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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

Sobre o Meio

About the Medium

Cristina Robalo*

*Universidade de Coimbra, Colégio das Artes, Coimbra, Portugal

robalo.cristina@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo pretende ser reflexão entre desenho e o texto Entre o Céu e a Terra, de Rui Chafes. Na sua análise contemplativa, o artigo procura a imagem que dá forma ao que permanece entre o céu e a terra: o meio. Engendrar o invisível – espaço-céu e espaço-terra – e o visível – vida-interior e vida-exterior. No primeiro caso, examinamos um espaço de opacidade e transparência como aspetos de um processo reversível e, no segundo, concebemos a visibilidade de um corpo que, interior-exterior, documenta uma imagem: o desenho – disciplina, exercício e esquisso de linguagem na arte. Walter Benjamin e Gaston Bachelard, acompanham e sustentam a pretensão de urdir o laço entre obra-criador e desenho. Entre o Céu e a Terra, no seu enredo com o mundo, é morada de uma vontade exploradora que, inscrita, pertence ao Homem que investiga. O texto de Rui Chafes revela-nos a imagem que procuramos: o desenho.

Palavras-Chave: transparência; sombra; desenho; escultura; obra; criador.

 

ABSTRACT

This paper aims to reflect on drawing and Rui Chafes text Between Heaven and Earth. In its contemplative analysis, this paper searches for the image that gives form to what is between heaven and earth: the medium. Engendering the invisible – sky-space and earth-space – and the visible – the inner-life and outer-life. In the first instance, I have examined areas of opacity and transparency as aspects of a reversible process and in the second, I have conceived the visibility of a body, inside-outside, that documents an image: the drawing – as a discipline, exercise and sketch of a language in art. Walter Benjamin and Gaston Bachelard support and uphold the aim of weaving the bond between the work-creator and drawing. Between Heaven and Earth, in its entanglement with the world, is the dwelling place of a explorative will which, when inscribed, belongs to the man who investigates. Rui Chafes text reveals to us the image that we are looking for: the drawing.

Keywords: transparency; shadow; drawing; sculpture; work; creator.

 

Prólogo

O desenho é disciplina de conhecimento, pensamento e reconhecimento de um projeto individual e único que, pela investigação, permite entender uma consciência da realidade durante a ação do fazer: suporte para pensar a atenção, a disciplina, o rigor, a solidão, a relação presente/ passado, a renovação, a inscrição e a aproximação a uma linguagem que, entre-dois, fosse meio de uma imagem transparente e sombreada.

Aprender a ver – observando pelo pensamento da visão – e apreender a forma – pelo trabalho da mão –, escutando a investigação que vai sendo realizada, em repouso ativo, de si e do desenho, traduz uma transformação: a estrutura do desenho não é mais do que um meio para traduzir/imprimir uma linguagem/imagem que pertence ao tempo do agora: momento da criação da obra, sem necessidade rememorativa, onde o passado fica em suspenso e a sua sombra não oculta a linha(s) inscrita(s) sobre o papel. Os acontecimentos, que vão tendo lugar no corpo do investigador e na imagem do desenho sobre o papel, são interpretados como ondas de vibração a um ritmo lento, articulando segurança nas decisões que vão sendo tomadas durante o exercício. A imagem visível das linhas sobre o papel, determina o gesto que, sem brusquidão, é marca e inscrição do desejo: “a coesão da grafite é então solicitada à adesão pelo papel imaculado. O papel é acordado do seu sonho de candura, acordado do seu pesadelo branco” (Bachelard, 1970: 68). O desenho tem a particularidade, em relação a outras artes, de fazer o contorno que abre ou fecha a figura, de revelar a mentira no uso da borracha e, pela coesão/adesão, compromete duas forças – o papel e a grafite. Estas características do desenho conduzem o corpo do desenhador a uma ocasião solitária e, pela paciência dos olhos e da mão, chega à quietude. Existe como que uma cumplicidade misteriosa entre olhos e mão: um segredo na figura desenhada, confidenciada. A particularidade do desenho, pela dimensão, escala, facilidade de meios – lápis – e suporte – papel, na sua bidimensionalidade, possui uma forma de comunicação própria de um ritmo: a proximidade entre o papel e corpo do desenhador, transforma-se a cada linha traçada. O corpo transita num vai-e-vem, embalado pela mão que, através do braço, projeta compassos tranquilos, mas não monocórdicos. Ora, na escultura, a proximidade entre obra e criador, parte dos meios utilizados – materiais – e, também, da própria relação da obra com o espaço que, individual ou no conjunto, é encenação da sua ligação, por exemplo, a instalação. Conforme a dureza dos materiais, a exatidão necessária para lapidar, cortar, serrar, etc, mantêm o escultor numa lucidez inabalável, ou pelo menos assim devia, pois pode ferir-se fatalmente ao trabalhar o metal e a pedra. No desenho, o lápis não fere, não da mesma maneira; pode rasgar o papel por uma mão mais pesada e não dominhada, mas não como uma serra elétrica. A relação do desenho com o autor é um constante embalo entre mão-olhos e o braço que conduz a ação, leva o desenhador ao sonho acordado. O criador inebriado pode desenhar e, inclusive pintar, mas não pode e/ou deve esculpir. Assim, não é só a diferença dos meios usados pelo desenho e pela escultura, mas as condições que são necessárias no elo entre o corpo do criador e objeto. O enlace do corpo do criador com a escultura é diferente, pelas características de ritmo, força e atenção; no desenho, o envolvimento entre desenhador e papel é próximo a uma relação amorosa, onde a potência do movimento, ritmo, força e, igualmente, atenção, retém medo e desejo, pelo devaneio que aí reside, de forma simultânea e harmoniosa

No que diz respeito, à relação da obra com o espaço, no caso do desenho, a imagem vive pela dimensão do papel, i.e, o tamanho do papel interfere com a figura desenhada. Por isso, a escala do papel é tão significativa, como o que vive dentro dele. Mas, geralmente, o desenho nunca é na sua relação com o espaço aquilo que a escultura pode ser: conforme o lugar da sua habitação – interior ou exterior –, a escultura é protagonista do território, possui-no. O desenho nunca possui o território, ele é o próprio território que, mesmo fugaz na sua composição, não se substitui pela sua sombra.

Lembramos a escultura de Bernini: Ludovica Albertoni que habita a igreja de San Francesco a Ripa, em Roma. Ludovica envolve o peito com a mão, a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta, os olhos revirados em prazer e agonia. A elevação da força na estátua jacente, vive pela representação teatral: a ilusão envolve o espaço circundante. A luz ilumina a posição de Ludovica sobre o túmulo e o mármore polido, branco leite cristalino, constitui o movimento pelas dobragens das suas vestes. E, contudo, o desenho está presente. Quando perante a escultura, os olhos veem e seguem o movimento ondulatório do seu corpo, sentimos a marca do desenho: as linhas que caminham pelo labirinto das dobragens, são vestígio de um ritmo que deixa adivinhar camadas interiores. Com isto, pretendemos dizer que o desenho não é só imagem figurativa sobre papel, ele é esquisso de linguagem na arte: invisibilidade e visiblidade.

As características do desenho, encaminham o corpo para um afundamento que, pela conexão dos olhos e mão, cria no desenhador uma fecundidade tranquila: os livros de horas que, na sua pequenez, exercem a precisão e eliminam a dispersão, por assim dizer eles governam a paz: a paciência entre olhos e mão. Existe uma cumplicidade misteriosa entre desenhador e papel, as linhas que separam e unem a figura desenhada, na inscrição, são imagem da potência entre cúmplices. No exercício de desenho cego, a averiguação do modelo como sendo único é imprescendível. Ao esquecermos outros modelos, há uma entrega total, trabalhamos pelo repouso dinâmico: o desejo aceita e renova-se, a cada instante. Esquece-se o tempo e esquece-se a solidão de fazer o desenho; dentro do papel fica registado a morada do desejo: vibração da paciência. Não sendo possível apagar sem deixar rasto, o prazer agradável ou desgradável, fica também ele inscrito, e o estímulo que o desenhador vai sentido é visível pela ação da mão, ininterrupta, sente que há uma promessa em cada linha traçada, porque a mentira é sempre evidente – o traço que inscreve a linha, fixa o desejo e adormece o medo.

Se o desenho, na sua execução, é distinto na relação entre criador e obra, também o é na destruição: rasgar um papel, mesmo de grande formato, é uma tarefa possível para o desenhador. Enquanto que destruir uma escultura em ferro não será, simplesmente, pertença do autor. Possivelmente, ajudantes, assistentes e/ou operários socorrerão o criador nesta tarefa, tal como, na criação da obra é muito raro, no desenho, os próprios autores trabalharem com assistentes. A relação entre assistentes, autor e papel, no ato de desenhar, passa a ser empreendimento automático e repetitivo. O que não quer dizer que o desenho no final não estabeleça ligações entre criador e obra, mas não determina o que para nós é o desenho. Ao contrário da escultura, em que os técnicos são essenciais na realização da obra. Só o operário conhece, expressivamente, a matéria e o lado industrial.

Pela simplicidade, facilidade e individualidade, o desenho, para nós, é um carimbo que, promove uma imagem e, no decorrer do desenho, essa imagem altera-se para dar lugar a outra e outra sucessivamente – os gestos que vão sendo realizados dentro do papel, despoletam novas imagens e dificilmente a primeira será registo. Esse carimbo, promove a imagem que, em correspondência entre fragmento e completude, forma uma obra singular.

1. O Princípio

A linguagem fez-nos perceber, de forma inconfundível, como a memória não é um instrumento, mas um meio, para a exploração do passado. É o meio através do qual chegamos ao vivido, do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão soterradas as cidades antigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria – espalhá-la, tal como se espalha terra, revolvê-la, tal com se revolve o solo. […] E não há dúvida de que aquele que escava deve fazê-lo guiando-se por mapas do lugar. Mas igualmente imprescindível é saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tateante no escuro reino da terra. E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exato em que guarda as coisas do passado. Assim, o trabalho da verdadeira recordação deve ser menos o de um relatório, e mais o da indicação exata do lugar onde o investigador se apoderou dessas recordações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes.

Walter Benjamin, Imagens de Pensamento

Compreender Benjamin, neste excerto, é entender o caminho de Rui Chafes e do escultor no texto Entre o Céu e a Terra (A história da minha vida)[1], quer na utilização da memória enquanto meio “para a exploração do passado”, quer na jornada percorrida pelo homem que não receia “regressar à mesma matéria”– observar os vestígios da memória e realizar a inscrição sobre o material. Se a linguagem usada, pelo escultor, for a escultura, reconhecemos que, no fim do caminho, não lhe bastou usar a memória como instrumento, mas sim exercê-la como meio para explorar o passado. E, no entanto, para chegar ao passado é preciso fazer uso do verbo escavar, sem receio de voltar ao mesmo lugar. No texto em epígrafe, os mapas do lugar são fundamentais para o homem que escava e investiga, e, contudo, é ainda essencial saber enterrar a pá, cautelosamente. Assim, pela ação do trabalho, no decorrer do tempo – no fim e/ou princípio do caminho –, o homem confidencia a imagem da sua memória: o desenho. Os mapas do lugar formam uma constelação, desenhada que, indica, exatamente, o local onde o investigador registou os achados da sua descoberta e “se apoderou dessas recordações”. A imagem que surge “da verdadeira recordação”, em Benjamin, é épica e rapsódica. Queremos considerar o desenho como valor épico, i.e, o meio que permite alcançar o fim é um valor que, pela sua intensidade, é fora do comum – marca de forma livre e irregular a imagem “da verdadeira recordação”. A rapsódia trata de uma peça musical ou verso, pode ser trecho ou fragmento numa qualquer narrativa, tal como o desenho é fragmento e/ou epopeia, no sentido de ser, por inteiro, a história da sua própria aventura. Sobre isto voltaremos a falar.

O escultor, desde cedo, começa por desenhar na terra, nas cascas de árvores, no chão, em todo o lado, com os materiais possíveis que tinha ao seu dispôr – essa paixão pelo desenho determina o início da sua jornada. A longa história de Rui Chafes, no texto Entre o Céu e a Terra, manifesta-se como um “bom relatório final” e os valores encontrados na aprendizagem, consigo e com os outros, são “aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes”:a obra.

2. O Caminho

Durante a nossa estadia na terra há uma jornada a realizar, os movimentos que fazemos são muitas vezes conduzidos pelos movimentos do mundo circundante; a agitação das pessoas, dos acontecimentos, das nossas relações com as coisas e com os outros criam o enredo da nossa história. A abertura que cada um de nós consente a novos encontros e/ou a novas aprendizagens depende da capacidade de transformação no que vive dentro do conteúdo. É preciso mergulhar e escavar – fazer o caminho – para que a invisibilidade se traduza em visibilidade e através do gesto, do exercício, do treino, da paixão, da ação, a forma se estabilize entre-dois: o meio – o invólucro. Este revestimento que esconde algo e, não é visível aos nossos olhos, pela curiosidade avança, descobrindo, no invisível, a ligação entre-dois:

(…) eu tinha retirado ‘o que trazia comigo’, mas a ‘bolsa’ onde isso estava já não existia. Nunca me cansei de pôr à prova este exercício. Ele ensinou-me que a forma e o conteúdo, o invólucro e o que ele envolve, são uma e a mesma coisa (Benjamin, 2004: 105-106).

Este breve excerto deixa antever que, entre conteúdo e forma, há uma coerência que reinscreve a oposição transparência e opacidade como aspeto do problema exterior-interior. Na passagem de um gesto a outro, penetra-se a cobertura e, desfeito, revela e vela uma eternidade pela imagem descoberta: um espaço comum que vive entre dentro e fora. O segredo dessa passagem parece existir no esquecimento do tempo que reside, permanentemente, entre o que está dentro e o que está fora: “esquecendo o tempo esquecemo-nos da nossa mortalidade, esquecemo-nos a nós próprios para a eternidade. A passagem é isso – o esquecimento. É a passagem de si para o que está fora de si” (Arendt, s/data: 32).

O escultor, Entre o Céu e a Terra, descobre a eternidade do corpo na passagem da história e, na duração, esquece-se de si e da sua finitude. Ele deseja o inexequível: a história do corpo rompe a duração. Caminhando, sem pressa, o escultor escolhe os seus mestres, onde a aprendizagem teve de satisfazer não só a curiosidade, mas também a compreensão daquilo que vivia entre fora e dentro: o espaço partilhado que, vivido, é fruto do esquecimento de si e da obra.

Inevitavelmente, só sabe caminhar aquele que sabe atravessar o tempo e que, pelo desejo de conhecimento, encontra disponibilidade para ver e escutar, onde a distância e a lonjura são colocadas a favor de uma vontade exploradora daquilo que se encontra no caminho: desenhando o contorno, descobre-se a forma. Os olhos que veem, e que “simplesmente observam o que diante dos olhos vive” (Bachelard, 2009: 175), aliadosaos ouvidos que escutam atentamente, procuram dentro de si ouvir-se, sentir a vibração: “o ouvido atento procura ver”(Idem, 2003: 67).

Quando se faz um caminho, muitas são as surpresas e acasos que se descobrem, é preciso saber ver e escutar, antes mesmo de falar. Estar atento, não só a si mas ao que está fora de si, com a função de aprender-apreender e, na continuidade, comunicar o que antes se retirou da aprendizagem pela visão e escuta. No todo, a ligação entre dentro e fora concebem a “grandeza de ser” (Idem, 2008: 185): a transcendência do que vê e a transcendência do que ouve, unidas.

3. O Trabalho

Tatear o caminho e avançar, seja pelo desejo da descoberta ou pela contingência da situação, transformando a dificuldade em saber – ­como o escultor diz –, é ter “umaconsciência ocupada” (Idem, 2009: 52)que se mantém no trabalho. No seriedade do trabalho e na sua realização, pela demora que lhe é implícita, a consciência do trabalhador mantem-se ativa e ocupada, i.e, a obra faz-se a partir não só da técnica, mas também do hábito. Por ele e em disciplina, o trabalhador, cada vez mais, descobre processos que o facilitam a si e à concretização da obra. Ao longo dos anos, diariamente, o escultor observa, aprende e tenta superar-se, através do rigor e da técnica apreendidos na conceção de várias obras; transforma a matéria em peso, o pensamento em forma e descobre o método para mais tarde traduzir, pelo trabalho das mãos, “uma escultura válida” (Chafes, 2011). É pelo exercício, disciplina, rigor, paciência, tensão, medo, desejo e repouso ativo que as capacidades individuais criam uma dinâmica própria de um sonho acordado. Não basta tatear o caminho é preciso “cansar o mestre, pelo trabalho e o esforço, até ao limite do esgotamento, de modo a que o corpo e cada um dos seus menbros possam finalmente agir de acordo com a sua própria razão” (Benjamin, 2004: 226).

O escultor trabalhou e formou-se em várias oficinas como aprendiz. Concretizou os exercícios lançados pelos mestres e a duração da sua formação, um dia, de acordo com a sua razão, fará obras. Contudo, não basta executar o exercício: “o êxito consiste em que a vontade, no espaço interior do corpo, abdique de uma vez por todas em favor dos orgãos – por exemplo, da mão” (Ibidem, 226). Assim, o exercício que corresponde à compreensão, ao conhecimento e à razão, permite ao trabalhador investigar o seu caminho. E, no entanto, há ainda o sonho, não o sonho unido ao sono, mas o da vigília que, exatamente, pela ação da mão, “desperta o ser ativo” (Bachelard, 1970: 68). Este ser ativo que pelo trabalho se cansa, mantem uma consciência ocupada, favorecendo a realização da sua obra – despertado pelas mãos que não são mera ferramenta, acorda o desejo: “a mão apoderou-se da coisa, e num abrir e fechar de olhos forma um todo com ela” (Benjamin, 2004: 226). As mãos, tal como as asas, libertam o escultor de uma atividade unicamente automática e repetitiva, semeiam a esperança no espírito do homem que trabalha: o corpo desliga-se do seu próprio peso, do tempo e espaço que o rodeia e, pelo mundo fora, a marca sombreada do tempo ilumina-se: “comunhão da razão com o sonho” (Chafes, 2011).

4. O Devaneio

Gosto de pensar no Rui Chafes e no escultor como “um fantasma do passado ou da viagem” (Bachelard, 2009: 144)que, na sua duração na terra, percorre um caminho aliado ao fio da história, como se a dificuldade da própria vida não interferisse com a real/irreal jornada de 800 anos. Atravessar o tempo para retirar do passado o que interessa e saber usar as lembranças no presente, é trazer consigo, na mala de viagem, uma espécie de magia: a sabedoria do passado que adquirida e valorizada é sombra transparente no presente.

Bachelard diferencia o sonho do devaneio e, numa tradução sucinta, podemos dizer que o sonho noturno pertence ao sono e o devaneio do sonhador, na claridade do dia, consegue ilustrar um “bem-estar” (Ibidem, 12). Ora, em Bachelard, encontramos não só o sonhador, que no seu devaneio percorre o destino, tornando-o poético, mas também o sonhador que possuindo técnica, “com o seu devaneio faria uma obra” (Ibidem, 13). Neste preciso lugar, o escultor é, mesmo sendo personagem fictício, testemunho de um desejo inteligente e hábil que, até não tendo realizado uma obra visível, no fim do caminho, acumulou um saber dentro de si: a potência do movimento e da criação. Ser inteligente e hábil é saber entender o tempo de permanência que o ser humano alcança na terra e, nesse entendimento, ser hábil e ágil, atento e investigador, promove uma vontade de agir segundo um movimento que pertence a si próprio – neste caso a Rui Chafes. O movimento e a criação são potências, onde o desejo é a expressão manifesta no sonhador do devaneio. Usando essas potências e transformando-as, juntamente com a técnica, a imaginação rompe a duração: “viver numa vida que domina a vida, numa duração que não dura” (Ibidem, 115) – a ilusão que o escultor nos devolve, permanecendo no meio, entre gentes e aprendizagens, sem horas, é a imagem da sua recordação.

5. O Espaço

Existem dois espaços, ambos ligados ao preenchimento, peso, sólido e fluido: espaço corpo e espaço objeto. Vivem, na sua relação, entre o dentro e fora, condições de equilíbrio e desiquilíbrio. Tanto o espaço corpo na sua união com o dentro – preenchimento, peso, sólido, fluido – e fora – equilíbrio e desequilíbrio – como o espaço objeto, criam dimensões e escalas, elevam-se e alargam-se. O objeto ocupa um espaço exterior, a sua dimensão e escala revelam a sua identidade e consoante o local a habitar, eleva-se ou alarga-se. No interior, a experiência e a sabedoria surge da matéria que, solidificada, dará a ver, pela massa, o peso e a solidez do objeto. Tal como o corpo, na sua relação com o exterior-interior, apresenta semelhanças com o objeto e, no entanto, há um momento que pertence à morte: a desintegração do corpo. E não é que não saibamos o nome do criador que fez uma ou várias obras, mas a obra continua a viver. O criador foi vivo e a obra é viva.

Tempo e espaço, na sua relação intrínseca com o interior-exterior são, inevitavelmente, força de uma vontade criadora que projeta um tempo interior no espaço exterior. Ambos íntimos e angustiantes, no que diz respeito à brevidade da vida. A dialética entre espaço-tempo cria uma intimidade de troca e inversão e, neste enredo, habita a angústia “feita de uma súbita dúvida sobre a certeza do interior e sobre a nitidez do exterior” (Idem, 2008: 221). No escultor, a certeza do interior lança um véu: na procura de conhecimento, num passado remoto, suspende e comprime o tempo. É pela potência do movimento e da criação, que a função do espaço é difícil de conceber: retém medo e desejo numa imagem: o meio – linhas que separam e unem a forma. Aquilo que a visão consegue alcançar e, no seu entendimento, vê, escassamente, um espaço transparente sombreado “até aos limites do desconhecido: imagem de duas superfícies opostas, a do céu e da terra, que se unem no horizonte – o espaço irradiante” (Leroi-Gourham, 2002: 134).

A perceção que o homem possui sobre o espaço na sua vida, mantem uma dialética com o tempo e, é essa dialética que, por sua vez, ocupará o pesadelo. Por outras palavras, a ideia de espaço serve a vida, enquanto a visão conseguir atingir a matiz que separa o céu e a terra, mesmo que a imagem chegue aos nossos olhos, desfocada.

6. O Ver

O olhar engendra o desejo e o medo naquilo que está presente e ausente aos olhos, suscita a curiosidade de alcançar o que não é visto e, imediatamente, projeta internamente imagens. Desenvolve uma intimidade dinâmica que, solitariamente, provoca uma direção. É com o olhar que o amor acontece e, tal como na observação e atenção de si e do mundo, também ver claramente, revela a alegria como forma de abandono e esquecimento: criação. Contudo, para que tal aconteça, é preciso ir mais além com o olhar – a atenção promove o conhecimento de todo aquele que deseja ultrapassar-se pela via do trabalho: retirar, deslocar e isolar um rosto e/ou um objeto do mundo como Giacometti o refere:

Nenhum rosto vivo facilmente se revela, e contudo basta um pequeno esforço para descobrir-lhe o significado. Penso – arrisco eu –, penso que o importante é isolá-lo. Só quando o meu olhar o destaca de tudo em redor, só quando o meu olhar (a minha atenção) impede esse rosto de se confundir com o resto do mundo evadindo-se numa infinitude de significações cada vez mais vagas, exteriores a si, ou quando, pelo contrário, obtendo a necessária solidão pela qual o meu olhar o recorta do mundo, então somente o significado desse rosto – pessoa, ser ou fenómeno – afluirá, condensando-se (Genet, 1999: 27).

A miserabilidade do mundo é enorme: na guerra, violência, pobreza, etc., e como se não bastasse a crueldade da morte, que habita permanentemente a vida, inquietando a nossa capacidade de ver, de retirar o que interessa, é exigido,ao homem que deseja trabalhar, ver bem e claramente. A alegria que vive no trabalhador, é lúcida, rigorosa, sofrida e radiante, apesar da indigência: aprecia a compaixão.

Na sua jornada, o escultor sabe que é preciso disciplina e atenção, como alicerces no ofício; reconhece o que cada encontro lhe dá a ver, e, talvez, na alegria destes encontros – pelas relações estabelecidas e aprendizagens adquiridas –, ele tem a esperança de um dia poder criar algo seu, devolvendo uma igualdade ao mundo: sair da sombra.Ver e deixar ver a claridade que penetra na matéria dura, a pedra e o metal: “ser o olho um centro de luz, um pequenino sol humano que projeta a sua luz sobre o objeto observado, bem observado, numa vontade de ver claramente” (Bachelard, 2009: 176).

Estar entre o céu e a terra, permanecer no meio, ser o fantasma da viagem, é querer vivificar tudo, como disse Novalis, “é a finalidade da vida” (apud Chafes, 1992: 49). Os olhos não são mais contemplação, eles são, para o trabalhador, uma troca de olhares entre ele e o mundo.

7. A História

A história que cada um traz consigo, é tudo aquilo que transportamos connosco desde o início: uma apresentação de todas as sensações experenciadas que, dinamizadas, provocam um ritmo na produção de outras imagens. Pode haver ou não memória da sensação, mas lembramos alguma coisa da experência passada, agradável ou desagradável; a memória aparece em nós e o ritmo do corpo inicia uma produção de imagens que, orientadas para o ato criativo, torna cada obra um projeto único.Ver e escutaradquirem disposições de grandeza e dilatação, pois, na verdade, a maioria das pessoas olha e ouve, não só porque implica menos esforço, mas também porque atravessar o tempo que existe entre-dois, exige um sair de si para entrar no outro e, muitas vezes, um retorno: aprendendo e apreendendo a observar de uma outra maneira. O passado não é necessariamente um fardo pesado, contudo tem a sua carga, pois a história do homem está muito mais no passado que no presente que é sempre veloz: “quando se ama a vida, ama-se o passado, porque é o presente tal como sobreviveu na memória humana” (Yourcenar, 2011: 37).

No texto Entre o Céu e a Terra, a constituição do desenho cruza a história e constrói a imagem sobre a obra criada, i.e, a obra está para além do seu criador – só ela tem significado, ultrapassa o próprio tempo e dissolve a história. Não só a história da obra, mas a história das gerações passadas e vindouras. O estético da obra deve crescer no tempo e criar afinidades entre gentes e outras obras. É preciso saber ver, selecionar, retirar, deslocar, combinar e transformar uma coisa em outra. O escultor, sabe que é necessário esquecer a história e que a oscilação entre passado e presente, desencadeia o processo criativo e inicia a criação da obra, tal como Giacometti o fez perante a sua compreensão do objeto. E, contudo, foi necessário ao escultor de Rui Chafes fazer escolhas de épocas e mestres.

Através da linguagem usada no desenho, os mapas dos lugares consistem na metamorfose das lembranças – um futuro possível, onde a rememoração do passado se abre diante do presente redescoberto: a constelação de uma imagem que, inscrita, não pode ser apagada sem deixar rasto.

Segundo a conceção benjaminiana de história:

Cada presente é determinado pelas imagens que lhe são síncronas; cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele a verdade está carregada de tempo até explodir [...]. Não é que o passado lance a sua luz sobre o presente nem que o presente lance a sua luz sobre o passado, mas uma imagem é aquilo em que o outrora configura uma constelação com o agora. Por outras palavras: a imagem é a dialética suspensa. Pois, enquanto que a relação do presente ao passado é puramente temporal, a relação do outrora ao agora é dialética; ela não é de natureza temporal, mas figurativa [...] (apud Molder, 2011: 117).[2]

Na personagem de Rui Chafes, o que determina o movimento de um lugar ao outro não é a relação do presente com o passado, mas sim o desígnio do lugar – imagem –, onde o passado aflui ao presente, formando uma constelação. Se considerármos a constelação como a imagem de um presente redescoberto, definido, apontado, designado, encontramos o desenho. Este desenho não é só imagem visual – mesmo sabendo que a visão promove a imagem –, mas é também imagem escutada. Conhecer e reconhecer o nome das coisas é fruto da comunicação que no passado o escultor ouviu dos mestres: a sabedoria que procurava. E, contudo, escutar é também dar a ver aquilo que antes estava escondido.

A imagem inscrita, é aquela em que o passado e o presente formam uma irregularidade pelas linhas traçadas sobre o papel branco; é a dialética de “natureza figurativa”.

8. A Inscrição

Inscreve-se o traço através da mão e dos olhos que compreendem, envolvem, tateiam e percorrem o visível da ‘matéria’ – por exemplo, no desenho cego, o tempo que demora à mão e aos olhos a traçarem a linha, permite ao cérebro processar a imagem do modelo de forma a estar no momento presente. Não há pensamento ativo e informação arquivada, o saber que se tem de um modelo semelhante ao que está a pousar não intervém. Interessa a apreensão daquele modelo sem referências a um desenho disciplinar; neste exercício, imprimir a imagem sobre o papel, onde a duração da execução transforme o tempo real num tempo irreal, é desejo de uma energia apaziguadora: esquece-se de si e da obra. Quando os olhos passam a mensagem às mãos e inscrevem a linha, não se volta atrás, fica registado sobre o papel – é documento. A participação entre olhos e mão – aprender e apreender – realiza uma investigação que se transforma em projeto individual e único. Desenha-se uma imagem e, tudo aquilo que ela traz consigo – sensações agradáveis ou desagradáveis – compreendeum tempo que vive no já da oportunidade. O escultor que um dia virá a registar tudo aquilo que aprendeu e apreendeu, é na sua relação com o mundo um homem que vive a aprendizagem adquirida, num tempo de ensejo. Tal como no desenho cego, aqueles que se habilitam a realizar o exercício, esquecem-se de si e do exercício e, nesse esquecimento, transformam, imprimindo, a invisibilidade-visibilidade que existe entre as linhas enlaçadas e cruzadas. Sobre o papel branco, a grafite revela a marca da força que une olhos e mão; no gesto de apagar, com a borracha, uma dessas forças, a impressão fica marcada: é designío de um segredo – vestígio de algo que já viveu.

Na obra, “a massa solidificada, guarda todo o seu passado” (Bachelard, 2003: 73) e, como um fóssil, o criador permanece – ele “já não é simplesmente um ser que viveu; é um ser que vive ainda, adormecido na sua forma” (Ibidem, 124). As obras, em que o escultor trabalhou, são, na sua massa – pedra, mármore, bronze – imagem onde o passado se conserva: inscrito, acorda uma imaginação adormecida“imaginação terrestre” (Bachelard, 2008: 73).

9. A Imaginação

Romper a duração para fora do tempo, viajando ao encontro de novos mestres, técnicas e territórios, eis o fantasma da viagem: o escultor que procura o mundo indivisível, tal como os Antigos o desejavam.

Sem ponteiros a marcar a jornada, o escultor usa uma espécie de hábito que lhe cobre o corpo como uma cobertura e/ou invólucro que protege o que há no interior; quando o veste é transportado mundo adentro, caminhando de trilho a trilho e de oficina a oficina, sem voltar atrás, à procura de um mundo onde ele seja possível. A este hábito chamamos véu que, transparente e sombreado, trabalha pelas ondulações provocadas no movimento de quem o usa.Em Benjamin, a imaginação que trabalha “lança um véu sobre a distância” (Benjamin, 2004: 239), onde por baixo dele, as coisas se deslocam e, pelo movimento ondulatório, fomentam imagens. O escultor na sua viagem usa um véu que o lança sobre a distância; este é o véu do tempo: cobertura entre dentro e fora. Por baixo do véu, o escultor vai construindo imagens e, pelo trabalho, o movimento desencadeia uma montagem: o filme da sua vida.

Diante do mundo real, a função do escultor será reconhecer aquilo que aprende, procurando cada vez mais um mestre que lhe mostre o sentido da sua busca, “para ela não ser apenas uma demanda errática” (Chafes, 2011) e lançar “sobre todas as formas a aprender, o véu da ignorância que ele próprio se encarrega de levar” (Rancière, 2010: 13). A função irreal do véu que cobre e protege o escultor é uma metamorfose do real: cria o mistério entre ver bem e escutar bem. Por exemplo, quando olhamos o rosto de uma mulher que usa um véu e, de rosto coberto, alimenta o desejo. A imaginação voa e, nesse movimento, a visão dá forma a uma imagem contornada, preenchida, ligeiramente, desfocada pela transparência e sombra do tecido. Igualmente, o véu que cobre o rosto de um morto projeta medo – revemo-nos nesse rosto. Provavelmente todos os mortos têm uma expressão semelhante, independentemente do que vivos foram. Não é o que está escondido, coberto pelo véu que causa espanto, admiração e abismo,é o que não pode ser, imediatamente, gravado. A transparência do véu, pregueado, desenha sombras e as imagens que advém da visão, imaginadas, projetam medo e desejo. O que daí emana, engrandece a emoção de transformar o pesado em leve e continuar a viver.

Rui Chafes e o escultor do texto Entre o Céu e a Terra não são seres de contemplação, mas sim seres de resistência e ação, onde “a luta do trabalho é a mais cerrada das lutas; a duração do gesto trabalhador é a mais plena das durações, aquela em que o impulso visa mais exatamente e mais concretamente o seu alvo” (Bachelard, 2008: 19): medo e desejo alcançam a paz.

10. A Sombra

O corpo e objeto, são mutáveis, irreais e fugazes, consoante a luz que incide sobre eles, desenhando, assim, a mancha – sombra.

Mancha e sombra, são a realidade entre céu e terra e manifestam-se sobre aquilo que está vivo. E, contudo, mancha e sombra podem dissolver-se na passagem de um lugar a outro. Na obra de Louise Bourgeois, p.ex., as esculturas de grandes aranhas em aço, vivem a sua sombra conforme o lugar onde habitam – no interior de um museu, a sombra tem um carácter mais predominante e terrível do que no exterior, ao ar livre, onde a sombra se metamorfoseia consoante as diferentes fases da luz do dia. Igualmente, na obra de Rui Chafes, as esculturas em ferro marcam um território e, também elas, conforme o lugar alteram a sua sombra e escala. Pois, conforme o local, exterior-interior, a obra eleva-se e alarga-se. No entanto, há qualquer coisa de indizível nestas esculturas e não se trata de ‘espírito’, mas de ânimo – o homem trabalhador que se dedica à escultura e vive, profundamente, dentro da ‘matéria’ do seu corpo, tal como vive a matéria dos materiais: o ferro – “o metal é uma substância-século” (Idem, 193).

Na obra de Louise Bourgeois, sentimos o peso de um passado refletido e recriado no presente; em Rui Chafes o passado é desmesurado: lavrae, nessa lavoura, há qualquer coisa que absorve a sombra como se cada escultura fosse um túmulo – o derradeiro sentimento da morte que, diariamente, vive em nós. Convém não esquecer que uma das primeiras aprendizagens que o escultor desejava era de “formar o espaço, de o interrogar, de o inverter, de substituir um objeto pela sua sombra” (Chafes, 2011) e, na sua jornada, ele não só forma o espaço, interroga, inverte, como o faz levando o tempo do lado dele.

A sombra da vida sobre a sombra da morte e vice-versa, no texto Entre o Céu e a Terra, são semente no objeto e escultor: semente da anterior semente e de outra anterior, sucessivamente. E, contudo, há uma única sombra que “duplica pelo devaneio o ser do sonhador: o ‘duplo’ é o duplo de um ente duplo” (Bachelard, 2009: 76): Rui Chafes, o fantasma da viagem e o escultor. O fantasma da viagem, existe entre Chafes e o escultor, ele é, “em carne e osso, o que se torna espírito” (Ibidem, 144) – a única sombra.

Fora do tempo e espaço e fora do real e na luta contra ele, o fantasma habita o meio – usa o véu do tempo e, ligeiramente, desfocado, vê a linha do horizonte (ir)radiante: transparente e sombreada.

11. A Transparência

Marcar a linha do horizonte que separa e une o céu e a terra, é uma tarefa difícil – a precisão necessária para desenhar essa separação e união, parte da (im)possibilidade do vísivel-invisível. Não é a dificuldade do desenho, mas sim de fazer o traço. A linha do horizonte é como a estrela cadente que rasga, desenhando, o fundo. Ambas deixam rasto e, irregularmente, entre presença e ausência, são vestígio impresso. Assim está o escultor que, como uma linha e/ou estrela, no seu movimento é fragmento de um projeto: os vestígios das suas lembranças imprimem, na obra, o rasto do passado – são fundações no presente. O escultor não se mantem no meio, na sua ascendência e descendência, sulca o meio, Entre o Céu e a Terra. Não se pode viver no meio, é preciso criar situações de entrada e saída, subida e descida, mas é também preciso ficar em imobilidade para tomar o entendimento desse mesmo mundo que olhamos e nos olha – a luz que, em breves instantes, umas vezes sublimes outras melancólicas, desenha, ao mesmo tempo, o vazio e o preenchido: a beleza da verdade. E, se por um lado a tarefa de inscrição é difícil de registar, por outro, o vestígio impresso é fragmento da disposição e rigor de ver bem – renascer, documentar e continuar –, aquilo que a perceção regista.

Benjamin diz que a pintura nada tem a ver com o desenho, pois o “medium” (2006: 299) é a mancha em absoluto. O único caso em que a linha e cor se encontram é o da aguarela, onde os contornos do lápis são visíveis e a cor é aplicada em transparência. Neste caso, o fundo conserva-se, apesar de colorido. Os vestígios deixam ver os contornos da figura desenhada: “a linha chama a si, como seu fundo, a superfície” (Molder, 1999: 13-15). A visibilidade das linhas evidencia o fundo, tal como o céuazul é fundo, presença sombreada, para as nuvens viajantes.

Numa leve transparência algo de visível se ilumina. Será o fantasma da viagem capaz de ver e imprimir a linha do horizonte desfocado? Talvez, mesmo que não inscreva com exatidão o que vê, pela ação da mão consciente, a imagem visual é fixada. Provavelmente, o fantasma da viagem é, também, um fantasma do vento – transporta em si uma leve música e, em voz baixa, desenha com traços leves a sua própria sombra: “o anjo” (apud Chafes, 1992: 11). Vê e escuta – a canção de uma breve alegria: o Desenho desenhado que, inscrito sobre papel, não pode ser apagado sem deixar rasto.

12. O Desenho

Se calhar os extremos não se atraem a não ser de modo acidental. E aquilo porque eles anseiam está no meio, porque isso é que é o bem.

Aristóteles, Ética a Nicómaco

O desenho está longe de ser apenas uma disciplina que, pela facilidade do meio e suporte usado, permita ser registo de uma qualquer imagem. Ele pode ser um mal menor, no que significa ser expressão rápida e eficaz no registo de uma ideia e, contudo, o desenho é maior: na sua manifestação, o verbo é fazer, tal como a poesia.

Na prosa, o texto está sempre a ser escrito no pensamento, não há necessidade de escrever imediatamente, pois a imagem que despoleta a narrativa é a que dará origem ao enredo. Claro que se perde alguma coisa dessa primeira imagem, mas ela não desaparece – é arquivo. Lembramos, Marguerite Yourcenar: “sempre escrevi os meus livros em pensamento antes de os transcrever para o papel, e às vezes cheguei a esquecê-los durante dez anos antes de lhes conferir uma forma escrita” (2011: 192).

Ora, no desenho e poesia, é necessário imprimir a primeira imagem, caso contrário ela perde-se, não pelo facto de ser esquecida, mas porque no ato de fazer a primeira imagem, ela morre para dar lugar a uma outra. O desenho e a poesia são uma energia constituída por uma espécie de corrente que “assenta em efeitos de repetição, que são capazes de ter um papel encantatório, ou pelo menos, de se impor ao subconsciente” (Yourcenar, 2011: 173). Na prosa, o ritmo do enredo apresenta uniões implícitas, i.e, as imagens da narrativa são encadeadas umas nas outras construindo a narrativa, o leitor entenderá o ritmo do história como quiser. No entanto, as personagens de um romance podem ter, cada uma delas, a sua poesia, na maneira como expressam o sofrimento, a dor, a tristeza, alegria, amor, etc. Por exemplo, o desenho e a poesia têm um ritmo melódico que não precisa de estar encadeado na imagem que revela, não há personagens aqui, é o conjunto que desempenha a função do ritmo. Provavelmente, uma poesia sem ritmo não promove nenhuma imagem e na prosa, pela descrição de um lugar ou acontecimento e/ou por um personagem, o ritmo pode aparecer condensado, i.e, a obra pode não possuir, por inteiro, o mesmo ritmo, mas ele existe dentro da obra, mesmo que fragmentado. Na poesia e desenho, se o ritmo não pertencer ao todo da obra, ela não estabelece uma ligação com o leitor ou espectador. Aqui há a permissa de ver, quer no desenho, quer na poesia: a imagem que decorre do trabalho, deve dar a ver o movimento da energia despoletada por uma imagem que, imediatamente, se altera para dar origem a outra e outra, sucessivamente.

A razão pela qual, no Princípio, referimos o desenho como sendo um valor épico e rapsódico, é porque na sua imagem e desígnio, ele implica não só uma mudança, mas também uma origem. Por outras palavras, o desenho é um gesto inicial que permite ao criador fazer uso dele como linguagem rigorosa na execução de uma ideia. Pela sua impressão, tal como a rapsódia que não segue uma estrutura pré-definida, o desenho relata e tece aquilo que é no seu todo a obra: esquisso de linguagem na arte.

Na sua transparência e sombra, o desenho forma a imagem, em que passado e presente se cruzam e o traço visível da linha inscrita, sobre a plenitude do branco do papel, traz em si o tempo do agora – o meio: “aquilo que é antecedido por um e seguido pelo outro” (Aristóteles, 2008: 1450b 30) e que importa, não pelo que é realizado, mas sim pelo que a visão vê e dá a ver.

Em Rui Chafes, o desenho é um meio para atingir a exatidão: “(...) todo o rigor de que necessito para executar uma ideia está no desenho. O espaço em que as peças atuam é abstrato” (Chafes, 2005: 123). A fecundidade do espírito e corpo, no escultor, do texto Entre o Céu e a Terra, alimenta o desejo até ao fim: assegura a perpetuidade numa lembrança que dure para sempre – o desenho: “Essa minha paixão levava-me a passar horas perdidas, nos campos, a desenhar na terra, nas cascas de árvores, no chão, enfim, em todo o lado onde uma linha pudesse existir e fazer sentido ao lado de outra. Hoje continuo a desenhar muito, mas em papel” (Idem, 2011).

 

Referências

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Notas

[1] Texto escrito e lido por Rui Chafes, na Universidade de Lisboa. Intervenção no ciclo ‘100 lições’ pelo centenário da Universidade de Lisboa, 2011.

[2] A citação integra a obra inacabada de Walter Benjamin, intitulada Das Passagen-WerK, Gesammelte Schriften [N3,1], 1927-1940.