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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

A Descoberta do Inconsciente no Século XIX Português

The discovery of the unconscious in the portuguese nineteenth century

Manuel Curado*

*Universidade do Minho, Departamento de Filosofia, Braga, Portugal

curado.manuel@gmail.com

 

RESUMO

A noção de inconsciente faz parte da atual cartografia do espaço interior. Ninguém sabe do que se trata, nem onde reside. Todavia, acredita-se na sua existência de um modo geral. O presente ensaio ocupa-se da história intelectual do assunto em Portugal durante o século XIX. A natureza regional desta abordagem não deverá ser diminuída porque alguns dos protagonistas europeus do assunto foram portugueses. Pense-se, por exemplo, no Abade de Faria, um pioneiro europeu do hipnotismo. São analisados três aspetos da noção de inconsciente: o inconsciente enquanto fonte da criatividade, o inconsciente manipulável, e o inconsciente enquanto perfeição do psiquismo. Em particular, serão comentados os contributos do Abade de Faria, Cândido de Figueiredo, Bettencourt Raposo, Miguel Bombarda e José de Lacerda para o assunto. Cada um destes autores defende uma noção de inconsciente rica e paradoxal.

Palavras-chave: inconsciente, consciência, história intelectual, século XIX.

 

ABSTRACT

The notion of unconsciousness belongs to the current mapping of the inner space. Nobody knows what it is or where it resides. However, one generally believes in its autonomous existence. This essay deals with the intellectual history of the subject in the Portuguese nineteenth century. The regional nature of this approach should not be diminished because some of the European major proponents of this concept were indeed Portuguese. One should consider, for instance, the Abbot Faria, a European pioneer of the hypnotism. We analyze three aspects of the concept of the unconscious: the unconscious as a source of creativity, the manipulable unconscious, and the unconscious as a perfect state of the psyche. In particular, the contributions of Abbot Faria, Cândido de Figueiredo, Bettencourt Raposo, Miguel Bombarda and José de Lacerda will be also analyzed. Each of these authors argues for a rich and paradoxical notion of the unconscious.

Keywords: unconsciousness, consciousness, intellectual history, nineteenth century.

 

Paris, Lisboa, Índia e Austrália

Aproximava-se o final do século XIX quando Cândido de Figueiredo (1846-1925) publicou o romance Lisboa no Ano Três Mil. Este famoso autor de dicionários, membro da Academia, conta o que se passou durante a visita de um hipnotizador a Lisboa. O protagonista da sua obra epistolar foi a uma sessão sugestiva de um tal Ângelo Das, doutor e conde. Os termos utilizados pelo dicionarista e escritor (hipnotizador, vida sugestiva, sono hipnótico) podem surpreender, mas são rapidamente interpretados como descrições de um fenómeno que havia sido anteriormente denominado magnetismo, magnetismo animal, mesmerismo, fariismo e braidismo, e que posteriormente passou a ser conhecido como hipnotismo. As pessoas ainda hoje consultam terapeutas, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e outros profissionais em busca da resolução de problemas de ordem afetiva, cognitiva ou comportamental. O romance de Cândido de Figueiredo tem tudo para não surpreender um leitor contemporâneo. Afinal, o narrador parece procurar auxílio junto de um especialista do psiquismo humano. A surpresa surge, contudo, quando se repara que isso de facto não acontece. Não está em causa nenhum tipo de problema mental que precise de uma viagem às memórias esquecidas do narrador e aos segredos do seu coração emocional. O assunto não é de todo pessoal. O cliente do hipnotizador não está interessado nas suas próprias memórias, nem apresenta problemas afetivos a resolver. Ele sabe que o Doutor Das o pode levar a conhecer todo o passado e todo o futuro. Basta escolher a época histórica que se deseja visualizar e manifestar essa preferência ao hipnotizador. Deste ponto de vista, este romance de 1892 é exclusivamente uma obra de ficção. O cliente do Conde pergunta-se com espanto, “Que deveria eu fazer durante o sono hipnótico? Ocorreu-me uma grande e legítima ambição: viver no futuro; guindar-me ao vértice das civilizações vindouras, e estirar a vista por todo o passado, abrangendo num lance de olhos todas as sociedades extintas e todo o quadro ingente dos progressos humanos. Devia ser um momento assombroso” (2003: 8).

Este texto merece reflexão. A imaginação de Cândido de Figueiredo é um enigma da história intelectual oitocentista. Por que razão o autor associa técnicas de acesso ao inconsciente a épocas histórias distantes no tempo? A viagem ao inconsciente de uma pessoa através de técnicas hipnóticas possibilita o acesso ao passado humano em geral, e não ao passado do próprio sujeito hipnotizado, e o acesso ao futuro da humanidade, para além do tempo de vida do cliente do hipnotizador. O inconsciente não é visto como um repositório das experiências privadas de alguém mas como uma instância do psiquismo humano com as propriedades que o escritor argentino Jorge Luís Borges atribui ao álefe num dos seus contos, um ponto de todos os pontos, um ponto a partir do qual se pode ver qualquer outro ponto do mundo, esteja ele no passado distante ou no futuro remoto. O hipnotizador Ângelo informa o seu cliente de que existem dificuldades técnicas para se aceder a qualquer época histórica, mas que não são muito grandes e derivam apenas da disponibilidade de agenda da pessoa para as muitas sessões necessárias. Havendo tempo, será possível conhecer diretamente qualquer data no passado ou no futuro. Diz ele, “para ler toda a história do futuro, seria mister um sono hipnótico de muitos meses ou de muitos anos, e à dificuldade acresceria o perigo” (ibid.). Compreendendo essas dificuldades, o alter-ego de Cândido de Figueiredo opta por uma data precisa do futuro, o ano três mil. No decurso da sessão hipnótica, o sugestionado consegue visualizar que nessa altura o país mais poderoso do mundo será a Austrália e que todas as pessoas da terra falarão uma só língua, o Volapük. São muitos os aspetos interessantes desta fantasia literária de 1892. A representação angustiada que um intelectual europeu finissecular faz sobre a decadência futura da Europa e o desaparecimento do seu próprio país é digna de nota. O mesmo pode ser afirmado a respeito do sonho utópico de todos os homens falarem uma só língua, um sonho surpreendente num beletrista português, porque a história cultural lusitana nunca foi atormentada pela diversidade linguística, sendo este um assunto que se associa imediatamente à Europa Central. A utilização da técnica do observador estrangeiro para a crítica social do final do século XIX é, talvez, o aspeto do texto cujo passado é mais facilmente identificável devido ao honroso paradigma das Cartas Persas, de Montesquieu. Estes aspetos enquadram uma representação do inconsciente humano que é rica em surpresas.

O problema filosófico é este: um leitor contemporâneo não se reconhece neste conceito de inconsciente. Parece faltar tudo o que é relevante para a definição de inconsciente que se pode encontrar em qualquer obra de referência da nossa época. Falta a ligação à vida pessoal; falta a determinação do comportamento e a influência sobre os estados de saúde do sujeito; falta o silêncio do inconsciente e o papel que a linguagem desempenha na recuperação desses dados quase inacessíveis e na interpretação dos pequenos sinais que apontam para essa instância do psiquismo humano. O romance de Cândido de Figueiredo representa um inconsciente em tudo diferente: não parece ter ligação à vida pessoal; não determina o comportamento do hipnotizado; não influencia o estado de saúde; com a técnica correta, tem muito a dizer; não depende da interpretação de sinais e, neste sentido, é mais silencioso do que a noção de inconsciente da nossa época; não é decisivo na vida das pessoas porque estas podem viver sem aceder aos dados possibilitados pelo seu próprio inconsciente. Esta pequena lista de diferenças causa surpresa, como se disse. No entanto, este texto da última década do século XIX português só é surpreendente para nós; dificilmente causaria surpresa junto dos contemporâneos do famoso dicionarista, escritor e tradutor. Aliás, a obra é recordada devido à crítica social bem-humorada, aqui e ali mordaz, do Portugal da época, lido do ponto de vista de um observador estrangeiro do futuro remoto, e não devido ao seu contributo para a noção de inconsciente. A falta de surpresa de uns e a surpresa de outros são reveladoras das vicissitudes desta noção importante para a representação da mente humana.

A falta de surpresa de uns tem uma boa justificação. Recuando de 1892 para trás, até ao início do século XIX, encontram-se outras grandes manifestações desta noção de inconsciente. José Custódio de Faria, universalmente conhecido como Abade de Faria (1746-1819), propõe uma conceção semelhante na sua obra Da Causa do Sono Lúcido, ou Estudo da Natureza do Homem, publicada em Paris, em francês, em 1819. Para o Abade de Faria, um português natural de Goa, na Índia, o sono lúcido, que considera uma forma aperfeiçoada do sonambulismo natural, tem a propriedade de desenvolver nos hipnotizados “conhecimentos sublimes, que não tinham jamais adquirido pelo estudo e que, além disso, abarcam todo o espaço de tempo e de lugar; ou seja, o passado, o futuro e todas as distâncias. É certo que esses conhecimentos são muitas vezes misturados com erros graves, mas não deixam de atingir também em certas ocasiões verdades constantes” (II.1). Os epoptas do Abade de Faria, um neologismo que ele usa para designar aqueles que veem tudo de forma manifesta (II.2), têm uma intuição que é “uma fruição simultânea de funções semelhantes às dos cinco sentidos e para além deles, sem entraves de qualquer distância de tempo e de lugar. Significa que ela abarca todas as propriedades do corpo acessíveis ao homem e muitas outras que lhe são inacessíveis, sem que o passado, o futuro e a distância coloquem qualquer obstáculo” (II.10). Como se vê, o livro parisiense, apartado por mais de sete décadas do livro lisboeta, oferece uma noção semelhante de inconsciente. Esta instância da vida mental possibilita dados que ultrapassam em muito o tempo de vida de cada pessoa que é ‘magnetizada’, ‘sugestionada’ ou hipnotizada. As dificuldades de aceder a esses dados são igualmente pequenas. Faria alude a uma mistura de verdades e de erros, mas o seu pensamento é claro ao afirmar que não há obstáculos nesse acesso.

Para se compreender a natureza excecional que este livro atribui à instância anímica, que retrospectivamente se poderia considerar uma das primeiras representações da noção de inconsciente, é necessário elencar as propriedades que Faria vê nela. Cândido de Figueiredo, interessado profissionalmente nos estudos linguísticos, não sublinha o trabalho da linguagem no acesso à memória profunda. O seu hipnotizador realiza gestos com mestria: “sem pronunciar uma palavra mais, sentou-se defronte de mim … Abriu as mãos e espalmou-mas nas regiões temporais, obrigando-me a fixar os olhos no seu olhar, vivo, penetrante e ao mesmo tempo imóvel” (ibid.). O Conde limita-se a dar um comando verbal para que o hipnotizado escreva tudo o que vê. O papel diminuto da linguagem no acesso ao inconsciente é compensado pela utopia futura de uma língua comum a todos os povos da terra. Para o Abade de Faria, o magnetismo hipnótico manifesta o dom pentecostal das línguas. Para ele, os epoptas têm alegadamente a capacidade de compreender línguas estrangeiras que não estudaram, e a capacidade complementar de ler o pensamento dos outros, na condição de ser estável (III.9). Faria e Figueiredo apoucam o papel instrumental da linguagem como via de acesso ao inconsciente mas compensam esta limitação com referências à utopia da superação das diferenças linguísticas entre os povos e as pessoas. Entre um e o outro há uma diferença subtil. O dom das línguas que o primeiro julga ver nos seus epoptas, com traços evangélicos óbvios, é transformado pelo segundo num assunto meramente humano: os povos do futuro falarão a língua artificial de Johann Martin Schleyer (1831-1912).

Pequenas diferenças surgem também a respeito dos correlatos da visualização hipnótica. O Abade de Faria não limita os poderes do sono hipnótico ao que existe, esteja no passado ou no futuro, mas entra no campo modal do que poderia existir e não chega a existir de facto. Este traço é surpreendente. Diz ele: “o ouvido, por exemplo, não pode escutar aquilo que não se diz; mas nos epoptas escuta o que foi dito outrora e o que se dirá um dia. No entanto, há também ocasiões em que ouvem o que nunca foi dito e o que nunca se dirá jamais” (III.4). Figueiredo, como se viu, aceita que os hipnotizados acedam a todo o passado e a todo o futuro, no sentido em que são coisas que já existiram ou que existirão realmente. Não é equacionado o problema modal de o futuro poder ser diferente; o hipnotizado vê um futuro que existe assim como o presente também existe e o passado já existiu. Faria, pelo contrário, outorga aos seus clientes em estado de sono lúcido a capacidade de poder visualizar os possíveis, mesmo que nunca aconteçam realmente. Sublinhe-se novamente este ponto, nas suas próprias palavras: “il est aussi des occasions où ils écoutent ce qui n’a jamais été dit, et ce qui ne se dira jamais”. Figueiredo limita a ideia vertiginosa de se poder aceder ao campo infinito do possível fazendo com que o seu hipnotizado só veja o que existiu ou existirá realmente, e não o que poderia ter existido, mas não existiu, e o que poderá existir, mas que nunca existirá.

À linguagem e à possibilidade, há que acrescentar a compreensão que uma pessoa tem das outras. A relação entre hipnotizador e hipnotizado parece descrever o acesso completo de uma pessoa às memórias de outra pessoa. Estes dois autores do século XIX português equacionam o problema de modo muito diferente. Ângelo Das não acede às memórias pessoais do cliente que o procura, e este, por sua vez, não intui o que as pessoas do futuro sentirão. Os epoptas de Faria, pelo contrário, são descritos como possuindo o dom da intuição ilimitada dos estados de espírito à sua volta. O concentrador ou hipnotizador não tem, por sua vez, o dom da intuição sobre o concentrado ou sobre o cataléptico. (Faria recusou as designações de magnetismo animal, fluido magnético e magnetizador, propondo as de concentration, concentrateurs e concentrés.) O que o Abade afirma sobre a capacidade de clarividência, ou intuição total sobre as emoções e os pensamentos de outras pessoas, não é, pois, imitado por Figueiredo. O viajante no tempo futuro não tem o dom de intuir o que se passa no coração das pessoas que encontra, limitando-se a falar com elas e a ler a sua correspondência. O hipnotizador não tem o dom da intuição, tal como o concentrador de Faria.

Apesar destas pequenas diferenças, vê-se que Cândido de Figueiredo baseou o seu romance fantástico numa tradição muito velha sobre os alegados poderes do inconsciente humano. Na última década do século XIX, este romancista contribuiu para limitar o inconsciente aos seres humanos e ao conjunto das coisas que existem ou existirão de facto. O processo que medeia entre estas sete décadas pode ser interpretado como uma tendência para privatizar o inconsciente, localizá-lo com precisão em pessoas concretas que vivem vidas autónomas. Esta privatização do inconsciente acompanhou uma idêntica privatização da consciência. Afinal, se o Abade acreditava que os epoptas têm o dom da intuição do que se passa na mente de outras pessoas, a consciência humana não é totalmente subjetiva do seu ponto de vista. Alguém poderá sentir o que outra pessoa está a sentir. Esta possibilidade era totalmente inaceitável pela ciência do final do século XIX. Faria rir autores como Bettencourt Raposo ou Bombarda. Neste sentido, aconteceu uma privatização de todo o edifício mental, seja consciente, seja inconsciente. Passou a ser inconcebível que estes aspetos da mente humana possam unir diferentes pessoas. Faria, como é evidente, não é o início desse processo. Será possível encontrar na tradição científica europeia, para não mencionar a filosófica ou a religiosa, manifestações anteriores da curiosidade a respeito da alegada capacidade de existir uma intuição ilimitada sobre os estados anímicos das outras pessoas.[1] Será também possível identificar muitos exemplos de teorias que irmanam o psiquismo humano a um psiquismo mais alargado, como o pampsiquismo antigo, moderno e, até, oitocentista (e.g. a teoria da vibração universal de Miguel Bombarda). Figueiredo não é, por seu lado, o ponto final dessa tendência; é um ponto intermédio, que auxilia a compreender como é que uma noção muito vasta foi diminuindo o seu escopo progressivamente. É agora evidente por que razão a surpresa dos seus contemporâneos se limitou à crítica social do romance, mas não parece ter incluído os traços com que o autor caracterizou o sono hipnótico ou as técnicas de acesso à paradoxal memória do futuro.

O inconsciente, a linguagem, a intuição e a visualização são faculdades ou instâncias da mente humana. Viu-se como estes dois autores relacionam algumas destas instâncias entre si. A relação entre o inconsciente e os estados conscientes, determinando ou não a vontade consciente e o comportamento, é um aspeto decisivo da noção hodierna. A tradição em que Faria e Figueiredo se inserem incluía uma relação especial entre o inconsciente e o estado de saúde. O Abade menciona muitas vezes a capacidade de o estado hipnótico curar por si mesmo as doenças de que padece o hipnotizado. Havendo um auxílio exterior, essa cura será muito mais rápida e eficaz; não havendo esse auxílio, as características do inconsciente determinam o estado de saúde da pessoa. O sono lúcido de Faria parece amplificar as capacidades curativas do sono normal: “está fora de dúvida que, se uma doença, por mais grave que seja, for acompanhada pelo sono lúcido, terá sempre todas as facilidades que convêm a esse estado benéfico para ser tratada sem nenhum auxílio externo” (III.). Faria acrescenta imediatamente o que justifica o poder curativo do sono lúcido. O inconsciente parece uma manifestação da sabedoria da natureza no ser humano. Diz ele, “através deste meio, a natureza conserva ainda no doente todos os direitos maternais para o curar, se for auxiliada por um guia hábil” (III.8).

Estão aqui vários aspetos da noção de inconsciente que não irão desaparecer tão cedo. O primeiro deles é o de que o inconsciente é benéfico por si mesmo. Numa tradição médica completamente diferente da tradição religiosa do Abade de Faria e da tradição literária de Cândido de Figueiredo, haveremos de reencontrar esta ideia na observação de Miguel Bombarda quando afirmou que a consciência é um acidente, é um obstáculo desagradável, e quando deu a entender que todos os seres humanos seriam muito mais felizes se vivessem sem consciência, isto é, de forma automática, de um modo literalmente inconsciente.

Um segundo aspeto tem a ver com o equilíbrio entre as diversas faculdades ou partes da estrutura da mente humana. A alusão do Abade de Faria aos direitos maternais da natureza (“la nature conserve encore sur le malade tous ses droits maternels pour le soigner”, III.8) denunciam um mal-estar em relação à atividade consciente e voluntária das pessoas, como se o peso das decisões livres que se tomam ao longo da vida danificasse, de algum modo, o estado de saúde das próprias pessoas. É curioso ver como tradições tão diferentes sobre o inconsciente compartilham uma visão comum. A recomendação que estas tradições fazem é a de que é melhor viver a dormir, apoucando sempre que possível a esfera da decisão consciente. Esta recomendação acabou por influenciar a perceção comum, entendimento que se manifesta, por exemplo, no conselho para ter uma boa noite de sono antes de decidir assuntos importantes. Esta forma de olhar para a atividade consciente denuncia um incómodo em relação à vida acordada, uma angústia em relação às decisões que se têm de tomar. A segunda metade do século XIX, pela mão dos médicos psiquiatras e dos publicistas que apoiavam a interpretação materialista das relações entre o cérebro e a mente, irá levar às últimas consequências este mal-estar em relação ao comportamento livre, defendendo a tese de que a consciência é impotente para influenciar as decisões dos indivíduos, agindo estes por determinação completa do inconsciente.

Um terceiro aspeto terá um futuro rico e preocupante. Trata-se da capacidade de direcionar o inconsciente, de aproveitar de algum modo as suas virtudes. O Abade de Faria foi um dos primeiros autores a reparar no papel do guia hábil na descida ao estado sonambúlico, magnético, concentrado ou hipnótico. Este guia hábil poderá auxiliar a natureza a curar uma enfermidade, como afirma com otimismo; Figueiredo sublinha, por sua vez, o acesso a informação que poderá ser usada para satisfazer interesses benéficos ou de outra natureza. Numa obra de crítica social, o mundo do ano três mil serve de comparação com os anos noventa do século XIX. Como é evidente, se é possível conhecer o ano três mil, por maioria de razão será possível saber o que se passará meia dúzia de anos no futuro de alguém, podendo usar-se essa informação de modo eventualmente prejudicial. A possibilidade de determinar inconscientemente o comportamento de alguém e de realizar, em consequência, objetivos menos nobres, faz parte da história rica e atribulada desta noção.

II

Uma Descoberta Popular e Académica

Estes dois autores, já pouco conhecidos, são exemplos do modo como a noção de inconsciente se foi constituindo ao longo do século XIX português. Os seus contributos para a precisão deste conceito são muito relevantes porque apontam para uma parte da mente humana cuja existência se suspeitava há muito tempo. Mais, são indícios de que a mente humana tem uma estrutura, e que, precisamente por isso, não pode ser um efeito secundário desprezível da atividade do cérebro. Tomando o exemplo destes autores, são muitas as perguntas que se podem colocar a respeito da história intelectual deste conceito: como é que se descobriu esta parte importante da atual representação da mente humana? Como é que surgiu este conceito tão importante para a avaliação que o Direito faz do comportamento humano? Em que época é que se reparou no assunto?

Estas questões são muito grandes e é difícil responder com detalhe a cada uma delas. A noção de inconsciente é hoje tão importante que muitas áreas do saber a reclamam: ela está presente na Medicina, na Psicologia, no Direito e na Filosofia. Para além destas áreas, outras existem que reclamam o conceito e o utilizam amplamente, de modos menos óbvios. Alguns biólogos pensam que é importante que esteja na explicação dos padrões das formas biológicas e em certos comportamentos animais. Na Ciência da Computação o mesmo acontece, porque esta tenta simular estruturas cognitivas em sistemas técnicos que não sentem o que quer que seja, e que são, por conseguinte, literalmente inconscientes. Todas as ciências que chocam de frente com o problema da criatividade humana também têm de identificar a certa altura a fonte de onde promanam as ideias novas.

Como se vê, o assunto é muito vasto. A noção de inconsciente começou a ser investigada muitas décadas antes de Freud. Existe hoje uma ideia clara de como a noção se estruturou, graças aos trabalhos de Lancelot Law Whyte (1960), Henri Ellenberger (1970), de Alison Winter (1998) e de Frank Tallis (2002), entre outros. O caso português é menos conhecido e, não fora o protagonismo do Abade de Faria em França, pareceria completamente marginal. Esta perspetiva só pode derivar de um conhecimento insuficiente do detalhe do contributo português para a noção de inconsciente. É verdade que muitas destas ideias atravessavam toda a Europa ocidental; o caso português revela, contudo, duas características muito acentuadas. A primeira é a quantidade elevada de autores que escreveram sobre este assunto, em número que indicia uma grande curiosidade pelo tema. A segunda é a rápida aplicação do conceito a situações concretas, nomeadamente nos relatórios médico-legais (Bombarda, Júlio de Matos), na interpretação de aspetos do fenómeno religioso (José Alfredo Mendes de Magalhães), e na formulação de teorias completas do psiquismo humano (Bettencourt Raposo, José de Lacerda, etc.).

Infelizmente, boa parte destes autores são desconhecidos do público culto. A estrela de Freud teve uma luz tão intensa que eclipsou muitos autores anteriores, incluindo os portugueses. Em Portugal existiu um grande número de autores que, dentro e fora das universidades, publicaram obras sobre aspetos da mente humana, contribuindo assim para a descoberta da noção de inconsciente. Ao longo do século XIX, vários autores continuaram o legado do Abade de Faria. Pense-se em autores como Augusto Soares Ramalho, que dedica ao assunto a sua dissertação inaugural em Medicina, com o título Os Sonhos: Estudo de Psicofisiologia (1881); Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, que publicou em 1888 uns Estudos sobre Sugestão e suas Aplicações. I. Terapêutica Sugestiva; nesse mesmo ano, o médico açoriano Gil Mont’Alverne de Sequeira publica o seu Hipnotismo e Sugestão, um livro que teve duas edições, em 1888 e em 1889; o médico Hipólito Francisco Álvares dedicou a sua dissertação inaugural do final do curso médico à questão O Que é o Hipnotismo? Suas Aplicações, Vantagens e Perigos (1889); o cónego Manuel Anaquim publicou A Moderna Questão do Hipnotismo (1895) e, poucos anos depois, O Hipnotismo (1906); o médico José Caetano de Sousa e Lacerda, que introduziu em Portugal a questão da neurastenia, interessou-se pelo inconsciente na série de artigos com o título comum de Hipnologia, que publicou em 1897 nos Arquivos de Medicina; o pedagogo Manuel Ferreira-Deusdado e o médico J. Bettencourt Ferreira exploraram as ligações possíveis entre a educação e o hipnotismo no seu livro conjunto A Sugestão Hipnótica na Educação (1897).

O interesse que estes autores de Oitocentos criaram foi tão grande que haveria de continuar durante as primeiras décadas do século XX. Os autores académicos não se esqueceram do assunto. António Caetano Freire Egas Moniz, futuro Prémio Nobel da Medicina, interessou-se pelo assunto, publicando As Novas Ideias sobre o Hipnotismo (Aspetos Médico-Legais), na Revista da Universidade de Coimbra (1914), e uma monografia célebre sobre O Abade de Faria na História do Hipnotismo (1925). Egas Moniz é o exemplo perfeito de como as tradições popular, filosófica e médica a respeito do inconsciente se estimularam mutuamente. Alberto Pimentel, Filho, equaciona a noção de subconsciência nas suas lições de Psico-Fisiologia (1916), e Faria de Vasconcelos dedica uma parte importante das suas Lições de Psicologia Geral à questão do inconsciente (1925). A receção de Freud em Portugal aumentou o interesse pelo assunto, iniciando uma tradição intelectual muito diferente da oitocentista.

O espírito do movimento intelectual do século XIX foi, talvez, mais aproveitado por autores populares. No grande número destes autores, destacam-se figuras como António Baçam Correia, que publicou uma pequena biblioteca sobre estes assuntos, nomeadamente O Segredo do Poder. Magnetismo Pessoal e Hipnotismo (1910), Como Vencer Pela Nossa Vontade: Curso de Magnetismo Pessoal, Influência à Distância e Terapêutica Magnética Sugestiva (1926), e já mais tarde, mas ainda com mentalidade oitocentista, Hipnotismo e Sugestão (1935). António Gonçalves Leitão publica vários títulos dedicados ao hipnotismo, em 1913, 1917 e 1918. No início da República, José Pestana publica A Sugestão e o Hipnotismo na Medicina (1917). A estes autores, muitos outros haveria que acrescentar. Os cultivadores do ocultismo espírita no país também tinham muitas coisas a dizer sobre o inconsciente, autores hoje pouco conhecidos, como João Antunes (1885-1956), O Hipnotismo e a Sugestão (1912), A Hipnologia Transcendental: O Hipnotismo e a Sugestão (1913), O Espiritismo (1914), A Psicologia Experimental (1917); Afonso Acácio Martins Velho, O Magnetismo: Curso Completo de Magnetologia Experimental: A Terapêutica Magnética e as Possibilidades da Hipno-Magnetologia (1913); Augusto de Castro, com o seu Tratado de Ciências Ocultas: Sonambulismo, Espiritualismo, Espiritismo e Grafologia, Investigações Científicas sobre Trabalhos de Charcot, Liebault e Bernheim (s/d); e António Lobo Vilela, Palingénese (1930) e Hipóteses Metapsíquicas (1940). Muitos mais haverá que acrescentar a este pequeno inventário.

III

A Perfeição Humana é Inconsciente

Estes autores populares não tinham nenhuma teoria derradeira sobre o inconsciente nem sobre a arquitetura da mente humana. O seu assunto não era, de um modo geral, a compreensão da mente humana. Muitos deles recusaram a elaboração de uma teoria e contentaram-se em descrever as suas impressões e os casos paradigmáticos da alegada influência do inconsciente. O padrão geral é este: é possível através de técnicas de manipulação da atenção chegar a estados profundos da estrutura da mente humana. Todos estes aspetos são importantes: a recusa de uma teoria; o domínio de uma parte da mente humana através de técnicas que se foram apurando ao longo do tempo; e a noção de que todas as partes da mente humana estão interligadas, e que, por exemplo, manipulando a atenção, uma das estruturas da consciência humana, é possível aceder a registos da memória muito profundos, e determinar, dessa forma, alguns comportamentos futuros e estados de saúde.

O ponto alto destas investigações pioneiras sobre o inconsciente encontra-se na defesa surpreendente da tese de que toda a humanidade seria muito mais feliz, muito mais produtiva e muito mais inteligente se vivesse de forma totalmente inconsciente. Estas ideias são curiosas, e é necessário adotar a perspetiva correta para as compreender. Muitos autores do século XIX português iniciaram um combate intelectual terrível contra a ideia de que os seres humanos são livres e responsáveis pelo seu comportamento. O centro do seu ataque foi a noção de consciência. A pergunta que os ocupava era esta: qual é o papel que tem a consciência humana na determinação do comportamento? A resposta que eles encontraram tem diretamente a ver com a noção de inconsciente.

Pedro António Bettencourt Raposo (1853-1937), um médico com vocação filosófica e literária, publicou na importante revista O Positivismo o artigo “O Espírito: Primeiros Traços” (1878-1879). Trata-se de um programa completo para compreender a mente humana, sobretudo a parte mais difícil, a mente acordada, vigilante e consciente.

O programa de investigação sobre a mente humana de Bettencourt Raposo propõe o seguinte: “Não há espírito, há impressões. Estas, e só elas, são ideias, são consciência, memória, imaginação, vontade, etc. … como a impressão é movimento … no chamado espírito não há senão movimento” (1878-79: 430). Como se vê, a estratégia intelectual para compreender a totalidade da mente humana, aqui representada pela palavra ‘espírito’, baseia-se no processo percetivo. Bettencourt Raposo procura traçar o percurso que medeia entre as impressões sobre os órgãos dos sentidos até à atividade mental mais complexa. Para o autor de Sono: Traços Gerais da sua Fisiologia (1880), a vida mental humana resume-se ao percurso que vai das impressões sobre os sentidos até ao cérebro, num movimento vibratório de propagação de sinais. Se esse movimento vibratório não para nunca e abrange as várias áreas do cérebro, então a consciência não serve para nada. Esta é apenas um efeito secundário da atividade do cérebro, um efeito sem influência causal no comportamento humano.

Repare-se que o assunto é a vida mental tal como ela se manifesta na consciência. Poder-se-ia perguntar, precisamente, qual é o critério para se afirmar que existe de todo uma mente em geral, ou até mesmo só a parte vígil dessa mente? O assunto pode ser ilusório. No mundo do Doutor Bettencourt Raposo há muitas ilusões e a denúncia das mesmas. Com mais uma ilusão, não se alteraria nada de significativo. Bettencourt Raposo choca de frente com um problema que terá um grande desenvolvimento durante o século XX, nomeadamente o critério de Turing para definição do que pode ser considerado ‘pensar’, ‘mente’, e ‘consciência’. Bettencourt Raposo procurou um modo de abalar o facto absoluto de as pessoas sentirem que sentem: “afirmamos que temos espírito porque sentimos que o temos, ou, o que vale o mesmo, porque o espírito se sente a si próprio, tem consciência de que existe, como também tem consciência de que tem consciência” (1878-79: 431). Esta é a relação que cada um tem com a sua própria consciência. Mas como é que se sabe que as outras pessoas são igualmente conscientes? E não apenas as pessoas: como é que se sabe onde começa a vida mental no conjunto dos animais? Bettencourt Raposo não sabia, tal como se continua a não saber, responder a este tipo de questões. Para ele, é insatisfatório concluir que a evidência da consciência deriva das impressões sobre os sentidos; além disso, não se pode basear numa verificação de reações exteriores dos corpos de outras pessoas e dos animais porque, da falta de reações, não se pode concluir nada sobre o sentir consciente. A vontade, poder de iniciativa ou espontaneidade, não pode ser critério da consciência porque também depende do facto de ser sentida. Se se alargar o problema a todos os seres vivos, tem-se uma dificuldade sem solução porque não se sabe identificar o início da vida mental na história da terra e dos animais. O mundo do Abade de Faria ficou completamente para trás; passou a ser impensável.

Até este momento, Bettencourt Raposo dá ao seu leitor problemas bem equacionados, apesar de não ter solução para nenhum deles. O que é inaceitável é a sequência de ideias que desenvolve em consequência destes problemas. Como Bettencourt Raposo não conseguiu resolver o problema das outras mentes e do critério da identificação da consciência nos seres vivos, e como sabe que isso é absurdo porque, obviamente, as outras pessoas têm consciência e os animais também parecem ter, acaba por negar a consciência na experiência imediata que cada um tem dela. O seu projeto torna-se o da “demonstração da não existência dos chamados atos do espírito” (1878-79: 431). A vida mental passa a ser, deste ponto de vista, “uma hipótese essencialmente desnecessária” (ibid.). Está-se em presença da mais famosa teoria sobre o papel da mente na ordem natural que a segunda metade do século XIX produziu: o epifenomenismo da consciência.

Não se compreende, porém, como é que Bettencourt Raposo justifica que a natureza se tenha dado ao incómodo de produzir uma estrutura mental, que é constante e não desaparece na vida pessoas, que é universal e que todas as pessoas têm, mas que alegadamente não serve para nada. O autor de Tentando as Asas (1888) estava tão convencido de que a consciência é um efeito secundário sem importância da atividade do cérebro que nunca chegou a reparar de todo na questão filosófica. Afinal, se não serve para nada ter consciência, por que razão é que ela existe de todo? Sem resposta para esta questão, a estratégia argumentativa de Bettencourt Raposo para garantir que a consciência desaparece do seu lugar cimeiro na vida mental humana passa pela denúncia da sua irrelevância. Este é o âmago da tese epifenomenista: a consciência existe mas não serve para nada.

A crítica de Bettencourt Raposo ao comportamento livre ajudou, contudo, a que se pensasse no papel do inconsciente. São muitos os factos que o autor dos Estudos Filosóficos e Fisiológicos sobre a Vida e Algumas das suas Manifestações (1877) inventaria para afirmar a existência de uma vida mental inconsciente. Eis alguns. As impressões sobre a medula não são conhecidas pelo cérebro. As impressões sensoriais desaparecem depois de um período de tempo, mas o movimento celular a que deram origem não desaparece, o que significa que o cérebro continua a trabalhar esses dados sem que deles a pessoa tenha consciência. Afirma Bettencourt Raposo que “a impressão que fora consciente deixou após si uma impressão mitigada inconsciente” (1878-79: 439). Como o cérebro nunca está em descanso, nem durante a vigília, nem durante o sono, a atividade cerebral de que se não tem consciência está na origem dos sonhos e, em casos especiais, das alucinações. A informação que é recebida pelo cérebro para além dos limiares da perceção constitui um outro exemplo de atividade cerebral inconsciente. A periferia do campo visual é, por exemplo, uma zona que continua a receber impressões sensoriais, só que delas não se tem consciência.

O critério que o autor de Sonetos (1936) toma para separar as impressões que se tornam conscientes das que não se tornam conscientes é a intensidade do movimento e da vibração: “para que haja consciência, é preciso … que os movimentos materiais tenham certa intensidade … as ações menos enérgicas tomarão parte na impressão, como não poderia deixar de ser, mas parte não consciente” (1878-79: 54). Bettencourt Raposo avança com uma classificação dos vários tipos de impressões. Existem as impressões sensoriais que se tornam conscientes, as revivescentes, como as memórias que são recordadas devido a algum movimento celular no cérebro, as arquivadas, que se associam a determinadas células para registar eventos determinados que podem mais tarde ser recordados, e as inconscientes, que influenciam o comportamento mas de que o sujeito não tem consciência. Esta tipologia anuncia as futuras classificações de consciente, subconsciente e inconsciente. Como é evidente, Bettencourt Raposo não explica por que razão as impressões especialmente energéticas se tornam conscientes; afinal, há na natureza movimentos muito mais energéticos e violentos do que os que acontecem no cérebro humano, e não é devido a isso que têm consciência. O problema da prova também não é abordado: como se prova que o trabalho inconsciente realizado pelo cérebro é menos energético do que o trabalho consciente? Afinal, se muito do trabalho cerebral é inconsciente, como é que se prova que é menos energético do que o trabalho cerebral que dá origem à consciência? Qual é a diferença entre a alegada energia da vigília e a alegada falta de energia do sono durante os períodos hipnagógicos entre esses estados?

Reparar neste enigma e, sobretudo, tentar solucioná-lo era coisa que não interessava de todo a Bettencourt Raposo, tal como não interessava a Augusto Rocha, a Cândido de Pinho, a Miguel Bombarda, a Júlio de Matos, a Alves Correia e a todos aqueles que os filósofos mais conservadores da época, como Manuel Pinheiro de Almeida e Azevedo e José Maria Rodrigues, classificavam de materialistas. Não interessava porquê? Todos estes autores estavam completamente obcecados pelo problema filosófico da determinação do comportamento humano, assunto conhecido na altura como o problema do livre-arbítrio, e que hoje se reconhece debaixo do rótulo do problema do determinismo e da liberdade. Os rótulos podem ser diferentes mas o que sempre esteve em causa foi o que faz com que cada pessoa decida de um modo ou de outro, faça isto ou aquilo. O que é que determina o comportamento humano? A resposta de Bettencourt Raposo é clara: “o motor dos nossos atos são as nossas impressões, os estados do nosso sistema nervoso, sem o intermédio estranho, e muito menos intermédio arbitrário e livre” (1878-79: 67).

Se a consciência não joga o papel de intermediário entre as impressões recebidas pelos sentidos e as ações que as pessoas realizam, há uma continuidade imediata entre as impressões e os comportamentos. No meio não há nada. É claro que parece haver: parece que há vontade, que existe a iniciativa própria, que há criatividade, que há espontaneidade e liberdade, que as pessoas têm desejos próprios e intenções. A lista do que pode ocupar o lugar do intermediário é grande, mas resume-se em duas palavras: mente consciente. Só que, como se viu, para Bettencourt Raposo, esta existe mas não desempenha nenhum papel. A denúncia sistemática da impotência da consciência tornou-se o melhor argumento de apoio à existência de uma instância mental inconsciente. O que aparta uma instância da outra é apenas a hipotética e não demonstrada intensidade da vibração. Ao afastar a consciência, Bettencourt Raposo fica com o mesmo processo de propagação dos sinais celulares, com a exceção de que não é consciente: “assim como as impressões conscientes podem tornar-se inconscientes, assim também a memória pode ser inconsciente, isto é, podem as impressões reviver sem que se tornem conscientes” (1878-79: 443). Estas impressões que podem reviver sem que se tornem conscientes constituem a vida mental inconsciente. O distinto médico tentará defender o automatismo total do trânsito inconsciente das impressões até aos comportamentos. Contudo, como o processo é inacessível à consciência, e como tem uma vastidão que ultrapassa a capacidade racional dos seres humanos, segue-se que a ignorância sobre a atividade inconsciente será interpretada, para todos os efeitos, como criatividade do próprio inconsciente. Não se sabe como é; acredita-se que funciona sem influência da mente consciente porque está é alegadamente irrelevante; interpreta-se o que se sabe e o que não se sabe como processo inconsciente; em conclusão, atribui-se ao inconsciente o privilégio de determinar toda a vida mental. Este argumento resume o pensamento de Bettencourt Raposo. É digno de nota que um autor tão perspicaz não tenha reparado que este argumento é inaceitável.

A razão para este resultado encontra-se na atração que este autor tinha pelas vantagens de uma visão do mundo em que a consciência não desempenha nenhum papel útil, podendo, até, ser prejudicial. As consequências desta teoria aplicam-se a muitas áreas de atividade. Veja-se como. Esta é a descrição de um mundo em que a vontade não tem nenhum papel. É claro que parece que as pessoas têm vontade própria, mas, quando se considera os factos, vê-se que a vontade livre é ilusória. Este é um mundo sem sujeitos. Bettencourt Raposo afirma sem ambiguidade isto mesmo: “prescindamos do sujeito do verbo sentir; não vimos já que a consciência, que a memória, são a impressão, são o movimento? … O movimento existe, existir é sentir, sentir é existir” (1878-79: 448). Este mundo também não tem ação livre nem de iniciativa das pessoas. Não há imaginação criadora, porque, diz Bettencourt Raposo, “a imaginação provaria a existência em nós de um quid alheio às leis gerais do universo, de um espírito dotado de autonomia”. E conclui imediatamente: “temos de recusar a autonomia da imaginação” (1878-79: 53). Não há hesitações nem escolhas. Não há criatividade também, porque, afirma, “é tão automática a descoberta científica, uma invenção mecânica … como o mais disparatado sonho” (1878-79: 54). A ideologia cegou a tal ponto o discernimento do grande médico que ele não se apercebeu de como é inaceitável tudo o que afirma. Uma descoberta científica tem o mesmo valor que o sonho mais disparatado? São ambos ‘automáticos’? Num mundo que é interpretado de um modo tão implausível quanto este, é evidente que também não acontecem crimes. Parece a qualquer pessoa razoável que existem crimes e criminosos no mundo. A honra (duvidosa) de poder ser responsabilizado por um crime, e de poder ser punido devido a ele, é impensável para uma teoria da mente deste tipo. Como é evidente, se o mundo é desta forma, a teoria faz recomendações de cursos de ação a seguir. Está aberto o processo de denúncia da vontade, do sujeito, da liberdade, da iniciativa, da criatividade e, até, do crime.

Bettencourt Raposo e uma geração inteira de intelectuais portugueses afadigaram-se a aplicar de modo geral à sociedade portuguesa esta teoria da mente. Tudo isto seria muito interessante se fosse apenas um debate intelectual em que se esgrimem argumentos. Estes autores garantiam aos seus leitores que as suas teorias estavam baseadas no maior rigor científico possível, nos factos mais provados em que se pode pensar. O próprio Bettencourt Raposo faz retoricamente muitas confissões de ignorância esclarecida: se não conhece os factos, também não adianta qualquer explicação. Diz ele, por exemplo, “não compreendemos, não explicamos, mas também não nos assaltam temores de chegar ao absurdo” (1878-79: 432). Diz ele, também, que “não temos por ora reunidos dados bastantes para uma boa interpretação, e por isso nos abstemos” (1878-79: 443). Estas confissões extraordinárias são em número elevado no texto, e transmitem uma impressão de grande honestidade intelectual. O drama de autores que acreditam que são intelectualmente honestos é o de não terem espaço para verem que as suas teorias são completamente implausíveis e descrevem um mundo de autómatos, não de seres humanos normais, acordados e livres.

Estas teorias, contudo, a coberto da retórica falaciosa do Positivismo, não ficaram nas estantes das bibliotecas ou dentro das paredes das academias. Estes autores sofisticados tinham de garantir posições influentes no aparelho do Estado, nos hospitais e nas academias. Fazer pela vida implicava retirar o poder a quem o detinha. Não há nenhuma novidade nisto. Estas teorias da consciência inútil e do inconsciente soberano foram rapidamente aproveitadas em todas as áreas da vida social. Apenas um exemplo flagrante. Se não há iniciativa das pessoas, estas também não poderão ter a iniciativa de cometer um crime. Muitos autores da época lutaram frontalmente contra uma legislação penal que responsabilizasse os autores dos crimes. O combate mais importante aconteceu com o debate interminável em torno dos crimes cometidos por alienados mentais. Mas todos os crimes viram reduzidas as suas penas, ao longo dos anos, devido a estas teorias da desresponsabilização penal. Aliás, a linha de fronteira entre crimes cometidos por loucos e crimes cometidos por pessoas no uso da sua razão é suficientemente clara para permitir uma aplicação de penas sem problemas. No século XIX nada disto era evidente, sobretudo porque existiam teorias como a do criminoso nato, de Lombroso, que afirmava que algumas pessoas já eram criminosas mesmo que ainda não tivessem cometido factualmente o crime. A distinção entre alienados e pessoas normais também não era nada clara, e alguns autores afirmavam que qualquer crime era já obra de alienados mentais. Era a teoria do crime como pródromo da loucura. A estas pseudo-teorias há que acrescentar a degeneração, as muitas teorias da hereditariedade mórbida e a teoria do crime como manifestação atávica de comportamentos violentos do passado. Todas estas teorias fantásticas viam boa parte da humanidade em estado decaído e interpretavam os comportamentos individuais como totalmente influenciados pelo passado coletivo e pelo estado degenerado.

Entre nós, e na mesma época em que Bettencourt Raposo defendia a sua teoria da consciência inútil, Alves Correia, por exemplo, publicava na revista Era Nova, de 1880, a sua proposta de aplicação das investigações sobre o cérebro e da reflexão sobre a mente humana à legislação penal e às reformas sociais, no texto “O crime e a responsabilidade”. Para Alves Correia, destas verdades científicas e filosóficas é que “se deduz logicamente a irresponsabilidade moral dos criminosos que, em consequência da sua organização cerebral ser defeituosa, não podem fazer uma apreciação justa das ações a que estão submetidos, e praticam atos prejudiciais para a sociedade mas que eles julgam bons e necessários” (1880: 303). Para que não haja qualquer dúvida sobre o assunto, Alves Correia diz com todas as letras que os crimes acontecem devido à “responsabilidade da sociedade que não educa os seus membros inferiores” (1880: 395). Estas palavras só podem significar que a sociedade não colocou no inconsciente dessas pessoas o controlo do seu comportamento.

Estas teorias sobre o crime derivam em linha direta dos debates intelectuais sobre a natureza da mente humana. Como é evidente, estes debates tiveram amplas consequências em assuntos muito concretos como a legislação penal, a vida penitenciária, os asilos manicomiais, as escolas e a educação, e o culto do corpo, da saúde e da juventude através da educação física. As consequências foram ainda mais dramáticas porque estes debates deram origem a propostas eugénicas violentas. Muitos autores desejaram fazer intervenções mais musculadas nos indivíduos degenerados, impedindo, por exemplo, a sua reprodução, ou fazendo coisas ainda piores. O próprio Alves Correia aponta para este caminho quando afirma que “os elementos inferiores reproduzem-se com uma facilidade espantosa sem que por algum meio os governos pensem em intervir neste estado de coisas”. Em consequência, a sua recomendação é a de que “a sociedade tem o direito de impedir a produção de indivíduos inferiores inaptos para a luta pela existência” (1880: 560). A ênfase na determinação inconsciente do comportamento e o ataque ao papel desempenhado pela consciência influenciaram, como se vê, a produção legislativa, a vida dos tribunais e a ética. Ao lado das tradições popular, filosófica, religiosa e médica a respeito do inconsciente, será necessário colocar a tradição jurídica e a tradição biopolítica de intervenção do Estado nos assuntos íntimos dos cidadãos.[2]

Todas estas ideias estavam no ar da época. O Doutor Miguel Bombarda (1851-1919) chega a afirmar que o comportamento mais correto dos seres humanos acontece na ausência de consciência: “É sabido que um ato automático – não sei até se o diga dos atos intelectuais – tem maior grau de probabilidade de caminhar perfeito quando é inconsciente, isto é, quando a alma está ausente, do que quando acompanhado de consciência” (1898: 244). Os processos orgânicos que decorrem de modo inconsciente são, pois, o modelo da perfeição humana para este médico republicano. A existência da consciência nos seres humanos é um defeito, uma imperfeição. O grande psiquiatra parece mostrar uma inveja da condição animal. Os seres humanos possuem consciência mas seriam muito mais felizes se fossem como os animais. Pior ainda: como os animais parecem ter formas pouco desenvolvidas de consciência, os seres humanos seriam ainda mais perfeitos se fossem como as máquinas, totalmente desprovidas de senciência. A aversão de Bombarda em relação à consciência é tão grande que considera que esta é um obstáculo ao comportamento humano perfeito. Como não pode negar a sua existência, acaba por considerá-la como uma ilusão. Uma existência enganosa não serve para nada e não influencia a sorte biológica dos indivíduos. É claro que até mesmo as ilusões têm de ser explicadas. A única forma de explicação que Bombarda aceita é a do acidente. Com todas as letras: a consciência é um acidente (1898: 275). Mais uma vez, a cegueira ideológica impediu que o distinto médico reparasse nos erros desta conceção da mente humana. A tese do acidente obrigaria a que se provasse, pelo menos, por que razão o acidente é permanente e universal e por que razão a alegada ilusão tem uma estrutura estável. Os acidentes não costumam ter nenhuma destas propriedades.

Em parágrafos com antecipações notáveis de exemplos de Freud em A Psicopatologia da Vida Quotidiana, de 1901, Bombarda identifica um nível elevado de complexidade psicológica mesmo nas cadeias de associações inconscientes. Fenómenos como o lapsus linguae, a criatividade, a gesticulação, a indiscrição e as manifestações fisionómicas das intenções privadas revelam que as associações neuronais inconscientes são construtoras de sentido psicológico. Bombarda continua o legado de Bettencourt Raposo. Também ele repara que a vida mental inconsciente tem uma dimensão superior à que se poderia esperar: “na inconsciência há atividades em muito mais vasta extensão. Ainda não se conseguiram medir as profundidades da vida psíquica inconsciente”. Esta verificação, meritória em si mesma, fez com que formulasse em consequência um programa completo para a investigação do inconsciente: “não é muito pensar que as observações terão de se multiplicar à medida que estes factos se tornarem mais conhecidos e que o campo da inconsciência, já hoje tão iluminado pelos estudos de psiquiatria e de hipnologia, se alargará cada vez mais” (1898: 287).

A vida perfeita e saudável deveria ser inconsciente. Para Bombarda, todos os seres humanos deveriam ser autómatos que não sentissem o que quer que seja. Como se compreende, está posição é muito difícil de sustentar. Bombarda parece mentir a si próprio ao reconhecer que algumas experiências conscientes influenciam o curso da evolução biológica. Ao fazer o inventário de diferenças individuais que o ambiente pode favorecer, Bombarda coloca, surpreendentemente, a sensação subjetiva de prazer: “Se a variação importa uma vantagem para o ser ... porque traga consigo uma sensação de prazer derivada do mesmo facto da adaptação ... se, repito, a variação é vantajosa, pelo seu próprio uso grava-se mais fundamente e, portanto, aumenta a probabilidade para os filhos de a herdarem. … É a seleção” (1898: 230).

Este argumento é muito importante. O que vale para o prazer pode ser generalizado a qualquer outra sensação consciente. Não se compreenderia que não fosse assim. Afinal, a sensação de prazer é uma manifestação da consciência. Se as pessoas não têm consciência de que sentem prazer, então não há prazer. É axiomático que não há prazeres inconscientes. Todos os prazeres são conscientes. Bombarda não o afirma ostensivamente mas também não o recusa. Pela lógica interna do seu texto, a sensação de prazer deve ser interpretada como um exemplo prototípico de uma classe. As sensações conscientes de prazer (ou de dor, ou de vermelho, ou de sexo) fazem diferença na história da evolução. Uma descrição científica do processo evolutivo tem de as tomar em consideração. O prazer é uma vantagem para o indivíduo. Se isto é verdadeiro para esta parte da consciência, então também é verdadeiro para a totalidade da consciência. Em resumo, é melhor a consciência do que a inconsciência.

As contradições da tese que defende a vida mental inconsciente são evidentes. Bombarda, porém, nunca abandonará a sua ideia de que a consciência é um epifenómeno causalmente impotente e que seria bem melhor acabar de vez com esse epifenómeno irritante e que não vale nada.

O fascínio por uma humanidade robótica, que se mova exclusivamente de forma inconsciente, sem sentir o que quer que seja, mostra-se também nas obras do médico José Caetano de Sousa e Lacerda (1861-1911). Como Bettencourt Raposo, este clínico, irmão do músico Francisco de Lacerda, tinha uma sensibilidade estética apurada, chegando a publicar volumes de poesia (Hecatombe, 1888, e Flor de Pântano, 1889) e reflexões sobre educação (Esboços de Patologia Social e Ideias sobre Pedagogia Geral, 1901). Esta sensibilidade é difícil de conciliar com o elogio de uma vida desprovida de consciência. O Doutor José de Lacerda tinha, contudo, argumentos racionais para apoiar a sua visão da mente humana. Do seu ponto de vista, quando se começa uma tarefa nova, a consciência está especialmente atenta e alta. Quando já se domina na perfeição essa tarefa, a consciência deixa de existir e até se pode realizar de forma automática. Isto para ele é o modelo perfeito da explicação das relações entre inconsciente e consciente na espécie humana: “a consciência, maximamente viva no início da respetiva aprendizagem nêurica, vai-se embotando tanto mais quanto mais perfeita esta vai sendo”. Como se sabe, o físico alemão Erwin Schrödinger defenderá muito mais tarde, nas suas Conferências Tarner, ideias semelhantes, publicadas no ensaio Mind and Matter (1985: 14-18). Para o Doutor Lacerda, a consciência esteve presente no início da vida na terra, mas, com a evolução e aperfeiçoamento durante milhões de anos, alguns seres conseguiram não ser conscientes, e o futuro é precisamente isso: a perfeição dos organismos acontecerá no futuro quando todos forem inconscientes. Nas suas próprias palavras, “a consciência é uma maneira infantil e decrescente das sensibilidades nêuricas … é um estado inferior e transitório das recetividades nervosas, indispensável para a obtenção do automatismo … na evolução da série viva, a consciência foi pouco a pouco esmorecendo até de todo se extinguir, como aptidão anacrónica e inútil” (1897: 124-5). O Doutor Lacerda não se deu ao incómodo de explicar a sua teoria fantástica: nada teve a dizer que explique por que razão a consciência parece a toda a gente estar ligada aos animais superiores e aos seres humanos, e só a ele parecer que está ligada a seres primitivos do início da vida na terra, sendo, como afirma, “um neurofenómeno curioso” (ibid.). O Doutor Lacerda também não se deu ao incómodo de explicar por que razão viver sem sentir nada é uma vantagem em relação a viver sentindo alguma coisa. Como é evidente, também não se deu ao incómodo de provar a ideia curiosa de que “o cérebro atual chegará, no decorrer do porvir, ao inteiro automatismo” (1897: 126).

IV

Algumas Conclusões

Como interpretar estas ideias tão extraordinárias? Em primeiro lugar, é necessário reparar na longevidade dos modelos de inconsciente que, ao longo do século XIX, foram sendo propostos. O inconsciente como fonte da criatividade manifesta-se em Cândido de Figueiredo, mas também na ideia de Bombarda e Lacerda de que os seres humanos poderiam ser muito melhores se forem totalmente automáticos. O inconsciente como modelo de perfeição do psiquismo manifesta-se no Abade de Faria, que lhe atribui poderes terapêuticos e cognitivos excecionais, e atinge o seu ponto alto na defesa de uma humanidade futura totalmente inconsciente, porque ficará inevitavelmente desprovida de consciência. O inconsciente como instância mental manipulável, seja de cima para baixo (trabalhando a atenção e os gestos para se chegar às memórias profundas), seja de baixo para cima (trabalhando os determinantes inconscientes do comportamento), atravessa todo o século XIX português. Faria desenvolve as técnicas de manipulação, Figueiredo leva-as às últimas consequências na sua fantasia literária, os psiquiatras procuraram técnicas associativas para influenciar os processos inconscientes. Nenhum destes modelos desapareceu, e todos tiveram, e continuam a ter, amplo sucesso junto do público popular, não académico. Os aspetos mais fantasiosos dos modelos do Abade e de Figueiredo, como a capacidade de visualizar épocas remotas e até mundos possíveis, continuam, surpreendentemente, a merecer a atenção de muitas pessoas, como se vê pelo sucesso de autores como Dolores Cannon. O que concluir, pois? Os modelos não são científicos e nunca foram provados. As ideias sobre a mente humana são manifestamente implausíveis. As representações oitocentistas do inconsciente continuam a influenciar muitas áreas da vida contemporânea, da literatura ao Direito, da Psicologia às teorias filosóficas sobre a mente. Pior do que tudo, não há progresso evidente no conceito de inconsciente, nem, aliás, no conceito de consciência. Apesar de todos estes defeitos, este assunto continua a merecer uma atenção continuada. Tudo isto diz muito sobre todos nós.

Repare-se, em segundo lugar, que os grandes teóricos oitocentistas do inconsciente não são autores menores. É verdade que existiram muitos autores populares que divulgaram o assunto junto do público leitor. Contudo, figuras como Bettencourt Raposo, Miguel Bombarda e José de Lacerda fizeram parte da elite intelectual do final do século XIX português. Ideias semelhantes foram defendidas, por exemplo, por distintos professores de Medicina, como Cândido de Pinho (1879-80 e 1882), e por publicistas com reputação na sua época, como Silva Graça (1880-81). Que o assunto tenha merecido centenas de páginas de autores populares e de autores que tinham uma reputação académica a defender também diz muito sobre todos nós.

Em terceiro lugar, veja-se como as várias conceções de inconsciente parecem apontar para um modelo final. A defesa da ideia de que todos os seres humanos viveriam melhor se forem autómatos inconscientes faz nascer um embaraço intelectual enorme. Poder-se-ia perguntar o que leva tantas personalidades cultas a sentirem-se manifestamente desconfortáveis com a esfera consciente das suas decisões? Não é aceitável que se veja neste processo de estruturação do conceito de inconsciente um resultado de investigações científicas que forçaram, de algum modo, os autores a conformarem-se com a importância do inconsciente e com a menorização da consciência. Bettencourt Raposo, Bombarda e Lacerda, entre outros, poderiam afirmar que apenas os motivou os resultados sérios da ciência positiva. O problema é o de que a noção de inconsciente tem características semelhantes tanto em autores mágico-religiosos (não se esqueça que Faria era originalmente um brâmane hindu), quanto em autores científicos. Exemplo disso está a crença de que o inconsciente é uma manifestação dos direitos maternais da natureza sobre os seres humanos, uma perfeição a que se deve voltar para garantir a saúde, como queria o Abade, para adquirir conhecimentos supra-humanos, como queria Figueiredo, para ter um comportamento mais eficiente, como queria Bombarda, e para alcançar o fim último da humanidade, depois das enfermidades da infância coletiva, como a doença da consciência, como queria Lacerda. Nada disto tem a ver com a ciência, e tudo isto diz muito sobre todos nós.

Um quarto aspeto tem a ver com a influência destas ideias sobre o inconsciente. Nenhuma destas teorias morreu, apesar de parecerem completamente absurdas. Estas teorias estão, por exemplo, bem vivas nos tribunais e na legislação penal de muitos países, em que os determinantes inconscientes da ação criminosa são amplamente inflacionados para apoucar os crimes e para atenuar as penas. Há sempre uma teoria do inconsciente ao serviço de alguém para desresponsabilizar os indivíduos que cometeram crimes. O que se passa nos tribunais nasceu, obviamente, no século XIX por ação destes teóricos do inconsciente. Sabe-se que as suas teorias são cientificamente erradas, que são tão fantásticas quanto as ideias do Abade de Faria e a imaginação literária de Cândido de Figueiredo, mas ainda não desapareceram as aplicações amplas que tiveram nos tribunais, na teoria da educação, na prática psicoterapêutica, na clínica médica e na explicação dos processos de criatividade artística. As teorias estão erradas, mas os filhos das teorias estão bem vivos. Também isto diz muito sobre todos nós.

Para terminar, se há alguma coisa a valorizar nestas obras, é o facto de terem equacionado com grande força o papel da instância inconsciente da vida mental humana. O século XIX português foi palco de uma guerra terrível dos seus intelectuais mais notáveis contra a noção de alma, tentando naturalizar na íntegra a vida mental humana. Curiosamente, ao descobrirem o inconsciente, descobriram também a profundidade da alma. Não estava na intenção deles descobrir qualquer profundidade num assunto que pensavam que era ilusório e não existente. Como a vida das ideias é muito complexa, estes autores acabaram por demonstrar que o tal assunto que não existe é, afinal, dotado de grande profundidade. Dizendo de outro modo: para que algo tenha a propriedade de ter grande profundidade, é evidente que tem de existir. Só podemos estar gratos a estes autores. Os seus erros foram tão grandes que só os podemos felicitar. Vimo-nos ao espelho nesses erros.

 

Referências

Fontes Primárias

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Sequeira, Mont’Alverne de (1889), Hypnotismo e Sugestão. Esboço de Estudo, 2ª ed., Lisboa, Witer & C.ie.         [ Links ]

Estudos

Darmon, Pierre (1989), Médecins et assassins à la Belle Époque. La médicalisation du crime, Paris, Seuil.         [ Links ]

Eigen, Joel Peter (2004), Unconscious Crime. Mental Absence and Criminal Responsibility in Victorian London, Baltimore, Johns Hopkins University Press.         [ Links ]

Ellenberger, Henri F. (1970), The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic Psychiatry, New York, Basic Books.         [ Links ]

Schrödinger, Erwin (1985). Mente y materia. Conferencias Tarner, trad. Jorge Wagensberg, Barcelona, Tusquets [1956].         [ Links ]

Tallis, Frank (2002), Hidden Minds. A History of the Unconscious, New York, Arcade.         [ Links ]

Whyte, Lancelot Law (1960), The Unconscious before Freud, New York, Basic Books.         [ Links ]

Winter, Alison (1998), Mesmerized. Powers of Mind in Victorian England, Chicago, The University of Chicago Press.[3]        [ Links ]

 

Notas

[1] Veja-se, por exemplo, como Boyle, um dos protagonistas científicos mais famosos da Royal Society of London, investigou esta estranha hipótese, em Michael Hunter, ed., The Occult Laboratory: Magic, Science and Second Sight in Late 17th-Century Scotland (Woodbridge, The Boydell Press, 2001). Kant dá sinal de um interesse semelhante, muito crítico, aliás, no seu Sonhos de um Visionário Explicados pelos Sonhos da Metafísica (1766).

[2] É indubitável que são necessários estudos detalhados sobre os casos judiciais portugueses em que se invocou a determinação inconsciente do comportamento como causa do crime, à luz do que já foi feito para os casos franceses, por Pierre Darmon (1989), e para os casos ingleses, por Joel Peter Eigen (2004), entre outros.

[3] Agradeço ao Doutor Vítor Moura o convite para proferir as conferências “A Reflexão sobre a Vida Mental no Século XIX Português”, no IX Encontro da Sociedade Portuguesa de Filosofia, na Universidade do Minho, a 9 de setembro de 2011, e “A Noção de Inconsciente em Portugal no Século XIX”, no X Simpósio Luso-Galaico de Filosofia, na Universidade do Minho, a 28 de outubro de 2011. Agradeço ao Doutor David Simón Lorda a integração da conferência “Un mundo degenerado: sucesos y miserias de los psiquiatras portugueses del siglo diecinueve”, nas IX Jornadas Nacionales AEN de Historia de la Psiquiatría, “Razón, Locura y Sociedad. Una Mirada a la Historia desde el Siglo XXI”, em Ourense (Galicia), a 6 de outubro de 2012. Agradeço aos Doutores Ana Leonor Pereira e João Rui Pita o convite para fazer a conferência plenária “A Descoberta do Inconsciente no Século XIX Português”, no 1º Congresso Internacional de História Interdisciplinar da Saúde, na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, a 18 outubro de 2012. Agradeço à Doutora Maria Antónia Jardim o convite para fazer a conferência “Degeneração e Loucura em Fernando Pessoa”, no colóquio Os Chapéus Psicológicos de Pessoa, na Universidade Fernando Pessoa, Porto, a 18 de outubro de 2012. Agradeço ao Dr. Joaquim Domingues um texto seu sobre o Abade de Faria, ainda não publicado; ao Dr. José Morgado Pereira a indicação da obra do Dr. José de Lacerda; e a Cristina Costa o trabalho conjunto sobre o Abade de Faria.