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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

Um pacto às escuras: da autorrepresentação em Alanis Morissette

A Blindfolded pact: On self-representation by Alanis Morissette

Diogo André Barbosa Martins*

*Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal

dioguito.dioguito@gmail.com

 

RESUMO

Falar de identidade ou de sujeito continua a ser uma tarefa ardilosa a vários níveis, entre os quais o nível discursivo, num mundo onde, da grande literatura à indumentária, tudo se assume como suporte comunicacional. O que parece estar subjacente a cada tentativa de desdobrar o invólucro do eu é que a noção de sujeito descentrado, polifónico ou fractal satisfaz mais, e com menor apreensão, a irredutibilidade humana, do que a pura reflexividade do cogito cartesiano. Neste sentido, a escrita musical de Alanis Morissette, que neste estudo se restringe a duas lyrics do álbum Supposed Former Infatuation Junkie (1998), corrobora a noção de sujeito tenso, porque, detendo-se no género autobiográfico e nas questões ligadas à autorrepresentação, põe em evidência fissuras intrínsecas aos textos que são homólogas à natureza dos diferentes eus neles representados. Um caso de articulação entre forma e conteúdo.

Palavras-chave: Autorrepresentação; metadiálogo; paralipse; discurso.

 

ABSTRACT

Speaking about identity or subject still remains an arduous task at many levels, including discourse, when everything, from high literature to cloth-fashion, stands as a communicational ground. Seemingly, underneath each attempt to disclose the self, there is the premise of a decentered, polyphonic or fractal subject, which is more suitable to the human irreducibility than the pure reflexivity of the Cartesian cogito. Thus, Alanis Morissette’s musical writing, which in this study is limited to two of the Supposed Former Infatuation Junkie’s lyrics (1998), corroborates the notion of an unstable self because, by belonging to the autobiographical and self-representative genre, it exposes fractures within the texts, similar to the ones that characterize the different selves to which the lyrics stands for. It’s a case of articulation between form and content.

Keywords: Self-representation; metalogue; paralipsis; discourse.

 

Ninguém muda de pele com a facilidade das cobras

Eugénio de Andrade

We are temporary arrangements

Alanis Morissette

O presente estudo queda-se na interpretação (diga-se ‘literária’, se insistirmos num perímetro convincentemente diferencial entre essa designação terminológica e a de ‘intersemiótica’ ou ‘intermedial’, mais atinentes com os tempos que correm) de duas letras de Alanis Morissette, cantora e compositora de origens canadianas, às quais, segundo a própria[1], se foi acrescentando muito do que se entranha e dissolve na miríade de designações (abstratas) daquilo que possamos denominar por eu: termos ambíguos e temerosos como identidade, caráter, sujeito, pessoa ou personalidade, com um espectro semântico que respira, entre todos, um plausível “ar de família”. Não tivesse a artista musical nascido no ano de 1974, trilhando uma carreira que se estende até aos dias de hoje, talvez a leitura das suas letras musicais fosse facilmente catalogável usando os estilemas que, por norma (sublinhe-se: norma convencional), classificam um autor à luz de figuras e topoï que confluem para um isomorfismo quase translúcido, denunciador de um conjunto de tratos que inscrevem, por exemplo, o sujeito num certo tipo de identidade cultural, num dado período de transição, com nervuras ou acalmias psicológicas que subjetivizam questões de amplitude política. Em resumo, ler a obra é ler-lhe os quadrantes, é contextualizar o sujeito e compreendê-lo num regime in loco e não ex nihilo: o microcosmo do eu singularizando inquietações macrocósmicas.

De facto, a escrita musical de Alanis Morissette, nascida sob etiquetas periodológicas facilmente descoláveis, porque inconsistentes, como as que o ‘pós-modernismo’, ‘pós-modernidade’ ou ‘hiper-modernidade’ designam, tanto se ins-creve como se ex-creve enquanto escrita, que é ex-crita, nessas cronotopias pouco fiáveis, se se tomar em consideração que o eu descrito nas suas canções dificilmente se filia a linhas de leitura preestabelecidas que facilitam a decifração de uma “mensagem” (uniforme) de uma artista que apresenta o seu trabalho, muito simplisticamente, como matéria autobiográfica. Se, enquanto subgénero mais ou menos coeso e definido dentro do sistema semiótico literário (esqueçamos, por agora, que Alanis canta o que escreve), a autobiografia acontece hoje sob a alçada teórica e filosófica do sujeito cartesiano descentrado, seja pelo contributo de Derrida, seja, muito antes, pelo impulso, até então inclassificado, do inconsciente freudiano, seja ainda pelo protagonismo usurpador da linguagem que nos substitui, à luz de Lacan, como imago, ludíbrio ou clivagem entre o moi e o je –, então, o que dizer do pressuposto de que o sujeito descrito por Morissette nas suas lyrics é o mesmo sujeito que ela pensa ou diz ser? Por outras palavras, depois de Marx, Nietzsche e Freud (e apenas para citar três nomes ditos incontornáveis pelas indecisões e querelas psicopolíticas do Ocidente), como encher as brechas deixadas no eu clássico kantiano, que se torna descoincidente consigo mesmo? Tapar buracos, coser pontos, engessar fraturas – como e com o quê? À parte o serem prosaísmos e metáforas, estes três gestos ortopédicos confirmam somente a natureza interminável do seu designatum e denotatum – o eu –, enquanto irradiarem da ansiedade gnómica do sujeito, confrontado com a ruína da equação iluminista “homem = animal racional”.

O bios da raiz etimológica de ‘autobiografia’ situa-se entre duas margens intervenientes no processo de viver: o eu, de um lado, e a escrita, do outro. Todos os preliminares impulsionadores da noção de descentramento deram azo a que se autonomizasse a escrita, o grafo na diegese do eu pelo eu, atribuindo-lhe propriedades genesíacas (quiçá intuitivas, diria Bergson) que surpreendem o criador, supostamente atento a todo o processo.[2] Por sua vez, como reza a doxa, se é verdade que Deus escreve direito por linhas tortas, será mentira afirmar que o mesmo Deus morreu depois de Nietzsche ter escrito sobre Ele, ou seja, não apenas uma escrita d’Ele, mas sobre Ele, por cima d’Ele?

Do cadáver de Deus ainda se faz um luto penitencial (que é existencial), e a linguagem artística, no seu caráter multiforme de modelizar o mundo, parece estar ao serviço de restituir ao homem alguma da fé que este havia depositado, e depois sentido extinguir-se, na antiga transcendência ou metafísica, servindo-se dela para sublimar o presente sem a almofada do passado (mítico, histórico…).[3] Parte dessa fé, tanto quanto é legítimo afirmá-lo, reabilita o sujeito nos múltiplos espelhos onde ainda consegue ver refletida a sua imagem, apesar de todas as nódoas e névoas que os possam recobrir (recorde-se que a psicose do sujeito (cf. Lacan, 1966: 89-97) devém a única verdade possível desde o seu nascimento, sendo precipitado no mundo como um corpo que já vem precocemente fragmentado, tateando a unidade de si numa sombra imaginária, ou seja, no seu reflexo no espelho).

Deste modo, e face à condição teológica tragicamente órfã e desamparada do sujeito, a escrita autobiográfica ressuscita a figura do autor (continuamos, portanto, no plano da imagem), que Barthes celebremente matara num contexto associado à premência autotélica do texto sobre as leituras de cariz biografista. O autorretrato, pictórico ou literário, restitui-lhe uma certa “euidade” de si, re(in)veste o eu retratado de uma aura subjetiva (sem que isso recubra démarches de furor expressionista), alheia aos regimes legitimadores que conferem à arte o seu poder “museológico”, depois da segurança simbólica bebida das grandes meta-narrativas, segundo Lyotard, se ter simplesmente esvanecido na sua inoperância ontológica, encolhendo o que na ideologia parecia grande. Quando já nada extrínseco parece conseguir defini-lo, o sujeito procura autodefinir-se com o que sabe – mas também com o que desconhece, com a insolência pregnante de uma ignorância insuperável que, para citar duas metáforas antunianas, apenas permite ao leitor de (auto)biografias ficar “a par de uma casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da intimidade nos está vedado” (Antunes, 2012: 12). Das duas vias – a da gnose e a da ignorância –, talvez a segunda tenha sido a mais profícua: um furar contínuo dessa casca desafiante.

Supposed Former Infatuation Junkie, editado em 1998, figura hoje como um álbum musical sui generis, seja pelo seu sincretismo a nível dos registos pop, rock e indie, seja dentro da própria consistência técnico-compositiva e conceptual morissetteana, que com este lançamento discográfico não só comprometeu todo o histerismo mediático à volta de Jagged Little Pill, mas também consignou a sua assinatura pessoal enquanto artista “estranha” ao meio (tanto musical como político) que anos antes a acolhera, ensimesmada no que realmente deseja exprimir e desinteressada de todos os satélites (comerciais) extrínsecos a esse imperativo primordial, o escrever(-se).[4] Nesse sentido, o booklet do segundo álbum surpreende e intimida o expectável ouvinte de música, sobretudo porque, visualmente, muitas das lyrics se apresentam como longas manchas grafémicas, com refrões alternativos no corpo da mesma canção, alguns dificilmente memorizáveis (quando não é o caso de nem existirem de todo), sujeitando o ouvinte a esforços de concentração sobre a natureza lisível e reflexiva da música, antes de se quedar numa simples audibilidade diletante que, por norma, facilita a receção de um texto emergente da ora vexada ora indemne pop culture (não fosse o epíteto ‘música comercial’ lido pela crítica mais conservadora, de Theodor W. Adorno a Roger Scruton, como algo de nefastamente demolidor, porque desgastado, acrítico e, pior, atraente e hipnotizante).[5]

À parte aquilo que possa estreitar os mais sensatos vaivéns de correspondências entre a escrita morissetteana e outros discursos (literário, filosófico, intermedial), o limbo dos “estudos literários” ou dos “estudos culturais”, com uma brecha por onde as designadas “poéticas do rock” possam respirar, permanecerá límbico: até que ponto será ou não justo considerar como falsa modéstia o facto de a instituição literária, enquanto linguagem normativa por excelência, celebrar a ruína e a famigerada decadência dos seus cultos, como o cânone de moldes bloomianos, promovendo colóquios, seminários e mesas redondas sobre uma morte que, pelo menos na prática, permanece bem viva sob outros meios de materialização e reprodução do literário? Américo Lindeza Diogo concretiza: “Serão as bazófias da juventude o heavy metal dos Faetontes de sempre? Será que a Vénus com suas ‘lácteas tetas’ e ‘roxos lírios’ shoot to thrill?” (Diogo, 2002/2005: 14).

Enredando-se nos trâmites topológicos da autobiografia, cedo se depreende que a escrita morissetteana não gravita em torno de um sujeito estável, mas de um eu que se vê ao espelho e se apercebe de que também é visto, em sentido merleau-pontiano, ergo construído também pela alteridade, por uma inevitável reversibilidade do percurso fenomenológico da visão, em particular, e do corpo em toda a sua intensa, profusa e profunda estesiologia, em geral, corpo que se impõe figural e figurativamente numa hermenêutica das lyrics, pelo facto de o emissor dar rosto, voz e carne ao seu texto. Trata-se, portanto, de um ato performativo, se tomarmos a linguagem em contexto pragmático, como o que, neste estudo, serve de princípio estruturante. O apagamento do sujeito, se de facto acontece, é apenas metafórico, porque nunca deixa de ser/estar encorpado, sob a espessura da casca antuniana, desunhando aquele que diz eu. Por sua vez, se tomarmos em conta a interferência dos desígnios autobiográficos, mais irrepreensível se torna a afirmação barthesiana, segundo a qual “quanto mais ‘sincero’ sou, mais me torno interpretável” (Barthes, 2009: 148).

No sofá: um estágio ao espelho

A letra de The Couch, sétima faixa do álbum, constrói-se num jogo entre ambiguidades interpretativas e ambiguidades emocionais, ainda que o sentido conotativo das palavras seja quase embaraçosamente banal ou antipoético (à parte os critérios – se existentes e/ou válidos – que possam ajuizar o que eleva a poesia a ser poesia). É típico em Morissette servir-se das marginalidades da vida como matéria criativa, um anelo ostensivo sobre o que possa parecer espontâneo e óbvio, salvo o pleonasmo ou a redundância: quando tudo é demasiado transparente e hiper-informacional (cf. Baudrillard, Lipovetsky, Steiner, entre outros), como dar algum repouso ao olhar, que tudo vê e em nada repara, como um “olho sem pálpebra”? Fechar os olhos – não só em sentido figurado, mas também em sentido literal (relembre-se: as lyrics envolvem o corpo, a performance), – pode proporcionar uma clarividência acrescida. A propósito, Mario Perniola parte da polissemia do verbo sentire, na língua italiana, que é a sua, para assinalar como ao mesmo é afeta tanto uma perceção sensível do mundo, como o significado mais específico de ‘ouvir’ ou ‘escutar’: “[o] acusma, aquilo que se ouve, é mais fluido e circulante do que o theasma, aquilo que se vê” (Perniola, 1992: 46). No caso de The Couch, a voz recobre-se de um estatuto especial, que o mero facto de se tratar de música, e por isso cantável, não deve de todo esquivar-se à interpretação: num plano pragmático da análise discursiva, a voz do eu, escapando ao seu controlo pelo fluxo “direto” que imprime, colige a possibilidade de pluralizar o sujeito e de autorrepresentá-lo sob a carne experiencial do outro, com profundas implicações éticas mútuas: mais especificamente, falamos de um pai e de uma filha, mediados por um psicólogo (ou psicanalista) e, em menor grau de influência, pela presença da mãe, abafada pela díade referida logo após as duas primeiras estâncias (o espectro edipiano do desejo incestuoso é hermeneuticamente tentador).

Coincidências ou arrojos intertextuais à parte, The Couch assemelha-se ao que acontece em alguns dos ‘metadiálogos’ de Gregory Bateson, nos quais também pai e filha escrutinam o metabolismo do processo dialógico: são conversas de domínio filosófico, cuja veemência proposicional permite que se extrapole o cerne temático para incidir na estrutura da própria conversa, que se revela igualmente essencial para o desenvolvimento do assunto (cf. Bateson, 1989: 7). Esta articulação batesoniana forma/conteúdo serve, assim, de pressuposto teórico para a leitura de Morissette.

The Couch

you hadn’t seen your father in such a long time
he died in the arms of his lover how dare he
your mother never left the house
she never married anyone else you took it upon yourself to console her

you reminded her so much of your father
so you were banished and you wonder why you’re so hypersensitive
and why you can’t trust anyone but us
but then how can I begin to forgive her so many years under bridges with dirty water
she was foolish and selfish and cowardly if you ask me

I don’t know where to begin in all of my 50 odd years
I have been silently suffering and adapting perpetuating and enduring
who are you younger generation to tell me that I have unresolved problems
not many examples of fruits of this type of excruciating labour

how can you just throw words around like grieve and heal and mourn
I feel fine we may not have been born as awake as you were
it was much harder in those days we had paper routes uphill both ways
we went from school to a job to a wife to instant parenthood

I walked into his office I felt so self-conscious on the couch
he was sitting down across from me he was writing down his hypothesis I don’t know
I’ve got a loving supportive wife who doesn’t know how involved she should get
you say his interjecting was him just calling me on my shit?

just the other day my sweet daughter I was driving past 203 I walked up the stairs
[in my mind’s eye
I remember how they would creak loudly
she was only responsive with a drink he was only responsive by photo
I was only trying to be the best big brother I could

I’ve walked sometimes confused sometimes ready to crack open wide
sometimes indignant sometimes raw
can you imagine I pay him 75 dollars an hour sometimes
it feels like highway robbery
and sometimes it’s peanuts
I wish it could last a couple more hours

so here we both are battling similar demons (not coincidentally)
you see in getting beyond knowing it solely intellectually you’re not relinquishing
[your majestry
you are wise you are warm you are courageous you are big
and I love you more now than I ever have in my whole life

Na óbvia narratividade que atravessa este tema, a personagem inicial apresenta a situação-problema e os seus intervenientes: o drama familiar centrado na figura de um pai ausente na vida da filha, primeiro, porque ele refizera a vida com outra pessoa (he died in the arms of his lover), segundo, porque aquela fora negligente com ele (you hadn’t seen your father in such a long time: há um quid incriminatório neste ato de fala, pois, parafraseando nomes incontroversos da pragmática, aquilo que se diz ultrapassa o que, na iminência, parece ser dito). Há ainda a figura da mãe, resiliente e submissa à condição falocêntrica do regime patriarcal: nunca abandonou a casa, nem voltou a casar. Numa vertente psicanalítica, que é sempre arriscada, a progressão do texto dará conta de que a morte do pai aqui encenada mais não é do que uma figuração fantasmática, um subterfúgio (defensivo) erguido pela filha para impedir que o episódio traumático por excelência – a perda do pai – se renove: afinal, parece justa a alegação de que a mera existência do pai age por si só como um crime de repercussões atávicas, dado que, por reminiscência, a filha convoca à mãe a imagem paterna, padecendo, por isso, com o ostracismo (so you were banished) e um impasse nascido da incompreensão (you wonder why you’re so hypersensitive/ and why you can’t trust anyone but us).

Se houver um motivo na letra que seja de algum modo medular e transversal ao desassossego psicológico dos vários eus, talvez ele se quede no poder intimidante da gramática genética dos homens. Como assinala Mario Perniola, a propósito da sensologia, ou aisthesis, que recobre o mundo social e a imagem especular que os sujeitos partilham entre si, “[o] que está por sentir pode ser sentido ou não; mas o já sentido só pode ser recalcado […]” (Perniola, 1993: 12). Não é por acaso que o título da música joga com o léxico da psicanálise: o sofá ou o divã freudiano são os espaços emblemáticos onde o inconsciente fala, o qual, num estribilho por demais familiar, está estruturado como uma linguagem. Falar é, assim, o primeiro passo para desertar o desconforto que a comunicabilidade – o material da comunicação – tende a infligir, separando os eus, precisamente, pela parte que os une. O corte nos laços, quer afetivos quer comunicacionais, revela-se depois na inibição ou na autocensura, que, por sua vez, se reflete em expressões que desvendam as inconveniências do discurso aberto (a mãe: under brigdes with dirty water)[6] ou o autoflagelo estóico e ruminante que permeia os intervalos da maturação individual (o pai: I have been silently suffering and adapting perpetuating and enduring).

No que toca à filha, o seu silêncio interventivo reveste-a de uma natureza algo flutuante, porque nunca chega a ganhar corpo explícito na letra, salvo os dúbios enredamentos emocionais das duas últimas estrofes, cuja enunciação tanto pode partir do pai, como da filha (ainda que a hipótese do primeiro prevaleça sobre a segunda); é essa, aliás, a melhor estratégia narrativa para (con)fundir os sujeitos, reconciliando-os no facto de terem em comum uma divergência, seja externa (pai/filha) seja interna (as desavenças interiores). O seguinte verso, paradigmático na sua intenção puramente metatextual, decalca e corrobora a osmose dilemática dos eus pelo uso do pronome de primeira pessoa do plural, por um lado, e pelo dilema como clave de leitura, por outro: so here we both are battling similar demons (not coincidentally). O marcador conclusivo – so – é igualmente inaugural da ressonância afetiva (não apenas biológica ou hereditária), fazendo do amor (love) a última grande meta-narrativa, aquela que sobrevive ao desgaste do sentido.[7] Mesmo a nível entoacional[8], Morissette tende a diminuir o volume e a arrastar a voz nos versos finais, jogando com a entropia que é causa/efeito de um verso dito em constante atropelo vocal (as barras oblíquas marcam as pausas): you see in getting / beyond knowing it solely / intellectually you’re not / relinquishing your majestry. Pelo contrário, as unidades verbais que constituem os dois últimos versos fluem com maior clareza enunciativa, pondo a nu a intenção textual de abrir espaço à reconciliação, algo que, no foro dos atos perlocutórios, ecoa o sentido de “espiritualização do discurso pela escrita” (Ricœur, 2005: 50). Arrisca-se a leitura de que se visa transpor um sentido extrínseco às combinatórias formais de tempos (se acatarmos uma linha de pensamento stravinksiana, que dirime a hipótese de haver sentido ou emoção na música) para dentro da própria música: depois da tempestade (emocional), eis que chega o prenúncio de bonança – que se sente (texto-corpo) e, por isso, se canta (música-corpo). Realizações diferentes do discurso, portanto, são atinentes à natureza das lyrics: discurso oral e discurso escrito, à parte as demarcações que os afetam singularmente, têm em comum o facto de serem isso – discurso (cf. idem, 38-39), radicalmente vivo porque ao vivo, porque é agente da (e agido pela) força de enunciação. Por outras palavras, porque é um événement[9]e não uma mera sombra da idealidade, convertendo-se uma significação objetiva, ou utterance’s meaning, numa significação subjetiva, ou utterer’s meaning (Paul Grice apud idem, 58).

Porque se trata de lyrics, pensar na expropriação da palavra à música que a anima parece incongruente, e é-o de facto. Porém, uma leitura centrada apenas no texto desvelaria que muito do que está escrito não parece o mesmo quando é cantado. Isto, porque a performance de The Couch – e, neste ponto, é indiferente tratar-se do registo em estúdio ou de um registo ao vivo – constrói-se com base numa série de desconexões entre os elementos métricos e os elementos sintáticos, entre o ritmo sonoro e o desvelamento semântico, semelhantes aos encavalgamentos que, no discurso poético, fraturam a unidade entre som e sentido, e servem de tributo, implícito ou não, à transgressão da identidade poética, “esboçando”, como diz Agamben, “uma figura de prosa” (Agamben, 1999: 32). Há, de facto, pausas na articulação frásica que ficam momentaneamente suspensas; núcleos nominais que hesitam a ligação aos respetivos núcleos do predicado verbal; eixos de sentido desconexos, aliados à ausência de pontuação gráfica, que se atropelam no misto de desafogo e desconsolo que é expor uma torrente emocional que levou cinquenta anos a levedar – e, insista-se, silenciosamente (primeiro e segundo versos, terceira estância).

Para o efeito, concorrem algumas construções frásicas que mimetizam o discurso oral e vivificam a palavra escrita com o seu quid de fisicalidade: por exemplo, how dare he; if you ask me (no sentido de dar uma opinião não solicitada); how can you just (com o polissíndeto like grieve and heal and mourn); I don’t know (posposto a he was writing down his hypothesis, reforçando a vanidade do assunto em questão e acelerando a conversa para o seu âmago, que se tende constantemente a adiar); a interrogação you say his interjecting was him just calling me on my shit? (mais retórica do que inquisitiva, mas inequivocamente expiatória); can you imagine (sentimento de indignação). A figura retórica da paralipse parece parcelarmente ajustável, porquanto o eu finge não querer desenvolver o que o atormenta, mas vai deixando escapar algumas iluminações que confirmam a sua natureza umbrátil. Repare-se nos seguintes versos: just the other day [o recuo cronológico afere que a dor não é de agora, mas vem de trás, logo tocou-o profundamente] my sweet daughter [por um lado, a cumplicidade inegável do afeto, que somente a prática parece ofuscar; por outro, replica um dado sabido – já se sabe que ela é sua filha – como eco de uma culpabilidade terrível no exercício (falhado) da sua função paterna: designá-la como daughter é nomear, é encarnar o significante] I was driving past 203 [uma informação geográfica despicienda, mas que aproxima os sujeitos na familiaridade “enciclopédica” evocada por cenários mutuamente reconhecíveis; acentua o seu drama, interior, na condição de nómada moderno, de sujeito sem repouso] I walked up the stairs in my mind’s eye/ I remember how they would creak loudly [imagem arquitetónica do seu delírio imaginativo: umas escadas que rangem, que avisam da presença do eu, enquanto corpo que se faz notar pelo peso que exerce no mundo – leitura que se clarifica encavalgando-se no verso seguinte] she was only responsive with a drink [mãe, problema com o álcool] he was only responsive by photo [pai, amnésia seletiva: precisa de ver para se recordar de quem abandonou e, por conseguinte, da sua função paterna] I was only trying to be the best big brother I could [questão que se coloca: tratar-se-á de uma irrupção do discurso do psicólogo, descongelando a frieza deontológica e sucumbindo a um certa inclinação paternalista, mas de manifesta impotência? O superlativo – the best – é icário, como quase todos os excessos no choque entre a linguagem e o real: uma ambição que voa alto e cai longe].

A penúltima estância corrobora a intervenção de um terceiro (o psicólogo), no momento em que o pai se indigna contra o preço das consultas (can you imagine I pay him 75 dollars an hour – note-se o implícito do discurso: como se não bastasse sentir dor ou remorso, ainda teve a preocupação de procurar ajuda terapêutica especializada; ele reconheceu que tinha um demónio a exorcizar). Simultaneamente, esta ganga digressiva – sometimes/ it feels like highway robbery and sometimes it’s peanuts/ I wish it could last a couple more hours – condiz com o intuito obscurecedor do sujeito a que antes nos reportamos como atinente à paralipse: por um lado, oculta a fragilidade que advém de um sujeito dissociado de si (na quarta estância, a expressão “I feel fine” é uma clara denegação freudiana: negar o ponto nevrálgico é camuflar um sim); por outro, e em consonância com a premissa anterior, enche o discurso de entulho para preterir o irremediável choque frontal entre pai e filha.

Sendo The Couch uma espécie de tudo-ou-nada confessional que se vai gradativamente intensificando (note-se como a repetição adverbial adensa o clímax da dissociação e alienação do sujeito: I’ve walked sometimes confused sometimes ready to crack open wide/ sometimes indignant sometimes raw), a desculpabilização cínica do eu, além de tudo o que aqui foi mencionado, passa pela tentativa de se encarnar no lugar e na pele do outro, tentativa que, do ponto de vista liminarmente fenomenológico, está condenada ao fracasso. À parte a inocência quase risível do detalhe, e sem nos transviarmos pelo decalque biografista, importa relembrar que é a filha quem tenta vozear a consciência do pai, cruzando-a com a sua consciência. Mais do que “tolerar” o outro (equivalente a “diminuir”, no sentido, repugnante, com que Žižek (cf. 2006) trata a “tolerância” pós-Locke na era do capitalismo universal), o mérito do esforço passa por procurar compreendê-lo e partilhar o que se sente; subscreve-se a nível ético, mediado pela figura ondulatória do psicólogo que estimula a aproximação dos dois pelo que, entre eles, parece ser suscetível de desnovelar liames reatáveis.

O contraponto paralelístico vem na própria sintaxe de The Couch, se retomarmos a linha agambeniana sobre a métrica encavalgada: “O enjambement traz, assim, à luz o andamento originário, nem poético, nem prosaico, mas, por assim dizer, bustrofédico da poesia, o essencial hibridismo de todo o discurso humano” (Agamben, 1999: 32). Hibridismo que, humanamente irredutível, rastreia o insondável entre o pai e a filha, ou melhor, entre o pai e si mesmo (os seus múltiplos eus: we went from school to a job to a wife to instant parenthood) e entre a filha e si mesma, como espelhos compossíveis. Em linguística, isso passa com recorrência pelo jogo entre pronomes pessoais, pondo a tónica expressiva naquilo que “[…] la première personne avait tendance à fondre: clivages, tensions, métamorphoses” (Lejeune, 1988: 86). De facto, a primeira pessoa do singular estabelece para o leitor apenas uma posição relativa do sujeito face ao texto, sem com isso lhe dar quaisquer garantias de objetivismo. Assim, por muito que o discurso chegue a desnudar a subjetividade dos seus diferentes locutores[10], diz Agamben que, “[…] conhecendo a incognoscibilidade do outro, não conhecemos alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós” (idem, 26).

À espera: marinar um cancro

Se Kurt Cobain foi, tanto literalmente como em sentido figurado, o mártir de toda uma geração que, sem ele, se resignaria à mumificação vegetativa – Here we are now! Entertain us![11] – e ao gregarismo identitário dos “frangos de aviário” (Cobain, 2000: 19), se foi um “suicida introvertido” (consciente dessa lobotomia metafórica, mas não virtual) que os media vestiram da cabeça aos pés com os signos fisiognomónicos mais convenientes ao escândalo mediático (cf. idem, 62) – então, em 1995, Alanis Morissette tornar-se-ia a candidata ideal para incorporar o papel de novo bode expiatório (disse-se “incorporar”, porque no showbiz pós-Cobain, no seio da era capitalista, “representar” não basta). No entanto, contra as expectativas mais sádicas dos media, que assomam a rodos mal se pressente a iminência do cheiro a sangue, Alanis não se deixou imolar pela/para a remissão de pecados anónimos que nada tinham a ver com os seus. Mesmo assim, durantes largos meses após a tournée de Jagged Little Pill, ela própria chegou a suspeitar que não voltaria a compor, esquivando-se para um Oriente onde o eco do seu nome próprio não fazia, de todo, tremer as águas. Com ela, o esquematismo girardiano do desejo mimético e da vítima sacrificial parecera ter sido suspenso: desta vez, não houve nem suicídios, nem overdoses de heroína, nem clínicas de desintoxicação, nem intervenções policiais a meio dos concertos; muito antes de haver o dobre de sinos como anúncio de um luto, já Alanis dizia “aleluia” com Supposed…, nua e serena, agradecendo à Índia, ao terror, à desilusão e a outros agrores.[12] Arriscar-se-ia dizer que Cobain formou uma banda cujo sonho maior seria alcançar o nome que lhe deram, mas foi Morissette quem terá compreendido melhor o sentido e o alcance do vislumbre nirvânico (thank you nothingness – uma atualização do Nada segundo Schopenhauer?).

Ensaie-se um regime de comparações entre os dois artistas a partir das suas próprias reflexões autocríticas e metatextuais. Por um lado, os escritos do frontman dos Nirvana mencionam a imensidade do perigo autobiográfico na escrita, com um despudor – “inédito”, logo irreverente – sincronizado, por antífrase, com o seu tempo: por exemplo, para se referir às letras do álbum Bleach (em português, “lixívia”, evidenciando a natureza corrosiva do conteúdo, mas ao mesmo tempo desinfetante), Cobain equipara-as “à descarga de uma fossa estagnada durante anos: eram a purga da minha consciência quase a apodrecer, depois dos anos de Aberdeen e de toda a merda em que tinha sido obrigado a viver” (Cobain, 2000: 33-34). O risco dessa “purga” foi a sua mediatização exponencial, algo que, para William Burroughs, escritor preferido de Cobain[13], dá azo à seguinte interpelação de alarme: “Já notaram que figurar na capa do Time é receber o beijo da morte?” (Burroughs, 2002: 34) – como quem diz que a autenticidade irredutível do artista (que antes de ser artista é humano) não se imiscui na luz dos holofotes, sob o risco da pele da “aura” ser fotossensível e inflamável.

Por outro lado, e face à escassez de fontes que denunciem o inverso, Alanis Morissette não pareceria tão afim de usar imagens excrementícias para ilustrar o seu misto de raiva e desânimo contra os traumas de infância e outros entraves da sua antropologia familiar (considere-se a letra de Perfect, do álbum Jagged Little Pill). Nas entrevistas, a sua sobriedade poderia ser considerada surpreendentemente desconcertante, tendo em conta que a sua forma de apresentação mundial condensou, numa mesma letra, expressões de uma Inquisição contra a pujança fálica (imediatamente sujeitas ao bip censório), tais como would she go down on you in the theatre e and are you thinking of me when you fuck her. Sob as lentes externas, a questão paradigmática tropeçava no erro de uma resposta meticulosamente confecionada: num escrutínio deficientemente biografista, esperava-se que a artista irreverente do palco e das músicas fosse coincidir ipsis verbis com a jovem adulta, vinte e um anos, olhos castanhos, natural de Toronto, aluna de mérito, maria-rapaz, signo gémeos, etc., etc.[14] Seria necessário um certo distanciamento temporal (físico e psicológico) para que Morissette conseguisse retroceder na carreira e obter uma maior acutilância crítica a respeito de tudo o que viveu, por escrito e por ex-crito. Ao pensar em retrospetiva, no ano de 2004, sobre o segundo álbum, apelida-o de “my fuck-you record”, admitindo não ter tido perceção do seu desaforo artístico na altura em questão: “I guess I was simply writing what I needed to write. I found it all quite cathartic, actually, although I don't think the record company agreed”.[15] É só quando entra em cheque a pulsão confessional, alcançando na escrita (diarística, musical) uma forma de expressão satisfatória e plenipotenciária, que Morissette se aproxima nitidamente de Cobain: não pelos resíduos fisiológicos e pelos canos do esgoto (que Cobain acolhe inevitavelmente, vitimando-se por isso), mas antes pelas metástases cancerígenas (que Morissette faz por curar ab ovo ad mala, renunciando à condição de vítima):

“It is never my intention to hurt or vilify someone through my songs. If that happens, then I am genuinely sorry, but I write them because I have to, in order to develop my sense of self. If I were to keep them bottled up, then all those bad feelings would marinate and I'd get cancer. I don't want cancer.”[16]

Revivalismo da autobiografia, em registo radiofónico, e que nasce das intimidades como subterfúgio ímpio (Cobain) e como catarse holística ou medicina alternativa (Morissette): sem sucumbir às generalizações impróprias para consumo (validado pelo aparelho institucional) literário, a autobiografia como género dilata as suas margens trazendo a periferia para o centro, ou melhor (numa reivindicável atualização do discurso), trazendo as periferias para os centros, dissolvendo as insolubilidades molares, os seus organismos abalizantes e todos os órgãos que afastam, por dentro, o eu – no caso da autorrepresentação – do seu núcleo essencial, que é o seu si mais fenotípico (cf. Deleuze & Guattari, 2004). Enquanto eventuais sortilégios genológicos, que beneficiam cada vez mais do seu hibridismo (se contornarem as Cassandras da literatura e as suas ameaças de crise[17]), as diferentes estratégias de autorrepresentação do sujeito, tal como as varinhas mágicas do Harry Potter, denunciam que não será tanto o sujeito a escolher o seu autorretrato ou a sua autobiografia, mas antes o autorretrato ou a autobiografia que interpelam o rosto e/ou a “euidade” do sujeito neles representado. Terá sido esse plasma flutuante que Cobain não compreendera a tempo? A tal “fossa estagnada” que não quis drenar para proteger o que em si julgava ser mais irredutível? Ao cometer suicídio, seria o seu dedo a premir o gatilho, como último desejo da sua megalomania de romântico pós-moderno, ou seria o Grande dedo do Outro sistémico a projetar na tela mediática um filme trágico perpetrado ao pormenor?

O “cancro” a que Morissette acima se referia é ao mesmo tempo um sintoma de morte e um sintoma de vida, um sintoma de morte que cria vida, revelando-se-lhe um caminho divergente do de Cobain e garantindo-lhe a salvação. É o motor de todo um processo que combina inseparavelmente criação e bios, até que a pertinência da distinção entre os dois caia no anacronismo e dispense averiguações obsolescentes ou extrapolativas. É na esperança de curar esse cancro que o sujeito de I Was Hoping alicerça a sua fé na linguagem (e profere a linguagem da sua fé):

I Was Hoping

as we were taking outside it was cold we were shivering yet warmed by the subject matter

my wife is in the next room we’ve been having troubles you know please don’t tell her or anyone

but I need to talk to somebody

you said “wouldn’t it be a shame if I knew how great I was five minutes before I died i’d be filled

with such regret before I took my last breath” and I said “you’re willing to tell me this now

and you’re not going to die any time soon”

and I said I haven’t been eating chicken or meat or anything and you said yes

but you’ve been wearing leather and laughed and said we’re at the top of the food chain

and yes you’re still a fine woman and I cringed

I was hoping I was hoping we could heal each other

I was hoping I was hoping we could be raw together

we left the restaurant where the head waiter (in his 60's) said “good-bye sir thank you for your

[business sir you’re

successful and established sir and we like the frequency with which you dine here sir

and your money” and when I walked by they said “thank you too dear” I was all pigtails and cords

and there was a day when I would’ve said something like “hey dude I could buy and sell this place

[so kiss it”

I too once thought I was owed something

I was hoping I was hoping we could challenge each other

I was hoping I was hoping we could crack each other up

I too thought that when proved wrong I lost somehow

I too once thought life was cruel

it’s a cycle really you think I’m withdrawing and guilt tripping you I think you’re insensitive

and I don’t feel heard and I said do you believe we are fundamentally judgmental? fundamentally

[evil?

and you said yes I said I don’t believe in revenge in right or wrong good or bad you said

“well what about that man that I saw handcuffed in the emergency room bleeding after beating his

[kid

and she threw a shoe at his head.

I think what he did was wrong and I would’ve had a hard time feeling compassion for him”

I had to watch my tone for fear of having you feel judged.

I was hoping I was hoping we could dance together

I was hoping I was hoping we could be creamy together

A interpretação a que a artista sujeitara inúmeras vezes a música, sobretudo durante as digressões mundiais de The Junkie Tour e The One Tour (1998-2000), raramente se cingiu à reprodução mimética da versão registada no álbum. Nesta última, a letra é proferida num ímpeto vocálico que raia o relato futebolístico, marcado pela velocidade com que longos trechos de informação, sob a forma de diálogos ininterruptos (exceto pelos refrões, com variações frásicas), parecem querer impedir que a música se torne aderente à condição de ser reproduzida de memória, enquanto forma de organização e integração sociais, seguindo a lógica (silenciosa, sistémica, mas evidente) das moedas e do capital, porquanto funcionam como bandeiras das massas. Longe de reclamar para si um efeito terapêutico (uma espécie de feng shui musical que propicie atmosferas de conciliação solipsista, introspeção autoanalítica ou simples descarga de prazer libidinal, uma catarse), a letra e o respetivo trabalho de edição propiciam, ao invés, na opinião de fãs convictos da artista, sintomas de cefalalgia[18]: no seu conjunto, a canção distingue-se pela intensa carga de orquestração instrumental, arquitetada por motivos elétricos, tremulações bruscas e ruidosas, uso excessivo de guitarras e sintetizadores, assim como por evidentes manipulações vocais (como o jogo fónico de duplicação do emissor, isto é, a sobreposição de uma voz secundária àquela que domina o fluxo emissor, jogo esse pensado seja para figurar como um desinteressado artifício estético, seja, pelo contrário, para reforçar propositadamente determinados detalhes da letra, que só uma entoação diferente e uma colocação atenta de pausas conseguem iluminar, funcionando como chaves-de-ouro interpretativas).[19]

Entrevendo uma qualidade evocativa similar à do pleno storytelling, a canção fala, em três diferentes momentos divididos pela ocorrência do refrão, do sentimento de julgar, de se sentir julgado e de se sentir julgando o outro, respetivamente. A tríade não decorre necessariamente de um fluir cronológico situado, por exemplo, num mesmo dia, podendo ser legitimamente interpretada como uma interligação de tempos desfasados que convergem, porém, pela densidade do pathos, para um mesmo assunto dilemático. O percurso historiográfico do eu, se existir, será mais premente como linha de leitura a propósito da sequência proposicional dos refrões, que adiante explicitaremos. De resto, as três micronarrativas interpoladas, lidas num contexto atinente à autorrepresentação e seus derivados, oferecem um fulgor circunvolutivo, sempre in media res, que, entre o corpo do texto (lyrics) e o texto do corpo (performance), deixará – e bem – muitas coisas por dizer sobre o eu enquanto corpo no mundo.

Há sempre uma relação dialógica entre um eu e um tu, pontuada por imersões silenciosas de um narrador que parece sempre hesitar em dizer o que pensa. No primeiro desses momentos, decorrente ao ar livre, numa daquelas situações em que a intensidade dos tópicos de conversa relativiza e faz olvidar as circunstâncias envolventes (we were shivering yet warmed by the subject matter), o acompanhante do sujeito lírico admite, por um lado, os problemas conjugais que obrigam os dois a um pacto de sigilo (please don’t tell her or anyone/ but I need to talk to somebody), catapultando os versos seguintes para um regime de leitura que nunca se descola da pressão vigilante e dos sentidos tensos que permeiam o dito pelo não dito (e os respetivos interditos – afinal, como vincou Lacan, o laço social é essencialmente paranoico: nunca se sabe ao certo medir a ousadia numa conversa, mesmo entre conhecidos, destrinçando com desenvencilhada espontaneidade o que é “intimismo” e o que é “atrevimento”, onde começa um e acaba o outro). De facto, segue-se uma pergunta existencial – se seria vergonhoso constatar, na hora do aperto (mais precisamente, “cinco minutos antes de morrer”), how great I was –, uma pergunta que, não sendo intrinsecamente retórica, fica, porém, sem resposta, dada a perplexidade e/ou a imaturidade que caracteriza(m) o feedback apaziguador do sujeito, para depois reforçar esse gesto esquivando-se ao tópico da morte (real) por intermédio de um breve small talk à volta de inocuidades como novos hábitos alimentares (que excluem chicken or meat or anything you said), temperados com o cómico de situação (but you’ve been wearing leather).

O recurso à irrupção dos marcadores fáticos da coloquialidade reforça essa ideia: o you know do segundo verso é tanto a confirmação de que as crises conjugais são filhas da humanidade, como pode ser interpretado como um apelo à compreensão de um terceiro, de um buddy de confiança. A comunicação fática é, por si só, uma estratégia para assegurar uma presença, o que, num contexto como o que a letra apresenta no início, esvazia referencialmente tópicos subordinados à carne ou ao cabedal da indumentária, preenchendo-os com o valor axiológico de um paliativo contra a solidão (note-se que o par se encontra ao relento e ao frio, isolado, porque um deles tem um segredo que mais ninguém pode saber…). Por sua vez, considere-se a afinidade entre a carne e o cabedal: o segundo, produto industrial, confirma a superioridade do homem em relação ao primeiro, que é um dado bruto; como na história do Rei que vai nu pela parada, o tu da canção tem o seu campo percetivo confinado à perpetuação de uma herança simbólica falsamente consciente, como diria Sloterdijk (we’re at the top of the food chain).[20] A rutura interior que se dá neste novo Rei deve-se à “banha” em excesso que as fórmulas hiperidentitárias – a linguagem, a ideologia sobranceira, as várias camadas do ego, enquanto instâncias territorializantes, i.e., bloqueadoras (cf. Gil, 2009: 21) – atrofiam até ao expoente do próprio excesso, que passa a devorar-se a si mesmo: como refere o tu, se somos senhores da cadeia alimentar, imunes aos esquemas da predação, admitimos, portanto, que estamos lúcidos de que, um dia, vamos morrer, ainda que vivamos como se não acreditássemos nisso (cf. ibidem).

Na situação seguinte, a do restaurante, a fórmula aplicada é a mesma, desta vez reforçada a nível entoacional. A construção repetitiva – good-bye sir thank you for your business sir you’re/ successful and established sir and we like the frequency with which you dine here sir – embate, no fim, contra um efeito vocálico de suspense, ao arrastar o sintagma and your money, colocando-o em extrema evidência, não apenas do ponto de vista fónico, mas igualmente semântico: revela o que, na interpretação do sujeito, é a verdadeira chave-de-ouro (cínica) por detrás de toda aquela efusividade lisonjeira dramatizada pelo head waiter do estabelecimento. Eis um exemplo adequado para figurar na montra das teratologias (pós-)modernas, cujos monstros são tão-só projeções empoladas da melhor versão que o sujeito tem de si mesmo: o (apelidar alguém de) sir é quanto basta para denunciar o mal-estar da civilização que, depois de Freud e do desejo frustrado por um objeto (materno) traído pela orgânica umbilical (a carência reenviando para uma positividade do desejo), dá lugar, como advertiram Deleuze e Guattari (cf. 2004), aos múltiplos desejos flutuantes que não encontram – nem precisam de – um objeto onde possam achar repouso e absorvência de fluxos (o desejo reenviando para uma negatividade da carência).

A neurose passa por , aliando esquizofrenia às políticas do neo-liberalismo (and your money, novamente): uma identidade que só se compraz numa dieta exagerada à base de indulgência e bezerros de ouro simbólicos, que engordam o complexo hiperidentiário do eu e, ao mesmo tempo, emagrecem o sentido cru que lhe é subtraível (reitere-se o fragmento I was hoping we could be raw together, com destaque para o adjetivo raw). A obsessão, que devém esquizofrénica, passa pela existência rizomática do eu pulverizada em mil bocados, o que, numa leitura despida de cinismos pós-modernos, é tudo menos encomiasta face à subversão guattaro-deleuziana do sujeito estilhaçado como um tipo único que rivaliza contra as arrogâncias ideológicas dominantes (cf. Žižek, 2006: 79). Em Morissette, passa mais concretamente pelo facto de o sujeito se projetar no outro atribuindo-lhe a sua própria subjetividade, nunca cessando de lhe atribuir (segundas, terceiras…) intenções – daí a cólera insubordinada que a forma de agradecimento thank you too dear desencadeia na protagonista, subitamente minimizada pelo paternalismo do empregado, sentindo-se reduzida ao estatuto morfológico de um advérbio aditivo (ela seria, assim, um elemento apendicular do sir, é o too do sir, inscrevendo-se na trama falogocêntrica de assinatura derrideana). Não é a linguagem em si, mas o contexto que dita o sentido: assim, a pretensa dear, revestida por folhos de puerilidade e ternura (I was all pigtails and cords), prefere ler o qualificativo simpático como uma subversão da retórica da auxesis ou amplificatio, i.e., quando, ironicamente, o sujeito sobrevaloriza alguma coisa que, pela sua natureza, não tem um valor socialmente reconhecido (como quando dizemos, perante um casebre, que é uma “mansão”; no contexto da letra, o termo dear estaria a forrar a versão defeituosa de cada uma das virtudes reconhecidas pelo empregado no acompanhante da lesada).

A atmosfera da terceira situação assume-se mais existencial, a avaliar pelo tipo de interrogações e inquéritos maniqueístas que levanta. O conteúdo proposicional, aliado ao tom de voz e ao ritmo acelerado com que desenrola intensidades (a versão gravada em estúdio corrobora esta descrição com um vinco de maior saliência intrigante, porque os movimentos de frases expiradas são mais impetuosos), estrutura-se de um modo paralelístico, mas que não pode ser considerado quiasmático, ou seja, desvela o cruzamento de desafogos e renúncias, de insinuações e críticas diretas, mas esse cruzamento não chega a permitir o choque e a subsequente dissolução (catártica, aurífera) das adversidades, cada vez mais severas. A nível da articulação sintática, os marcadores do discurso (direto e indireto) – and I saidand you saidI saidyou said… – acentuam a dimensão disjuntiva e sideral de um diálogo que, numa transposição filosófica, ficaria perto de um cenário com contornos schopenhauerianos, cujo paroxismo mais insuportável seria culminar numa relação simbiótica entre os intervenientes. De facto, os marcadores impõem uma cesura entre o que é da minha responsabilidade e o que é da tua; deixam a nu os ‘bordos’, as ‘pregas’ ou as ‘costuras’ da comunicação, os relevos que, como numa superfície em formação, obstruem o seu nivelamento: é o que Barthes designa, pondo a tónica na expressividade da linguagem, como as “figuras de interrupção e de curto-circuito”, como o assíndeto e o anacoluto em construções paratáticas (Barthes, 2009: 117), figuras que tornam o sujeito – porque carne, corpo, matéria opaca que a pele objetivamente resguarda – inconvertível na e pela linguagem, resistente ao sentido (cf. idem, 107).

As nuances schopenhauerianas não serão tanto uma intertextualidade ensaística, rebuscando na letra marcas residuais que infirmam inquestionavelmente o filósofo das vontades resignadas, mas serão antes um deslize psicológico que ressoa a uma atualização encorpada do seu pensamento: parece que nada no texto, ou na vida dos seus sujeitos, vai acabar bem, qual lei de Murphy. Por um lado, o sujeito desmistifica alguns mitos pessoais constrangedores, como o sentir-se descartável, minimizado, ao tornar cada conversa (como a que de momento estabelece) numa arena e cada interlocutor, num potencial adversário (I too thought that when proved wrong I lost somehow). Por outro, contesta e desacredita uma fórmula anti-leibniziana, segundo a qual o homem viveria no pior dos mundos possíveis, apenas para dar de cara a seguir com uma dissonância assertiva (ela: I too once thought life was cruel; ele: do you believe we are fundamentally judgemental? fundamentally evil?/ and you said yes). Condenados ao sofrimento, ao caos, ao ressentimento, à nuvem incondensável da indiferenciação, repetidos ciclicamente mas sem certezas (it’s a cycle really) – os dois sujeitos repercutem o estigma schopenhaueriano, segundo o qual a metafísica é tributária de uma interpretação da realidade empírica que, não sendo infalível (ao invés do idealismo especulativo de Fichte, Schelling e Hegel), pode ser reexaminada e corrigida. “O mundo é a minha representação” absolve a hipótese de isomorfismo, mas absorve os essencialismos pios no mesmo caldo de promiscuidade: o mundo fenomenal é a pura representação de um mundo volitivo, das vontades pessoais como aspirações prementes de vida, de desejos que, por instinto, são irrefreados. As volições tornam-se, assim, democraticamente suportáveis, porque a peneira do mundo, que é vontade e representação, deixa passar tudo, está furada; e, se assim é, o sofrimento é inevitável, porque conspira sempre contra nós, iludindo-nos com a frugalidade dos apetites (Schopenhauer antecipa, portanto, Freud e o acefalismo intransitivo das pulsões, que ficam sempre à deriva, insatisfeitas).

Eis, na letra, uma concretização desse aspeto: 1) I said I don’t believe in revenge in right or wrong good or bad (assume-se a insolvência do maniqueísmo perante a frigidez dos valores decantados que objetivam o mundo ou, para retomar imagens anteriores do texto, que encouraçam a sua carne fazendo-a passar por biológica ou natural; a crença no que é relativo ou subjetivo mina a realidade enquanto categoria universal hegeliana; rompe-a por intrusão da ética, em sentido levinasiano, enfraquecendo a nobreza tutelar ou a presunção apofântica das dicotomias, as linhas finas cada vez mais representativas do declínio da modernidade num prefixo pós- que sabe sempre a pouco); 2) “well what about that man that I saw handcuffed in the emergency room bleeding after beating his kid/ and she threw a shoe at his head./ I think what he did was wrong and I would’ve had a hard time feeling compassion for him” (o introdutor adverbial reitera o condão desafiante a que a protagonista antes se reportara no verso I too thought that when proved wrong I lost somehow; a sideração entre os dois é irreconciliável, com o interlocutor a ripostar os argumentos do adversário num esquema similar ao da antanagoge; a ética zen do eu influi um alheamento contestável, segundo o outro, quando este descreve o caso de um homem algemado por ter batido no filho que, fazendo jus ao karma budista, foi ele próprio vítima de violência pela mulher que lhe arremessou um sapato, pondo-o a sangrar da cabeça; o tu manifestamente se esquiva às ambiguidades morais e adota afetos partitivos: o fulano agiu mal, merecendo ser duplamente castigado – pela justiça pessoal, com o sapato da esposa, e pela justiça civil, razão pela qual está preso –, sem direito a condolências ou alternativas antálgicas; por outras palavras, aquele fulano não sou eu: é a cabeça dele que sangra, não a minha; o sangue que escorre é indolor e asséptico, porque o meu olhar recusa-se a tocar-lhe; aquela cabeça que eu vi, mas não olhei, não tem visage, porque não houve entre mim e aquele homem a erradicação essencial da espacialidade, fazendo do Outro um absoluto Outro; cf. Lévinas, 1988).[21]

Sem a mediação da alteridade que lhe outorga um sentido de si – eu sou um quem, e não uma coisa impercetível, pelo facto de haver um outro além de mim que me reconhece –, o sujeito não existiria como tal. Não é esse o caso aqui – porém a mediação fica, na prática, muito aquém do que o esperado (nem só de pão vive homem, mas ainda assim o pão nunca deixa de ser indispensável): o sujeito que repete duas vezes I was hoping por verso, em cada refrão, é posto à prova, na sua experiência pessoal, para perceber que a sua performance ético-narrativa, alicerçada em cada uma das “esperanças” ou “expectativas”, se queda apenas nas boas intenções. Por outras palavras, muito literalmente, repete duas vezes “eu” (I) e apenas uma “nós” (we); o campo de reversibilidade é autofágico, não recíproco, dentro do imaginário do sujeito que, como no mito de Eco (versus Narciso), fica condenado a ouvir-se a si próprio (quando profere I was hoping, logo a seguir repete-se I was hoping), insistente na sua obstinação sem objeto (porque este, o tu, só é imaginariamente objetal), ficando emparedado pelo que é impenetrável, inegociável e incognoscível no destinatário do seu afeto.

A ordem sequencial das expectativas em cada refrão permite construir o seguinte campo de ação imaginário, em que as projeções obedecem a fases psicologicamente determinadas: 1) uma projeção de cariz mais utópico, idealista ou romântico, confiante na reciprocidade terapêutica (we could heal each other) e na franqueza que advém de um completo desnudamento mútuo, como o que o adjetivo raw sugere no verso imediatamente a seguir; 2) e porque a anterior tentativa se revelara inoperante, segue-se uma projeção mais realista, violenta e intrusiva, que abale profundamente os dois sujeitos (we could challenge each other; we could crack each other up); 3) face ao fracasso das outras duas e, agora, sob uma urgência que se afirma cada vez mais improvável de acabar vitoriosa ou resolvida, o sujeito constrói uma situação socialmente convencional, que desbloqueie o que os atravanca na relação ou, numa perspetiva conducente à mesma ideia, mas de uma forma mais direta, que aproxime o nós daquilo que fazem os outros (we could dance together), mesmo que o puro facilitismo raie a vulgarização do eu, que se mostra demasiado disponível e lançado ao despudor e à comoção descaradamente “melosa” (we could be creamy together). O correlato literário desta última atitude seria o equivalente a uma anagnórise patética num romance de tipo sentimental, oscilando entre o cómico e o trágico (mas em que o primeiro triunfa, aos olhos heterónomos, sobre o segundo, fazendo jus, de novo, à paranoia lacaniana): quando a postura e a sobriedade de nada valem, estala-se o verniz e resvala-se para uma necessidade bruscamente desenfreada, tendendo para a humilhação pessoal, na tentativa de palmilhar à pressa o que resta de um destino possivelmente promissor – ou a imago que o eu preserva ainda, dentro de si, desse destino, como a última esperança sobrevivente no psicodrama do seu (conceito de) amor.

Se a linguagem substitui o mundo ostensível, acolchoando-o com a seda do simbólico (a enunciação imperativa “morre” não mata ipso facto), essa substituição não deixa de esconder uma intenção agressiva, vampirizando o mundo daquilo que nele é natural para nele investirmos projeções, sonhos e ânsias espectrais que jamais dissolverão as suas insatisfações (o objeto petit a, segundo Lacan). Sendo assim, a linguagem implica sempre uma violência incondicional, dado ser ela o barómetro pela qual os desejos são encaminhados, como diria Freud, para lá do princípio do prazer, para fora das suas imediações seguras e convenientes. Neste sentido, em I Was Hoping, é sob a ameaça de violência que o eu se retesa, sendo coagido a manobrar as suas respostas “sinceras” para fora do circuito fático e metalinguístico da comunicação, num regime de auto-sabotagem: tanto o canal como o código são afetados (na senda estruturalista de Jakobson, o eu não prolonga o vazio estruturante do contacto social: o outro sabe da sua presença, mas não obtém a confirmação de que está a ser ouvido, nem pode testar ou verificar se o mesmo código é mutuamente partilhado). Exemplo disso é a possibilidade do retraimento do eu se tornar ofensivo, seja ele deliberado ou não, por ser indutor de culpabilidade (you think I’m withdrawing and guilt tripping you); mas, logo de seguida, explica por que os fins justificam os meios (I think you’re insensitive/ and I don’t feel heard): ou seja, se existe primeiro uma auto-vitimização involuntária (como quando dizemos que “foi sem querer”), logo a seguir o dispositivo incriminatório é acionado para aliviar as eventuais repreensões (“foi sem querer, mas tu também fizeste alguma coisa que, se te pusesses no meu lugar, levar-te-ia a fazer o mesmo que te fiz”).

Outra manifestação do insucesso fático ou metalinguístico prende-se com o facto de cada uma das três partes da canção terminar com um verso que exprime manifestamente a contenção do sujeito no confronto com a alteridade, que surge sempre atrofiante e inibidora, manifestando-se em atitudes corporais de prudência e concomitante renúncia: 1) um elogio inoportuno – porque ele é casado, sente-se emocionalmente fragilizado e confessa ter problemas com a esposa – revela-se mais glacial do que as condições atmosféricas locais e mais anorexigénio do que qualquer dieta seletiva (and I cringed); 2) a coragem com que enfrenta o empregado de mesa – politicamente correto, ergo derrogatório por definição – é fruto de um arrufo imaginário (o karma: and there was a day when I would’ve said something like “hey dude I could by and sell this place so kiss it”) e termina com um amuo silencioso, ou seja, acaba por subscrever involuntariamente o dito popular segundo o qual “quem cala consente”, ao mesmo tempo que intensifica a fratura lacaniana (apud Žižek, 2009: 85) entre o “sujeito do enunciado” (o modo como o eu, sujeito falante, se representa no seu discurso) e o “sujeito da enunciação” (o próprio falante), invejando o outro que reside em si mesmo (I too once thought I was owed something); 3) a consciência de que a coação individual é sintoma de uma relação que ficará dada por perdida, a partir do momento em que o eu se retrai com medo de magoar o seu semelhante/dissemelhante (I had to watch my tone for fear of having you feel judged). O procedimento é semelhante ao usado em The Couch pelo pai: a manifestação do verdadeiro interesse (logo censurável) desdobra-se do início ao fim da canção até a retórica da paralipse se tornar evidente ou, no mínimo, teoricamente suspeitável.

O incomunicável do inconsciente manifesta-se na parole pela transgressão do ser, como fratura da obstrução indestrutível entre emissor e recetor, mas sem nunca elevar as cisões comunicantes à ideia “feliz” de uma porosidade ou transparência ilocutórias. Ricœur, num flirt ao legado de Leibniz, trata o fenómeno comunicativo como a “incomunicabilidade das mónadas”, assente num inegável paradoxo: “le paradoxe, c’est que la communication est une transgression, au sens propre du franchissement d’une limite, ou mieux d’une distance en un sens infranchissable” (Ricœur, 2005: 12). O plano eumórfico de adulterar as eternas contingências, as presenças eternamente adiadas que o desejo elege como objetos de investimento libidinal, acumula somente impaciências que, como refere Alanis Morissette, geram bons pretextos para fazer músicas e, numa fase ulterior, fruto de experiências ansiogéneas, para extrapolar as vedações do texto, pisando o território desconhecido que escapa às garras da escrita:

Is it beneficial to try to return, literally and physically, to the scene of a crime? Do you really need a face-to-face confrontation in order to reach closure? I've always been hopeless in confrontation, and I'm terrified of arguments, but increasingly I feel I have to learn to do this. So far, I've only managed to do it through my songs, but I now know that more healing can happen in two seconds in the same room with that particular person than me singing the song a thousand times across the planet.

No fundo, o perigo de extrapolar a dimensão “ficcional” ou “autotélica” das canções põe em evidência o quid inefável que a obra de arte, da literatura à pintura, não comporta, porque provém do lado inconsciente e profundo que atravessa os materiais do produto (o texto e a música, neste caso), sem nunca se realizar por completo. Por criar insatisfação, é que a cantora acredita que o regresso à cena do crime poderá resolver o impasse lançado pelo produto (e fadiga) do seu ofício. De certa forma, inverte-se o processo criativo tradicional: é a obra (passiva) ou criação (e o eu nela imbuído) que dá origem a um criador ou sujeito-agente. A obra ensaia a vida, minimizando-lhe os riscos:

En général on réinvestit dans l’écriture autobiographique une compétence acquise préalablement dans d’autres formes de création. […] L’innovation, elle, est souvent une greffe. Dans son essai sur ‘Le roman comme recherche’, Michel Butor présente le roman comme ‘le laboratoire du récit’. On expérimente in vitro, avec plus de liberté et moins de risques, avant d’opérer in vivo (Lejeune, 1988: 78).

Conclusão: oh yes! I’m the great pretender (The Platters)

Para concluir, atente-se no seguinte trecho de um dos metadiálogos de Bateson, que parte da interrogação da filha sobre, primeiro, o que leva um francês a mexer tanto o corpo enquanto fala (atitude que a menina inicialmente considera excessivamente histriónica) e, segundo, sobre o efeito culpabilizante que nela se repercutiria acaso o seu interlocutor, francês, cessasse abruptamente de gesticular:

Filha: […] pai, tu disseste que todas as conversas são só para dizer às outras pessoas que não se está zangado com elas.

Pai: Eu disse isso? Não, nem todas as conversas, nem tudo em cada conversa, mas a maior parte. Às vezes, se as pessoas estiverem dispostas a ouvir com cuidado, é possível fazer mais do que trocar cumprimentos e desejos de boa saúde. Mesmo mais do que trocar informação. As duas pessoas podem mesmo descobrir qualquer coisa que nenhuma delas sabia antes. […]

Filha: Pai, porque é que as pessoas não podem dizer só “Não estou zangado contigo” e ficarem-se por aí?

Pai: Ah, agora estamos a chegar realmente ao problema. O ponto é que as mensagens que trocamos por gestos não são de facto as mesmas que as traduções desses gestos em palavras.

Filha: Não compreendo.

Pai: Quero dizer que nenhum esforço em dizer a alguém por “simples palavras” que se está ou não se está zangado é tão bem sucedido como dizer-lhe por gestos ou tom de voz.

Filha: Mas, pai, tu não podes usar palavras sem nenhum tom de voz, pois não? Mesmo que alguém use um tom tão neutral quanto possível, as outras pessoas saberão que está a evitar mostrar as suas emoções, e isso é uma espécie de tom, não é?

Pai: Sim, suponho que é. É o que eu disse agora mesmo: que o francês pode dizer qualquer coisa especial se parar os gestos que faz com os braços. (Bateson, 1989: 23-4)

O diálogo é, desde Platão, uma estratégia indireta usada pelo eu para se desdobrar em múltiplas personae, esbatendo-se aquilo que denunciaria um certo exacerbamento narcísico da sua parte. Mesmo as “simples palavras” constituintes, ensina o pai à filha, são um refúgio topológico ironicamente a céu aberto: o percurso que vai do eu que fala (ou canta) ao seu próprio discurso está marcado por uma complexidade discursiva, dialógica e multi-fratal, sob telhados de vidro, partilhada pelos dois. Nos trâmites da autorrepresentação, o eu consciente de si é o eu consciente do outro, que também existe e, só por isso, interfere no devir-eu/outro daquele, enquanto fenómeno polirrítmico da formação da identidade subjetiva, que, segundo Heraclito, põe todas as coisas “em fluxo”. É face a essa diferença inexaurível que o sujeito ensaia a sua identidade, p(r)ensando as palavras – logos articulável por algoritmos saussurianos – com camadas de mímica, modulações tonais, tratos e traços que, neste estudo, as lyrics – e a vida – não galvanizam, mesmo que a sua neutralidade possa parecer impositiva e desarmante (o devir-eu devindo outros é uma banalidade inflacionada pelas experiências diárias mais ínfimas e espontâneas, funcionando como o processo heteronímico de Pessoa). Porquanto designativo de um alter-ego mítico, Ninguém continua a ser, de Ulisses ao garrettiano Frei Luís de Sousa, uma resposta de proporções homéricas na filogénese do eu. Neste sentido, Alanis Morissette assina por baixo – não se sabe é de quem é a mão.

 

Referências

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Notas

[1] A título exemplificativo, atente-se na letra de Citizen of the Planet, faixa inicial do álbum Flavors of Entanglement (2008).

[2] O pós-humanista Peter Sloterdijk, evocando Freud, traça uma breve história das “humilhações científicas” que perturbaram a noção clarividente do eu como instância essencialmente racional: primeiro, Nicolau Copérnico, cuja teoria heliocêntrica relativizou – e desacreditou – séculos de geocentrismo que, por metonímia, mais não eram do que uma centralidade do Homem projetada na amplitude cosmológica: o Homem sai da sua órbita tão consagrada e inicia o seu projeto epistemológico feito à deriva; segundo, Charles Darwin, que pôs fim à arrogância evolucionista do homem-nascido-do-homem, ao desenvolver as suas teses sobre a cumplicidade genética entre humanos e animais; terceiro, o nascimento da psicanálise, que confirmou a influência de todo um poder inconsciente, escondido à superfície, que se exerce sobre a ponta a céu aberto do icebergue egóico (cf. Sloterdijk, 2000: 44-45). A propósito de gelo (ou de metáforas?), o famoso tigre antropomórfico Hobbes inquire o seu dono sobre o que o levou a construir um boneco de neve entristecido: Calvin explica-lhe que se trata de um paleontologista “à procura de dinossauros de neve no Cretáceo”, constatando que a neve não se fossiliza, “só derrete”. Um compromisso tragicamente absurdo, eis a sina do eu à procura de si, quando o si se liquefaz (cf. Waterson, 1996: 103).

[3] Considere-se igualmente, com a morte de Deus, o prenúncio do “fim da filosofia”, como afirma Jean-Luc Nancy: poupando o suspense (ou o que ainda subsiste dele, a todos os níveis) e antecipando a conclusão deste trabalho, “il n’y a pas de condition première ou dernière, il n’y a pas d’inconditionné qui fasse principe ou origine. Mais cet ‘il n’y a pas’ est inconditionné, et voilà, si j’ose dire, notre ‘condition humaine’” (Nancy, 2004: 12-13).

[4] Os 33 milhões de cópias vendidas de Jagged Little Pill costumam servir de introdução laudatória a qualquer entrevista ou revisitação biográfica do percurso musical morissetteano: recicla-se o versículo auspicioso de que é “o álbum de estreia mais vendido de sempre na história da música”. Supposed Former Infatuation Junkie, pelo hermetismo alienante das suas lyrics, tende a ser eclipsado pelo ruidoso furor do álbum precedente, ruído que parte tanto da performance grunge a que Morissette esteve associada, como das vendas exorbitantes e dos prémios avulsos conquistados. Talvez se possa usar as vendas inferiores do segundo disco (cerca de 10 milhões) como pretexto para discorrer sobre a possível imersão da escrita morissetteana no banho da ‘literariedade’: quanto mais o pop/rock obriga o ouvinte a ler o que é cantado, menos comercial se torna, menos imediata é a sua “aderência acústica”, porque mais deslocado é o seu virtuosismo (neste caso, tornou-se mais denso e enigmático, atributos que não designam necessariamente o que a literatura tem de ser para se sintonizar com o seu próprio nome). Assim, quando uma artista desperta as atenções pelo cariz desveladamente autobiográfico das suas músicas, parece que a mudança de atitude auto-percetiva não é recomendável do ponto de vista comercial; como se as massas requeressem um sujeito e um objeto (con)fundidos num mesmo tipo reconhecível. Com Supposed…, Alanis pregou-lhes uma rasteira, que, na indústria musical (um dos avatares da reprodutibilidade técnica da arte), é dificilmente perdoável: o risco foi tão-só seguir o devir autodiegético de uma individualidade real, o que resvala muitas vezes, de um ponto de vista heterónomo (comércio, records do Guiness, fãs), para expectativas frustradas (em termos deleuzianos, para poder criar do ponto de vista artístico, Alanis teria cometido uma traição, uma perda do rosto, para desaparecer ou desterritorializar a sua identidade das constrições molares impostas pela fama pós-Jagged Little Pill). Por um lado, uma revisão da economia política gramsciana esclarece a indesmentível aliança entre arte e mercado, sem que a noção de “autenticidade impoluta” fique univocamente bloqueada por determinismos sociológicos de diversa ordem; suspendendo as dicotomias, assentes num pendor mais axiológico do que estético (em sentido kantiano), “no mundo das moedas vivas tudo é reversível a tudo no perpetuum mobile da circulação” (Perniola, 1993: 44). Por outro lado, segundo Philippe Lejeune, assinalando a lógica inerente à escrita autobiográfica e uma certa ingenuidade quanto à tradição do género por parte dos próprios autores, que assumem (ou pensam assumir) a sua obra como “sincera”, “verdadeira” ou “não-ficcionada”, “[l]’autobiographie est rarement une carrière d’écriture, mais plutôt un passage ou un accident” (Lejeune et alii, 1988: 69); e acrescenta: “On sent bien au fond qu’une vie n’est pas une série linéaire de causes et d’effets, et que le propos de l’autobiographie est moins la restitution historique du passé que la construction d’une image du passé pour expliquer le présent et éclairer l’avenir” (idem, 89). Na nota de agradecimentos presente no livreto do segundo álbum – e mencione-se que, na capa, figura apenas a insinuação de uma gargalhada, sem rosto, com os oito preceitos budistas esbatendo-se na imagem (o devir-impercetível deleuziano, a perda do rosto) –, escreve Alanis: “thank you to everyone reading this (and everyone not reading this).” Depois do êxito de Ironic, apetece dizer: “and isn’t this ironic? Don’t you think?” (Resposta: dada a assertividade partilhada tanto pelo ‘sim’ como pelo ‘não’, que constrangem porque na iminência (incerta) do falhanço apofântico, o melhor é apostar no ‘talvez’. Talvez.)

[5] Numa coleta de ensaios destinada, a avaliar pelo título, àqueles que desejem ser “pessoas inteligentes” por via da “cultura” (a verdadeira e a única, sublinhe-se), Roger Scruton escreve que, à medida que a fé se torna(va) mais espectral, a beleza começa(va) a tomar forma, a ganhar corpo, carne, visualidade (cf. Scruton, 2001: 41) e a arte kantiana como finalidade sem fim (um interesse desinteressado) foi ocupando o lugar que antes estava reservado à teologia. O corte abrupto dá-se, porém, com a era tecnológica e a profusão do impulso consumista, traidor desde a raiz: o consumo, longe de ser um verdadeiro fim, “destrói o objeto consumido e deixa-nos de mãos vazias” e desgasta uma nova época (o contrassenso é propositado) tornando-a “fantasmagórica”, na medida em que “os espíritos das satisfações são perseguidos pelos espíritos dos desejos reais” (cf. idem, 43). Até aqui, tudo bem (com maiores ou menores reservas, maior ou menor condescendência crítica). Só peca, num rol de páginas sobre “o território dos jovens” (o regime de quarentena é evidente), pelo crime da generalização descontextualizada: os Nirvana grunhem palavras que “prescindem da gramática, convertidas em detritos num mar de ruído” (cf. id., 112); o pop moderno sofre de “uma falta de argumento musical”, que esconde (mal, pelos vistos) “uma falta de pensamento musical” (cf. id., 114), entre outras tiradas que, sem nunca despossuírem um fundo de verdade, arrebanham os seus argumentos numa discussão sociológica que serve zelosamente o chavão apocalítico da “crise das humanidades”, sem no entanto abrir espaço para compreender a materialidade sonora e o sentido que esses mesmos ouvintes de Kurt Cobain retiram das suas letras – porque eles existem: o sentido e os jovens que se dão ao luxo de pensar sobre ele. Não sendo de todo ilhéus no mar da pós-crítica literária, as seguintes palavras de Fernando Ribeiro são, porventura, muito bonitas: “A literatura e o heavy metal são indissociáveis. […] Conheci Baudelaire através de bandas de heavy metal, Coleridge através dos Iron Maiden e sempre importei este gosto pela literatura para os Moonspell” (in Jornal de Letras, n.º 1085, de 2 a 15 de maio de 2012, p. 25). Se, como diz Scruton, os grafitis nos muros urbanos desfiguram a paz social e refletem “uma espécie de vingança contra a palavra escrita” (cf. id., 124), convirá abusar do bom senso e/ou do bom humor para lembrar que a palavra, oral e escrita, é cultura, não um capricho genético. Posto isto, trazer-se-ia o Joker (Heath Ledger, em The Dark Knight, de Christopher Nolan) a um anfiteatro alotado de Velhos do Restelo, com um paper que conflua darwinismo, interartes sob uma perspetiva do valor pós-relatividade (Einstein) e alguma bibliografia que reafirme a noção de que o pensamento ocidental (o europeu, neste caso) cresceu muitos biliões após a formação (inconclusa?) do universo (ele mesmo, por sinal, um acaso). Título do paper: “Why so serious?”

[6] Atente-se na expressão idiomática ‘water under the bridge’ e no respetivo significado: “past events which it is unprofitable to bring up or discuss” (in Lesley Brown (ed.), The New Shorter Oxford English Dictionary, Volume 2: N-Z, Clarendon Press, Oxford, 1993, p. 3633). O facto de acrescentar o adjetivo dirty à expressão tende tão-só a subjetivizar a universalidade da língua com uma intencionalidade incriminatória: o discurso autobiográfico apropria-se da palavra (que é de todos), mas reveste-a de uma carne que só aquele sujeito pode sentir e julgar.

[7] Recorde-se o que anteriormente se citou a partir de Jean-Luc Nancy (cf. supra nota de rodapé n.º 4).

[8] Importa referir que, no âmbito deste trabalho, estamos a ter em conta a versão de The Couch gravada em estúdio, com um arranjo instrumental e uma materialidade melódica específicos. Este apontamento vem apenas sublinhar que as lyrics são textos performativos, logo condicionados pelas próprias latitudes espácio-temporais e pela técnica ornamental de uma qualquer interpretação (que é incorporação, sempre individual e irrepetível). Desta forma, uma versão ao vivo da mesma música implicaria, certamente, que contemplássemos uma semiótica visual, estribada no rosto da performer, na linguagem gestual e em toda a prosódia performativa, que reafirma tão-só a condição psicossomática do artefacto intermedial concatenado nas lyrics. Tal implica a conciliação de áreas temáticas como o estudo das letras musicais e o estudo da fenomenologia da carne: por exemplo, ler as teses de Lars Eckstein, em Reading Song Lyrics (Amsterdam/New York, Rodopi, 2010) que buscam auxílio teórico na análise do discurso (os speech acts de Austin e as máximas conversacionais de Grice, entre outros), a par das ideias de António Pinto Ribeiro, em Corpo a Corpo. Possibilidades e limites da crítica (Lisboa, Cosmos, 1997), que encetam uma fundamentação das artes do corpo com base na evidência iniciática da própria carne, ou seja, no corpo literal estudado em psico-biologia.

[9] “Ma théorie du discours n’ignore donc pas la différence du discours oral et du discours écrit ; elle justifie bien plutôt le passage de l’un à l’autre en le rapportant à la constitution trans-événementielle du sens” (Ricœur, 2005: 40).

[10] Dimensão “noética” do discurso, segundo Ricœur 2005: 51.

[11] Do célebre e axiomático refrão de Smells Like Teen Spirit, do álbum Nevermind (1991).

[12] Referimo-nos à letra e ao vídeo de Thank U, primeira faixa promocional de Supposed Former Infatuation Junkie.

[13] Cf. Cobain, 2000: 50. Cobain afirma ter herdado de Burroughs a técnica do cup-up, ao inserir retalhos de escritos poéticos e de outros materiais de criação nas suas canções (cf. ibidem).

[14] Atente-se na seguinte descrição de Morissette em contexto performativo, por um crítico de música: “Watching her perform live at the time was like watching scenes from The Exorcist re-enacted: the then-21-year-old screaming with open ferocity into a microphone that bore the brunt of her anger, hair flailing wildly, the fat vein that ran right across her forehead throbbing wildly. She made an indelible impression” (consultado em linha; vide Referências).

[15] Cf. supra ibidem.

[16] Cf. supra ibidem.

[17] Retome-se o que foi argumentado no seguimento de (e não contra) Roger Scruton (cf. supra nota de rodapé n.º 6).

[18] O crítico musical cujos comentários têm sido citados, aludindo ao período de eremitagem após o fenómeno de Jagged Little Pill, considera o segundo álbum um passo “rather extreme” na carreira da artista – e não está, de todo, a onerar a audácia criativa da cantora – cujas músicas, salvo pontualíssimas exceções, se revelam “practically unlistenable”. E explica: “Here, her rage found its apex: songs laboured under titles like ‘Baba’ and ‘The Couch’, and each was filled with a torrent of bile and confusion. To listen to it [the album] in its entirety was to burden yourself with a very severe headache” (entrevista consultada em linha; vide Referências).

[19] O fôlego impetuoso de I Was Hoping sofreu aligeiramentos radicais em quase todas as performances ao vivo, tanto quanto se conhece por divulgação online. A versão gravada ao vivo para o álbum Alanis Unplugged (1999), integrado na série de álbuns patrocinada pelo canal MTV, pode aqui ser usada como exemplo dessa radicalização arquitetónica e performativa, com notáveis consequências, não só iminente ou imanentemente textuais (incluindo a interpretação que se faz da letra), mas também (e por força do anterior) “empíricas” ou “sensitivas” (em relação ao efeito que o novo arranjo melódico tem sobre o ouvinte), tornando quer a letra quer a musicalidade mais auspiciosas, de interesse e fruição renovados. Neste sentido, a um nível de análise metafenomenológico, a voz de Morissette cumpre um desígnio ostensivo, até argumentativo, para resguardar a sua imunidade face aos crimes (inocentes, mas bastante ubíquos) que a letra menciona: explica pausadamente cada segmento, cosendo as síncopes entre as ideias encavalgadas, arrastando a gradação da voz em determinadas partes para assinalar o pico de diferentes agudizações temperamentais (como acontece na cena do restaurante, após o primeiro refrão, que adiante explicaremos).

[20] Peter Sloterdijk relendo Blaise Pascal: “l’homme est in extremis une blessure, mais une blessure qui se connaît elle-même. En cela se manifeste un concept de la dignité humaine situé au-delà du narcissisme réussi, dans ses cycles de vexation et de réparation. Ce qui fait la dignité de l’homme, d’un point de vue philosophique, ce n’est pas que l’homme puisse se sentir bien sous la protection des illusions de l’intégrité – primaires ou régénérées –, mais le fait qu’il vive avec le risque de voir échouer son illusion vitale. Ainsi se dessine dès le XVIIe siècle une anthropologie tragique dans laquelle s’exprime une fierté sans fierté comme dernier horizon de la dignité humaine” (Sloterdijk, 2000: 61). A “ilusão vital” de que fala o filósofo retoma, em Morissette, a tirada ingenuamente insolente do interlocutor: we’re at the top of the food chain. O cabedal está para ambos como uma fruta macilenta, símbolo da vanitas, estaria para um pintor maneirista ou barroco de naturezas mortas (por exemplo, o cesto de frutas de Caravaggio ou, mais contemporâneo, o crânio diamantizado For the Love of God, de Damien Hirst, 2007).

[21] A um nível exponencial, a discussão a respeito daquele homem nos cuidados intensivos acometeria polémicas associadas, por exemplo, à pena de morte ou à eutanásia. Segundo Žižek (2009: 168), aqueles que argumentam contra a pena de morte – “Quem nos dá o direito de o fazer?” – deixam escapar uma reviravolta interessante na lógica moral desse ato aparentemente monstruoso, quando o argumento é virado do avesso: parafraseando, “Quem somos nós para não o condenarmos à morte? Que direito temos nós para nos armarmos em misericordiosos, quando o perdão é ato exclusivo de Deus, do rei ou do presidente?” Quando, na letra de I Was Hoping, o tu, qual Pilatos, lava as mãos do episódio no hospital, a sua confissão – I would’ve had a hard time feeling compassion for him – é uma maneira fria, mas autêntica, de exprimir que o sentimento de “compaixão” lhe ficaria caro, precisamente porque constituiria “a verdadeira blasfémia de nos elevarmos ao nível de Deus, de agirmos com uma autoridade que lhe pertence” (ibidem).