SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 número2Informe para una academia o elogio de la filosofíaFeminismo e filosofía política: reflexións sobre o canon e a academia índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

O problema das filosofias nacionais e da filosofia como saber universal: o caso português

The problem of national philosophies and philosophy as universal knowledge: the portuguese case

Pedro Martins*

*Universidade do Minho, Departamento de Filosofia, Braga, Portugal

pmmartins@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Pretendemos avaliar, criticamente, as noções de “filosofia nacional” e/ou “pátria”, tanto em geral, como no caso português, de modo a sustentar uma perspectiva universalista – mas não conotável com a philosophia perennis - da filosofia (em Portugal) e da sua história. O conceito de filosofia nacional, excepto num sentido nominalista, é ambíguo visto que está vinculado ao conceito moderno de nação, o qual, consoante diferentes acepções e usos, pode ter implicações contraditórias para a noção primordialista de “filosofia portuguesa”. A noção de filosofia pátria origina dificuldades semelhantes: a cultura pátria não é homogénea nem implica necessariamente uma filosofia única; a relação entre filosofia e cultura não é unívoca e transparente; a filosofia, dados os seus temas e problemas e o seu carácter crítico, não se reduz à mera expressão de génios colectivos/identidades; o carácter “situado” da filosofia portuguesa não deve ser encarado num sentido particularista. O “argumento linguístico” só tem cabimento se entendermos a relação entre língua/cultura, por um lado, e pensamento/filosofia, por outro, de modo essencialista e exclusivista, o que não é plausível à luz da filosofia da linguagem. A “Filosofia Portuguesa” é um jogo de linguagem, entre muitos, que contradiz o carácter universalista da filosofia em Portugal e as suas próprias fontes de inspiração (Bruno, Coimbra). O ensino da filosofia em Portugal deve reflectir um carácter universalista, pluralista e crítico.

 

ABSTRACT

We aim at a critical evaluation of the concepts of “national philosophy,” and / or “fatherland philosophy” in general as well as, and more specifically, in relation to Portugal. We wish to reach a universalistic perspective –not to be associated to the philosophia perennis– of Portuguese philosophy and its history. Except in a nominalist sense, the concept of national philosophy is ambiguous since it is linked to the modern concept of nation and according to different usage and connotations, may have contradictory implications for a primordialistic notion of “Portuguese philosophy.” The defense of a fatherland philosophy may end up with the same difficulties: national culture is not homogeneous and does not presuppose a single philosophy. The relationship between philosophy and culture is not univocal or transparent; given its themes and problems and its critical character it is not to be reduced to the mere expression of collective genius or identity; the character in Portuguese philosophy must not be faced in a particularistic sense. The “linguistic stand point” is only defensible if we admit the relationship between language/culture, on one hand, and thought/philosophy, on the other, in an essentialist and exclusivist way, which is not plausible under Philosophy of Language. “Portuguese philosophy” is a language game, among many others, that contradicts the universalist character of philosophy in Portugal and its own sources of influence (Coimbra, Bruno). The teaching of philosophy in Portugal must reflect a pluralistic and critical value.

 

Embora a designação “Filosofia em Portugal”[1] possa subentender critérios e orientações universalistas na sua acepção corrente, na prática, todavia, poderia ser orientada por um de dois pressupostos, mutuamente exclusivos, a saber:

a) Um pressuposto universalista em relação à noção de filosofia, que pode ter alcances diversos, desde a philosophia perennis às perspectivas mais relativistas. Nesta óptica, a filosofia é um saber de âmbito universal. Não há filosofias nacionais ou pátrias mas sim expressões - culturalmente condicionadas e variáveis historicamente, é certo - de um saber que é eminentemente universal, quanto aos seus objectos, métodos, teorias, conceitos e problemas, a despeito da sua mutação.

b) Um pressuposto particularista e identitário, cujo exemplo mais notório é o contemporâneo movimento da “Filosofia Portuguesa”, para o qual a filosofia tem, matricialmente, um cunho nacional/pátrio ou manifesta uma identidade cultural forte, reflectindo formas idiossincráticas de enquadrar os problemas, métodos, problemas, etc

Desde logo, poderíamos objectar que este enquadramento reflecte um falso dilema. Havendo posições intermédias não haveria necessariamente oposição entre o carácter particular e universal da filosofia. A particularidade (cultural, linguística, histórica), afinal, representaria o modo de ser universal da filosofia. Mas, vamos admitir, para os propósitos da nossa breve reflexão, embora correndo o risco de incorrer em simplificações, este enquadramento da questão.

Nesta medida, pretendemos avaliar a pertinência e os fundamentos da noção de “Filosofias Nacionais ou “pátrias” em geral e da noção de filosofia portuguesa em particular. Justificar a crença de que, num sentido anti-essencialista e atento à historicidade, a filosofia e a sua história têm um âmbito universal passa, em grande medida, por avaliar, criticamente, a ideia de filosofias nacionais ou pátrias, bem como aferir a sua pertinência para o caso português, na esteira de importantes contributos críticos coevos[2].

1. A filosofia e as nacionalidades

A filosofia nacional pode ser entendida, numa acepção forte, como a filosofia “própria” e exclusiva de uma nação. Há, portanto, uma correspondência unívoca e vinculativa entre os dois termos e conceitos. Talvez seja uma simplificação abusiva, mas parece ser neste sentido, implícita ou explicitamente, que o termo é mais usado nos escritos teóricos favoráveis à ideia de uma filosofia portuguesa, entendida esta como um caso específico de uma noção mais geral de filosofia nacional.

António José de Brito, num estudo crítico recente, enuncia de modo claro esta acepção: “A filosofia está vinculada a cada nação de uma maneira completa e total. Assim, a filosofia será nacional pela sua raiz mesma, quer dizer, a cada nação corresponderá uma filosofia diferente das filosofias das restantes nações.” (António José de Brito, 1990: 413)

Ora, deixando de lado a espinhosa definição da filosofia enquanto saber, de imediato surge um problema conceptual relacionado com o sentido e alcance do qualificativo “nacional”. Na verdade, o conceito de nação está longe de implicar uma só definição e um significado unívoco. Consequentemente, seja qual for a definição formulada, o conceito de filosofia nacional sairá enfraquecido ou perderá mesmo o sentido pretendido, na base da relação congénita estabelecida entre filosofia e nação.

A nação pode até ser entendida como uma instituição mutável - se não mesmo a caminhar para o seu ocaso, pelo menos na sua forma histórica oitocentista -, do mesmo modo que a sua conceptualização e história crítica, bem mais recente. Se assim fosse, a não ser de modo nostálgico, as filosofias nacionais, enquanto superiores formas de saber e cultura ligadas umbilicalmente a uma instituição marcante na história europeia e universal, mas datada, teriam o seu destino traçado. Não adoptamos essa linha de argumentação radical visto que assenta numa premissa discutível e controversa.

Mas, vejamos apenas duas maneiras de tratar a questão. Podemos tomar a nação como algo de moderno e matricialmente político na sua origem, que teve um início, uma vigência e possivelmente um término (embora seja indeterminável). Muitos investigadores pensam assim, embora a genealogia, naturalmente, possa ser desenvolvida de modos diferentes. A origem da nação radicaria, fundamentalmente, na revolta romântica contra o universalismo das luzes e, em paralelo, com um contexto social, político e económico (advento da burguesia e do capitalismo, declínio do feudalismo, centralização administrativa, política e burocrática, etc) que não encontramos, por exemplo, na idade média ou na antiguidade, visto que implica a construção de uma estrutura política, burocrática e administrativa (Weber) dotada de uma racionalidade intrinsecamente moderna.

No sentido ideológico, relevante para o caso, a ideia de nação foi, em larga medida, uma construção retrospectiva dos intelectuais modernos (escritores, historiadores, filósofos), intimamente ligada à génese dos regimes demo-liberais modernos. Contudo, a despeito do seu pendor cultural e identitário, das raízes românticas que se lhe podem atribuir, a ideia de nação, na sua génese moderna, apresenta uma dimensão substantivamente jurídico-política e institucional e não apenas étnica, cultural e linguística, embora estes elementos, no âmbito da ascensão ideológica do nacionalismo contemporâneo, tenham sido usados para a naturalizar e legitimar (v.g. o republicanismo português).

Podemos, assim, arriscar uma hipótese interpretativa: os movimentos das filosofias nacionais (em particular o português), a despeito do seu aparente apoliticismo, do seu carácter metafísico e espiritualista, são uma expressão cultural - talvez datada - do nacionalismo moderno e podem surgir em diversos contextos de crise, sobretudo (e a par com a literatura, a história, etc) enquanto legitimadores de ideologias e retóricas nacionalistas e/ou patrióticas. Os seus intelectuais falariam, assim, em nome da sua nação e de uma cultura, neste caso filosófica, supostamente partilhada ou inspirada pelo “povo”, outro conceito susceptível de equívocos.

António Paim, um dos estudiosos brasileiros do problema, faz remontar a origem das filosofias nacionais ao surgimento paralelo dos modernos estados-nações, processo relacionado intimamente com a afirmação e autonomização das línguas e culturas nacionais. Tal processo repercutiu-se, naturalmente, também na filosofia, que, não por acaso, passou a ser escrita e divulgada exclusiva, e orgulhosamente, em línguas pátrias, de que fornece vários exemplos. Nas suas palavras, “As filosofias nacionais, no sentido em que as tomamos aqui, surgem com a filosofia moderna. Seu processo de formação acompanha de perto a emergência das nações e a quebra da unidade lingüística na Europa.” (Antonio Paim, 2007: 16)

A despeito de aparentar plausibilidade histórica e coerência esta tese suscita dúvidas. O facto de a filosofia ter passado a ser escrita em línguas pátrias, em detrimento do latim, língua filosófica universal usada durante séculos a fio, significa necessariamente que o seu âmbito temático e problemático passasse a adquirir um cunho nacional? Não nos parece.

Segundo, há alguma ligação orgânica e concomitante entre a emergência histórica das nações e as filosofias nacionais (entendidas no sentido enunciado por A.J. Brito) ou, pelo contrário, as concepções de filosofia nacional foram bem mais tardias? Mais, será que há verdadeiramente uma sincronia entre o surgimento das nações, a afirmação das línguas pátrias e a emergência das filosofias nacionais?

Os mais variados contra-exemplos contrariariam esta tese, a começar pelo português. Salvo, claro, se não tomarmos o termo “filosofia nacional” numa acepção particularista mas num sentido mais ligeiro de “filosofia (universal) praticada e divulgada na língua materna”, tendo em conta, sobretudo – num contexto moderno e tendente à superação da escolástica - motivações pragmáticas ligadas à pedagogia, ao processo de secularização do saber e ao imperativo ilustrado de divulgação da filosofia a um público mais vasto. Em Portugal, temos o exemplo da Lógica Racional Geométrica e Analítica (1744) de Manuel de Azevedo Fortes e do Verdadeiro Método de Estudar de Luís António Verney (1746), entre outros.

Em todo o caso, o Prof. Braz Teixeira apesar de comungar um ponto de vista similar, no prefácio à obra citada, avalia criticamente a tese de Paim e avança uma concepção tendencialmente primordialista do conceito. Isto é, faz remontar as bases ou origens da filosofia portuguesa a uma tradição medieval mais remota, anterior mesmo à formação do estado-nação português, estabelecendo, por exemplo, um paralelismo entre o pensamento de S. António e Leonardo Coimbra:

“Com efeito, cumpre não confundir o aparecimento do Estado - que, note-se, em Portugal, ocorreu no séc. XII, diversamente do que aconteceu com a generalidade dos países da Europa ocidental, em que é muito mais tardio - com a emergência das nações, que antecedeu aquele, nalguns casos, de vários séculos. Por outro lado, a gênese da filosofia portuguesa é claramente medieval, como o ilustram, de modo exemplar, figuras como Santo Antônio, Pedro Hispano, Álvaro Pais, o rei D. Duarte, o infante D. Pedro ou o anônimo Livro da Corte Imperial, para não falar já em Paulo Osório ou em S. Martinho de Dume, pensadores que, embora anteriores ao aparecimento de Portugal como Estado independente, marcaram profundamente alguns rumos posteriores da reflexão portuguesa.”

(Braz Teixeira, apud António Paim, 2007: 9)

Este ponto de vista, tantas vezes reiterado, afigura-se-nos problemático em termos histórico-conceptuais. Equivaleria, num certo sentido, a afirmar que a filosofia da nação portuguesa teria surgido antes do surgimento da própria nação. No mínimo, suscita dúvidas de interpretação em relação ao conceito de nação usado.

Seria lícito argumentar-se que as nações são uma criação moderna e, nesse sentido, não correspondem a uma forma mentis que supostamente remontaria às origens primordiais/medievais (mesmo em Portugal) – sendo essa a narrativa da filosofia portuguesa. Logo, falar de uma filosofia vinculada a uma realidade/noção ainda não devidamente formada constituiria um anacronismo. Porém, mesmo que admitíssemos uma génese das nações anterior à modernidade haveria sempre lugar para questionar o rigor e a univocidade do conceito de “filosofia nacional”. Numa palavra, quando falamos de “filosofia nacional” falamos de filosofia da “nação” entendida esta última em que sentido?

De facto, a ideia de nação tem adquirido significados e acepções divergentes, no contexto das análises científicas e filosóficas mais recentes[3]. Assim, dificilmente poderia corresponder, de modo unívoco, à noção forte de filosofia nacional, sabiamente enunciada e criticada por A. J. Brito (A. J. Brito, 1991).

Mas há mais. Se a nação, quer tenha raízes e vigência mais remotas ou mais modernas, não é necessariamente um organismo cultural e linguisticamente homogéneo mas, acima de tudo, uma construção institucional jurídico-política (marcada pela ideia de estado, soberania, território, população) haverá razões para pensar que filosofia de uma nação terá também esse carácter homogéneo[4], a não ser de forma limitada? Sendo certo que, a nível do ensino, as mutações institucionais desencadeadas pela formação dos modernos estados-nações e pela sua consolidação e vigência, tiveram repercussões fortes, no ensino e divulgação da filosofia (particularmente em Portugal), a relação vinculativa entre filosofia e nação dificilmente poderá ser aceite de modo simplista. Aliás, neste aspecto, a posição do movimento da filosofia portuguesa não se afigura coerente, visto que, aparentemente, aceita a filosofia da nação política organizada em estado em alguns casos (no período da segunda escolástica e dos conimbricenses) e já não aceita em outros (designadamente, após as reformas pombalinas).

Compreende-se a justificação e a grande narrativa fundadora em que se insere, pautada pelo divórcio estabelecido, a partir da ilustração, entre a filosofia tida como genuína, da nação multissecular e primordial, e a filosofia imposta, de modo centralizador, pelo estado/academia de matriz iluminista e estrangeirada[5]. Com efeito, a partir do reinado de D. José I, a auto-suficiente pátria pensante (escolástica, aristotélica, teocêntrica) passaria a ser marginalizada e alienada pela universidade estatal, até à fundação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Leonardo Coimbra) e mesmo depois da sua extinção. Esta interpretação da história da filosofia em Portugal é profundamente discutível e contradiz um património já considerável de investigação. Todavia, mesmo sem entrar na sua avaliação crítica e desmistificação – um trabalho que merece ser levado a cabo -, o rigor conceptual do termo filosofia nacional/portuguesa sai profundamente abalado[6].

Por todas estas razões, brevemente enunciadas, seria pouco plausível admitir uma correspondência e identidade entre “filosofia”, por um lado, e “nação”, por outro. Teríamos, à luz das evidências, de considerar várias filosofias numa nação, mas desde que se admitisse um pressuposto também discutível: que cada comunidade cultural, linguística e religiosa desenvolvesse apenas uma filosofia particular ou, quando muito, um modo peculiar de fazer filosofia, diferente de todos os outros, o que se afigura implausível e contraria a história da cultura e da filosofia (em Portugal).

Reconhecemos que Portugal, excluído o período colonial, não foi uma nação pluriétnica e/ou multicultural, pelo menos com a amplitude de outras nações. Tem havido aparentemente uma relativa homogeneidade cultural, linguística, até religiosa, construída mais cedo do que em outros estados-nações. Mas essa situação não corresponde de todo a uma identidade cultural imutável, una e cristalizada. Não havendo comparação, por exemplo, entre a nossa condição e a do país vizinho, o conceito de “Filosofia espanhola” afigurar-se-ia ainda mais estranho e implausível, o que reforça o nosso argumento.

Mesmo ressalvando esta circunstância ímpar, a pretensa homogeneidade e/ou identidade tantas vezes proclamada (de língua, cultura e religião), e por consequência, de filosofia, afigura-se questionável, para não dizer falsa, à luz da história, da sociologia, da antropologia e de outras abordagens críticas (história da cultura, das mentalidades, das ideias e da filosofia). Mesmo se admitirmos uma relativa homogeneidade num determinado ciclo histórico (o que, aliás, dificilmente se pode aceitar), no plano diacrónico da longa duração não a poderíamos admitir.

Em suma, seja qual for o ângulo de análise, afigura-se uma generalização abusiva sustentar que em toda a nossa experiência histórica, e mesmo em cada século ou conjuntura particular, teria havido um substrato cultural e religioso, ou até político/comunitário, com um sentido comum, “nacional”, que reflectiria ou sustentaria uma perspectiva filosófica coerente[7].

Por outro lado, mesmo se, por redução ao absurdo, o admitíssemos, a aceitação dessa premissa não implicaria que apenas uma filosofia (ou um modo peculiar de fazer filosofia e/ou de privilegiar certos temas filosóficos e enfoques) surgisse como expressão decorrente do ser nacional. Ainda faltaria demonstrar que a existência de uma identidade cultural em ligação a uma autonomia política (um “génio nacional”) implicaria, de modo unívoco e vinculativo, uma filosofia nacional.

Sendo a filosofia uma forma de cultura altamente intelectualizada (como a ciência, a arte, a literatura) fica por esclarecer a relação entre a filosofia e outras formas de cultura não filosóficas numa sociedade concreta (como as tradições, a religião, a língua, os mitos fundadores, etc). Para os adeptos da Filosofia Portuguesa esta relação não é problematizada. Mas, como o sábio Padre Manuel Antunes já havia notado, num artigo extremamente lúcido publicado há 55 anos, qualquer que seja a acepção de filosofia adoptada não a poderemos reduzir, em virtude do seu pendor crítico e analítico, a mera expressão ou revelação, mais uma menos intuitiva ou acrítica, de qualquer mundividência ou Weltanschauung.

De facto, não cremos que o mais valorizado na filosofia e sua história, quando ainda hoje – e bem - regressamos aos filósofos do passado, seja a filiação cultural, religiosa ou étnica - nacional se preferirmos - e o modo como tudo isso se reflecte nas teorias (o que aliás acontece e deve ser considerado mas não num sentido de determinação absoluta). Quando estudamos filosofia, mesmo a do passado mais remoto, procuramos reconstruir, em primeiro lugar, não a pátria ou filiação cultural/religiosa dos filósofos, mas o valor intrínseco[8] das suas teorias filosóficas, por estatuto mais contingente e frágil que possamos atribuir à filosofia em geral.

Sob um ponto de vista, nem sempre aceite, em história da filosofia, a contextualização histórico-cultural é importante e não deve ser descurada. Do ponto de vista pedagógico, consideramo-la necessária para compreender a periferia do pensamento filosófico português, asfixiado, no passado, por condicionamentos assaz limitadores. Contudo, Kant, por exemplo, desperta a atenção não pelo facto de a sua filosofia reflectir, supostamente o “espírito alemão” ou o pietismo, mas pelo seu contributo reflexivo e argumentativo para as grandes questões de epistemologia, ética, política ou estética.

Mesmo concedendo que as filosofias universais podem não ser mais do que justificações elaboradas de preconceitos particulares ou etnocêntricos, de interesses de classe ou ideologias, porventura o mais marcante na filosofia e na sua história é, entre outros aspectos, o contributo dado para a criação de conceitos, teorias e argumentos novos, não o facto de se reflectir determinados preconceitos ou génios colectivos.

Nesta medida, um ponto fundamental na nossa crítica passa pela clarificação do tipo de relação existente entre a filosofia e a cultura de origem (sem a negar de todo), ressalvando que a cultura humana jamais teve fronteiras bem delimitadas, muito menos a filosofia, uma forma de cultura entre outras. Outra questão aparentada (mas relevante metodologicamente no domínio da história da filosofia) reside em saber até que ponto essa pesquisa importa, e em que grau, para o estudo actual e vivo das filosofias enquanto filosofias, isto é dos seus problemas, teorias, sistemas, conceitos, argumentos, métodos, discursos.

O conceito de filosofia nacional a fazer sentido terá de revestir um alcance bem mais modesto. Sem dúvida, o seu direito de cidadania no domínio da filosofia contemporânea nem se discute. A despeito das fragilidades e contradições que, a nosso ver, lhe são imputáveis, há toda a legitimidade teórica em defender tal perspectiva mas também, pela mesma ordem de razões, para a criticar. Na nossa leitura, a “filosofia portuguesa” longe de ser, na acepção substantiva e histórica pretendida, uma “filosofia nacional”, parece identificar-se sobretudo com a perspectiva construída e defendida, no século XX, por um determinado sector do pensamento nacional, através de uma elaboração retrospectiva engenhosa, em muitos casos dotada de brilho e erudição.

2. Filosofia e pátria

Talvez se deva então conceder que a expressão mais adequada para designar aquilo que vulgarmente se entende por “filosofia nacional” seja “filosofia pátria”.

Tal como Fernando Catroga tem advertido (Catroga, 2011), o conceito de pátria (ligado a um sentimento comum de pertença e partilha de liames culturais, históricos, até de um território ou “espaço vital”), sendo mais primordial – e não revestindo obrigatoriamente um alcance político e uma vigência moderna (no âmbito da génese do estado moderno e das estruturas sociopolíticas e jurídico-institucionais concomitantes), adequa-se melhor ao sentido identitário almejado. Será sobretudo com este alcance que a noção de “filosofia portuguesa” é defendida por Álvaro Ribeiro. Também José Marinho, demarcando-se do estreito nacionalismo salazarista, escreveu no mesmo sentido: “Contra o que temos visto em Portugal nos últimos anos, a tónica foi posta sobre pátria e patriotismo, não sobre nação e nacionalismo.” (José Marinho, 1981: 10)

Desta forma, o pensamento filosófico português poderia ser encarado como a encarnação ou a expressão, no âmbito do saber especulativo e da metafísica, de uma forma mentis peculiar e auto-suficiente do ponto de vista cultural. Essa forma mentis, de acordo com a narrativa habitualmente glosada, teria um enraizamento profundo em peculiaridades linguísticas, culturais, geográficas e sobretudo religiosas, enfim numa tradição, sentimento e mundividência peculiares, irredutíveis às filosofias europeias, “nórdicas”, como diria Orlando Vitorino num ensaio de 1976 intitulado “Refutação da filosofia dominante”. No ponto anterior já desenvolvemos, em aspectos fundamentais, a crítica desta pretensão, mas a sua análise merece aprofundamento.

A despeito de algumas marcas universalizantes que afloram aqui e ali, este enquadramento, não assumidamente nacionalista, é recorrente e traduz-se na defesa de uma perspectiva “situada” e “radicada” da filosofia, como a patente na seguinte citação:

“Em sua radicalidade, o problema da filosofia nacional é o problema da filosofia. Universal no seu anseio e destino, como busca plural e convergente da verdade, sempre e a cada momento recomeçada e posta em causa, interrogação cuja resposta não esgota nem capta de uma vez por todas o perene sentido do existente e suas razões, a filosofia, enquanto tal, isto é, enquanto pensar no homem e do homem, participa da sua própria condição de ser situado no mundo, numa pátria, numa língua, numa cultura, num culto.

Individual e nacional no seu ponto de partida e em sua raiz, múltiplo na aventurosa variedade dos caminhos especulativos que se lhe abrem, o filosofar é também e simultaneamente, universal no sentido último da sua indagação e finalidade. Deste modo, contrapor abusivamente ao caráter nacional da filosofia a sua universalidade seria o mesmo que negar à ave o voar só por ter pernas, na feliz imagem de um pensador contemporâneo [José Marinho]”.

(Braz Teixeira, apud Antonio Paim, 2007: 16)

Mas, afinal, o que significa afirmar que a filosofia é um saber “situado”, “concreto” (numa pátria, língua, religião, tradição, etc). É crucial tentar reconstruir a fundamentação filosófica subjacente. Será uma certa forma de existencialismo, de tradicionalismo romântico, a vaga transposição analógica do existencialismo de pendor personalista para a esfera de um saber/experiência colectivos?

A afirmação, a nosso ver, poderia pressupor, pelo menos, uma de duas posições:

a) Um ponto de vista de historicismo moderado, ou prudente, contrário a uma perspectiva controversa de philosophia perennis ou da filosofia como algo absolutamente “objetivo, intemporal e atópico” (Gama Caeiro).

Tratar-se-ia, portanto, de um lugar-comum para os estudiosos da história da filosofia e das ideias, bem como de disciplinas afins: o pensamento filosófico, tal como qualquer outra forma de cultura, tem um contexto e uma história. Como vários filósofos e historiadores das ideias e da filosofia têm sublinhado, as ideias filosóficas não equivalem a formas platónicas cristalizadas. Não são construídas numa redoma ou torre de marfim, fora do tempo e do espaço, dos interesses e das lutas sociais e políticas. Consoante a nossa orientação epistemológica, podemos até admitir que a filosofia reflecte e justifica, ainda que de modo elaborado e crítico, preconceitos religiosos, filiações culturais, condicionamentos políticos e ideológicos, até interesses de classe.

Todavia, os condicionamentos poderão não destruir o carácter universal ou universalizante[9] dos problemas filosóficos e a sua natureza (ou pelo menos de alguns problemas filosóficos recorrentes), bem como a discussão permanente em torno da sua justificação argumentativa, que nunca foi de âmbito estritamente nacional ou pátrio, mas sempre abrangeu horizonte mais vasto, humano, poderíamos afirmar.

Por outro lado, a situação concretada filosofia portuguesa ao longo da sua história não fornece motivos para idealizações retrospectivas ou prospectivas. E sem cair numa perspectiva essencialista (ora centrada na nossa incapacidade congénita para a reflexão filosófica ou na hiperbolização megalómana do seu contrário, como enfatizou Eduardo Lourenço[10]), poderíamos apontar uma série de factores de natureza diversa que, no passado, condicionou fortemente o desenvolvimento da filosofia em Portugal. Um dos mais marcantes, na nossa perspectiva, terá sido a ausência de liberdade de pensamento e discussão durante longos séculos, devido à actuação de mecanismos diversos de censura, como a inquisição (quer por motivos religiosos, quer por motivos religiosos e políticos) e, já no século XX, dos mecanismos repressivos e censoriais do Estado Novo.

b)Noutra perspectiva, que está em discussão, defender uma filosofia situada ou “radicada”(segundo a eloquente expressão de Marinho) pode pressupor uma perspectiva exclusivista, identitária, redutora, paroquial, e até mesmo regressiva, quer da filosofia, quer da cultura. A bem dizer, esse particularismo não corresponde ao legado universalista da maior parte da filosofia praticada em Portugal, ao longo de vários séculos de história – duvide-se ou não da sua originalidade -, nem sequer, sublinhe-se, ao contributo especulativo dos proclamados mestres e inspiradores da Filosofia Portuguesa, como Sampaio Bruno ou Leonardo Coimbra. O mesmo se poderá afirmar dos melhores subsídios dos seus seguidores contemporâneos.

Todavia, lendo os textos e as perspectivas hermenêuticas (quase sempre apologéticas de um modo acrítico) dos adeptos portugueses da filosofia pátria parece ser precisamente nesse sentido, na maior parte dos casos, que encaram o carácter “situado” da filosofia. Assim, a expressão seria um eufemismo para designar um ponto de vista particularista e paroquial, por vezes com sentido regressivo, isto é, nostálgico de concepções e mundividências pretéritas, quase à maneira de um “integralismo filosófico”. Estaríamos perante mais uma incongruência. Assumindo-se a filosofia como um saber situado e “radicado” seria forçoso reconhecer que a “situação” da filosofia portuguesa, hoje, em termos de contexto, pluralismo, abertura cosmopolita e internacionalização, é radicalmente outra e talvez não seja viável ou fecundo, embora legítimo e admissível, pautar a filosofia presente por critérios da segunda escolástica ou do século XIX.

Perante estas críticas, que não são novas ou originais, argumenta-se que a filosofia só pode ser universal de um modo “situado” e que tal enraizamento não contradiz o seu horizonte genuinamente universal, sendo a única forma de o alcançar ou conceber, da mesma forma que as laranjas nacionais não deixam de ser laranjas pelo facto de serem portuguesas (José Marinho). Na mesma ordem de ideias, segundo a metáfora de José Marinho, uma ave pelo facto de ter pernas não significa que esteja impedida de voar: “Como é possível conciliar o sentido universal da filosofia com o conceito de uma filosofia radicada? O problema equivale a este: se a ave tem asas, como se compreende que tenha pernas?” (José Marinho, 1981:9)

Em última instância, nesta perspectiva “radicada”, o enraizamento das pernas da ave no solo pátrio torna-se tão forte que acaba por aprisioná-la, impedindo-a de voar para voos mais universais e europeus, mais filosóficos, tal como aconteceria à avestruz. A questão da terra, da posição geográfica (finisterra) e das raízes concretas do nosso pensar filosófico têm sido aliás decisivas para a filosofia portuguesa, de um modo talvez exagerado e obsessivo, que ainda menos sentido faria nos dias de hoje.

Poderíamos aferi-la numa citação como esta, da pena do mesmo autor:

“Nós estaríamos postos não apenas geográfica mas espiritualmente no extremo da terra e seríamos os homens que carregados de passado e vida remotíssima teríamos antecipado o que nos dá agora a Europa como situação existencial, paradoxal e absurda.

O conceito de filosofia portuguesa, com todas as relações que possam nele encontrar-se com o conceito de filosofia nacional, implica, supomos, esses ou alguns desses aspectos a considerar. Portugal tem, como qualquer outro povo da Terra, uma situação própria. […] Pretender ignorar tal situação e transcendê-la ou superá-la, parece próprio do pensamento teorético ou especulativo enquanto tal. Quando, porém, nos interrogamos sobre os caminhos do nosso pensamento, sobre o que é em nós a filosofia, tal situação condicionante faz parte do problema e não pode portanto pôr-se de lado.”

(José Marinho, Idem:14)

Não negamos, contudo, que uma reflexão desse tipo se deva fazer mas essa não é a questão. Infelizmente, a concepção de filosofia desenvolvida pelo movimento da filosofia portuguesa – que nem sempre corresponde ao teor da filosofia efectivamente praticada pelos seus defensores (para bem dessa filosofia) -, de um modo geral contradiz o universalismo professado, a nosso ver meramente retórico e formal. Talvez com a excepção de José Marinho, Agostinho da Silva e outros autores mais recentes como Paulo Borges, cujos pensamentos, de modo diferenciado, reflectem um cunho vincadamente ecuménico e universalista.

Paradoxalmente, se consultarmos as grandes fontes de inspiração evocadas, as obras de Leonardo Coimbra e Sampaio Bruno, entre outros, não nos parece que exista, de todo, no seu pensamento filosófico, esse exclusivismo e paroquialismo anti-moderno que esvazia e acantona a filosofia produzida entre nós. Essa tradição (bem como as mais ancestrais), não deve ser interpretada como sustentáculo da ideia de uma filosofia nacional ou pátria, mas sim no sentido contrário. A este propósito, não resistimos a citar Miguel Real, um dedicado estudioso da cultura e filosofia portuguesas:

“Para a história da cultura em Portugal no século XX, porém, não se pode deixar cair no olvido que toda a sua actividade [da filosofia portuguesa] – ainda que meritória e animada de uma santa fé disciplinar – contribuiu fortemente para enredar a obra de Leonardo Coimbra na linhagem estreita de uma genealogia cultural que de modo algum se encontrava contida nos seus textos: de facto e de direito, Leonardo Coimbra é um filósofo universal e não um “filósofo nacionalista”, o criacionismo um sistema filosófico de horizonte universal anti-cientificista, anti-naturalista e anti-positivista, não uma arma ideológica de arremesso contra os pensadores da I República, e Leonardo Coimbra um dos maiores filósofos portugueses de todos os tempos, não o “chefe” de uma linhagem político-filosófica nacionalista.”

(Miguel Real, 2011: 86)

Como ficou patente, da mesma forma que a noção de “filosofia nacional”, a noção de filosofia pátria ou “situada” (filosofia portuguesa) é criticável, conceptual e historicamente. Na verdade, na equacionação da relação entre cultura e filosofia, a história mostrará que, de facto, praticamente todas as superiores expressões da nossa cultura (enquanto cultura de elite), além de plurais e diversas, sempre acusaram uma filiação genuinamente europeísta, embora dotada de sentidos contraditórios, ora abertos/modernizantes ora anti-modernos e regressivos.

O mais irónico (mas não surpreendente) é que nem o próprio movimento da Filosofia Portuguesa rompe as amarras com a filosofia europeia. Por um lado, ao criticá-la e tentar superá-la, mal ou bem, estabelece já uma relação dialética que, afinal, funda e marca o seu próprio posicionamento filosófico. Com efeito, este não faria sentido no isolamento e no vácuo, ou seja, fora dessa relação, ainda que de negação e recusa - as mais das vezes de inspiração - estabelecida com a cultura e filosofia europeias[11]. Por outro lado, algumas das suas mais lídimas fontes inspiradoras não provêm somente dos encomiados mestres pátrios mas sim de figuras universais como Aristóteles, Platão, Hegel, Bergson, entre outros. Mal ou bem – não interessa para o caso - chega-se mesmo a afirmar que a filosofia portuguesa é de matriz aristotélica (Pinharanda Gomes, 2003: 33).

Esta tendência universalista tem-se manifestado desde os primórdios, mas teve especial relevo no período do renascimento e do humanismo, assim como no verberado período em que o iluminismo emergiu e, de uma maneira própria (“católica” e absolutista) – obviamente com fundas limitações -, triunfou (século XVIII). No entanto não teve menor incidência no longo ciclo de três séculos (XVI-XVIII) dominado pela segunda escolástica conimbricense, entronizada como representativa das raízes e tendências do nosso filosofar, contrariamente a outras correntes como o empirismo pombalino e o positivismo.

De facto, a cultura portuguesa, à semelhança de outras, não é nem nunca foi estanque a influências externas (europeias e não europeias), a despeito de todas as barreiras, repressivas, económicas e mentais, que, ao longo da história e acarretando consequências nefastas, dificultaram o diálogo com a Europa e o mundo mas nunca o impediram totalmente. Seria mais lógico falar-se de várias culturas e várias filosofias, à sombra ou à margem do estado, mas quase sempre numa perspectiva de elites. Portanto, não é correcto falar de uma cultura do “povo” e da filosofia pátria como expressão superior dessa cultura do “povo”[12]. Seria pertinente então interrogar: de que “povo” falamos? Não se trata de um sujeito histórico ou filosófico real mas de um sujeito retrospectivamente construído, por vezes de modo brilhante e erudito, à maneira neo-romântica.

Outro problema já aludido consiste em inquirir que relação existe entre uma suposta identidade cultural cristalizada - mesmo admitindo, contra as evidências históricas, a sua existência - e a reflexão filosófica. A filosofia é a mera expressão do génio nacional ou de certas particularidades étnicas, linguísticas, religiosas e mesmo geográficas?

Se assim fosse, as filosofias de Aristóteles, Platão, S. Tomás, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Leonardo Coimbra e António Sérgio, entre vários exemplos que poderíamos citar, seriam destituídas de qualquer interesse para o leitor contemporâneo e para o ensino actual da filosofia, o que não é o caso.

Por outro lado, mesmo admitindo, controversamente, uma relação de filiação congénita entre filosofia e cultura pátria, parece fácil demonstrar com base nos estudos históricos e antropológicos mais actualizados que não há uma cultura portuguesa homogénea e susceptível de configurar um “espírito do povo” ou “génio colectivo”, quer na totalidade da nossa experiência histórica, quer mesmo em certos ciclos históricos. Por conseguinte, mesmo admitindo uma vinculação forte entre cultura e filosofia – que não pode ser negada mas deve ser equacionada sem hipotecar a complexidade – partindo dessa premissa, forçosamente concluiríamos que não poderia haver, para cada cultura, uma filosofia de sentido único ou pautada por esta ou aquela orientação.

Razão tinha o Padre Manuel Antunes quando, em 1957, escreveu na revista Brotéria:

“Não parece legítimo poder afirmar-se a existência de filosofias nacionais no sentido rigoroso destes vocábulos. Ciência (sui generis, sem dúvida) do universal, do universal enquanto universal, o qualificativo de grega, alemã, francesa, inglesa, americana, etc aposto, como determinação essencial ao substantivo “filosofia”, nega a própria filosofia: se é nacional não é filosofia e se é filosofia não é nacional.”

(Manuel Antunes, 1957: 559)

3. Acepções mais fracas de “filosofia nacional” ou “pátria”

Sem prejuízo do que foi afirmado, o uso da designação “filosofia portuguesa” não reveste necessariamente num sentido essencialista, patriótico ou nacionalista. Com efeito, o termo pode adquirir (e adquiriu, efectivamente) significados mais ligeiros e corresponder mesmo à expressão “Filosofia em Portugal”, sendo que nessa acepção nominalista e não essencialista não nos suscita dúvidas[13].

Trata-se de mais um argumento a favor da polissemia do termo “filosofia nacional”. Nesta acepção mais aceitável pode significar tão-somente o conjunto das obras (não necessariamente escritas em português) e/ ou o conjunto dos contributos teóricos dos filósofos portugueses (residentes no território, exilados), sem que se esteja a implicar a) uma perspectiva ou uma tendência única/dominante em filosofia b) um enraizamento identitário e encarado de feição essencialista entre a filosofia e a cultura/culturas (língua, etnia, religião, território, tradição, etc) e/ou a nação.

Porém, com base nesta expressão poderemos ser induzidos a formular juízos demasiado genéricos e eventualmente falaciosos. Acabamos, sem querer, por incorrer no essencialismo associado ao termo, embora de modo mais indutivista/comparativista.

Provavelmente nesse sentido, o Prof. António Paim tem procurado captar, através de uma interessante e erudita análise comparativa das diversas tradições filosófico-culturais, a essência do pensamento filosófico de cada povo, referindo, por exemplo, o empirismo britânico, o pragmatismo norte-americano, o racionalismo francês, o sistematismo alemão, etc (Antonio Paim, 2007)

Sem questionar o seu valor intrínseco e heurístico, devemos aferir o alcance e o valor conceptual desta pesquisa. Poderá fundamentar, de modo mais plausível e rigoroso, a ideia de uma filosofia nacional ou pátria?

Não cremos. A nosso ver, o génio filosófico de um determinado povo/nação – se é que essa noção tem algum cabimento ou valia - não se pode reduzir, através de uma síntese abrangente, a uma única orientação/tendência, ou até a várias, ainda que estas sejam dominantes e consonantes com a cultura pátria, quer em certos ciclos históricos[14], quer na longa duração. A bem dizer, os contra-exemplos são de tal modo abundantes que, flagrantemente, contradizem esta tese. No caso da filosofia britânica, a despeito da sua tendência empirista, poderíamos citar, no século XVII, a incidência do idealismo platónico de Cambridge, no grupo dos “Platonistas de Cambridge” (Cudworth, More e outros).

As conclusões de uma investigação deste tipo, na nossa perspectiva, têm um valor relativo e limitado, embora não destituído de interesse heurístico e histórico-cultural. Qualquer generalização de corrente(s) ou tendência(s) que se faça corre o risco de ser falseada por múltiplos contra-exemplos. As prevalências de correntes particulares, (como, na cultura anglo-saxónica, o empirismo ou pragmatismo) não se podem encarar de modo linear nem exclusivo[15]. O pluralismo, com graus variáveis, é a situação normal na história da filosofia em cada país. Acresce que, no caso da filosofia portuguesa, o âmbito cronológico a considerar é assaz dilatado, de tal modo que, por este viés, não seria possível determinar uma tendência recorrente ou sintetizadora.

Consideremos, a título de exemplo, apenas o século XVI. Encontraremos aí uma pluralidade de correntes filosóficas tão diversas (neo-platonismo, aristotelismo escolástico, empirismo experiencialista, cepticismo, humanismo etc), tanto no travejamento teórico como no enraizamento cultural (v.g. o judaísmo) que não lograremos determinar uma orientação geral ou partilhada. No entanto, detectaremos, certamente, traços comungados de mundividência (por exemplo, na cosmologia e na prevalência da crença religiosa). Essas afinidades, que pertencem ao espírito do tempo, influenciam e condicionam, de facto, a filosofia do século XVI, mas não consubstanciam uma perspectiva filosófica única que possamos eleger como representando o génio filosófico nacional dessa época. O que afirmar então da totalidade da nossa história e, em particular, de outros séculos (o XIX e o XX), tão marcados pelo pluralismo, diversidade e riqueza de posicionamentos em filosofia?

Eleger uma determinada corrente ou tendência, um núcleo problemático, como sendo representativos, de modo exclusivo, do génio português ou de outro povo qualquer, representará sempre um exercício arriscado e passível de alcançar resultados arbitrários ou manifestamente parcelares[16].

4. Relação entre filosofia, pátria e linguagem

A questão da língua, sem a esgotar, é crucial nesta discussão. Na verdade, tornou-se um dos elementos justificadores da identidade que mais se presta a uma perspectiva da filosofia pátria retintamente essencialista, pelo menos no caso da filosofia portuguesa. Tanto é assim que, em virtude disso se acabou reduzindo a filosofia à filologia.

A língua portuguesa, à semelhança de outras, não seria, nesta perspectiva, uma mera ferramenta – mutável, plástica e permeável à influência de outras culturas/línguas - a usar no pensamento, argumentação, comunicação e criação artística. Representaria um valor bem mais elevado: uma instituição eidética ligada, umbilicalmente, a uma forma peculiar de conceber e estar no mundo e inclusivamente teria uma origem divina e um significado oculto, cifrado. (Álvaro Ribeiro, António Quadros, António Telmo[17])

No início do século XX, um dos pontos altos da crítica a uma concepção da linguagem deste jaez é a famosa polémica entre Pascoaes e Sérgio[18] sobre as palavras intraduzíveis, em particular a saudade. Pascoaes tem-se revelado – na sua dimensão de ensaísta - um dos pensadores que mais influenciou o movimento da filosofia portuguesa, na senda de uma perspectiva da linguagem/filosofia/cultura retintamente identitária e essencialista. Alguns dos percucientes argumentos críticos de Sérgio, honra lhe seja feita, ainda teriam pertinência para este debate. Todavia, cremos que através de critérios mais actualizados, particularmente no âmbito da filosofia da linguagem, e recorrendo a autores como Wittgenstein e Quentin Skinner, chegaremos a conclusões análogas.

O facto de a ferramenta do pensamento e da filosofia ser, maioritariamente, a linguagem natural (apesar das várias tentativas infrutíferas desenvolvidas para construir uma linguagem artificial perfeita), naturalmente abriu o caminho a perspectivas essencialistas da linguagem e da filosofia, não apenas na cultura portuguesa. A genealogia desta perspectiva, ligada ao romantismo do século XIX mas já patente no século XVIII, (Herder, Hamann, etc), em resposta ao cosmopolitismo algo abstracto das luzes e à tendência racionalista daí derivada para desenvolver mathesis universalis e pasigrafias, é bem conhecida.

Se o pensamento e a filosofia se constroem com recurso a uma linguagem natural particular e se esta, por razões variadíssimas e compreensíveis, é marcada pelo seu enraizamento cultural e comunitário (ou mesmo divino) – da mesma forma que marca e molda os seus falantes (filósofos ou não filósofos), num processo dialéctico contínuo – então a filosofia, na sua elaboração, teria que forçosamente reflectir esse enraizamento, designadamente na atribuição de significados aos termos e conceitos, em articulação com formas de vida comungadas pelos falantes em comunidade. De forma simplificada, enunciámos uma espécie de argumento linguístico, implícito nas teorias dos adeptos de uma filosofia pátria.

Todavia, a língua portuguesa, tal como outras, nunca foi uma estrutura cristalizada e monolítica. Pelo contrário, sempre foi mutável e permeável à influência de diversos povos e culturas, tanto no plano sincrónico como no diacrónico, logo não pode estar ligada, organicamente, a uma única forma de vida, a uma mundividência idiossincrática/ a uma filosofia particular, enfim a significados/significantes cristalizados. Se assim fosse, não se entenderia, por exemplo, a multiculturalidade patente na lusofonia.

Consequentemente, a língua pátria não dá, automaticamente e por inerência, acesso privilegiado a uma forma especial de ver o mundo, ou, correlativamente, a um modo único de fazer filosofia ou “fazer mundos”. O mais correcto seria dizer que dá acesso a várias mundividências, multiplicando-se, ao longo da história, jogos de linguagem e modos de vida diversos e contraditórios, sendo a filosofia portuguesa um exemplo entre muitos.

Havendo uma ligação forte entre língua pátria, por um lado, e cultura e filosofia, por outro, esta ligação não ocorre de modo essencialista, exclusivista e paroquial, a não ser em determinadas perspectivas. A língua é uma instituição suficientemente plástica para permitir que, através dela, se seja e veja tudo de todas as maneiras, à maneira pessoana. Logo, permite pensar e fazer filosofia pluralmente, como de resto aconteceu em Portugal (mesmo perante constrangimentos repressivos e culturais fortes) e acontece hoje, talvez ainda com mais intensidade.

Além disso, no domínio da filosofia, e mesmo na literatura, as possibilidades quase ilimitadas da tradução desmentem a ideia de que, através da língua materna, se tenha acesso privilegiado a uma experiência, a um saber, incomunicáveis e exclusivos da cultura/comunidade de origem. Seria absurdo e autista pensar que só compreendemos, autenticamente, a literatura ou a filosofia da nossa pátria. E que um pensador que escreva/pense em português forçosamente irá desenvolver uma perspectiva culturalmente marcada e encerrada nos limites da mundividência pátria, atribuindo apenas determinados sentidos aos termos que usa. No limite, enquanto experiência e saber com horizonte humano, tudo pode ser traduzido e compreendido, sobretudo na filosofia, atendendo à sua vocação temática e problemática universal. Preciso de falar alemão, de ser alemão, para compreender verdadeiramente Hegel ou Heidegger? A tradução, o conhecimento histórico e mesmo linguístico, não me permitirão uma compreensão adequada ou aproximada dos seus filosofemas, mesmo os oriundos da cultura mais remota e distante?

Apesar de exigir uma reflexão sistemática e exigente sobre filosofia da linguagem, que não poderá ser cabalmente explanada neste curto artigo, o argumento linguístico justificador da identidade da filosofia pátria pode ser desmistificado de modo bem prosaico e simples.

Como é sabido, a filosofia em Portugal, tal como em outros países, só a partir do século XVIII começou a ser escrita e divulgada na língua pátria (antes disso usava-se quase exclusivamente o latim) mas esta mutação, em contexto de ilustração, ocorreu sobretudo por razões pragmáticas e pedagógicas. Azevedo Fortes constitui um exemplo banal. O seu manual de lógica (1744), de modo inédito, foi escrito em vernáculo para poder ser lido pelos engenheiros em formação e por um público mais vasto, incluindo mulheres. Nessa medida, se o argumento fosse seguido de modo coerente, só a filosofia posterior ao século XVIII seria genuinamente portuguesa, o que contradiz, flagrantemente, as teses que sustentam a filiação medieval e ancestral do pensamento pátrio. Pela mesma ordem de razões, a tão encarecida segunda escolástica também deveria ser excluída.

Se a teoria dos jogos de linguagem (Wittgenstein), à primeira vista, poderia legitimar as pretensões em discussão, uma segunda leitura, mais judiciosa, relativizaria qualquer exclusivismo. Poderíamos entender a filosofia portuguesa como um jogo linguístico associado a uma forma de vida apenas partilhada, ao longo dos séculos, pela comunidade nativa de falantes, imersos numa cultura e em práticas partilhadas, como as religiosas. Todavia, esta interpretação não faria jus ao sentido fortemente anti-essencialista da teoria da linguagem de Wittgenstein.

Com efeito, uma língua pode engendrar os mais diversos jogos de linguagem. A mesma palavra ou noção (por exemplo, “saudade” ou “Deus”), usada em jogos linguísticos filosóficos, adquire significados diferentes consoante o seu uso em contextos históricos, teóricos ou ideológicos diferentes. A Filosofia Portuguesa seria, deste modo, um jogo, entre muitos, acerca do significado da língua portuguesa e da (sua) filosofia, acerca da própria filosofia. De facto, no seio da comunidade de filósofos que o perfilha, tem funcionado perfeitamente, ao longo de gerações, enquanto jogo de linguagem com significados e protocolos partilhados internamente, designadamente na atribuição de um sentido ontológico à própria expressão “filosofia portuguesa”. Todavia, como tentámos argumentar, a legitimidade e valor desta corrente, no âmbito do pluralismo filosófico actual, não implica que as noções defendidas no seu seio tenham referente ou conteúdo substantivo.

CONCLUSÃO:

Apesar de termos deixado de lado, por razões de economia, argumentos que gostaríamos de ter desenvolvido, a nossa posição céptica e crítica em relação às filosofias nacionais em geral, e à noção de filosofia portuguesa em particular, ficou bem patente. Obviamente, não está em discussão o contributo valioso, em muitos aspectos, que o movimento da filosofia portuguesa deu para o estudo da filosofia e cultura em Portugal e até, em termos especulativos, para a filosofia em geral, o qual merece ser conhecido e estudado, mas criticamente. Está em causa, fundamentalmente, um problema conceptual e histórico – a noção de filosofia nacional e/ou pátria -, mas também uma questão pedagógica, atinente ao modo como se deve conduzir o ensino da disciplina de Filosofia em Portugal.

Como corolário lógico da nossa posição, sempre defendemos que a sua leccionação deve reflectir um pendor pluralista, crítico, contextualizado e coerente com o sentido universal da reflexão filosófica. Com efeito, a filosofia que foi sendo produzida em Portugal ou por portugueses (residentes ou exilados, em língua portuguesa ou em outras línguas), da Idade Média até à actualidade, independentemente do seu valor teórico intrínseco, importância, originalidade e impacto no estrangeiro, não foi e não é mais do que uma expressão, sempre plural e multifacetada, da filosofia europeia/universal. O mesmo se poderia dizer em relação à cultura. Assim, a filosofia concebida em Portugal deve ser estudada enquanto filosofia, no seu travejamento teórico/argumentativo, ou seja, relevando o contributo reflexivo em relação a problemas fundamentais (gnosiológicos, éticos, políticos, estéticos) e não tanto enquanto mera expressão ou justificação de um pretenso génio nacional construído em isolamento.

A história da filosofia em Portugal, aliás, fornece um manancial de exemplos ilustrativos em relação ao seu carácter europeísta/cosmopolita. Trata-se, porventura, de uma tendência estrutural, mesmo nos períodos isolacionistas e repressivos, patente até nos movimentos que – na aparência - repudiaram a cultura europeia (como, ironicamente, o da Filosofia Portuguesa). E se atendermos à vocação e ao horizonte amplo da filosofia nem poderia ser de outro modo.

 

Referências:

A.A. V.V., O pensamento e a obra de José Marinho e de Álvaro Ribeiro – Actas do Colóquio, Lisboa, I.N.-C.M., 2005, 2 Vol.         [ Links ]

ALMEIDA, Onésimo Teotónio, “A saudade e os saudosistas – Uma revisitação da polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes” in Via Atlântica, nº7, Universidade de São Paulo, 2004, pp. 131-145.         [ Links ]

- “Filosofia Portuguesa – Alguns equívocos” in Cultura – História e Filosofia, Vol. IV, Lisboa, INIC, 1985, pp. 219-255.         [ Links ]

ANTUNES, P. Manuel, “Haverá filosofias nacionais?” in Brotéria, Lisboa, 1957, pp. 555-565.         [ Links ]

BRITO, António José de, “Acerca de um velho tema: a existência da Filosofia Portuguesa” in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo XLVI, Outubro-Dezembro de 1990, pp. 409-427.         [ Links ]

CATROGA, Fernando, Ensaio Respublicano, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011.         [ Links ]

CANTISTA, Maria José Pinto, “Tendências dominantes da Filosofia Portuguesa no Século XX: Algumas achegas acerca da contribuição de José Marinho” in Filosofia Hoje – Ecos no Pensamento Português, Porto, Fundação Eng.º António de Almeida, 1993.         [ Links ]

DOMINGUES, Joaquim, “Literatura e Filosofia em Teófilo Braga e Sílvio Romero” in Sílvio Romero e Teófilo Braga – Actas do III Colóquio Tobias Barreto, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-brasileira, 1996, pp. 259-272.         [ Links ]

GOMES, Pinharanda, Teodiceia Portuguesa Contemporânea, Lisboa, Livraria Sampedro, 1974.         [ Links ]

- Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa, D. Quixote, 2003, 2ª edição aumentada.         [ Links ]

LOURENÇO, Eduardo, O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 2000.         [ Links ]

MARINHO, José, Estudos sobre o pensamento português contemporâneo, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981.         [ Links ]

PAIM, Antonio, As Filosofias Nacionais – Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil – Vol. II, 2007. (http://www.institutodehumanidades.com.br/arquivos/as_filosofias_nacionais.pdf)        [ Links ]

PIMENTEL, Manuel Cândido, Razão Comovida, Lisboa, I.N.-C.M., 2011.         [ Links ]

REAL, Miguel, O Pensamento Português Contemporâneo 1890-2010: O Labirinto da Razão e a Fome de Deus, Lisboa, I.N.-C.M., 2011.         [ Links ]

RIBEIRO, Álvaro, O problema da Filosofia Portuguesa, Lisboa, Editorial Inquérito, s.d., 2ª ed.         [ Links ]

SMITH, Anthony, A Identidade Nacional, Lisboa, Teorema, 2006.         [ Links ]

- Nacionalismo – Teoria, Ideologia, História, Lisboa, Teorema, 2006.         [ Links ]

VITORINO, Orlando, Refutação da Filosofia Triunfante, Lisboa, Teoremas, 1978.         [ Links ]

- Exaltação da Filosofia Derrotada, Lisboa, Guimarães Editores, 1983.         [ Links ]

 

Notas

[1]Este trabalho foi inspirado pela prática lectiva e pretende reflectir, criticamente, acerca do enquadramento teórico e epistemológico dos objectivos, programa e métodos da unidade curricular de Filosofia em Portugal.

[2] No caso português: António Sérgio, Joel Serrão, Manuel Antunes, Eduardo Lourenço e mais recentemente Manuel Maria Carrilho, Onésimo Teotónio Almeida, António José de Brito, Fernando Guimarães e mesmo Miguel Real.

[3] Cf., por exemplo, Anthony Smith (1997, 2006).

[4] Na verdade, o conceito de nação, em uma das suas acepções mais aceites, reveste um carácter eminentemente político e radica-se na concepção moderna de estado e soberania. Por conseguinte, não implica necessariamente uma homogeneidade ou identidade no aspecto cultural, étnico ou mesmo linguístico, muito menos filosófico, ainda que a génese da nação possa estar ligada a esses factores. Significa, fundamentalmente, autonomia política (soberania) e, correlativamente, uma organização burocrática, jurídica, política e administrativa (Estado) a funcionar, dentro de um determinado território e administrando uma determinada população, em que podem coexistir diversas línguas, culturas, etnias e religiões. Logo, forçosamente, teríamos de admitir a emergência de diversas filosofias e não apenas de uma.

[5] Segundo afirma José Marinho, “Tal qual o entendo, o sentido das filosofias nacionais é uma das formas de regresso às origens próprias do filosofar, um dos modos de distinguir a filosofia teorética e especulativa de uma filosofia cultural, livresca e universitária. Entre as duas há o abismo que medeia entre o que é vivo e o que foi.” (José Marinho, 1981: 15)

[6] Embora seja redutor e historicamente relativo (incompatível com uma concepção democrática e pluralista do ensino da filosofia), seria possível tomar a filosofia da nação política/institucional, isto é, aquela reproduzida pelas instituições oficiais de ensino, particularmente a universidade, como uma outra acepção do termo filosofia nacional, a despeito de essa interpretação constituir a negação de todas os pressupostos da filosofia portuguesa. Tudo isto só mostra que, no caso português, o conceito de filosofia nacional não tem sustentação sólida e escapa a uma definição rigorosa.

[7] Tanto é assim que os adeptos da filosofia nacional acabam por admitir e reconhecer esta pluralidade cultural nos seus estudos, referindo, com pertinência e vasta erudição, influências árabes, judaicas e cristãs (o caso mais notável é Pinharanda Gomes, na inspiração directa de Sampaio Bruno), sem extrair as devidas ilações em relação à perspectiva identitária forte (sobre a cultura e sobre a relação entre cultura e filosofia) que partilham. Aliás, essa linha de argumentação não é original no pensamento português. Desde o século XIX (Cf. Teófilo Braga), pode-se contornar a dificuldade afirmando que a identidade filosófico-cultural afinal radica numa miscigenação ou mistura cultural (VG. Pascoaes).

[8] Refiro-me a aspectos como a originalidade dos conceitos, as respostas e argumentos dados em relação a problemas filosóficos herdados ou com carácter mais circunstancial – que são os problemas básicos da filosofia - como a definição e os fundamentos da justiça, da moralidade, a base das crenças e conhecimentos, da beleza etc. Seguir esta orientação não implica necessariamente adoptar uma perspectiva essencialista de philosophia perennis. Certamente que um aspecto importante na história da filosofia, até em termos filosóficos, é avaliar em que medida e grau os condicionamentos culturais, mentais, religiosos (entre outros) moldam e condicionam a reflexão filosófica. Seja como for, dir-se-ia que quanto mais um filósofo consegue transcender ou superar os seus condicionalismos históricos, linguísticos e culturais – que, obviamente, nunca deixam de estar presentes -, mais marcante será o seu contributo para a filosofia (universal).

[9] Devemos ressalvar que, no panorama da filosofia contemporânea, a universalidade, a ser defendida, terá de revestir um sentido contingente e frágil - devido a décadas e décadas de desconstrucionismos vários, de prática da “hermenêutica da suspeita” -, o que não deixa de ser salutar pois constitui um antídoto em relação a dogmatismos e autoritarismos. A nosso ver, a universalidade da filosofia é compatível com uma visão plurifacetada e não essencialista da mesma. E, por isso mesmo, nem considerámos importante definir, previamente, o que seria a filosofia para criticar a defesa da sua vinculação a uma nacionalidade ou cultura particular.

[10] Eduardo Lourenço, 2000: 40-42.

[11] O mesmo se diria em relação a várias outras correntes da filosofia em Portugal, como o racionalismo, o empirismo, o positivismo, o marxismo e outras correntes que são encaradas como contrárias à nossa tradição. Como se compreende então que tenham tido convictos defensores na cultura portuguesa?

[12] Cf., por exemplo, Joaquim Domingues, 1996: 259-272.

[13] Segundo Pinharanda Gomes, nesta acepção, “ao termo falta univocidade. Até ao magistério de Álvaro Ribeiro, filosofia portuguesa é um conceito de genérica extensão, e não de espécie. Tem amplitude de categoria de lugar e de posse, equivale ao que se designa por filosofia em Portugal, e constituiu todo o património doutrinal e filosófico presente na condição sociopolítico-cultural portuguesa, seja mediante criação autóctone, seja mediante importação de correntes e de influências estrangeiras, incluindo tanto os autores que trabalharam no País como os portugueses de emigração (v.g. Pedro Hispano, Ribeiro Sanches…) e englobando já os textos escritos em língua portuguesa, já os textos escritos no latim escolástico, já mesmo os que, por autores portugueses, foram escritos em outras línguas (Leão Hebreu escreveu em italiano).” (Pinharanda Gomes, 2003: 144) Mais um dado que indicia o carácter historicamente circunscrito do termo “filosofia portuguesa”, um claro sintoma da sua ilusão retrospectiva.

[14] É certo que, na vigência dos séculos XVI-XVIII, devido a circunstâncias conhecidas, pontificou, em Portugal, uma tendência dominante institucionalmente: a escolástica renovada ou 2ª Escolástica. Mas obviamente as orientações dessa corrente não são partilhadas por todos os filósofos portugueses da época (temos por exemplo o empirismo céptico de Francisco Sanches, o experiencialismo dos navegadores, as correntes neo-platónicas) e serão fortemente questionadas e repudiadas no século XVIII. Tendo em conta que a escolástica é imposta, em grande medida, pelas políticas do estado, e no âmbito de um enquadramento internacional, em que a Companhia de Jesus assumiu um papel decisivo, que cabimento teria apodar esta corrente filosófica como a expressão idiossincrática do génio do nosso povo?

[15] Em Portugal, o empirismo, apesar das tendências metafísicas e teológicas prevalecentes, também medrou de forma notável, ao longo dos séculos. Contam-se variadíssimos exemplos: Francisco Sanches, o experiencialismo dos navegadores, Verney, Silvestre Pinheiro Ferreira, os positivistas comtianos do século XIX e, posteriormente, os neo-positivistas de inspiração vienense.

[16] A seguinte citação atesta bem as limitações de tal abordagem: “O esquema mencionado formula-se do seguinte modo: o problema que angustiou a filosofia alemã parece ter sido a questão do sistema, notadamente o seu entendimento como algo de imperativo e forma adequada de expressão da filosofia. Confrontando-a com a filosofia inglesa, vê-se logo a diferença. Os filósofos ingleses não têm qualquer preocupação com a idéia de sistema e, a rigor, dela prescindem completamente. A filosofia inglesa tem a ver com o tema da experiência. Desta vai depender logo todo o conhecimento. A experiência é também entendida como vivência, transitando obrigatoriamente pela sensibilidade humana e não podendo deixar de ser verificável. A francesa, por seu turno, poderia ser considerada do ângulo do conceito de razão, mas entendida como estabelecendo a dicotomia pensamento versus extensão. A filosofia portuguesa forma-se em torno da conceituação da divindade, da idéia de Deus, na formulação de Sampaio Bruno (1857/1915). E, finalmente, a filosofia brasileira dá preferência à questão do homem.” (António Paim, 2007: 17)

[17] Sobre esta questão em particular, veja-se o artigo de O. Teotónio Almeida (Teotónio Almeida, 1985) que desenvolve uma crítica percuciente, e corajosa – diga-se de passagem - à teoria da linguagem da filosofia portuguesa. Um dos argumentos críticos mais interessantes passa por sublinhar que mesmo se houvesse palavras/noções intraduzíveis ou únicas numa língua, como a saudade, não se poderia daí concluir o mesmo em relação a toda a língua/ cultura. Na verdade, as noções/vocábulos particulares entronizados podem não ter a relevância que se lhes atribuí, representando apenas uma faceta ou nuance particular de uma cultura, não a sua totalidade.

[18] Sobre esta polémica ver Onésimo Teotónio Almeida, 2004: 131-145.