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Revista Diacrítica

Print version ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

Máscara e Educação em Jean-Jacques Rousseau

Mask and education in Jean-Jacques Rousseau

Custódia Martins*

*Universidade do Minho, Instituto de Educação, Braga, Portugal

custodiam@ie.uminho.pt

 

RESUMO

De acordo com Rousseau, o homem político, o homem que vive em sociedade, traz consigo uma máscara de artificialidade que tapa e se sobrepõe à sua verdadeira natureza. A tarefa da educação consiste em resgatar do olvido da memória os princípios essenciais da existência humana, que a sociedade, pelas suas muitas contingências, nos condiciona a esquecer. Através dos seus escritos autobiográficos, Rosseau esforça-se por se apresentar a si próprio como o protótipo do homem que conseguiu preservar a memória da sua natureza própria. Por causa disso, foi amiúde criticado e mal-amado pelos seus contemporâneos. Apesar disso, esforçou-se com paixão por se apresentar perante eles e a posteridade tal qual se percebia a si próprio, sem malícia ou artifício, nada omitindo ou esquecendo.

Palavras-chave: Autobiografia, Homem, Máscara, Educação, Artificialidade, Natureza.

 

ABSTRACT

According to Rousseau, anyone living in society, the political man, always carries a mask of artificiality that covers and overrides his or her true nature. The task of education is to salvage from the oblivion of memory the essential principles of human existence, which society, by its many contingencies, compels one to forget. Through his auto-biographical writings, Rousseau labors to present himself as the prototype of a man who was able to preserve his true nature. Because of this, Rousseau was often scorned and reproached by his contemporaries. Nevertheless, he ardently strove to present himself before them and posterity exactly as he perceived himself to be, without any measure of cunning or artifice, omitting and forgetting nothing.

Keywords: Auto-Biography, Men, Mask, Education, Artificiality, Nature.

 

A vida de Jean-Jacques Rousseau está representada por quatro grandes períodos. O primeiro, dito “precoce”, ocorre entre 1728 a 1748. O segundo, “nostálgico”, ocorre entre 1749 a 1756. O terceiro, “de esperança”, entre 1756 e 1762. O quarto, “de desencanto”, entre 1763 e 1778. É sobre este último período que aqui nos iremos debruçar. O período abarca os escritos autobiográficos mais pertinentes do autor, a saber, Confissões (1770), Rousseau juiz de Jean Jacques (1776)e Devaneios de um Caminhante Solitário (1778). Caracteriza-se pelo reconhecimento e assunção, por parte de Rousseau, do carácter estruturalmente totalitário da sociedade. Na sociedade, o homem encontra-se preso e circunscrito à figura do cidadão, enredado por um conjunto de máscaras que mais não fazem do que remeter a condição humana ao esquecimento. A máscara é necessária à artificialidade da vida em sociedade, enquanto modo específico que o homem tem de se representar no seu seio. A memória constitui, porém, o antídoto para a máscara, a qual está por isso condenada a ser banida do tempo histórico. É pela recordação que se recuperam os princípios fundamentais da condição humana, mesmo que apenas a título de simples hipótese. Se à memória cabe o papel de resgatar e recuperar esses princípios, é à educação que cabe atualizar esse tempo originário redescoberto pela memória. É assim que se percebe o estatuto primordial que Rousseau empresta à memória. Diz o autor nas Confissões:

Custa-me não só explicar as ideias, como até recebê-las. Estudei os homens e creio-me um observador razoável: contudo, nada sei ver do que vejo; só vejo bem aquilo de que me lembro, e só nas minhas recordações tenho espírito. Não sinto nada, não penetro em nada de quanto se diz, de quanto se faz, de quanto se passa na minha presença. O sinal exterior é tudo que me impressiona. Em seguida, porém, tudo isso me vem à memória: recordo-me do lugar, do tempo de tom, do olhar, do gesto, da circunstância; nada me escapa. Acho então, pelo que se fez ou se disse, o que se pensou, e raramente me engano. (1988: 121-122)

A resposta à pergunta “quem foi Rousseau?” revela-se mais na sua vida do que em qualquer edificação teórica levada a cabo, quer pelos seus contemporâneos, quer por alguns dos seus estudiosos. É pelo seu autorretrato, considerado a partir das leituras dos textos autobiográficos, em que o recurso à memória é fundamental, que devemos procurar uma resposta a essa pergunta. Afirma Rousseau: “Garanto a verdade dos factos que vos serão narrados, eles realmente aconteceram com o autor do texto que transcreverei. (…) eu vo-lo ofereço para que o examineis” (1999: 348). Mas um gesto interrogativo suplementar deve ser acrescentado ao da interpretação do texto rousseauniano. Conhecemos o autor pela obra ou conhecemos a obra pelo autor? Christopher Kelly apresenta a sua posição, que diverge da de Starobinski, ao afirmar: “Ele [Starobinsly] interpreta o pensamento de Rousseau à luz da sua personalidade tal como revelada nos seus escritos, ao passo que a presente leitura interpreta a apresentação da sua personalidade à luz do seu pensamento” (2001: 308). Mas em nosso entender, nem o autor é a mera expressão do seu génio literário, nem a obra está totalmente refém da personalidade do autor. Num primeiro momento deve-se considerar a vida e a personalidade de quem escreve. Num segundo momento, porém, deve-se considerar a obra enquanto detentora de uma dimensão mais alargada. Ela abandona a sua natureza particular, facultada pela biografia, e passa a ter um alcance necessário e generalista.

Cassirer afirma, relativamente à génese da obra de Rousseau:

(…) as ideias fundamentais de Rousseau, embora brotem diretamente de sua natureza e de sua peculiaridade, não permanecem fechadas, nem presas nessa peculiaridade individual – que elas em sua maturidade e perfeição apresentam-nos uma problemática objetiva válida não somente para ele próprio ou a sua época, mas que contém em toda a sua acuidade e determinação uma necessidade interna rigorosamente objetiva [que] emerge de maneira muito gradual do solo originário individual da natureza de Rousseau, e ela deve ser de certo modo arrancada desse solo originário, deve ser conquistada passo a passo. (1997: 42)

Essa “necessidade interna” de que aqui fala Cassirer está bem patente, por exemplo, no Discurso sobre as Ciências e as Artes (1750). O texto inaugura um período polémico na vida do autor e apresenta-se como uma resposta para a pergunta colocada a concurso pela Academia de Dijon, sobre se o restabelecimento das ciências e das artes contribui para aperfeiçoar os costumes. Logo no início é-nos apresentado um conjunto de premissas que servirão de base e guiarão toda a obra de Rousseau:

É um espetáculo grande e belo ver o homem sair a bem dizer do nada por seus próprios esforços; dissipar, pelas luzes da sua razão, as trevas em que o envolvera a natureza; elevar-se acima de si mesmo; alçar-se pelo espírito até às regiões celestes; percorrer a passos de gigante, assim como o Sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para aí estudar o homem e conhecer-lhe a natureza, os deveres e o fim. (2002: 11)

Qual a natureza do Homem? Quem é o Homem? São naturalmente duas questões centrais no pensamento do autor. E é a partir delas que uma terceira surge: Qual a condição originária do Homem? Aquilo que distingue estas questões, mais do que a resposta específica que cada uma delas exige, é o seu significado epistemológico global na obra de Rousseau. Assim, as duas primeiras questões são questões prévias: necessitam de ser colocadas antes de qualquer reconhecimento factual, ou seja, são questões que assumem um carácter metódico. A terceira questão possui um carácter interpelativo na medida em que é de natureza factual, entenda-se, histórica. Será a partir dela que se desencadeará todo o processo reflexivo que subsequentemente permitirá responder às duas questões iniciais. Veja-se o que Rousseau afirma no prefácio ao Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755):

De que se trata, então, precisamente neste Discurso? De apontar, no progresso das coisas, o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei; de explicar por qual encadeamento de prodígios o forte pôde resolver-se a servir o fraco, e o povo a comprar uma tranquilidade imaginária pelo preço de uma felicidade real. (2002: 160)

Saber qual o momento em que a condição humana degenerou, aquele em que decaiu de uma condição originária para outra artificial, é o tema central no pensamento de Rousseau. O caminho escolhido pelo autor para obter uma resposta a essa pergunta é duplo. Não sendo um caminho paradoxal, é um caminho com sentidos paralelos: o sentido do particular e o sentido do genérico. Isso é particularmente evidente quando Rousseau diz: “É do homem que devo falar, e a questão que examino indica-me que vou falar a homens (…). Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade (…)” (2002: 159). Repare-se que Rousseau começa por dizer que é do homem e é para homens que vai falar, por isso deve ser feita uma interpretação literal dos termos. Ou seja, consideramos que Rousseau, através da interpelação que expressamente faz aos seus leitores, cria um jogo dialético entre o “eu” e o “outro”. É na dinâmica desse jogo que Rousseau constrói a sua teoria. Uma leitura sincrónica da obra, que respeite a cronologia de composição dos textos, fez com que alguns estudiosos, como refere Gay, entendessem “(…) ter encontrado a essência de Rousseau num ou noutro de seus trabalhos ou em algum de seus cintilantes epigramas” (1997: 8). E sublinha, pondo em relevo o alcance das suas palavras:

Pior, um número de estudiosos de Rousseau inferiu o suposto carácter confuso ou autocontraditório de sua obra a partir do inegável facto de que os seus escritos inspiravam movimentos amplamente divergentes, descurando a notória propensão de discípulos a distorcer a filosofia de seu mestre pela seleção daquilo de que necessitam. Muitos pensadores têm sofrido nas mãos de comentadores, mas poucos têm tido de suportar tanto quanto Rousseau. (Ibidem)

No entanto, uma leitura diacrónica possibilita encontrar um princípio subjacente e unificador a toda a obra de Rousseau: o próprio Rousseau. A sua própria pessoa é o elemento que congrega o processo vivencial que torna possível a Rousseau apresentar-se, quer como o modelo, quer, ao mesmo tempo, como o “último homem” a tentar recuperar a sua condição originária. A este propósito, diz Baczko que “(…) na sua imagem do mundo, Rousseau passa (…) muito facilmente dos fenómenos particulares às características globais” (1974: 16). Assim, se a leitura da obra for feita, de modo sequencial, dos últimos escritos para os primeiros, o que encontramos é o “modelo vivo” daquele que tenta responder à questão inicial, a saber: qual a condição originária do Homem? Partilhamos da perspectiva de Kelly quando este escreve:

A sua perspetiva relativa à necessidade de se afirmar enquanto um modelo de comportamento na vida pública explica numerosos dos seus atos públicos tais como o abandonar Paris, a recusa em aceitar pensões reais e posições honorárias lucrativas e outros conspícuos exemplos de comportamentos que enfatizam o seu não-interesse e independência. (…) Este esforço também explica a sua crescente vontade de identificar a sua doutrina com ele próprio. (2001: 311)

Por isso, as Confissões,mais de que uma apresentação de Rousseau para um julgamento perante Deus e perante os homens, encerram em si aquela temática que perpassa por todo o pensamento do autor, a relação entre o estudo do indivíduo e o estudo da humanidade. Entende nesse sentido Gauthier ser esta uma obra de estudo normativo, pois é “(…) o primeiro trabalho em que um homem verdadeiro à natureza é representado, e assim fornece o modelo com o qual todas as outras representações dos seres humanos podem ser comparadas” (2006: 108).

A postura crítica de Rousseau evidencia-se, quer pelo estilo literário, quer pelo tipo de relação que pretende manter com os seus leitores. Os leitores são os seus interlocutores, com os quais estabelece um permanece jogo: ele pergunta, problematiza, objeta. Rousseau quer comprometer os homens e fá-lo na pessoa dos seus leitores. Sobre este aspeto, salienta Baczko: “Que os seus leitores fossem do seu tempo, ou de mais à frente, das gerações seguintes, é uma relação pessoal muito particular que Jean-Jacques Rousseau acaba por lhes impor a respeito da sua obra e dele próprio” (1974: 283). Que a postura crítica não depende apenas de uma questão de estilo depreende-se das seguintes palavras do autor: “(…) peço aos leitores que deixem meu belo estilo de lado e apenas examinem se raciocinei bem ou mal; pois, finalmente, apenas do fato de um autor se exprimir em bons termos, não vejo como se possa daí concluir que esse autor saiba o que diz” (Rousseau, 2006: 141). Essa postura tenta ir mais além, na medida em que faz uso de uma habilidade tática: a inversão dos acontecimentos. Se o Discurso sobre as Ciências e as Artes e o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens nos apresentam o processo degenerativo do homem natural, por sua vez, é nos textos autobiográficos que Rousseau apresenta a possibilidade do regresso à verdadeira natureza do homem, através da descrição do processo degenerativo do cidadão. A nosso ver, as Confissões revelam esse jogo dialético de forma muito nítida. Veja-se o entendimento de Baczko relativamente a este ponto:

Nas Confissões Jean-Jacques Rousseau faz à vez mais e menos do contar os acontecimentos da sua vida: ele escreve antes e sobretudo a história dos estados da sua alma à medida que tais acontecimentos acontecem, estes sendo para ele as causas ocasionais desses sentimentos e ideias. Com um grau variável de exatidão essa fórmula aplica-se a toda a obra de Jean-Jacques, uma vez que é sempre o mundo apreendido pelo prisma da sua personalidade que ele nos apresenta. As questões as mais gerais e mais abstratas – o lugar do homem no universo e os princípios do governo político, as origens do mal moral e a relação do homem com Deus – Jean-Jacques apresenta-as não apenas como objetos de reflexão, mas também como problemas pessoais, que ele integra na sua vivência. (1974: 283)

Tomando-se a si próprio como exemplo, Rousseau mostra o processo degenerativo do cidadão. Quando decide falar da reforma que operou na sua vida, o seu objetivo é mostrar “(…) aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu. Eu só” (1988: 21). Ideia que repete de forma ostensiva no terceiro diálogo de Rousseau juiz de Jean Jacques:

De onde o pintor e apologista da natureza hoje tão desfigurada e caluniada teria podido tirar seu exemplo? Será que ele não o encontrou no seu próprio coração? Ele descreveu esta natureza tal como a sentia em si mesmo. (…) Numa palavra : foi necessário que um homem se retratasse a si mesmo para nos mostrar o homem natural – e se o autor não tivesse sido tão singular quanto os seus livros, ele jamais os teria escrito. Mas onde existe ainda esse homem da natureza que vive uma vida verdadeiramente humana; que não leva em consideração a opinião dos outros, e que se deixa levar pura e simplesmente pelas suas inclinações e pela sua razão, sem atentar para o que a sociedade e o público aprova ou censura? (…) Se vós não me tendes pintado o vosso J.J, acreditaria que o homem natural não existisse mais, mas a relação marcante daquele que me haveis pintado com o Autor cujos livros li não me deixaria duvidar que um fosse o outro, quando nenhuma outra razão tinha para assim o crer. (1959: 936)

É num diálogo constante entre o “eu” e o “outro”, expresso no seguinte comentário: “Quem quer que sejais, vós a quem o meu destino ou a minha confiança fizeram árbitro deste caderno (…)” (1988:19), que Rousseau coloca em evidência o sentido último das Confissões. Rousseau descrever-se-á tal como é, sem recurso a qualquer máscara, a qualquer tipo de artificialismo, apresentando-se como “(…) o único retrato de homem, pintado exatamente segundo o natural e em toda a sua verdade, que existe e que provavelmente existirá jamais” (Ibidem). É nesta ansia obsessiva de busca pelo original que Rousseau, reconhecendo a dificuldade de edificar tal projeto, sente a necessidade de se manter em constante interação com os seus interlocutores. Por isso afirma:

(…) é preciso que ele me siga em todos os desvarios do meu coração, em todos os escaninhos da minha vida; que nem um só instante me perca de vista, com receio de que, ao encontrar na minha narração a mais pequena lacuna, o menor hiato, não tenha de perguntar a si mesmo: - Que fez ele durante este tempo? – e não tenha que me acusar por eu não querer dizer tudo. (1988: 70)

A exposição pública que Rousseau faz de si é reconhecidamente assumida por ele. Existe como que uma necessidade constante de vigiar as suas palavras: “No projeto que formei de me mostrar inteiramente ao público (…) preciso conservar-me incessantemente debaixo dos seus olhos (…)” (Ibidem). O objeto de escrutínio é articulação e adequação que deve haver entre o plano do dizer e o plano do fazer, entre as palavras e a ação concreta. Nas Confissões Rousseau refere a dificuldade em se ser virtuoso:

Extraí daí esta grande máxima de moral, talvez a única de utilidade prática, que é a de evitar as situações que põem os nossos deveres em oposição com os nossos interesses, e nos revelam o nosso bem no mal dos outros, convencido de que, em tais situações, mesmo que a elas tragamos um sincero amor da virtude, fraquejamos mais cedo ou mais tarde sem dar por isso, e tornamo-nos injustos e maus nas ações, sem deixarmos de ser justos e bons na alma. (1988: 67)

A virtude só é virtude, para Rousseau, se, pela sua prática, estiver de acordo com o dever. Escreve Kelly a propósito da reforma de hábitos e comportamentos que a dada altura Rousseau operou na sua vida:

É à luz desta linha de raciocínio que se deve julgar a reforma pessoal assaz pública de Rousseau, empreendida poucos anos depois da publicação do Primeiro Discurso. Ao longo de todo o relato do lançamento da sua carreira literária nos Livros VIII e IX das Confissões especial atenção é prestada à tentativa de incorporar nas suas atividades públicas os princípios que ele ensina nos seus livros. (2001: 310)

Kelly articula em três pontos o que, em sua opinião, Rousseau pretendia quando escreveu as Confissões. Por um lado, pretendia apresentar a ideia do que significa ser um autor. Acrescentamos nós, um autor de textos autobiográficos. Diz Rousseau: “Sei perfeitamente que o leitor não tem grande necessidade de saber tudo isto, mas eu, eu é que tenho necessidade de lho dizer” (1988: 36). Por outro lado, pretendia afirmar a sua teoria a partir da natureza da sua pessoa e dos seus escritos, de que o homem é naturalmente bom mas as instituições acabam por corrompê-lo. Finalmente, pretendia mostrar como o homem pode ser transformado pela experiência social, e portanto, desnaturado:

Fôsseis vós, vós mesmo, enfim, um dos meus implacáveis inimigos, deixai de o ser com as minhas cinzas, e não leveis a vossa cruel injustiça até ao momento em que nem vós nem eu já seremos vivos, a fim de que, ao menos uma vez, possais prestar a vós próprio a nobre justiça de haverdes sido generoso e bom quando podíeis ser mau e vindicativo. (1988: 19)

Se as Confissões são um texto de aproximação entre o autor e o seu público, a verdade é que Rousseau, ao mesmo tempo, sente urgência em “(…) apresentar ao leitor as (…) desculpas ou as (…) justificações” (1988:70) do que vai relatar. Mas porquê tal necessidade, pois não é a verdade dos factos que será apresentada? É justamente esta espécie de hesitação que confere um carácter por vezes paradoxal aos seus textos. Repare-se porém na justificação apresentada por Rousseau:

Enquanto a nobre imagem da liberdade me exaltava a alma, as de igualdade, de união, de doçura dos costumes comoviam-me até às lágrimas, inspirando-me um vivo desgosto por haver perdido todos estes bens. Em que erro eu me achava. Mas como este erro era natural julgava ver tudo isso na minha pátria, porque a trazia no coração. (1988:150)

É o conceito de “verdade” que aqui está em jogo. Para Rousseau um “erro natural” não pode ser considerado como uma mentira: “Leitores vulgares, perdoai meus paradoxos, é preciso cometê-los quando refletimos; e, digam o que disserem, prefiro ser homem de paradoxos a ser homem de preconceitos” (1999: 91). Daí as desculpas e as justificações que ele sente necessidade de fazer perante os seus leitores serem essencialmente de carácter preventivo. Rousseau apresenta-as na tentativa de alertar os seus leitores para aquilo que possam parecer paradoxos, os quais nunca deverão ser entendidos como mentiras ou como artificialismos. A este respeito, escreve Gauthier:

As Confissões são um retrato que é para ser fiel ao seu objeto – que é para ser verdadeiro a Rousseau. Mas é também um retrato que é para ser executado de modo a ser fiel à natureza. Se somente aquilo que é verdadeiro à natureza pode ser representado de acordo com a natureza, então, para que as duas fidelidades possam ser sustentadas, Rousseau deve ele próprio ser verdadeiro à natureza. E uma vez que Rousseau é diferente, por implicação, os outros homens não são verdadeiros à natureza (…). A verdade única das Confissões depende da verdade única do seu confessor. (2006: 108)

A questão que permanece é a de saber como pode o homem ser fiel à sua natureza. A proposta de Rousseau é a quase prosaica: “Moldam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educação” (1999: 8), o que aponta para uma concepção do processo educativo que podemos designar por “clássica”. A propósito desse carácter “clássico” de Rousseau, diz Casulo:

E Rousseau, em que medida foi ele um clássico? (…) Na realidade, ninguém, antes de Rousseau, tinha entrevisto a recuperação do humano por uma educação natural. Nem o satírico Juvenal e a sua pueris maxima reventia debetur, nem Vitorino de Feltre na pedagogia seguida na sua Casa Giocosa, alguma vez foram tão longe quanto Rousseau. Nenhum deles ousou a radicalidade de, na relação pedagógica e tendo em vista a regeneração do Homem, afirmar o puerocentrismo por sobre o poder social delegado na proeminência do educador. (2009: 24-25)

No Emílio (1761), diz Rousseau a propósito da República de Platão, texto no qual a concepção “clássica” do processo educativo tem origem: “Não é uma obra de política, como pensam os que só julgam os livros pelo título: é o mais belo tratado de educação jamais escrito” (1999: 12). A proposição de Rousseau conjuga uma aproximação mais do que acidental entre os dois autores. A propósito da concepção que Platão tem da educação, e da sua articulação com o político, escutemos Jaeger:

O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do Homem. Que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos vêem a medula da República platónica, não tem outra função senão apresentar-nos a “imagem reflexa ampliada” da alma e da sua estrutura respetiva. E nem é numa atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: a atitude de modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz Sócrates mover todo o Estado. O sentido do Estado, tal qual a sua obra fundamental o revela, não é diferente daquele que podíamos esperar, depois dos diálogos que a precederam, o Protágoras e o Górgias. É, se nos apoiarmos na sua essência superior, a educação. (2001: 751-752)

Rousseau repete o mesmo gesto prático de Platão. Não se limita a pensar o lugar do homem no mundo, pensa sobretudo qual “deve ser” esse lugar. A esse respeito afirma O’Hagan: “(…) o seu pensamento está unificado por um profundo naturalismo, porém, ao mesmo tempo, animado por uma poderosa, criativa tensão entre dois ideais conflituantes de como devemos viver” (2003: xii). O’Hagan caracteriza o naturalismo de Rousseau como um esforço de colocar o homem no seu lugar natural e compreender a sua condição atual “(…) como o resultado de um processo de desenvolvimento em que o ambiente, natural e social, desempenha um papel crucial” (Ibidem). A resposta que formularam depende da ideia de homem que têm. Cada um deles sustentou a ideia de homem num mesmo alicerce, a educação. Mas que educação? Aquela que visa a formação integral do homem, a paideia no sentido grego. Sobre a paideia em Platão, diz Cambi:

Platão fixa em seu pensamento dois tipos de paideia, uma – mais socrática -, ligada à formação da alma individual, outra – mais política -ligada aos papéis sociais dos indivíduos, distintos quanto às qualidades intrínsecas da sua natureza que os destinam a uma ou outra classe social e política. Já neste primeiro modelo de formação, ligado à condição do homem “aprisionado na caverna”, do corpo e da doxa (opinião), sublinha-se o forte acento individual e dramático da paideia, cujo objetivo é o reconhecimento da espiritualidade da alma e da sua identidade contemplativa. (1999: 89)

Assim, temos por um lado Platão, que pretende estabelecer uma sociedade ideal através da articulação entre uma visão política da educação e um modelo de formação das diversas classes sociais. Explica Cambi: “A cidade (…) teorizada por Platão vê presentes três classes sociais: os governantes, os guardiões e os produtores, aos quais correspondem tipos humanos e morais bastante diferentes” (1999: 90). Por outro lado, temos Rousseau, que pretende, pela educação, criar o cidadão para a sociedade perfeita, aquela que vemos descrita no Contrato Social (1762). Estabelecer a comparação entre o método que é proposto pelos dois autores para alcançar esse idêntico objetivo pedagógico parece-nos por isso necessária e inevitável. Consideremos a Alegoria da Caverna de Platão. O seu intuito é pôr em evidência o modo como a natureza humana está condicionada desde a nascença, condicionamento esse que, por ser tão familiar e estar tão enraizado no homem pelo hábito, é entendido como sendo a sua condição natural. A caverna é uma metáfora da sociedade humana. As sombras projetadas pela luz da fogueira no fundo da caverna são a verdadeira realidade dos homens agrilhoados no seu interior, dos homens que vivem em sociedade, apesar de falsa por comparação à realidade projetada pela luz verdadeira do sol. Há dois caminhos possíveis para quem está no interior caverna. Ou sai dela, ou permanece no seu interior. Quem caminha até à luz do sol inevitavelmente acaba por reconhecer a situação alienada em que se encontrava. Platão descreve-o como um caminho árduo e penoso, inicialmente feito com relutância. O prisioneiro grita e protesta quando arrancado aos seus grilhões. Liberto, será só capaz de enxergar as sombras projetadas pela luz do sol, imagens difusas da verdade, só gradualmente tornando-se capaz de fitar diretamente para os objetos iluminados, a sociedade vista sem artifícios, e por fim olhar a própria luz do sol, a fonte da desilusão e do desencantamento, que quase o cegará. Quem, por outro lado, se mostrar relutante em abandonar a caverna, há-de sentir ressentimento e maldizer a aparente sobranceria de quem, tendo saído da caverna, tendo olhado para a sociedade com o olhar irónico de quem a vê de fora, lhe vem anunciar que vive num estado de torpe ignorância. O conhecimento da verdade da sua condição, nos termos da teoria da anamnese platónica, já está na posse do prisioneiro, apenas disso se tendo esquecido. Escutemos por comparação Rousseau, quando diz, no Emílio:

Suponhamos que uma criança tivesse ao nascer a estatura e a força de um homem adulto, e saísse, por assim dizer, completamente armada do ventre de sua mãe, como Palas saiu do cérebro de Júpiter. Esse homem-criança seria um perfeito imbecil, um autómato, uma estátua imóvel e quase insensível; nada veria, nada ouviria, não conheceria ninguém, não seria capaz de voltar os olhos para o que precisasse ver; não somente não perceberia objeto algum fora dele, como não relacionaria nenhum objeto com o órgão sensorial que o fizesse ser percebido; as cores não estariam em seus olhos, os sons não estariam em seus ouvidos (…). Formado de repente, esse homem tampouco seria capaz de se erguer sobre seus pés. Precisaria de muito tempo para aprender a se manter em equilíbrio, e talvez nem mesmo fizesse a tentativa (…). (1999: 44)

Este homem-criança de Rousseau é o prisioneiro alienado da caverna de Platão, um homem com os sentidos severamente embutidos, incapaz de perceber adequadamente o que está à volta dele, de percecionar o mundo tal qual o mundo é, e sobretudo reconhecer a sua própria natureza, o reconhecimento de si. É esse homem que Rousseau quer resgatar da sua condição de equívoco e artificialidade. Rousseau não enveredará pelo caminho nostálgico de um regresso ao passado, tal como aparece jocosamente referido no comentário de Voltaire, de que “(…) sente-se vontade de andar de quatro patas, quando se lê vossa obra” (2002: 245). Eis e réplica de Rousseau a esse comentário, feita em Rousseau juiz de Jean Jacques, dita pela personagem pseudónima do “francês”:

Mas a natureza humana não regride se não retornar aos tempos de inocência e igualdade uma vez que de tal nos afastemos; trata-se de um dos princípios acerca dos quais ele [Rousseau] mais insistiu. Assim o seu propósito não pode ser o de trazer os numerosos povos nem os grandes estados à sua simplicidade primeira, mas apenas parar, se possível, o progresso daqueles cuja pequenez preservou de uma marcha assaz rápida em direção à perfeição da sociedade e em direção à deterioração da espécie. (1959: 935)

A esse título, explica ilustrativamente Cassirer:

Não se pode criar o verdadeiro saber do homem a partir da etnografia ou da etnologia Existe somente uma fonte viva para este saber: a fonte do autoconhecimento e da autorreflexão. (…) Para distinguir o “homme naturel” do “homme artificiel”, não precisamos retroceder a épocas há muito passadas e desaparecidas – nem fazer uma viagem ao redor do mundo. Cada um traz em si o verdadeiro arquétipo – mas sem dúvida quase ninguém conseguiu descobri-lo sob o seu invólucro artificial, sob todos os acessórios arbitrários e convencionais e trazê-lo à luz. (1997:51)

Através da educação Rousseau propõe um caminho ascendente, que, partindo de uma situação de artificialidade, deve permitir a cada homem libertar-se individualmente da máscara que traz consigo. Culminando no autoconhecimento enquanto gesto de reconhecimento, pela memória, da natureza humana e da sua condição. Em paralelo com o que sucede na Alegoria da Caverna, Rousseau oferece-nos um Emílio que também é libertado dos seus grilhões, ou como diz o autor, das algemas do preconceito e da artificialidade. Mas há uma diferença. Enquanto em Platão e educação tem por função levar o prisioneiro a relembrar-se da sua condição originária para o poder retirar à sociedade, à qual ele mostra dificuldade em regressar, em Rousseau a educação tem por função levar o aluno a fazer esse mesmo exercício com vista a reinseri-lo na sociedade, sem que isso para ele constitua necessariamente um perigo uma dificuldade. O gesto de Rousseau é profilático. O problema ao qual Rousseau pretende dar resposta não é tornar o homem inalienado, tornando-o para isso alheado da sociedade, mas de como tornar o homem capaz de viver em sociedade sem que essa vida em sociedade forçosamente o corrompa, tornando-o artificial e desnaturado. Emílio é esse homem.

Será Emílio o cidadão apto à vida da sociedade perfeita, o cidadão virtuoso, precisamente aquele que é capaz de reconhecer a sua natureza sem se deixar enganar pelas sombras da caverna. Por outras palavras, é aquele que não se deixa alienar na sociedade. Mas é tal gesto possível? Para Rousseau esse gesto só é possível a partir de um movimento pessoal. Se o fim último é comunitário, o gesto primeiro é pessoal. Daí que o papel do preceptor seja essencial na educação do aluno. Rousseau é perentório, quando afirma:

(…) e eu até gostaria que o aluno e o preceptor se considerassem de tal modo inseparáveis que o destino dos seus dias sempre fosse entre eles um objeto comum. O aluno não cora por seguir na infância o amigo que deverá ter quando adulto; o preceptor interessa-se por trabalhos cujo fruto deverá colher, e todo o mérito que dá ao seu aluno é um capital que aplica em prol da sua velhice. (1999: 31)

Repare-se que também nos diálogos platónicos Sócrates dirige-se sempre à pessoa individual. Sócrates nunca tem mais do que um interlocutor ao mesmo tempo. O processo maiêutico surge como um exercício individualizado, nunca como gesto comunitário. Concordamos por isso com Cambi, quando afirma:

A formação humana é para Sócrates maiêutica e diálogo que se realiza por parte de um mestre, o qual desperta, levanta dúvidas, solicita pesquisa, dirige, problematiza (…). A paideia de Sócrates é problemática e aberta; mas fixa o itinerário e a estrutura do processo com as escolhas que o sujeito deve realizar; consigna um modelo de formação dinâmico e dramático, mas ao mesmo tempo individual e universal. Estamos diante de um modelo de paideia entre os mais lineares e densos, já que Sócrates bem reconhece o carácter pessoal da formação, seu processo carregado de tensões, sua tendência ao autodomínio e autodireção e o facto de ser uma tarefa contínua. A “pedagogia da consciência individual” orientada pela filosofia qualifica-se como, talvez, o modelo mais móvel e original produzido pela época clássica; características que, por milénios, tornarão tal modelo paradigmático e capaz de incidir em profundidade sobre toda a tradição pedagógica ocidental. (1999:88-89)

Fazendo um gesto semelhante ao de Sócrates, Rousseau sublinha a importância de dar um cunho individual à formação do aluno, evidenciando a necessidade de uma proximidade entre os interlocutores de forma a estabelecer um compromisso, não se coadunando esse compromisso com o seu exercício em assembleia. Escreve Rousseau:

Nem sequer compreendo como se ousa falar em reunião; porquanto, a cada palavra, seria necessário passar revista a todas as pessoas que aí se encontram; seria necessário conhecer o seu carácter, saber as suas histórias para termos a certeza de nada dizer que possa ofender alguém. (1988:122)

É através da educação que se alcança o ideal de homem: o conhece-te a ti mesmo. Esse ideal corresponde ao reconhecimento e à missão que compete a cada homem de conservar da sua natureza. Pode-se afirmar que tragicidade do humano não está em viver em comunidade, mas em alienar-se na sociedade. Viver em comunidade significa viver com os meus semelhantes, ou seja, viver com aqueles com quem se partilha a mesma natureza. Coisa diferente é o homem alienar-se na sociedade, quer porque ignora, quer porque rejeita a sua natureza, acreditando encontrar na vontade de todos a vontade geral. A procura de um ideal de homem é um dos aspetos que Jaeger mais sublinha quando descreve a paideia grega:

Acima do Homem como ser gregário ou como suposto eu autónomo, ergue-se o Homem como ideia. A ela aspiram os educadores gregos, bem como os poetas, artistas e filósofos. Ora, o Homem, considerado na sua ideia, significa a imagem do Homem genérico na sua validade universal e normativa. Como vimos, a essência da educação consiste na modelagem dos indivíduos pela norma da comunidade. Os Gregos foram adquirindo gradualmente consciência clara do significado deste processo mediante aquela imagem de Homem, e chegaram por fim, através de um esforço continuado, a uma fundamentação, mais segura e mais profunda que a de nenhum povo da Terra, do problema da educação. (2001:14-15)

Parece então pertinente perguntar pelo sentido último da educação. Na paideia grega esse sentido assenta na “formação”:

A palavra Bildung (formação, configuração) é a que designa do modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platónico. Contém ao mesmo tempo a configuração artística e plástica, e a imagem, “ideia”, ou “tipo” normativo que se descobre na intimidade do artista. Em todo lugar onde esta ideia reaparece mais tarde na História, ela é uma herança dos Gregos, e aparece sempre que o espírito humano abandona a ideia de adestramento em função de fins exteriores e reflete na essência própria da educação. (2001: 13-14)

Para Rousseau, porém, a formação é um elemento apenas instrumental à educação. O seu sentido último é, em vez disso, manifestamente “existencial”, uma vez que é por ela que se adquire tudo aquilo de que se carece quando se nasce. As três educações de Rousseau, a da natureza, relacionada com o desenvolvimento interno das faculdades e dos órgãos, a dos homens, relacionada com o uso que cada um faz do seu desenvolvimento, e a educação das coisas, relacionada com a aquisição da nossa experiência sobre os objetos que nos afetam, articulam-se na finalidade de dar ao homem condições para que viva de forma plena a sua existência: “Viver não é respirar, mas agir; é fazer uso dos nossos órgãos, dos nossos sentidos, das nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento da nossa existência” (1999: 15). É justamente visando este fim que Rousseau defende a necessidade, pelo menos num primeiro momento, da prática de uma educação negativa, a qual, consistindo em “(…) não ensinar a virtude ou a verdade (…)” (1999: 91), garante “(…) proteger o coração contra o vício e o espírito contra o erro” (Ibidem).

Ao reconhecimento da natureza do homem, deve juntar-se o problema da sua conservação. O’Hagan salienta a importância deste tema em Rousseau: “Ele desenvolveu-o como um tema unitário transversal a todo o âmbito das suas preocupações, desde a antropologia especulativa do Segundo Discurso, passando pela experiência educacional imaginária do Emílio ao exercício de construção de modelos políticos do Contrato Social” (2003: xii). Com efeito, se é à memória que cabe o papel de resgatar e recuperar os princípios fundamentais da condição humana, e à educação atualizar esse tempo originário redescoberto pela memória, porque se trata de um exercício de memória, nada impede que o esquecimento reganhe terreno e venha instalar-se novamente. Como conservar esse conhecimento? Rousseau responde: “Lembrai-vos de que, antes de ousar empreender a formação de um homem, é preciso ter-se feito homem; é preciso ter em si o exemplo que se deve propor” (1999: 93). Onde está esse exemplo? No próprio Rousseau, na medida em que ele expressa, através do exemplo da sua vida, o sentimento natural de existência próprio ao homem. Os textos autobiográficos de Rousseau revelam um autor que, não conseguindo alcançar o amor dos seus semelhantes em vida, ainda assim alimenta a esperança de o alcançar séculos depois, e sempre no mesmo registo, dirigindo-se e comprometendo diretamente os seus leitores: “Leitores, não temais de mim precauções indignas de um amigo da verdade; nunca esquecerei a minha divisa, mas tenho todo o direito de desconfiar dos meus juízos” (1999: 347-348).

 

Referências

Baczko, Bronislaw (1974), Rousseau, Solitude et Communauté, Paris, Mouton.         [ Links ]

Cambi, franco (1999), História da Pedagogia, trad. Álvaro Lorencini, São Paulo, UNESP.         [ Links ]

Casulo, José Carlos (2009), “Sobre a medida do clássico em Rousseau”, in Custódia Martins, A pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e Fundamentos, Braga, CIEd.         [ Links ]

Cassirer, Ernst (1997), A questão Jean-Jacques Rousseau, trad. Erlon Paschoal, São Paulo, UNESP.         [ Links ]

Gauthier, David (2006), Rousseau, The Sentiment of Existence, New York, Cambridge.         [ Links ]

Gay, Peter (1997), “Introdução”, in Ernst Cassirer, A questão Jean-Jacques Rousseau, trad. Erlon Paschoal, São Paulo, pp.7-36.         [ Links ]

Jaeger, Werner (2001), Paideia : A Formação do Homem Grego, trad. Artur Parreira, São Paulo, Martins Fontes.         [ Links ]

Kelly, Christopher (2001), “Rousseau’s Confessions”, in Patrick Riley (ed.) (2001), Rousseau, New York, pp.302-328.         [ Links ]

O’hagan, Timothy (1999), Rousseau, London, Routledge.         [ Links ]

Rousseau, Jean-Jacques (1988), Confissões, trad. Fernando Lopes Graça, Lisboa, Relógio d’Água.         [ Links ]

Rousseau, Jean-Jacques (1999), Emílio ou Da Educação, trad. Roberto Leal Ferreira, São Paulo, Martins Fontes.         [ Links ]

Rousseau, Jean-Jacques (2002), Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo, Martins Fontes.         [ Links ]

Rousseau, Jean-Jacques (2006), Cartas escritas da montanha, trad. Maria Constança Pissarra e Maria das Graças Souza, São Paulo, PUCSP/UNESP.         [ Links ]