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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

Por entre mitos e Märchen: problemática e perspectiva

Amongst myths and Märchen: problematics and perspectives

Nuno Simões Rodrigues*

*Universidade de Lisboa. Centro de História da Universidade de Lisboa e Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra

nonnius@fl.ul.pt

 

RESUMO

Partindo do corpus organizado pelos Irmãos Grimm no início do século XIX, estabelece-se uma análise comparativa entre mito e Märchen, concluindo que existe uma evidente comunhão temática entre vários mitos e contos maravilhosos, mas que ao mesmo tempo persiste uma dificuldade em definir uns e outros de forma epistémica exclusiva e inequívoca.

Palavras-chave: Mito, Mitologia Grega, Märchen, Irmãos Grimm.

 

ABSTRACT

This study compares Myth and Märchen, based on Grimms’ corpus, concluding that exists common themes between myths and folktales, although it persists the difficulty to define Myth and Märchen in a epistemological exclusive form.

Keywords: Myth, Greek Mythology, Märchen, Grimm Brothers.

 

2012 é o ano que assinala o bicentenário da primeira publicação dos Kinder- und Hausmärchen de Jacob e Wilhelm Grimm, em Berlim. Trata-se da obra de língua alemã mais traduzida e editada em todo o mundo, considerada um dos «tesouros da cultura popular europeia» (Bairos I, 2012: 9). Desde o seu aparecimento que esta colectânea de contos populares supostamente centro-europeus ganhou uma notoriedade assinalável. Como nota a autora da sua recente e única tradução integral para a língua portuguesa, o êxito dos Kinder- und Hausmärchen «foi crescendo em popularidade ao longo do século XIX» (Bairos I, 2012: 9).

Bastará conhecer-se minimamente a História europeia posterior à Revolução Francesa para se perceber que esta publicação dos Irmãos Grimm não é fruto do acaso. Com efeito, a obra que resultou de um monumental trabalho de investigação insere-se perfeitamente no ambiente nacionalista que a Europa conheceu durante o século XIX (Hobsbawm, 2004). A necessidade de consolidar ideais que remetiam para os valores das nações em processo de afirmação no período que sucedeu ao Ancien Régime justifica em grande parte a ânsia de conhecimento das raízes dos povos e a valorização de tudo que dissesse respeito às tradições, aos mitos, ao folclore e sobretudo ao medievo de cada um daqueles que faziam já parte do grande mosaico cultural europeu (visto que era nessa época que suposta e romanticamente radicavam e se fundamentavam estes vários elementos[1]). Em Portugal, por exemplo, o processo foi manifesto nas obras de Adolfo Coelho, Teófilo Braga e Ana de Castro Osório (Bairos I, 2012: 14; Medeiros, 2003).

Os objectivos dos Grimm estão bem patentes na carta que em 1815 enviaram a vários destinatários, por toda a Alemanha, que visava justificar ao mesmo tempo que fazia o balanço do trabalho que haviam encetado. Passamos a transcrever parte da missiva:

«Formou-se uma sociedade que se expandirá por toda a Alemanha e que tem por objectivo salvaguardar e compilar tudo o que sejam canções e lendas do povo alemão. Na nossa pátria ainda abunda por todo o lado este tesouro que os nossos antepassados nos legaram. Apesar de todo o ridículo e troça de que tem sido alvo, ele sobreviveu em segredo, inconsciente da sua beleza e transportando a sua essência irreprimível. Se este tesouro não for estudado em pormenor, não se poderá compreender plenamente as origens autênticas e remotas da nossa poesia, da nossa história e da nossa língua. Tendo isto em mente, pretendemos pesquisar e coligir com diligência e rigor os seguintes itens:

[...]

2) Lendas em prosa; os numerosos contos de embalar e contos para crianças sobre gigantes, anões, monstros, príncipes e princesas enfeitiçados e libertados, demónios, tesouros e objectos mágicos que concedem desejos; lendas locais que são contadas e conhecidas pelas explicações que dão sobre determinados lugares, como montanhas, rios, lagos, pântanos, castelos em ruínas, torres, rochedos e todos os monumentos de tempos remotos. Importará prestar especial atenção a fábulas de animais que incluam, em particular, raposas e lobos, galos, cães, gatos, sapos, ratos, pardais, etc.

3) Contos cómicos de trapaceiros e facécias; teatros de marionetas de outros tempos...»

(apud Bairos I, 2012: 15-16; cf. Csapo, 2005: 16-19).

Na verdade, no texto transcrito, reconhecemos o essencial da problemática que propomos tratar. Como assinala T. Aica Bairos, a recolha levada a cabo pelos Irmãos Grimm começou por ser sobretudo um trabalho de natureza etnográfica, dirigido a um público adulto, pelo que não terá havido, de início, qualquer preocupação em «expurgar conteúdos reputados impróprios para as crianças»[2]. Por conseguinte, a edição apresentada ao público em 1812 incluía relatos, aspectos e elementos que vieram a ser postos em causa por investigadores coevos, que consideraram que as recolhas dos Grimm continham «motivos passíveis de chocar o público infantil» (Bairos I, 2012: 18). Esta recensão foi levada muito a sério pelos dois irmãos, que passaram a fazer alterações significativas nos textos, com o objectivo de «adequar a colecção aos preceitos morais do público burguês» (idem, ibidem). Este é um dos assuntos centrais do estudo de M. Tatar, quando publicou The Hard Facts of the Grimms’ Fairy Tales, e outro dos aspectos relevantes para a nossa reflexão.

Em 2000, G. Anderson publicou um estudo particularmente importante para o debate em torno da problemática do «conto de fadas», Fairytale – segundo a designação anglo-saxónica – ou Märchen – segundo o rótulo germânico, que adoptamos neste estudo. Trata-se de Fairytale in the Ancient World e, nele, Anderson estuda a relação entre o Märchen e algumas narrativas conhecidas desde a Antiguidade Pré-Clássica e Clássica, concluindo que alguns dos temas e motivos que encontramos nos chamados «contos maravilhosos» podem ser igualmente percebidos num «outro» corpus literário que reconhecemos como «mitologia»[3]. A título de exemplo, podemos referir o tema da «Gata Borralheira» ou «Cinderela», que se reconhece nas histórias de Inana, Aspásia de Foceia, Assenat, Rodópis (ver Rodrigues, 2009: 115-124) e Io (Anderson, 2000: 24-42); o da «Branca de Neve», presente nas narrativas em torno de Quíone, Níobe e Ântia, por exemplo (idem, ibidem, 43-60); o da «Bela e o Monstro», evidente na história de Cupido e Psique (idem, ibidem, 61-71); o de «Rapunzel», que se reconhece no mito de Dánae e na história egípcia do «Príncipe Malfadado» (idem, ibidem, 121-122); ou ainda o da «Bela Adormecida», cujos contornos parecem recuperar temáticas e figuras como as do destino, das Meras e de Éris[4]. O que distingue então um do outro?

Com efeito, a definição destes conceitos não é tarefa fácil. Várias têm sido as tentativas e muitos os autores que têm escrito acerca do problema. Mas definir «mito» e «mitologia» parece ser uma missão ingrata. É verdade que podemos aceitar uma conceptualização relativamente simples de mito, como tratando-se de uma «forma narrativo-simbólica mediante a qual se procura exprimir um sentido da realidade.» (Mardones, 2005: 41). Mas o facto é que esta definição não é suficientemente universal para ser por todos aceite como abrangente ou exclusiva do mito e da mitologia (cf. Csapo, 2005).

Num aspecto, todavia, parece haver consenso: «mitologia» tanto é entendida como a ciência que estuda os mitos, como o corpus a que pertencem as várias narrativas que dão sentido aos mesmos (e.g. Jabouille, 1993: 13-27; idem, 1994: 15-24, 41). Mas não é incomum encontrarmos, nas várias tentativas de definição de «mito» e de «mitologia», referências ou alusões aos chamados «contos de fadas» ou Märchen, ainda que com a mera intenção de os distinguir dos mitos propriamente ditos. I.e., tais referências ocorrem com a intenção de definir o mito pela negativa: um mito não é um conto popular ou tradicional (Märchen ou folktale) (Jabouille, 1994: 34). O que, na verdade, não ajuda muito quer na definição de um quer na do outro.

Logo em meados do século XIX, os Grimm aperceberam-se desta relação entre os Märchen e a mitologia, como prova a reflexão que publicaram acerca do assunto (apud Bairos III, 2012a: 451-512). Mas nesse texto lemos sobretudo comparações de diversos contos reconhecidos em várias das culturas do globo, da América do Norte à Índia, salientando-se as comunhões, e não propriamente uma reflexão epistémica em torno dos dois géneros, «mito» e «conto maravilhoso». Há, por conseguinte, que buscar essa reflexão em outros autores, com a consciência de que cada proposta corresponde a uma escola epistemológica.

Assim, K. Kerényi, por exemplo, propõe a vivência como elemento ou factor-chave para a definição de mito, sendo que o «carácter de participação e de integração ajudará a definir o mito e a distingui-lo do conto popular, perante o qual se adopta uma atitude de atenta audição e não de vivência» (ibidem). Esta é uma posição que se aproxima da perspectiva ritualista ou litúrgica de constante actualização do mito. Já J. M. Mardones considera que o «mito enquanto narração da origem primordial das coisas é um tipo de narração ou relato muito habitual nas sociedades arcaicas. É um tipo de tradição oral próximo da lenda, do conto...». Mas como afirma também, e citando Lévi-Strauss, «as distinções nunca são nítidas e são produzidas pelo mesmo espírito.» (Mardones, 2005: 42). Neste sentido, Lévi-Strauss localiza a principal diferença entre mitos e folktales na força e na qualidade das oposições que ambos manifestam enquanto mediadores. I.e., para este antropólogo francês, enquanto os mitos servem uma função essencialmente central de modo a sustentar valores culturais e instituições, os folktales ou märchen desenvolvem-se sobretudo num meio popular que muitas vezes se opõe ao próprio sistema cultural vigente, pelo que «mito» e «conto» podem mesmo estar em lados opostos um do outro, chegando a associar-se à clássica oposição entre «natureza e cultura»[5].

Por outro lado, o mitólogo português V. Jabouille, com quem tivemos o privilégio de estudar, afirma: «Primeiro ponto a realçar: o mito implica narrativa, o contar qualquer coisa a alguém. E é uma narrativa fabulosa porque há a intervenção de origem popular e não reflexiva. Esclareça-se que, na perspectiva por nós adoptada, o que caracteriza o mito não é a sua origem popular mas o ser colectivamente aceite. Recordemos, por exemplo, as histórias escritas por Ovídio, em As Metamorfoses: são narrativas poéticas, líricas, contos populares e, até, mitos. E isto porque algumas são inventadas por Ovídio, outras conhecidas apenas regionalmente e algumas, sim, aceites colectivamente sem conhecimento de autoria. Estes são os verdadeiros mitos.» (Jabouille, 1993: 14). Ou ainda: «a utilização do vocábulo mito supõe dois níveis. Um primeiro, geral e amplo; um outro, restrito, ao nível da saga, lendas nórdicas com um fundo histórico, das folktales ou märchen, que correspondem aos contos populares e às fábulas. Encaremos o mito no seu conceito geral. Ao falar de fábulas, recordo a terminologia estrangeira: märchen ou folktale, que podemos traduzir como “contos de fadas”. São designações controversas quando especializam o conceito geral de mito.» (Jabouille, 1993: 37; cf. Csapo, 2005: 3-8; Burkert, 1991: 17; Fuhrmann, 2005).

Com efeito, aparentemente, o conceito grego antigo de mythos parece ter sido na Antiguidade bem mais abrangente e amplo do que os epistemólogos da problemática, sob influência aristotélica, parecem reconhecer hoje. Mas podemos deduzir então, a partir destas afirmações, que os «contos populares» ou Märchen são narrativas regionais, mais específicas, mais restritas, com autores reconhecidos?[6] Não necessariamente, por certo. Alguns autores salientaram mesmo o facto de a própria mitologia consistir em histórias e de toda a história alguma vez contada ter necessariamente um autor individual ou colectivo (Rose, 1935). No caso dos Märchen reunidos pelos Grimm, poderíamos evocar até o facto de estarem associados à Europa central e do norte. Os próprios Grimm indicam variantes associadas a vários países europeus nos comentários que tecem a cada conto registado e inventariado. Mas, apesar de em vários casos conhecermos o nome de quem o transmitiu aos Grimm, quem seriam de facto os seus autores? Além disso, também não é líquido que as narrativas que constituem o corpus «grimmiano» se restrinjam apenas à Alemanha e restante Europa central e setentrional. Como nota H. J. Rose, as influências a que o território ocupado pela Alemanha esteve sujeito são variadas (Rose, 1935; Bermejo Barrera, 1994: 11) e F. Ribeiro de Medeiros realça, a propósito do corpus de contos populares ou tradicionais que se encontram em Portugal, que «grande parte dos contos tradicionais portugueses são versões locais (regionais) de contos europeus que, por sua vez, se inscrevem numa esfera mais vasta, de contornos transcontinentais» (Medeiros, 2003: 54). Há ainda que juntar a estas reflexões a multiplicação de conceitos ou designações implicadas, como «lenda», «saga» e «fábula». O que distingue umas das outras? O que é específico ou exclusivo de cada uma delas? O que deve ser considerado o quê?

Uma proposta a considerar é a que reconhece que tanto os mitos, como as sagas, as lendas e os Märchen contêm funções e elementos comuns, tais como o carácter explicativo e o gosto pelo sobrenatural. Ainda assim, para muitos há diferenças fundamentais que devem ser consideradas. O mito, por exemplo, caracteriza-se por narrar histórias relativas a deuses, heróis e seres divinos que são objecto de culto; enquanto a saga se centra sobretudo em personagens ligadas entre si por laços familiares e de sangue e a lenda parece ter um núcleo essencialmente histórico (Burkert, 1991: 17)[7]. Já os contos tratam de personagens totalmente imaginárias. Mas estas estão longe de serem propostas suficientes e consensuais entre os cientistas sociais (Rose, 1935; Bermejo Barrera, 1994: 43-44). Para exemplificar a graduação do problema, basta trazer à colação o conto indexado com o número 3 na edição dos Grimm, «A Filha de Maria» (Marienkind), que põe em causa esta classificação. Assim, e.g. e neste contexto, não é Maria o equivalente a uma divindade? Do mesmo modo, como nota Burkert, se o mito apenas diz respeito a divindades, não fica Édipo excluído da mitologia grega? (Burkert, 1979: 22). As intersemânticas e intertextualidades são muitas e variadas e, como notou M. P. Nilsson, «Se se estudar sistematicamente o mundo do conto, ver-se-á que este se baseia nas mesmas representações primitivas que encontraram expressão na religião.» (Nilsson, 1911). Com efeito, já os Grimm haviam proposto no século XIX que os Märchen seriam como que vestígios de antigos mitos[8].

Na primeira metade do século XX, o conhecido investigador V. Propp mostrou ter consciência do problema, como testemunha a seguinte afirmação, aliás bem marcada pela ideologia a que estava vinculado: «O conto é um dos objectos mais difíceis da indagação científica. No processo de desagregação da ciência burguesa que leva à formação de um número infinito de disciplinas isoladas entre si, o conto é estudado pelos arqueólogos, pelos orientalistas de várias tendências, pelos etnógrafos, pelos historiadores da religião, pelos sociólogos, pelos historiadores da literatura, etc., e cada uma destas disciplinas vê apenas um aspecto da matéria e não está em posição de ver os outros» (Propp, [s.d.]: 29).

Uma concepção sistematizada da questão, eventualmente equilibrada, sem demérito ou desconsideração pelas várias Escolas que se têm dedicado à problemática a partir das mais variadas perspectivas, é a proposta por W. Burkert: «Um mito pode ser contado como um conto (Märchen), no entanto, diferencia-se dele pelo facto de, normalmente, não ser contado por si mesmo e já não significar nada, sobretudo, para as crianças» (Burkert, 1991: 17; e Burkert, 1979: 1-34; Rocha Pereira, 2005: 9-17). Sendo que, como nota ainda M. H. da Rocha Pereira, «no mito reflecte-se a polifacetada variedade da experiência humana, não redutível a um modelo único» (Rocha Pereira, 2005: 17). Se compararmos, porém, estas propostas com a que F. Vaz da Silva faz para o conto tradicional, as dúvidas acerca da distinção persistem: «Os contos tradicionais ditos maravilhosos, ou de fadas, são narrativas que descrevem as tribulações da alma humana como quem fala de outra coisa. Dirigem-se às preocupações dos seus auditores e leitores em linguagem figurada, aludem aos interesses das pessoas como quem conta fantasias. Por isso perduram no tempo e adaptam-se incessantemente a novas condições: das tradições orais de antanho, os contos passaram para a literatura, os filmes e a Internet.» (Vaz da Silva, 2011: 9; cf. Vaz da Silva, 2002).

A propósito de uma comparação circunstancial entre o mito de Édipo e o conto da Branca de Neve, refere V. Jabouille: «É como a história da Branca de Neve. E é intencionalmente que refiro a história da Branca de Neve, porque o conto popular tem uma estrutura idêntica à do mito e as semelhanças são evidentes neste caso concreto. Édipo é abandonado – como a Branca de Neve, repito, que também devia ser morta –, mas não morre...» (Jabouille, 1993: 20). Na verdade, as associações que podemos encontrar na bibliografia de Jabouille vão bem mais além. Ao referir-se a um simpósio que em 1979 decorreu em Córdova, e que reuniu aqueles a quem o autor chama de «homens da “ciência e do imaginário”», nota Jabouille que «o elemento de aproximação foi o mito ou, numa perspectiva mais ampla, o simbolismo ou o imaginário, materializado por aquele conjunto de imagens e de associações imaginárias que são património de todos nós e através dos quais podemos construir, podemos trabalhar e inventar.» (Jabouille, 1993: 19). Ora, cremos poder dizer que o mesmo tipo de reflexão pode ser feito a propósito do conto reconhecido como Märchen, o que, uma vez mais, só complica o problema e o mantém longe de ser categorizado e definido de uma forma clara e inequívoca.

Uma solução seria considerar como mito apenas as narrativas relacionadas com origens, enquanto todas as restantes seriam categorizadas de outra forma (e.g. Carreira, 1994; Mardones, 2005: 37, 40-43; Burkert, 1979: 22-23; Burkert, 1991: 17-18). Mas se assim for, como compreender aquelas que têm sido entendidas como mitos soteriológicos, culturais, etiológicos, naturalistas, morais e escatológicos (Jabouille, 1994: 39), cujo corpo e sentido podem não estar necessariamente associados a questões genesíacas, cosmogónicas ou «antropogónicas»?

Com efeito, o problema em causa é bem mais complexo e é dessa polissemia e complexidade que pretendemos dar nota, com algumas reflexões suplementares sem que, contudo, seja nossa intenção resolver a problemática com tão pequena dissertação.

Afinal, o que distingue um mito de um Märchen? A questão não é fácil. E não cremos estar sequer em condições de a resolver de forma simples. Para condensar ainda mais a problemática, trazemos à colação precisamente a questão dos temas tratados nos mitos. Muitos desses mitemas podem ser encontrados nos Märchen coligidos pelos Grimm, verificando-se afinidades entre uns e outros que não facilitam a distinção. Antes pelo contrário. Como é evidente, não nos parece possível levar avante este tipo de análise sem que tenhamos presente a forma como o estruturalismo e, em particular, V. Propp trataram a questão[9]. Em Morfologija Skazky (Morfologia do Conto), obra publicada em Leninegrado em 1928, o formalista propôs-se a analisar a estrutura formal de um determinado tipo de contos populares, que integravam o chamado folclore russo. O objectivo principal de Propp foi procurar um esquema de tipo funcional que lhe permitisse deduzir a estrutura formal abstracta do conto maravilhoso. Propp acreditava que, uma vez definida essa estrutura formal, todos os contos poderiam ser explicados. E as suas teorias, ainda que não absolutamente aceites ou isentas de crítica, foram reconhecidas por vários investigadores (Csapo, 2005: 190-201; Zipes, 1994).

Na verdade, esta metodologia acabou por se revelar semelhante à utilizada pelos mitólogos estruturalistas em geral para analisar os mitos[10]. Naturalmente, na elaboração do sistema analítico de Propp, a psicanálise e as formulações de Freud e da Escola de Viena em torno da mitologia foram igualmente significativas (Abreu, 2005; Bettelheim, 1985). Com base nos pressupostos definidos por Propp na primeira metade do século XX, vários investigadores passaram a categorizar os temas encontrados nos contos e a classificar de forma mais eficaz as inúmeras variantes de um mesmo tema. A. Aarne e S. Thompson, e.g., elaboraram, em períodos diferentes, um catálogo em que estas narrativas são classificadas de acordo com o predomínio de um ou outro elemento ou motivo, como um objecto mágico, uma ajuda sobrenatural, um adversário sobre-humano ou uma personagem mágica[11]. Consideramos que é precisamente neste aspecto que podemos tecer algumas considerações acerca da proximidade do mito, em particular do mito grego que é a nossa área de análise, e os Märchen, designadamente os coligidos pelos Irmãos Grimm. Não é nossa pretensão fazer classificações ou estabelecer associações de tipo categorial, referindo que determinado tema ou motivo mitológico equivalem, e.g., ao motivo maravilhoso do «dragão de sete cabeças» (B.11.2.3.1), do «homem-urso» (B.29.7) ou ao da «pele mágica dos animais» (D.1025), apenas para citar alguns casos (apud Medeiros, 2003: 56). Apesar de interessante, e eventualmente frutífera, essa seria uma tarefa épica que de momento está fora do nosso âmbito de estudo. Interessa-nos tão-somente estabelecer algumas comparações, algumas já detectadas por Anderson outras não, e chamar a atenção para alguns tópicos paralelos e fenomenologia comum a mitos e a Märchen, que justificam a complexidade epistemológica que temos vindo a confirmar.

Assim, consideremos, por exemplo, o motivo geral da metamorfose. Bastaria recorrer ao poema homónimo de Ovídio, para recolhermos um número considerável de exemplos da mitologia, da grega em particular, em que a metamorfose se revela o assunto central. Assim acontece com os casos de Dafne (1.452-567), Io (1.625-723), Calisto (2.401-530), Corónis (2.542-632), Narciso (3.339-510), Aracne (6.1-145), Níobe (6.146-312), Tereu, Procne e Filomela (6.412-674), Ciparisso (10.86-142) ou Jacinto (10.162-219). O destino de todas estas personagens, aparentemente míticas, é transformar-se em alguma outra coisa, animal ou inanimada, que não a forma humana. É evidente que cada um dos mitos referidos tem uma explicação e um sentido que dependem, em grande parte, do seu contexto geográfico, histórico e literário, que aqui dispensamos de referir. Mas nem sempre existe uma relação directa de causa/efeito, etiológica, nestas narrativas. Assim, se as metamorfoses de Dafne, Filomela, Narciso ou Ciparisso explicam a origem do loureiro, do rouxinol, do narciso e do cipreste, a de Calisto ou a de Io, por exemplo, não explicam a dos ursos ou a das vacas. Estas têm, portanto, outra função, que deve ser analisada no seu contexto. O mesmo deve ser feito com os Märchen em que o tema da metamorfose está igualmente presente sem que a etiologia seja o seu primeiro sentido, como em «O Rei dos Sapos ou Henrique-de-Ferro» (nº 1, Der Froschkönig oder der eiserne Heinrich), «Os Sete Corvos» (nº 25, Die sieben Raben) e «Branquinha de Neve e Rubra Rosa» (nº 161, Schneeweisschen und Rosenrot). Há, contudo, uma inegável coincidência temática entre umas e outras narrativas.

Outros temas populares na mitologia clássica, como o incesto ou o filicídio, estão igualmente presentes nos contos de Grimm, tendo mesmo sido, como assinalámos, objecto de reformulação e eventual censura aquando da sua recolha, por se considerarem inadequados ao público infantil radicado na burguesia oitocentista. Mas nem tudo foi expurgado (Tatar, 1987; idem, 1999; Zipes, 2000). Seja como for, se o incesto dá consistência aos mitos de Édipo, Pelopeia e Harpálice, para citar apenas alguns exemplos, o filicídio justifica grande parte da celebridade do mito de Medeia[12]. Ora é pois o incesto e o filicídio que se insinuam no conto «Os Doze Irmãos» (nº 9, Die zwölf Brüder), enquanto o conto «A Menina sem Mãos» (nº 31, Das Mädchen ohne Hände) revisita igualmente o problema da relação amorosa entre um pai e uma filha, em que a violência assume contornos que permitem recordar a narrativa de Filomela e Procne[13]. A demanda do herói, outro motivo estrutural dos «contos de fadas» e que se reconhece no «Conto do Rapaz que partiu para aprender a ter medo» (nº 4, Märchen von einem, der auszog, das Fürchten zu lernen), constitui um dos tópicos que dão sentido a ciclos mitológicos como os de Jasão, Ulisses, Héracles ou Teseu. O mesmo tipo de raciocínio pode ser feito a propósito de «O alfaiatinho valente» (nº 20, Das tapfere Schneiderlein), cujo enredo gira em torno do eterno tópico da astúcia do pequeno contra a força do grande e que se reconhece, por exemplo, na narrativa homérica de Ulisses e o ciclope e, em contexto bíblico, na de David e Golias (Od. 9.187-566; 1Sm 17,12-58). Variante desse conto é «O gigante e o alfaiate» (nº 183, Der Riese und der Schneider), cujo final é, porém, distinto.

O caminho do labirinto, um dos mais célebres motivos da mitologia grega, presente no mito de Teseu e o Minotauro, pode ser reconhecido nos contos «Joãozinho e Margarida» (nº 15, Hänsel und Grethel) e «A casa da floresta» (nº 169, Das Waldhaus). E a cegueira, tema maior dos mitos de Édipo e Tirésias, aparece no conto «Rapúncia» (nº 12, Rapunzel). A velha de que a rainha-madrasta de «Branca de Neve» (nº 53, Schneewittchen) se disfarça recorda o estratagema de Deméter na corte de Metanira (Hino Homérico a Deméter 101-280). O motivo da roupa envenenada, que podemos encontrar nos mitos de Dejanira e de Medeia (Sófocles, Traquínias, passim; Eurípides, Medeia 962-1230), está presente no conto «João Fiel» (nº 6, Der treue Johannes). E até mesmo aquele que é talvez o tema mais universalmente reconhecido nos «contos de fadas» – a madrasta (que curiosamente parece não estar presente em versões mais antigas de muitos daqueles que hoje o tratam, visto que, em muitos casos, o papel posteriormente desempenhado pela madrasta seria antes interpretado pela própria mãe; Tatar, 1987: 137-155) – surgia já em vários dos textos do corpus mitológico greco-romano. Assim, tal como a madrasta é co-protagonista de histórias como as de «Irmãozinho e irmãzinha» (nº 11, Brüderchen und Schwesterchen), da «Gata Borralheira» (nº 21, Aschenputtel), de «A Adivinha» (nº 22, Das Rätsel), de «A Mãe Holle» (nº 24, Frau Holle) e de «Branca de Neve» (nº 53, Schneewittchen), é também figura de proa nos mitos de Fedra, Ino, Creúsa, Penélope e, claro, Hera[14]. De certo modo associado a este tópico está o da figura da mulher ambiciosa, que se reconhece por exemplo no conto «O pescador e a sua mulher» (nº 19, Von dem Fischer un syner Fru [sic, grafia devida à utilização do dialecto da Pomerânia ou Plattdeutsch]), em que a personagem feminina parece recuperar contornos de figuras como Eva e Tanaquil[15]. O motivo das Meras ou Parcas, figuras que na mitologia greco-romana personificavam o destino de cada ser humano, parece ser aquele que subjaze às três fiadeiras que dão título ao conto catalogado com o número 14 (Die drei Spinnerinnen).

Alguns contos não se limitam a incluir «simples» motivos ou mitemas. A sua estrutura parece assentar toda ela em versões greco-romanas de mitos ou narrativas a eles associadas. Assim acontece com «A Filha de Maria» (nº 3, Marienkind). Neste conto, a Virgem Maria aparece a um lenhador pobre e trata de levar consigo para o céu, eventual metáfora da morte da criança, a filha do homem. Tempo depois, e na sequência de uma «vida» uraniana feliz para a rapariga, Maria ausenta-se não sem antes entregar as chaves das treze portas do reino dos céus à criança. Maria recomenda-lhe, porém, que nunca abra a 13ª porta, sob pena de a infelicidade se apoderar da jovem. A criança anui mas não resiste à curiosidade de saber o que se esconde atrás da referida porta celestial. Assim, depois de ter inspeccionado os compartimentos correspondentes às doze primeiras portas, onde descobre cada um dos doze apóstolos, a rapariga decide abrir a porta proibida para deparar com o esplendor da Trindade, acabando contaminada pelo ouro que dela emana. Aterrorizada, a jovem decide fechar a porta mas a Virgem Maria acaba por descobrir o acto de desobediência, expulsando a rapariga para a Terra, onde passa a ter uma vida miserável. Aí, será descoberta por um rei que a desposa e de quem terá três filhos, que serão sucessivamente levados para o céu, pela Virgem, como punição, por não confessar a rebeldia. Por fim, e depois de ser mesmo acusada de bruxaria, a agora rainha acabará por ceder, reconhecer e confessar a desobediência, redimindo a sua falta.

Aquando da sua recolha, os Grimm detectaram nesta narrativa, claramente influenciada pelo maravilhoso do cristianismo popular, as mais variadas temáticas. Mas não referiram outras que reconhecemos serem comuns à mitologia grega. Designadamente, o motivo de Sémele fulminada pelo esplendor de Zeus e, sobretudo, o de Pandora, que acaba por ser comum ao de Eva, da tradição hebreo-judaica[16]. A curiosidade de uma mulher por um objecto/assunto tabu ou proibido é o elo comum a todas essas narrativas. Com efeito, o facto de os casos de Pandora e Eva se associarem aos «momentos» ou etapas da criação poderá legitimar o rótulo de mito a essas narrativas, enquanto o Märchen citado não contém essa ligação para alguns necessária. Há antes um tom moralista-cristão que se pode vislumbrar na frase final do texto grimmiano: «Quem se arrepende dos seus pecados e os confessa é perdoado» (Bairos I, 2012: 65). Mas parece-nos evidente que existe uma comunhão de motivos entre as narrativas citadas, deixando pouco clara a diferença entre um suposto mito e um suposto Märchen. E o mesmo é válido para outros contos, como os de «João Fiel» (nº 6, Der treue Johannes) e de «Barba Azul» (nº 9 Ap., Blaubart[17]).

Também o conto «O lobo e os sete cabritinhos» (nº 5, Der Wolf und die sieben jungen Geisslein), no qual um lobo engole seis cabritos que são salvos de dentro da barriga do animal pela mãe-cabra, que substitui os filhotes por pedras, recupera o tema de Zeus e Crono, narrado por Hesíodo, em que os irmãos do deus do trovão são regurgitados do interior do progenitor e salvos e em que se reconhece igualmente o estratagema da substituição por uma pedra (Hesíodo, Teogonia 481-506). Mas lembra também o mito de Psâmate, a nereide que se uniu a Éaco e deu à luz Foco e que, para vingar a morte do filho, enviou contra os rebanhos de um dos assassinos um lobo, que acabou transformado em pedra (Ovídio, Metamorfoses 11.365-406).

Já o Märchen conhecido como «As três folhas da serpente» (nº 16, Die drei Schlangenblätter) parece recuperar uma antiga narrativa grega, segundo a qual um cretense de nome Poliido fora incumbido de ressuscitar Glauco, um filho de Minos, morto por afogamento num recinto cheio de mel. Segundo esta tradição, Minos, crendo que Poliido seria capaz de devolver Glauco à vida, encerrou-o com o cadáver do príncipe. É então que Poliido vê entrar no compartimento uma serpente que se dirigia para o cadáver. Temendo que o animal devorasse o morto, Poliido tê-la-ia matado. Mas, logo de seguida, apareceu uma segunda serpente que usou uma erva para ressuscitar a primeira. Poliido apoderou-se então da planta, esfregou-a em Glauco e o filho de Minos ressuscitou (Apolodoro, Biblioteca 3.3). O conteúdo ou mitema de base desta narrativa é praticamente coincidente com o que lemos no conto registado pelos Grimm, no qual um homem devolve a vida à esposa depois de assistir à forma como uma serpente ressuscita uma outra que entrara no túmulo da mulher. Não será, por isso mesmo, de excluir a possibilidade de existir uma fonte comum algures no seu processo de composição destas narrativas. Aliás, os próprios Grimm se aperceberam da presença do tema[18].

No conto «Rapúncia» (nº 12, Rapunzel), é o tema de Dánae, enquanto jovem encerrada num compartimento, que se percebe (Apolodoro, Biblioteca 2.4) e em «A Adivinha» (nº 22, Das Rätsel) não podemos deixar de recordar o mito de Édipo e a Esfinge (Apolodoro, Biblioteca 3.5.8). O certame evocado neste mesmo conto, como aquele que se pode ler em «O osso cantante» (nº 28, Der singende Knochen), evoca o que conhecemos do mito de Hipodamia (Píndaro, Olímpica 1.67-90) ou até mesmo nos de Helena e Penélope, enquanto nubentes disputadas por pretendentes. A presença do javali no início do conto «O osso cantante» recorda ainda um dos trabalhos de Héracles bem como o mito de Meleagro (Apolodoro, Biblioteca 5.4; Ilíada 9.529-549).

Um único conto pode incluir vários motivos comuns aos de narrativas mitológicas ou associadas a mitos greco-romanos. Assim, em «O Diabo com os três cabelos dourados» (nº 29, Der Teufel mit den drei goldenen Haaren), encontramos os temas da criança enjeitada, como Édipo ou Rómulo e Remo (Sófocles, Rei Édipo; Apolodoro, Biblioteca 3.5.7; Plutarco, Rómulo 2-4); de Belerofonte, portador da mensagem maldita (Ilíada 6.155-226); do cumprimento do destino, como aquele que se reconhece na narrativa de Édipo (Sófocles, Rei Édipo); de Caronte, o barqueiro do mundo dos mortos (Vergílio, Eneida 6.299-310); e toda uma estrutura que se assemelha a uma viagem iniciática em que a catábase infernal assume o papel central.

Como se verifica, temáticas e estruturas interrelacionam-se, além de se multiplicarem dentro de cada um dos géneros per se[19], e não estão simplesmente associadas a um conceito ou a outro. Algumas foram mesmo reconhecidas logo pelos Grimm, em comentários e apêndices, como podemos verificar na recente reedição da obra.

Assim, o que parece ser mito num contexto é aparentemente conto num outro e vice-versa. Como distinguir estes elementos? Através da função cultural, social ou religiosa? Da estrutura? Do significado ou do sentido? Da originalidade? Não é demais salientar que algum do material que integra o corpus literário greco-romano é considerado por vários investigadores como narrativas mais próximas dos Märchen do que dos mitos. Não é, por isso, impossível que haja eventuais abusos na forma como alguns desses textos ou narrativas são classificados e tratados. O referido estudo de G. Anderson mostra-o bem, destacando, em particular, até os processos de transmissão e o papel dos agentes da mesma, que não estariam muito longe dos que se reconhecem posteriormente (cf. Zipes, 1994). Já o referimos a propósito das Metamorfoses de Ovídio e no Satyricon, e.g., encontramos narrativas que serão sem dúvida classificadas como Märchen e não como mitos (e.g. Petrónio, Satyricon 62) e uma das mais célebres histórias que o Mundo Antigo nos legou, «Eros e Psique», enquadra-se mais no âmbito do conto maravilhoso, com todas as características que lhes reconhecemos, do que no do mito. Até mesmo a forma como é exposto e o lugar que ocupa na narrativa de Apuleio que o reproduz apontam para tal (Teixeira, 2000: 67-83). O que não obsta a que, muitas vezes, se lhe refiram como «mito». Com efeito, aí trata-se de divindades, designadamente os deuses do amor, Eros e Afrodite. Assim sendo, não estaremos também, por isso mesmo, perante um mito? Por outro lado, Propp estudou a narrativa de Édipo, tida por muitos como indubitavelmente um mito (e.g. Fialho, 2010: 9-13; Burkert, 1979: 22), e analisou-a à luz da metodologia que utilizou para o conto, como se de um se tratasse, confirmando esta intersemântica (Propp, [s.d.]: 115-175; idem, 2003). A problemática é por conseguinte bem complexa. Como salientámos, talvez na Antiguidade mythos fosse algo bem mais abrangente. Recordamos que as fábulas de Esopo registam o termo sistematicamente[20].

Não podemos senão concluir com G. Anderson que «the attempts to distinguish myth from folktale in current usage are a methodological nightmare» (Andersen, 2006: 68) e que o debate continua e que a análise se mantém em aberto.

 

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Notas

[1] E daí também o facto de, no imaginário popular, os contos maravilhosos serem com frequência associados à imagética medieval, o que, como se pode concluir pela nossa reflexão, não tem uma fundamentação necessariamente histórica; cf. Zipes, 2006: 53.

[2] Bairos I, 2012: 17. Há, todavia, que levar em conta que o resultado a que os Grimm chegaram não foi propriamente o idealizado de acordo com a ideologia romântica. Na verdade, alguns dos contos tidos como «populares» ou «recolhidos» entre os Alemães faziam já parte de outros corpora, designadamente os italianos e franceses, de que a própria obra de Perrault é também sintomática.

[3] Há que ter em conta que nesse considerável corpus algumas narrativas são consideradas por alguns mais próximas dos Märchen do que de mitos. Tome-se como exemplo Ovídio e as suas Metamorfoses. Ver ainda os estudos aprofundados, e abundantes em exemplos, de Calhoun, 1939, Carpenter, 1958, e Ruebel, 1991.

[4] Sobre as fontes destes temas, ver os passos citados em Anderson, 2000; sobre as respectivas versões dos Grimm, ver edição portuguesa citada, «A Gata Borralheira» (nº 21, Aschenputtel); «Branca de Neve» (nº 53, Schneewittchen); «A Cotovia Cantante e Saltitante» (nº 88, Das singende springende Löweneckerchen); «Rapúncia» (nº 12, Rapunzel); «A Rosa Espinhosa» (nº 50, Dornröschen).

[5] Lévi-Strauss, 1958: 147-180; cf. Durand, 1989 e Csapo, 2005: 229-234, que estabelece a comparação entre o conto da «Gata Borralheira» ou «Cinderela» e o mito de Cárila, tal como narrado por Plutarco, Moralia 293B-F, enquanto exemplo desta oposição e definição por «auto-exclusão». Este mito, por sua vez, tem semelhanças com o conto de H. C. Andersen, «A menina dos fósforos» (1845).

[6] Cf. Mardones, 2005: 42. Como é evidente, excluímos outro tipo de contos, como «A Sereiazinha» de Andersen (1837), em que, apesar da eventual «origem popular», existe um autor com um texto definidos.

[7] A relação entre mito e lenda coloca-se de forma pertinente, por exemplo, no caso da cultura romana. Sobre esta problemática ver Rodrigues, 2005.

[8] Stephens, 2000: 332; Zipes, 1994; Zipes, 2006: 33, 46. É ainda interessante ler a opinião alternativa de Halliday sobre a questão da precedência de mito em relação a conto, 1933: 2: «the comparative study of popular tales may be of special service by indicating some of the material out of which the Greek stories were made.» Pinheiro, 2007:19, propõe também definições para estes conceitos, considerando que o conto popular «representa um “aburguesamento” do mito… uma forma empobrecida do mito», enquanto o conto de fadas «não está localizado temporalmente nem espacialmente». Estas são propostas pertinentes mas também não consensuais ou suficientemente abrangentes, pois, e.g., apesar de vários mitos serem localizados espacial e temporalmente, isso não significa que essas categorias contenham de facto uma dimensão geográfica e histórica viáveis. Sobre esta problemática ver Burkert, 1979: 1-58.

[9] Para uma síntese das posições das principais Escolas epistemológicas do mito, ver e.g. Bauzá, 2005 e Csapo, 2005.

[10] Há contudo um problema que neste ponto deve ser assinalado: qual a relação entre o conto e a História? É dessa problemática que Propp trata em As transformações dos contos maravilhosos e em As raízes históricas do conto, concluindo que do conto nada podemos definir acerca do povo ou da sociedade que o criou, uma vez que, dada a sua elevada capacidade de sobrevivência, o conto pode conservar vários elementos provenientes de etapas anteriores ao mesmo tempo que pode também manter-se incontaminado de quaisquer elementos da vida real, conservando assim todos os seus elementos eventualmente originais. Por conseguinte, para Propp, o conto mantém-se «à margem da História», mas com uma origem histórica. Cf. Bermejo Barrera, 1994: 48-49. Considera Bermejo Barrera, porém, que a diferença essencial entre mito e conto maravilhoso é de natureza sociológica, funcional, e não formal. Pelo que podem ser analisados recorrendo ao mesmo método, Bermejo Barrera, 1994: 52. Cf. Burkert, 1979: 22-23, que destaca o uso dado à narrativa como um dos elementos essenciais para a definir como mito.

[11] Apud Medeiros, 2003: 55-57; ver ainda Aarne e Thompson, 1995 [original de Aarne, 1910, aumentado por Thompson]; Thompson, 1955.

[12] Sófocles, Rei Édipo; Higino, Fábulas 88; 206; 253; Eurípides, Medeia. Sobre estas problemáticas, ver Tatar, 1987.

[13] Ovídio, Metamorfoses 6.412-674; sobre este mito grego em particular, ver Halliday, 1933: 85-112; cf. ainda o tema bíblico de Jefté em Jz 11,34-40. Sobre o conto na Bíblia, ver Gunkel, 1917; idem, 1964.

[14] A presença deste tema foi mesmo alvo de um estudo específico: Watson, 1995, em part. pp. 20-49 e bibliografia e fontes aí citadas.

[15] Motivos reconhecidos pelos próprios Grimm, Bairos I, 2012: 186. Estas problemáticas podem ser igualmente colocadas ao corpus bíblico, como se atesta por Gunkel, 1917; idem, 1964.

[16] Cf. para Sémele, Eurípides, Bacantes 1-8; para Pandora, Hesíodo, Teogonia 570ss; Erga 90-105; ver ainda Vernant, 2006; cf. Gn 2,18-3,24. O exercício contrário é igualmente passível de ser feito com o mito de Deméter, por exemplo. No Hino Homérico a Deméter é possível detectar elementos etiológicos, outros que se relacionam com o ritual e outros ainda que o aproximam do conto maravilhoso. Alguns consideram-no um mito na forma de conto tradicional aplicado. Agradecemos à nossa colega Doutora Luísa de Nazaré Ferreira o facto de nos ter alertado para este processo.

[17] Como refere Bairos III, 2012a: 524 n. 51, este conto foi omitido na edição de 1819, devido à sua origem francesa e à influência do conto La barbe bleue de Perrault. Alguns dos contos de Grimm, porém, como «A Gata Borralheira» e «A Bela Adormecida», figuram igualmente nas edições de Perrault, ainda que nem sempre com a mesma designação.

[18] Bairos I, 2012: 165, onde erradamente se lê Polnido e não Poliido.

[19] Como mostra, e.g., Vaz da Silva, 2011,que trata as muitas variantes de um mesmo conto.

[20] Não esqueçamos que os Grimm incluem a fábula na categoria dos Märchen, Bairos III, 2012a: 451-512.