescentado de forma a garantir a naturalidade do desejo do infante.

Um caso mais extremo de independência prosódica das orações explicativas com pois se verifica nos contextos em que ela se segue a ponto final, como no exemplo (7):

(7) Ainda mal, porque para acreditar, o que disser nesta Relação, tenho já tão curto numero de testemunhas, que eu serei só o autor della. Pois dos poucos que deste naufragio escapárão vivos, são hoje mortos, quasi todos. (Séc.XVII, ELP)

Embora entre os séculos XIV e XV ainda possam ser atestados alguns casos de ausência de vírgula antes da oração com pois, a independência prosódica destas orações é sistemática ao longo dos oito séculos. Como já postulado por Guimarães (1987), independência prosódica é o reflexo de uma estrutura discursiva na forma de tópico-comentário. Nos termos do autor (Guimarães, op. cit:79), “se o tema é uma oração e o comentário outra, então cada oração deve corresponder a um grupo entonacional”. Alguns conectores, pois dentre eles, se tornam marcadores de comentário, explicando-se, assim, muitas das suas particularidades sintáticas. De forma semelhante, Lopes (2004:5) postula que pois, assim como porque e que, só podem introduzir informação não pressuposta, ou seja, constituírem uma asserção. Tal restrição parece corresponder bastante bem aos usos de pois no português brasileiro contemporâneo. Entretanto, em estágios anteriores do português, essa restrição não era categórica, podendo-se atestar casos de orações explicativas introduzidas por pois que codificam informação inferível ou já introduzida no discurso anterior, como nos trechos exemplificados a seguir:

(8) se o marido a no~ quis(er) accusar nen er q(ui)s(er) q(ue) seya doutri~ accusada, nenguu no~ seya recebudo por accusador en tal feyto, ca poys el quer p(er)duar a ssa molh(er) este peccado, no~ e´ dereyto q(ue) outri~ a demande ne~ sub(re) el acuse nenhu~a cousa. (sec. XIII, FR)

(9) E, segundo conta Lucha[m], o que escreveo esta estoria, despois que foro~ co~pridos os cinque a~nos, ma~daronlhe dizer os Roma~a~os que se tornasse, se no~ que o nom receberia~ mais por senedor.E elle, com despeyto, nom o quis fazer mais disse que, pois elle era sanador, que tomava elle outros cinque a~nos; e e~ este cinquo a~nos conquistou tod[a] Espanha. (Sec.XIV, CGE)

No exemplo (8), a informação veiculada pela oração com pois é recuperável do discurso anterior, mais especificamente, do conteúdo da oração condicional onde se especificam as condições para a aplicação da regra estabelecida. Através de um processo inferencial, pode-se concluir que, em caso de o marido querer perdoar sua mulher pelo pecado cometido, nenhuma outra pessoa terá o direito de acusá-la. Neste caso, a justificativa que assegura a validade do ato de fala diretivo realizado a seguir, toma por base uma informação já compartilhada pelos interlocutores.

O exemplo (9) é ainda mais interessante, já que a oração com pois, intercalada entre dois complementizadores ligados ao verbo dizer e o seu complemento, retoma uma informação já apresentada no discurso anterior, portanto, compartilhada.

Os exemplos acima apresentam configuração sintagmática e discursiva bastante similar. Todos eles admitem uma paráfrase, por exemplo, por já que, conector mais especializado na introdução de informação compartilhada pelos interlocutores ou pressuposta. Estes fatos permitem levantar a hipótese de que as restrições à posição das orações com pois no português contemporâneo, mais do que uma trajetória de mudança no grau de integração da oração, reflete a perda de uma possibilidade discursiva, qual seja, a de introduzir informação velha ou inferível e consequente especialização semântico-discursiva como elemento de introdução de informação nova, configurando, assim, enunciados do tipo tema-rema. Este movimento poderia estar associado ao surgimento e generalização de já que, o que tudo indica, a partir do século XVII (cf. Fieis & Lobo 2008; Paiva & Braga 2011).

Uma evidência adicional desta configuração é a frequente presença de elementos anafóricos nas orações encabeçadas por pois antepostas ou interpostas, reforçando seu status de informação compartilhada, como no exemplo (10), em que, na oração explicativa com pois grifada, o SPrep “de aquele naufrágio” remete ao acidente descrito na oração anterior.

(10) Outros muytos soldados de importancia ficârão sepultados entre aquellas aguas; dos quaes eu desejei trasladar os nomes, pois não podia os ossos, a estas letras, para immortal memoria delles: (...) Pois Deos me livrou do risco de aquelle naufragio, os livrasse eu se pudesse aelles, tambem do naufragio do esquecimento (Séc. XVII, ELP)

Ainda que não esteja excluída a possibilidade de orações com pois antepostas ou intercaladas codificarem informação nova, a grande maioria delas (47/59 = 79%) se caracteriza pelo traço [+ informação dada].

Um outro aspecto merece reflexão: em muitos desses casos de anteposição, as construções com pois antepostas e intercaladas se aproximam dos contextos mais característicos da locução conjuntiva pois que, como exemplifica (11):

(11) Poys que offyzio dos escriuaes e´ publico e (co)munal p(er)a todos, mandamos que a todos aquelles q(ue) dema~dare~ carta p(er)a s(eus) p(re)ytos, assy p(er) mandado dos alcaydes coma por os iuyzes como p(er) si dalgu~as (con)pras ou de uendas dos omees que a[i]a~ d(e) faz(er), faças sen outro e~longame~to nenhuu e no~ as leyxe d(e) faz(er) por amor ne~ por desamor nenhuu ne~ p(er) medo ne~ p(er) uergonha d(e) nenguu. (Sec. XIII, FR)

Um dado relevante é que nos 47 períodos complexos com pois que coligidos nos mesmos textos, a oração encabeçada por esta locução codifica informação compartilhada ou apresentada como tal. Não se pode excluir, portanto, a possibilidade de que, durante a coexistência entre os dois conectores, pois tenha incorporado propriedades de pois que, o que explicaria, inclusive, a intercambialidade entre eles em alguns contextos, durante um certo período.[5] Dada a recorrência muito mais significativa de pois como introdutor de orações que expressam informação [- dada], este uso teria se generalizado, ou nos termos de Traugott (2003), semanticizado ao longo do tempo.

6. Considerações finais

Ao longo deste artigo apresentamos algumas evidências para uma questão controversa no que se refere à evolução de períodos complexos, qual seja, a hipótese de que estruturas [+ integradas], hipotáticas se originam de estruturas [- integradas], paratáticas. Considerando alguns aspectos da evolução do conector causal/explicativo pois, apresentamos alguns argumentos que permitem discutir esta direcionalidade.

O surgimento de pois conectivo a partir de uma base adverbial exemplifica bastante bem um processo de gramaticalização no seu sentido mais clássico. O posterior desenvolvimento dos diversos valores/funções de conector pois, ao contrário, suscita questões atinentes ao seu estatuto sintático. Mostramos, com base numa análise quantitativa, que suas restrições sintáticas no português contemporâneo são melhor explicadas se consideramos as propriedades discursivas das orações introduzidas por pois, notadamente no que se refere ao tipo de informação que elas codificam.

A análise permitiu mostrar que a perda de flexibilidade da oração encabeçada por pois, nítida a partir do século XVIII, mais do que o indício de uma mudança de estatuto sintático das orações que ele introduz, pode ser interpretada como uma mudança discursivamente motivada. No período, bastante longo em que as orações introduzidas por pois admitiam posição variável, pôde ser atestada igualmente maior flexibilidade no seu estatuto informacional: orações explicativas encabeçadas por pois serviam tanto à apresentação de informação nova como de informação dada. Como se pode esperar, esta maior flexibilidade discursiva encontra paralelo na forma de linearização do período complexo: orações explicativas com informação dada ou inferível são mais frequentemente antepostas ou intercaladas e orações com informação nova, mais frequentemente pospostas à núcleo (Paiva, 19991). Pode-se, então, concluir que o enrijecimento na posição de orações explicativas com pois implica uma cristalização do seu papel discursivo, ou seja, o de introduzir informação nova.

Evidentemente, uma verificação mais rigorosa desta hipótese requer situar o conector pois, em cada um dos seus estágios de evolução, no paradigma em que ele se insere, a fim de identificar em que medida a perda de uma possibilidade discursiva resulta de uma possível divisão de funções entre os diferentes elementos coexistentes. Podemos presumir que as mudanças operadas nos enunciados explicativos com pois não sejam indiferentes à longa coexistência com a locução pois que e à possível intercambialidade entre eles.Evidências mais seguras para esta conclusão teriam que levar em conta também outros movimentos no conjunto de conectores causais, dentre eles, o desaparecimento de ca, a alta frequência do uso de porque e a emergência de que.

 

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Notas

[1] Para os períodos arcaico e clássico, foram utilizados os seguintes textos: século XIII: Tempos dos preitos (TP). Textos notariais (TN), Afonso X, Foro Real (FR); século XIV: Textos notariais em Clíticos da história do português (CHP), Crônica geral de Espanha (CGE); século XV: Crónicas do Conde D. Pedro de Menezes (DPM) e Orto do esposo (OE); para o século XVII: Crónicas do rei de Bisnaga (CRB), Cartas de Dom João III (CDJ,; século XVII: Epanáforas de variada língua portuguesa ( ELP) e Cartas familiares de F. M. Melo (FMM) As versóes utilizadas correspondem às que foram organizadas para o Corpus Informatizado do Português Medieval (CIPM) (disponível no endereço : http://cipm.fcsh.unl.pt/) e as que constituem o Corpo Tycho Brahe, da USP (disponível em . http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/).

[2] Estas cartas integram um corpus mais amplo (Amostra do Discurso Midiático), composta de textos representativos de diferentes gêneros jornalísticos publicados nos jornais cariocas O Globo, Jornal do Brasil, Extra e Povo. Esta amostra foi organizada pelos membros do Programa de Estudos do Uso da Língua (PEUL), sediado na UFRJ e estão disponíveis em www.letras.ufrj.br/~peul)

[3] A possibilidade de substituir pois por porque decorre naturalmente da ambiguidade deste conector que pode instanciar relações causais em diferentes domínios (cf. Paiva 1991, Lopes 2004, Paiva & Braga, 2010).

[4] Ver, por exemplo, o caso das comparativas e consecutivas que, segundo várias análises, devem ser excluídas do grupo das adverbiais, por compartilharem propriedades tanto das oraçoes relativas e completivas como das coordenadas. (cf. Brito & Matos 2003)

[5] Para Fagard (2009), pois que constituiria um estágio anterior que teria dado origem pois através da perda de que. Esta interpretação pode ser discutida, se considerarmos que a intercambialidade entre os dois conectores é limitada a certos contextos (cf. Paiva & Braga, 2013).