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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

GAME, Jérôme (Sous la direction de), Le Récit aujourd’hui

Saint Denis: Presses Universitaires de Vincennes, Université Paris 8, 2011, pp. 174

Sérgio Guimarães de Sousa*

*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos do Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho, Braga, Portugal

spgsousa@ilch.uminho.pt

 

Autor de uma obra já de referência no domínio dos estudos inter-artes[1], especialmente vocacionada para refletir em torno da contaminação da poesia com as outras práticas artísticas e, com isso, das possibilidades estético-expressivas proporcionadas pela hibridez (com evidente destaque para a que mescla audiovisual e discurso literário), Jérôme Game reúne neste livro um conjunto bem razoável de estudiosos oriundos de diversos domínios – ou seja: apetrechados com múltiplas metodologias crítico-exegéticas e com um arsenal específico de conceitos descritivo-explicativos – e norteados por um desígnio claro: indagar as distintas formas de que se reveste a narratividade na literatura e nas outras artes[2]. Que é como quem diz (e, neste caso, quem diz é Jérôme Game no ensaio introdutório do volume, intitulado «D’un art syntaxique»): «Comment remettre en cause la traditionnelle dichotomie entre contenu et style de manière à envisager une narrativité et des modes de récit irréductibles à la fiction littéraire classique, mais au contraire à même de faire naître, de part leurs novations, des espaces fictionnels inédits en littérature et dans les arts : hybrides, poreux, non réglés dans leurs moyens comme dans leurs fins ou leurs effets» (p. 6).

Esta finalidade, que não é sem alargar o horizonte hermenêutico, afigura-se perfeitamente consentânea com o ethos estético contemporâneo. Porque a preservação, em nome da tradição, com intransigência da identidade e dos espaços de criação de cada arte é, não se duvide, uma prática de acantonamento no interior de fronteiras institucionais mais do que questionável nos dias de hoje. Desde logo pelo esgotamento que presume das suas (monolíticas) condições criativas, mas também por pressupor a criação sob a tutela de convenções e restrições (as que a tradição do género ensinam e validam como supostamente imprescritíveis). Assim, ao arrepio das balizas tradicionais predicadas por cada ramo artístico e suas respetivas cartografias, a criação estética afigura-se energicamente multimodal, o que se concretiza através do diálogo inter-artes, que é um diálogo desinibido que se compraz com a proliferação flagrante e por vezes estrondosa de todo o tipo de impurezas, heterogeneidades, porosidades e hibridismos. Numa palavra, deu-se o triunfo irrestrito de toda a gama possível de proteicas fusões e fecundos entrecruzamentos, contaminações, de resto, rastreáveis sem grande dificuldade nas modalidades expressivas configuradoras do campo estético pós-moderno (artes plásticas, artes performativas, música, literatura e outras áreas afins).

Dos diversos estudos coligidos em Le Récit aujourd’hui e que se detêm, portanto, a recensear e, sobretudo, a analisar a criação de novos discursos estéticos altamente inovadores, vale dizer, suscetíveis não só de explorarem, socorrendo-se do diálogo inter-semiótico, intensamente a expressividade estética sob as suas variadas e instigantes formas, mas igualmente – e este é o ponto de ancoragem essencial do livro – capazes de reformularem alinhamentos sintáticos do heterogéneo, permito-me destacar alguns. O de Eric Suchère («D’une grammaire des surfaces»), que, no âmbito da pintura, depois de estabelecer uma genealogia da ligação matéria/narrativa pelo viés de um estudo sobre a relação da superfície com o fundo, foca a sua atenção no que diz ser o fim das narrativas na pintura, recorrendo à noção de “abstração sintática” e das figuras que essa noção concebe (como é o caso dos deslizes e dos desvios). O interesse deste estudo, refira-se, passa assaz pelo modo como Eric Suchère estuda a pintura confrontando-a com a literatura através de dois dos seus mais conhecidos vultos (Hocquard e Reinhardt). Outro estudo a merecer a nossa atenção demorada, e em clara sintonia crítica com o propósito do livro, é, não sofre dúvida, o de Pierre Sorlin («Entre syntaxe et créativité : ordre et liberté du montage»), que, debruçado sobre a sintaxe fílmica, em especial a de Kurosawa e a de Bergman, releva o seu caráter paradoxal: a assunção, em função de cada realizador, de uma singularidade irredutível, que pode consubstanciar-se numa sintaxe para lá da sintaxe, isto é, em bom rigor, numa não-sintaxe. Desta constatação decorrem pontos fortes e fracos da sintaxe cinematográfica e que Sorlin não deixa de elencar.

Mas não apenas de cinema e pintura se fala em Le Récit aujourd’hui. Christian Doumet («La musique, comment dire»), após apresentar os pontos altos do discurso sobre a música, num périplo panorâmico que abrange Santo Agostinho e Nietsche, enfatiza, com Ricoeur, a incidência da música na linguagem, chamando a atenção para a faculdade de a matéria musical despoletar e estimular a imaginação no interior da ficção; Véronique Fabbri («Syntaxe de la danse»), sob a égide de Derrida, Deleuze e Laban, questiona as metáforas corporais no contexto de uma poética da dança, procurando evidenciá-la enquanto escrita e, como tal, na proporção de um discurso investido de sintaxe, alcançável, neste particular que é a dança, pela figuratividade que esta põe em cena e cristaliza como nenhuma outra arte; Eric Vautrin («De la représentation théâtrale comme texture, ou comment la syntaxe serait un nouvel art du discontinu»), que propõe os conceitos «frase teatral» e «superfície textuada» a partir da leitura arguta e pericial de três autores atuais (Régy, Castellucci e Tanguy); Joseph Mouton («Remarques autor de la narration beuyssienne»), cuja clarividência crítica serve para sublinhar, na obra de Joseph Beuys (mais especificamente em Comment expliquer les Tableaux à un livre mort), o que chama de «narração ocultada»; Christian Rosse («Répétition et longue durée ou la syntaxe de l’installation vidéo chez Stan Douglas»), que, adotando como objeto de estudo os vídeos de Stan Douglas, coloca todo o seu cuidado analítico em argumentar a singular recombinação dos vetores temporalidade vs. narratividade nos textos fílmicos do realizador; ou ainda Aliocha Wald Lasowski («Tempo-Barthes : quando la syntaxe saisit la pensée»), que se esforça, e bem, por isolar o sistema (e o sentido) de uma sintaxe do pensamento na obra de Barthes.

Antes de concluir, faço notar que se há razões esteticamente virtuosas para advogar o hibridismo entre géneros, conducente a novas e dinâmicas reescritas genológicas, com tudo o que isso supõe e propicia do ponto de vista do redimensionamento, não raramente radical, da coesão e coerência orgânico-textuais de cada um dos géneros implicados e dos seus dispositivos ficcionais, essas razões acham-se exemplarmente expostas no primeiro, e decisivo, ensaio do volume (se descontarmos, é bom dizer, a introdução de Jérôme Game, que, em boa verdade, constitui um excelente ensaio). Intitulado «Narrations documentaires : un art contemporain de la syntaxe littéraire», nele, Lionel Ruffel, apoiando-se no conceito de parataxe proposto por Rancière (regime estético em função do qual não existe aprioristicamente qualquer regulação no domínio do relacionamento das diferentes práticas artísticas entre si, havendo antes uma contingente reinvenção de modos de interação a cada novo relacionamento) e no de «frase-imagem» (conjugação de uma sequência verbal com uma forma visual, sendo que dessa articulação a frase não constitui o elemento dizível e a imagem não consiste forçosamente no factor de visibilidade, como observa Rancière em Le destin des images, Paris: La Fabrique, 2003, p. 56), Lionel Ruffel, ia dizendo, fornece um conjunto assinalável de exemplos de narração documentária (em autores como William T. Vollmann, Svetlana Alexievitch, Jean Hatzfeld, Roberto Saviano, etc.), o mesmo é dizer, narrativas literárias que assimilam, a bem de um efeito de real, em larga escala elementos aparentemente extraliterários, como sejam testemunhos, documentos comprovativos, peças jornalísticas, etc. Toda esta panóplia de existentes textuais de natureza documental, que, por regra, se não confunde com o relato ficcional, adquire, incorporada nos meandros dos códigos romanescos, como seria expectável, um estatuto híbrido. Mas quando o escritor lança mão exaustivamente de material documental, a partir do qual alicerça a arquitetura narrativa do seu livro, o que parece estar em jogo, entre outras consequências (discursivas, enunciativas, etc.), não é senão uma significativa mutação no estatuto mimético do texto, como não deixa de reconhecer, com toda a evidência, Lionel Ruffel por interposta presença de Jean Bessière: «La narration documentaire selon Jean Bessière propose ainsi une mimésis de l’information et non pas, comme l’oeuvre réaliste, une mimésis de la référenciation. L’intégration massive du document, avec sa syntaxe dans l’économie générale de l’oeuvre, est alors essentielle car c’est grâce à elle que se met en place son rapport au réel, un réel connu, mais qu’elle reconfigure» (p. 31). E não é ocioso dizer ainda, para quem disso duvidar, que o uso ostensivo de material documental não menoriza o papel do autor, uma vez que lhe cumpre a tarefa imprescindível de selecionar, compilar e, por vezes, analisar toda a informação que achou por bem incluir na sua narrativa. «D’où» – como observa, com inteira justeza, Lionel Ruffel – «une tendance certaine à l’exposition de soi, pour ne pas dire à un certain exhibitionnisme, de l’enquêteur qui vient assurer l’agencement du divers» (p. 33).

A narrativa documentária, com a sua forma específica de cruzar materiais provenientes de fontes diversas, mais não é, e sejamos claros quanto à legitimação literária deste género, do que um dos modos de a literatura dialogar com outras práticas discursivas; e esse diálogo, potencialmente inesgotável, desemboca numa redefinição por vezes drástica da ontologia literária. «Car» – conforme afirma Game noutro livro[3], reportando-se à pertinência de a literatura recriar as suas representações a partir dos desafios instigantes colocados pela arte – «il ne s’agit jamais pour la littérature de re-produire les mêmes effets que l’art. Il s’agit de s’affecter de ses puissances là où on se trouve de son travail, et ainsi, d’en créer de nouveaux. Em émulant, on invente. En s’inspirant de, on dévie. Le tout est de potentialiser ces déviations, de les faire fructifier hic et nunc, dans le texte, l’affiche, le disc ou la perf’ – ou autre chose encore». Esta é, seguramente, a lição essencial exposta em Le Récit aujourd’hui.

 

Notas

[1] Destacaria Poésie? détours (com Vannina Maestri, Christophe Marchand-Kiss, Jacques Sivan, les éditions Textuel, 2004), Porous Boundaries. Texts and Images in 20th Century French Culture (Peter Lang, 2007), Politiques de l’esthétique. Autour de Jacques Rancière (com Aliocha Wald Lasowski, Archives Contemporaines, 2009), Images des corps/Corps des images au cinema (ENS Éditions, 2010), Poetic Becomings. Studies in Contemporary French Literature (Peter Lang, 2011); ou ainda Ce que l’art contemporain fait à la littérature (MAC/VAL, 2012).

[2] Isto é, «la manière dont la littérature, mais aussi et peut-être surtout les arts plastiques, le théâtre ou la danse semblent échanger des modalités et des matérialités qu’on supposait spécifiques», como diria, Lionel Ruffel, um dos autores coligidos, p. 22.

[3] Ce que l’art contemporain fait à la littérature, op. cit., p. 14.