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Revista Diacrítica

Print version ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

In memoriam: António Eugénio Peixoto (1953–2012)

Pedro Martins*

*Departamento de Filosofia, ILCH, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

pmmartins@ilch.uminho.pt

 

“E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida”
Sophia de Mello Breyner Andresen

Uma longa conversa foi, de repente, interrompida e o silêncio - um estranho silêncio - instalou-se entre nós. Um silêncio habitado pelo eco das suas palavras, pelo timbre inconfundível da sua voz.

Enfrentamos o vazio da ausência e de uma enorme, irreparável, perda. Mas esse vazio é preenchido pelo colorido de inúmeras memórias que nos acalentam, tal como a todos os que o amaram sinceramente; como antes, somos iluminados e guiados por um legado que se impõe e transfigura a dor. Por isso, conviria dar a palavra aos grandes poetas, que o Eugénio tanto amava e em tantas ocasiões partilhámos, rodeados pelos livros da sua monumental biblioteca, um dos seus jardins favoritos. Eles sabem dizer, melhor do que nós, o que sentimos e pensamos neste momento.

[…]

Pelos cinco jardins que há no Marino

Se demorou, mas algo nele havia

Imortal, essencial, que preferia

O árduo estudo e o dever divino

Preferiu, melhor dizendo, outros jardins,

Os da meditação, onde Porfírio

Erigiu ante as sombras e o delírio

A Árvore do Princípio e dos Fins.

[…]

Ao ímpar tributemos, e ao diverso

As palmas e o clamor de uma vitória;

Nem uma lágrima profane o verso

Que o nosso amor inscreve em sua memória.[1]

O que me apraz dizer, enquanto colega, amigo, irmão, eterno discípulo, não cabe nas palavras.

O meu testemunho tentará fazer justiça à sua memória e prestar um tributo de eterno reconhecimento, pessoal e institucional, sendo difícil separar os dois. O Eugénio, tal como outros distintos mestres e colegas, foi um dos professores do departamento de filosofia que, através da sua leccionação - no curso de filosofia e em outros cursos - e intervenção cultural, mais contribuiu para a sua actual credibilidade e prestígio. Foi, além disso, um dos maiores filósofos e professores portugueses de todos os tempos. Escrevo-o sem quaisquer laivos de exagero e com inteira convicção.

O sábio e o amigo de mãos dadas

Devido ao facto de ter vindo leccionar, em 1995, para o – então designado - Departamento de Filosofia e Cultura da Universidade do Minho, tive a fortuna de travar conhecimento com o nosso querido colega e amigo Eugénio Peixoto. Desde cedo, se formou uma sólida amizade, adensada por cumplicidades e afinidades electivas mas também, como é natural numa grande amizade entre pessoas diferentes, por discordâncias, atritos e discussões animadas. O Eugénio era muito exigente, quer do ponto de vista moral, quer em termos intelectuais, tanto em relação a si próprio, como em relação aos outros. E, por isso, não era fácil estar à altura dos seus elevados padrões morais, intelectuais e estéticos.

No decurso da formação académica em Lisboa, tive o privilégio de contar com excelentes professores, que me rasgaram largos horizontes de saber e cultura e a quem devo muito do ponto de vista da formação intelectual. Mas, confesso que antes de privar e trabalhar com o Eugénio, no departamento de filosofia, sobretudo em projectos de ensino em história das ideias e em filosofia, nunca tinha adquirido uma consciência tão nítida das minhas lacunas intelectuais e pedagógicas, da minha ignorância. Isso aconteceu quase como um choque, mas foi um choque eivado de fascínio e deslumbramento, até hoje. Apercebi-me rapidamente que estava perante um grande intelectual e professor, ao nível dos melhores que, na cultura portuguesa e europeia, conhecia apenas através da leitura e da reconstrução histórica.

Recordo com grande saudade, os agradáveis momentos de ócio ou de trabalho, passados com ele, e por vezes na companhia de outros colegas e amigos, a discutir e a conversar, sempre animadamente, acerca de filosofia, cultura portuguesa, história, literatura e política. Em qualquer um destes campos, e em outros, a sua cultura era de uma erudição e vastidão invejáveis, algo que nunca tinha testemunhado antes. Conciliava, de modo notável, dois aspectos que raramente se conjugam num intelectual: por um lado, a riqueza de informação científica, histórica, literária - a erudição, enfim -, possibilitada por uma memória prodigiosa; por outro, uma capacidade analítica e reflexiva agudíssima e um grande rigor conceptual, só possíveis mediante um apurado e contínuo treino filosófico. Por tudo isso, foi um professor extraordinário e brilhante de história das ideias, mas também não o foi menos no domínio da filosofia mais pura, o domínio da sua especial preferência. Não por acaso, arrisco dizer que os seus pensadores predilectos foram Kant, Hegel e Marx. Sou céptico mas espero que esteja a “conversar” com eles neste momento, de forma a esclarecer os “nós-cegos”, como ele dizia, que detectara nos seus sistemas filosóficos! O seu “nó-cego” sempre fora a tentativa - infrutífera pensava ele - de conciliação entre a transcendentalidade e a historicidade, visto que não conseguia abdicar de nenhuma delas.

Tive oportunidade de assistir a algumas das suas aulas que, a despeito de seguirem um fio lógico e um enquadramento didáctico impecável, eram sempre aulas riquíssimas em termos de informação cultural, múltiplos cruzamentos interdisciplinares, exemplos e reflexões inesperadas, debitadas a uma velocidade de raciocínio fulgurante, por vezes despoletadas pelas dúvidas, comentários e questões dos alunos que, mesmo quando não compreendiam, não podiam deixar de ficar fascinados, tal como eu, com o brilho, encadeamento e modulações do discurso que ouviam. Um discurso vivo, fluente, extremamente ágil, autêntico e apaixonado. A paixão genuína pelo saber, pela cultura – e é claro, pela vida (como separar esses aspectos?) - será talvez o método pedagógico mais eficaz que algum dia se inventou. Os resultados estão à vista.

Num tempo de híper especialização, o Eugénio Peixoto encarnava e respirava por todos os poros, uma autêntica cultura universal, fazendo jus ao espírito que, segundo, ele deveria nortear, não apenas formalmente, mas nas práticas efectivas, uma universidade digna desse nome.

Mas a experiência não era diferente em conversas de corredor, deambulações pelas ruas do Porto e pelos seus alfarrabistas favoritos, em refeições com amigos, no sossego acolhedor da sua casa e junto dos seus preciosos livros. Era um prazer para o espírito ouvi-lo durante horas a fio dissertar sobre um determinado tema, livro, autor ou poeta, mas também sobre assuntos mais concretos e candentes da vida política e económica. Era um conversador extraordinário e arrebatador que dissertava com o mesmo à vontade e prazer sobre a dialéctica hegeliana ou sobre qualidades de maçãs ou vinhos.

Nada do que era humano lhe era estranho. Movia-se com total desenvoltura nos mais diversos domínios do saber e da cultura, a ponto de poder desafiar e questionar especialistas. Saber que um determinado livro, de qualquer área, e não apenas de filosofia, tinha passado no finíssimo crivo da sua crítica era garantia segura de que valia a pena lê-lo. Em virtude disso vim a interessar-me por autores a que não tinha prestado a devida atenção ou que nem sequer conhecia. E isso contribuiu para alargar consideravelmente os meus horizontes intelectuais.

Por tudo isto e também pela grande experiência de vida acumulada em actividades políticas e pedagógicas; pela sua personalidade e carácter muito vincados, enquanto professor, o Eugénio representava o melhor exemplo para os alunos – mas também para professores preguiçosos e rotineiros - sobretudo em tempos de preocupante imbecilização pedagógica. A sua curiosidade intelectual era insaciável e contagiante, a sua actualização bibliográfica permanente. O segredo para tanto saber e tanta desenvoltura comunicacional e pedagógica era simples, garantiu-me: estudo, estudo e mais estudo; aliados à prática de comunicação em público e à experiência lectiva. Uma receita pedagógica que, sem dúvidas, é inteiramente certa, além de eficaz, e que tem sido esquecida nos últimos anos. Com ele aprendi, da forma mais clara, que o fundamental num professor é o domínio, tão absoluto quanto possível, do saber. Pode não ser suficiente, mas se essa base falha não há pedagogia, metodologia ou retórica que o possa salvar.

No entanto, a despeito do seu labor incansável e das suas leituras intermináveis e omnívoras, nunca descurou a família e os amigos, antes pelo contrário. Enquanto marido, pai, irmão e amigo, sempre se revelou extremoso, preocupado, atento, protector. Pude testemunhar isso inúmeras vezes. Em ocasiões difíceis pude contar com o seu apoio moral e os seus conselhos. Enquanto colega, o Eugénio, apesar de severo e exigente em matérias científico-pedagógicas e deontológicas – o que só abona em seu favor – manifestava-se sempre solidário, disponível, franco e hospitaleiro, mesmo para pessoas que nem sempre retribuíram. Sem esquecer a amizade de outras pessoas com quem travei conhecimento em Braga, a sua amizade revelou-se providencial nas circunstâncias em que comecei a leccionar nesta casa. Recentemente chegado, de uma cidade afastada, a uma grande universidade, não dispunha ainda de grandes contactos e amizades, o que, em parte através dele, rapidamente mudou. Graças ao convívio chegado com ele, pude conhecer pessoas interessantíssimas e de excelente carácter que acabaram por tornar-se minhas amigas também. Além de me ter orientado e ajudado a ultrapassar dificuldades sentidas a nível da leccionação e a outros níveis, fez-me sempre sentir, tal como a sua família, em sua casa. Falo também do seu mundo. Isso é demasiado precioso e não tem preço. Sei que o fez em relação a muitos colegas meus, que também lhe guardam a maior gratidão e reconhecimento.

O meu testemunho não é o único a revelar que o Eugénio possuía uma personalidade rica e multifacetada, quer em termos afectivos, quer em termos intelectuais, mas os dois aspectos cruzavam-se e interpenetravam-se a ponto de não se discernir bem aonde acabava um e começava outro. Talvez por isso gostasse tanto de Pessoa. Talvez por isso não se limitasse a ler obras de filosofia. Talvez por isso apreciasse os pequenos grandes prazeres da vida: alimentar e ver crescer uma planta, confeccionar, com extrema competência aliás, uma refeição para os amigos, visitar um antiquário… Sabemos, o que nos conforta, que em muitas ocasiões, a despeito dos problemas profissionais e pessoais que teve de enfrentar e da incompreensão e injustiça a que foi sujeito em algumas ocasiões, foi um homem feliz e amado, pela família e pelos amigos; pelos alunos e alunas.

Esta riquíssima vida interior, aliada a um domínio absoluto da palavra escrita e falada, a uma cultura vastíssima, poderá explicar – não importa - a sua, até agora, ignorada veia poética.

Apesar de os académicos, por via das suas exigências de carreira, se poderem transformar nisso, não era seguramente um “homem unidimensional” à maneira de Herbert Marcuse. As múltiplas facetas da sua pessoa e vida – sobre as quais haveria muitíssimo a dizer - não se esgotavam na dimensão intelectual e académica – muito menos num domínio especializado do saber filosófico -, apesar de a filosofia ser um dos domínios da sua eleição, um domínio em que, além de extremamente dedicado enquanto professor e estudioso, era, sem dúvidas, genial; neste território do saber obtinha especial prazer, o que contagiava tudo e todos, mesmo os mais renitentes e avessos às exigentes, e por vezes áridas, digressões filosóficas. Numa época de fast-food cultural e de rasteiro filistinismo, era um exemplo vivo de como todas as riquezas e “modos de fazer mundos” do espírito nos podem proporcionar “prazeres superiores”, os prazeres mais elevados e duradouros de todos, como concordaria John Stuart Mill.

É um grande consolo para os que perderam o Eugénio e, de modo impotente, o viram sofrer nos últimos momentos da sua vida, na batalha final que travou com a doença que o vitimou, saber que, apesar dos muitos problemas, pessoais e profissionais - que teve de enfrentar e enfrentou, com coragem e determinação - foi feliz de muitas maneiras. Foi feliz e amado entre os livros, a mulher, os filhos, os amigos, a família, as antiguidades, as flores, os seus alunos e alunas; foi feliz na “conversa” interminável que travou com os intelectuais e a cultura universal, com as flores, os objectos e a música. Quem disse que a sabedoria gera infelicidade?

Uma visão da universidade para o futuro

Como não podia deixar de ser, sempre mostrou possuir uma visão bem definida, estruturada, e com sentido estratégico, em relação à missão da universidade e ao seu futuro. Seguia com preocupação os rumos do ensino superior em Portugal, em particular as suas repercussões na vida da Universidade do Minho.

Sempre criticou, com profundidade, as tendências que, de modo populista, estreito e redutor, pretendiam reduzir as universidades a institutos politécnicos, gerindo e transmitindo um saber de mera aplicação sem cuidar de realizar – em todas as áreas – investigação e estudo fundamental, de modo isento, crítico, independente em relação às flutuações e apetites do mercado. A Universidade era, para ele, o “lugar por excelência da teoria” e do saber universal, sem fronteiras de qualquer espécie. Só uma boa teoria poderia proporcionar uma boa prática, quer nas ciências, quer nas humanidades, sem esquecer o diálogo que se deveria estabelecer entre todos os saberes, com a ajuda da filosofia, mas sem que esta – ou qualquer outro saber - se arvorasse em saber tutelar, dominante e último. A sua visão era vincadamente interdisciplinar, à maneira da matriz originária da universidade do Minho. Sempre promoveu, o que tem sido complicado nas actuais circunstâncias, o diálogo permanente entre todos os saberes e diferentes áreas do conhecimento, evitando os acantonamentos corporativos e epistémicos que, infelizmente, por razões económico-financeiras e outras tanto têm afectado e espartilhado o funcionamento das universidades portuguesas.

A sua visão acerca da Universidade, por um lado era clássica, se assim podemos dizer. Pautava-se por níveis elevados de exigência e excelência científico-pedagógica. Não temos dúvidas de que assim dever ser. Nunca se conformou com os facilitismos, os pedagogismos e as ligeirezas superficiais da universidade de massas, o que não significa de todo que fosse contra a democratização do acesso ao ensino superior, bem como a todos os níveis de ensino. Era exactamente o contrário. De resto, a criação do curso de maiores de 23 anos atesta-o: num quadro de acesso generalizado e justo, a melhor maneira de aprofundar a igualdade de oportunidades no nosso país, em todos os níveis de ensino público, teria que passar sempre por promover níveis mais elevados de exigência para todos. Caso contrário, um injusto elitismo e discriminação entre escolas de primeira e de segunda acabaria por minar a igualdade efectiva de oportunidades numa sociedade democrática. Nessa medida, sempre lamentou a descida galopante, quase inelutável na nossa sociedade e sistema educativo, de critérios de exigência.

Contudo, apesar de tantos condicionamentos, constrangimentos e pressões sabemos que nunca abdicou dos seus critérios de exigência e rigor. Sempre tentou materializar, na medida do possível, quer enquanto professor, quer enquanto dirigente, a sua ideia de universidade. Não temos dúvidas de que o conseguiu, apesar de ter enfrentado obstáculos e incompreensão. A preparação intelectual e humana que proporcionou aos seus alunos, em todos os graus em que leccionou, foi a melhor possível. A sua grande exigência, rigor e frontalidade, por vezes intimidatórias e mal interpretadas, nunca impediram a grande popularidade que granjeou entre os alunos, nem a construção de sólidas amizades em toda a comunidade académica. Esta é uma boa lição de pedagogia prática contra todos os facilitismos que, no sistema de ensino, têm transformado os alunos em seres acríticos, manipuláveis e mal preparados intelectualmente, o que representa um perigo para a democracia, a diversos níveis.

É por isso que a sua visão da universidade era simultaneamente clássica e ultra-moderna, ou seja, progressista, igualitária e intrinsecamente democrática nos seus objectivos e missão. Uma universidade que poderia contribuir para construir uma sociedade mais democrática na medida em que promoveria, além do desenvolvimento do espírito crítico e do saber, o aprofundamento de uma real igualdade de oportunidades, a qual só poderia ser conseguida proporcionando uma preparação de excelência, do ponto de vista científico, cultural e até técnico, a todos os seus alunos. Algo semelhante se poderia afirmar do ensino secundário.

A Universidade, por outro lado (e aqui entramos numa dimensão mais poética e utópica), para o Eugénio Peixoto, se a metáfora não é descabida, deveria também funcionar como um autêntico templo do saber universal, construído o mais livremente possível – não há outra forma de o fazer – e de forma cúmplice –, por professores e alunos, entre professores e alunos, num labor interminável e inacabado em torno da elucidação dos grandes temas e problemas das ciências, da cultura e da filosofia. Não duvidamos que, em muitos momentos, conseguiu realizar essa aspiração nobre.

Muitos aprenderam com ele, contra as deturpações da pedagogia, que a realização da “gaia ciência” (Nietzsche) não era uma dádiva gratuita e instantânea mas uma conquista árdua. Afinal, os nossos prazeres mais sublimes só podem resultar desse labor incerto e pedregoso, embaraçado por escolhos e frustrações múltiplos, mas passível de proporcionar, se tivermos a pertinácia de prosseguir até ao fim, recompensas e descobertas inesperadas e duradouras. De qualquer forma, muitas vezes, provocadoramente, proclamou que a filosofia era totalmente inútil, o caminho dos caminhos que não vão dar a lado nenhum, citando Heidegger. A despeito da sua inutilidade, um dos principais prazeres da filosofia decorreria do seu aspecto intrinsecamente lúdico. Este passava pelo desenvolvimento de jogos perpétuos de racionalidade que procuravam, talvez em vão, resolver puzzles conceptuais e problemas virtualmente insuperáveis, mas dos quais a humanidade jamais se libertaria, por mais que os quisesse negar e ignorar. Para ele, de uma forma apaixonada e entusiástica que nunca encontrei em idêntico grau, a filosofia era, de facto, uma “gaia ciência” e isso contagiou os seus alunos e colegas.

Nunca tanto como hoje se falou de “excelência” e de “mérito” a nível do ensino. Nunca tanto como hoje se abusou dessas palavras. Mas, se elas têm sentido, ele encarnou-as da forma mais lídima. Ele foi e é um exemplo para todos os professores e alunos. Um exemplo de que precisamos como pão para a boca.

O Curso de Maiores de 23 Anos e a construção de uma universidade inclusiva

O curso de maiores de 23 anos, por tudo aquilo que representa, em termos teóricos, estratégicos, sociais e pedagógicos, e pelo muito que trouxe à universidade e à região, constitui uma das maiores e mais valiosas obras que o Eugénio nos legou. Uma obra no sentido mais pleno e completo do termo. Constituiu, em boa verdade, a materialização institucional e praxeológica da sua ideia e projecto de Universidade. Uma universidade igualitária e inclusiva, mas exigente e rigorosa. E não poderia ser de outro modo.

Uma Universidade em que o reforço da “igualdade equitativa de oportunidades” (quase à maneira rawlsiana) seja na prática realizado, mas com rigor e transparência, ao contrário do que tem acontecido, em Portugal, em experiências de certificação análogas. De outra forma: uma universidade em que ninguém seja impedido de entrar, seja qual for a sua faixa etária, desde que demonstre através de provas, ou adquira, entretanto (por vida de um curso de preparação) as competências adequadas, que, além da formação formal, podem decorrer da experiência profissional relevante, adquirida ao longo da vida.

Desde cedo, convivi de perto com a gestação e construção desse projecto que, finalmente, se institucionalizou e consolidou na Universidade do Minho, graças, em grande medida, à sua visão estratégica, capacidade de liderança e de gestão. Trata-se de um projecto que deverá sempre ser acarinhado, protegido e aperfeiçoado por todos nós pois, em grande medida, o futuro da Universidade, e em particular do ILCH, está nele. E não falo apenas da importância estratégica, no quadro de severos constrangimentos demográficos e socioeconómicos, derivada da afluência de novos públicos.

Muitas vezes ouvi os seus desabafos e comentários sobre os problemas complexos e espinhosos, da mais variada natureza, que foi preciso enfrentar para o Curso se estabilizar e se transformar, finalmente, numa “máquina bem oleada”. Posso testemunhar, enquanto amigo próximo e colaborador que, do ponto de vista organizativo e estratégico, foi um obreiro infatigável na construção deste projecto grandioso. Absorvia uma grande parte da sua vida profissional e das suas energias, desviando-o até de tarefas que lhe proporcionavam mais prazer, como o estudo e a leitura. Mas o sentido do dever, que sempre o caracterizou, falava mais alto. Quase até ao último sopro de vida, esteve envolvido no acompanhamento deste projecto, qual pai preocupado e melancólico que sente que está a chegar o momento em que o seu filho terá, finalmente, de seguir o seu caminho autonomamente.

Uma das minhas maiores honras e motivos de satisfação pessoal foi ter tido, em boa hora, a oportunidade de colaborar directamente neste projecto, na qualidade de docente de filosofia, membro do júri de filosofia e entrevistador. Não tenho dúvidas que, enquanto professor, alguns dos momentos em que senti mais realização profissional e motivação passaram-se na leccionação de filosofia aos alunos do curso de preparação de maiores de 23 anos. Aí encontrei alunos e alunas participativos, maduros, motivados, atentos e genuinamente interessados nos temas das aulas, algo que raramente encontrava nas licenciaturas. No decurso das entrevistas – que constituem uma parte das provas de acesso à nossa universidade -, ao contactar com inúmeros candidatos manifestando perfis, origens sociais, percursos e faixas etárias diversas, percebi, claramente, até que ponto esta oportunidade de ingressar na universidade era algo de extremamente valioso nas vidas destas pessoas que, por uma razão ou outra – por vezes razões económicas -, não tinham podido ingressar na universidade no tempo devido.

Esta colaboração foi e continua a ser, para mim, algo de muito enriquecedor do ponto de vista pedagógico e humano. Lamento que, por vezes, não se vislumbre, devidamente, todo o alcance e o valor, social e estratégico, deste projecto – quer para a universidade, quer para a comunidade -, que em grande medida foi uma criação do Eugénio, como o sr. Vice-reitor, Professor Rui Vieira de Castro, muito justamente, reconheceu na recente sessão de homenagem que organizámos em sua memória.

A Comunidade de Leitores de Filosofia

A Comunidade de Leitores de Filosofia, em que, tal como o Doutor Vítor Moura – um dos seus fundadores - tive a honra de colaborar como co-dinamizador, foi um dos projectos mais bem sucedidos em que participou, e em que veio a adquirir um protagonismo notável. No decurso das suas sessões materializou-se na praxis, como ele gostava de afirmar – evocando uma sólida formação marxiana –, uma vez mais, a sua ideia de universidade. Uma universidade aberta a todos os públicos e à comunidade, fosse qual fosse a sua formação de base, inteiramente livre em termos de discussão teórica e totalmente destituída de formalismos académicos e hierarquizantes, sem promover artificiais barreiras entre saberes, mas sempre exigente e crítica.

Será impossível preencher o lugar que ele ocupava nesse projecto, mas estamos certos que ele gostaria que continuasse. O seu carisma magnético e contagiante, aliado a um saber vastíssimo, a um genuíno e socrático dom filosófico e a brilhantes capacidades argumentativas, retóricas e oratórias animavam sempre cada sessão e garantiam uma elevada afluência de público. Um fenómeno notável se considerarmos que discutir, de forma exigente e séria, obras de filosofia não será talvez o programa cultural mais apelativo nos tempos que correm.

A homenagem ao Eugénio deverá ser para sempre

Num momento de profunda crise da sociedade e das instituições, a melhor homenagem que podemos prestar ao Eugénio Peixoto, enquanto docentes, estudantes, dirigentes académicos, e sobretudo enquanto cidadãos e seres humanos, é não deixar morrer jamais o seu legado, que deixou sementes e marcas duradouras nas instituições e, talvez mais importante, nas pessoas. O seu magistério mudou as perspectivas e mundividência de muita gente. Não temos dúvidas que as mudou para melhor. Ele contribuiu para avivar e reanimar a nossa crença em alguns aspectos do iluminismo.

No saber, no ensino e em todos os domínios da vida pública e privada, o Eugénio Peixoto sempre pugnou por valores de exigência, rectidão, justiça, solidariedade e frontalidade, que raramente são eleitos nos tempos em que vivemos. Na minha perspectiva, a melhor homenagem que lhe podemos fazer, doravante, quer na universidade, quer fora dela, é continuar a lutar, à nossa maneira, por esses valores, que ele pensou profundamente em termos filosóficos mas que, acima de tudo, praticou sem reticências ou concessões. É reconhecido que na sua actuação quotidiana e institucional, nunca se desviou um milímetro dos critérios deontológicos – kantianos – que teoricamente, de forma brilhante, sempre defendeu, isto é, da prática de um sentido abnegado do dever para com as instituições e as pessoas. Quem conviveu com ele até aos últimos momentos pôde testemunhar que assim foi até ao limite das suas forças e capacidades físicas, contra as indicações médicas.

Numa época de mediocridade intelectual, de corrupção, injustiça, inversão de valores, crise galopante da democracia e do estado social, a figura do Eugénio representa certamente um exemplo ímpar, em Portugal, do papel de consciência crítica que uma elite intelectual universitária deve representar numa sociedade democrática.

Infelizmente, não está já presente, fisicamente, nas nossas conversas, discussões e batalhas, designadamente naquelas que passavam por tentar construir, no quotidiano e na medida das nossas possibilidades e competências, uma universidade e um país mais esclarecidos, exigentes e justos. Mas é como se estivesse. Recordo, com comoção, uma das últimas frases que ouvimos da sua boca. Numa das derradeiras visitas ao hospital, partilhámos, com ele, os problemas complexos que tínhamos de enfrentar na universidade. Disse que nos invejava. O que mais desejava era poder estar connosco, “com as mãos na massa”, a trabalhar e a lutar ao nosso lado, a dar toda a ajuda possível para superar os problemas, como sempre fez em toda a sua vida, com a competência e capacidade de liderança que era seu timbre. E sabíamos que era verdade.

Aprendemos a conhecê-lo e a antecipar o seu juízo crítico e contundente, por vezes aguçado por ironia impiedosa ou sibilina, mesmo para os amigos, sobretudo para os amigos, mas tantas vezes jocoso e ternurento… Como um grande amigo comum notou, a aparente dureza e severidade exterior escondiam um coração ultra-sensível e até “ingénuo”, uma “alma de poeta”. A força e o brilho do seu magistério, da sua sabedoria e da sua humanidade marcaram-nos para sempre. Na nossa mente, nos nossos afectos e memórias, jamais será esquecido. Continuamos a acreditar no iluminismo.

 

Notas

[1] Jorge Luís Borges, In memoriam A.R. in O Fazedor, Obras Completas, Lisboa, Editorial Teorema, 1998 pp. 203. Tradução de Fernando Pinto do Amaral.         [ Links ]