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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

A filosofia para além da academia

Philosophy beyond academy

Acílio da Silva Estanqueiro Rocha*

*Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Braga, Portugal

acilio@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Num Simpósio sobre “A Filosofia na Academia”, importa, no seu encerramento, versar o tema “A Filosofia para além da Academia”. O objectivo é sobretudo mostrar como a filosofia transcende as referências académicas habituais. Ela abrange a lógica, a ética, o conhecimento, a estética, mas é sabedoria que a preenche: ela está aqui em uníssono com a existência. Então, a filosofia é “uma prática discursiva que tem a vida por objecto, a razão por meio e a felicidade por fim”. Por isso, mais que aprender filosofia, importa aprender a filosofar.

Palavras-chave: Filosofia, Ironia, Modo de Viver, Existência, Conhecimento, Sabedoria.

 

ABSTRACT

Projected as the final conference in a Symposium on “Philosophy in the Academy”, this article addresses the subject of “Philosophy beyond Academy”. The objective is above all to show how philosophy transcends the usual academic references. Philosophy encompasses logic, ethics, epistemology, aesthetics, but it is mainly inhabited by wisdom: it is in accordance with existence. Therefore, philosophy is “a discursive practice holding life as its object, reason as its means and happiness as its end”. Thus, more than how to learn philosophy, it is important to learn how to philosophize.

Keywords: Philosophy, Irony, Way of Life, Existence, Epistemology, Wisdom.

 

É com um misto de júbilo e de emoção que procedo à honrosa incumbência de encerrar este IXº Simpósio Luso-Galaico de Filosofia[1], sobre “A Filosofia na Academia”, este ano realizado no campus de Gualtar da Universidade do Minho, precisamente no Auditório do Instituto de Letras e Ciências Humanas. Achei por bem, tratando-se do acto de encerramento, considerar o tema “A Filosofia para além da Academia”.

a) “A filosofia não é uma doutrina, mas uma actividade”

Clarifiquemos este ponto de partida: a inevitabilidade da filosofia radica na natureza do ser humano; por isso mesmo, não é necessário que o estudioso de filosofia esteja na Academia, mas que se interesse por assuntos tão pregnantes como a linguagem e o conhecimento, a moral e a ética, a religião, a política, o direito, a arte, temas e problemas científicos, e em torno deles deseje, com disponibilidade para o diálogo e o debate, ampliar a sua capacidade cognoscitiva e raciocinativa. No fundo, como afirma Wittgenstein, "a filosofia não é uma doutrina, mas uma actividade"[2].Poderá ainda asseverar-se como a filosofia estrutura todas esses temas, e contribui, com as suas exigências de lógica, para que o pensamento não se apresente como inarticulado, ilusório ou falacioso; e, além disso, ser-lhe-á possível ir ainda mais além, afora da causalidade dos factos, habilitando-se a imaginar, a criar, no exercício da sua capacidade de pensar – o que se revela imprescindível quando se quer ser feliz e viver autenticamente.

Apraz-me rememorar o testemunho de Epicuro, bem expresso nesta sua Carta: "Epicuro a Meneceu, saudações. Que ninguém hesite em dedicar-se à filosofia enquanto jovem, nem se canse de o fazer depois de velho, porque ninguém é demasiado jovem nem muito velho para desenvolver a saúde do espírito. Ora, quem disser que a sua hora de filosofar ainda não chegou, ou que ela já passou, assemelhar-se-á a um homem que diz que é demasiado cedo ou demasiado tarde para a felicidade. Logo, tanto o jovem como o velho devem filosofar: este, para que permaneça jovem, na grata fruição do bem que o passado lhe ofertou; aquele, para que possa encarar sem receios o futuro, e com isso conseguir ser, a um tempo, jovem e velho. Por conseguinte, é preciso reflectir sobre as causas que podem produzir a felicidade: se a tivermos, temos tudo, mas se não a tivermos, tudo faremos para a possuir"[3]. Na verdade, trata-se de uma atitude tão válida no século III a.C., em Atenas, como no dealbar do século XXI, em qualquer parte do mundo.

A reflexão filosófica permite, pois, que aquele que a exerce possa expandir os seus conhecimentos, podendo relacioná-los com outras áreas do saber, avaliando o passado, discernindo o presente ou modelando o futuro, como sujeito que pensa e age, ciente de seus limites e possibilidades. Na situação actual, caracterizada, como adiante diremos, pela profusão de informações, por uma intromissão ininterrupta e por vezes desabrida dos meios de comunicação, abrindo horizontes é certo, mas originando também – quantas vezes – um crescente confusionismo, a capacidade crítica de esclarecer-se e de esclarecer é hoje mais importante que nunca.

Por isso mesmo, um facto indesmentível nos nossos dias é a sedução exercida por problemas e escritos de filosofia, apesar da aparente extenuação dos grandes sistemas filosóficos neste início de século. Compreende-se: antes de mais, a filosofia configura-se naquilo que Husserl denominou Lebenswelt ou “mundo da vida”; ela indaga as virtualidades humanas da existência; a filosofia é, constitutivamente, necessária à condição humana, porque os fins da vida humana não são os bens materiais, mas os ideais da existência, as modulações da cultura, os procedimentos e meios éticos para o desenvolvimento harmónico da autonomia, num contexto de liberdade dos humanos.

b) “É a admiração que impele ao conhecimento”

Aristóteles – o “Mestre dos que sabem”, como se lhe referiu Dante na Divina Comédia – cuidou também de defender a indispensabilidade da filosofia: "Ou não é preciso filosofar ou deve-se filosofar; se deve filosofar-se, há que filosofar; se não é preciso filosofar, para o mostrar, há ainda que filosofar"[4]. Estamos perante uma argumentação cuja força está tanto mais na posição negativa – "não é preciso filosofar" – quanto ela carece da prova pertinente: só filosofando é possível defender tal posição, que o mesmo é defender a inevitabilidade da filosofia. E – de acordo ainda com o Estagirita – é a admiração que impele ao conhecimento; por esta, os indivíduos tornam-se conscientes da sua ignorância: é por amor ao conhecimento que se busca conhecer e não por qualquer interesse trivial: "Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo, os fenómenos da lua, os do sol e das estrelas e a génese do universo. Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se é reconhecer a própria ignorância; por isso, também quem ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso. Pelo que, se foi para fugir à ignorância que filosofaram, claro está que procuraram a ciência pelo desejo de conhecer, e não em vista de qualquer utilidade"[5]. A relevância da admiração está bem presente na emergência do “espírito filosófico”.

Todavia, satisfeita a admiração, por via do saber, logo surge a dúvida, pois o processo cognoscitivo somente se desenvolve mediante a comprovação crítica. O conhecimento não se dá de forma fácil, imediata, por simples observação da realidade ou no contacto com o conhecimentos prévios: todos e cada um de nós descobrimo-nos num mundo em que a existência é sentir, pensar e agir; e esta existência não é uma existência tranquila: é uma existência problemática. Podemos dizer que a filosofia manifesta-se como tal quando os seres humanos exigem justificações racionais que validem ou invalidem as crenças quotidianas. Ora, tal racionalidade implica uma tríplice exigência: desde logo, racional na medida em que algo é argumentado, debatido e compreendido; depois, racional porque é argumentando e debatendo que se conhecem as condições e os pressupostos dos nossos pensamentos e os dos outros; por fim, racional significa respeitar certas regras de lógica e coerência do pensamento para que um argumento tenha sentido, se chegue a conclusões susceptíveis de serem discutidas, reflectidas e compreendidas também pelos outros.

c) “‘Sapere aude!’ Tem a coragem de fazer uso do teu próprio entendimento!”

Terá sido também a admiração em ver a água mudar de estado que sugeriu a Tales de Mileto ser ela a força original criadora de todos os seres. Mas há uma velha história sobre Tales que Platão recolhe no Teeteto e que ao longo dos tempos serviu para ilustrar as incompreensões que o “espírito contemplativo” provocava entre os encomiavam a “prática” e o “realismo”. "Tal como, quando Tales observava os astros e olhava para cima, caiu num poço. Conta-se que uma bela e graciosa serva trácia disse uma piada a propósito, visto, na ânsia de conhecer as coisas do céu, deixar escapar o que tinha à frente, debaixo dos pés. Esta graça serve para todos os que se dedicam à filosofia"[6]. De certo modo, o encontro entre Tales e a jovem trácia compendiará todas as tensões e incompreensões entre o mundo da vida e a teoria, desde Aristófanes (dramaturgo grego, tido como o maior representante da comédia antiga), a Molière, um dos mestres da comédia satírica, a quem se deve o célebre dito “ridendo castigat mores” (a rir se castigam os costumes), até a contemporaneidade.

No entanto, é curioso verificar que Aristóteles transmite de Tales um episódio de sinal contrário: "Tomemos como exemplo o que se conta acerca de Tales de Mileto (…). Consta que o censuravam por ser pobre, atribuindo isso à inutilidade da filosofia. O facto é que, devido aos seus conhecimentos de astronomia, previu a proximidade de uma boa colheita de azeite; quando ainda era Inverno, alugou com o pouco de dinheiro que tinha todos ao lagares de Mileto e Quios, gastando apenas uma pequena soma, já que não havia outras ofertas mais avultadas. Quando chegou o tempo da colheita, e porque muita gente acudiu ao mesmo tempo e com urgência à busca de lagares, arrendou-os ao preço que bem entendeu, não só obtendo uma soma elevada de dinheiro como provando que era fácil, para os filósofos, tornarem-se ricos se o desejassem, embora não fosse essa, de facto, a meta das suas aspirações. Tales terá dado, assim, ao que consta, prova inequívoca da sua sabedoria"[7]. Como sabemos, Aristóteles distingue bem entre o “mero viver” e o “viver bem”: importa não olvidar que este envolve duas dimensões – a actividade moral e a intelectiva.

Tales de Mileto foi denominado o protofilósofo, por ser o primeiro a buscar um fundamento de toda a realidade (arché), que, segundo ele, é a “água”. A filosofia suspeita sempre dos meros acasos; a essência da filosofia é a busca de um fundamento, isto é, a razão de ser das coisas. Dar-nos a consciência disso mesmo, dar-nos uma certa ideia do limite que não somos capazes de franquear é aquilo que Kant pretendeu fazer com a sua filosofia crítica; neste sentido, Kant converteu-se no melhor advogado de Tales face ao atrevimento da bela jovem trácia, e inverte os papéis: já não é a realidade terrena que nos conduz ao realismo, mas sim a teoria, a reflexão crítica, ao mostrar a futilidade e a pequenez do imediato[8]. Esta é a atitude crítica, que se funda na razão iluminista kantiana segundo a qual todas as produções teóricas devem passar pelo crivo da reflexão.

Segundo Kant, "o Iluminismo [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. É a si próprio que deve atribuir-se essa menoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de decisão e de coragem para usar o próprio entendimento sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de fazer uso do teu próprio entendimento! Eis o lema do Iluminismo [Aufklärung]"[9]. Neste sentido, a Ilustração é também a esperança de que os humanos, por meio do uso da razão, se libertem da opressão da superstição, da ignorância e da autoridade, fontes de heteronomia; mas somente pelo uso crítico da razão é que será possível a liberação dessas heteronomias, possibilitando-se experiências de autonomia.

d) “O homem é o único animal que ri”

No entanto, o rir manifesta uma outra dimensão que supera o comportamento vulgar da jovem escrava trácia. É a “razão irónica” que pode transcender a “razão crítica” quanto à sua capacidade subversiva: numa cultura que já absorveu a crítica até a tornar inofensiva, a ironia pode tornar-se o único recurso por domesticar; e talvez seja mesmo a forma de resistência que menos precisa de certezas.

Na verdade, a razão tem algo a ver com estas situações-limite, porque ela é também uma faculdade que subjaz a estas dificuldades e em que o riso e o choro podem ser a sua sublimação. Ora, interroga-se Henri Bergson, no seu livro intitulado precisamente O Rir: "Como é possível que um facto tão importante, na sua simplicidade, não tenha merecido atenção mais aturada dos filósofos?"[10]. Todavia, remonta a Aristóteles a afirmação de que "o homem é o único animal que ri"[11], tornando o risível uma prerrogativa humana; mas, para além de Bergson, também Freud, Victor Hugo, Baudelaire, Kierkegaard, Nietszche, Jankélevitch, entre outros, foram filósofos que tomaram a sério a significação humana do rir.

Com efeito, "não há comicidade fora do que é propriamente humano. Uma paisagem poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; nunca será risível. Riremos de um animal, mas porque nele teremos surpreendido uma atitude de homem ou certa expressão humana. Riremos de um chapéu, mas o que se ridiculariza não é o pedaço de feltro ou palha, mas a forma que os homens lhe deram, o capricho humano de que ele tomou o molde". (…) Vários definiram o homem como “um animal que sabe rir”. Poderiam também bem ter podido defini-lo como um animal que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou algum objecto inanimado, seria por semelhança com o homem, pela marca que o homem aí imprime ou pelo uso que o homem faz dele"[12]. O rir é, pois, um acto especificamente humano.

Rimo-nos ainda quando se percebe, em situações concretas, que há uma substituição das respostas adequadas e previsíveis por respostas mecânicas e rígidas: "Numa sociedade de puras inteligências, provavelmente não se choraria mais, mas talvez se risse ainda; enquanto almas invariavelmente sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, onde qualquer acontecimento se prolongaria em ressonância sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o rir"[13]. A vida estimula em todos os seres vivos uma capacidade de adaptação mediante mecanismos de resposta com vista à normalidade dos comportamentos.

Por isso mesmo, Henri Bergson conecta o riso com a vida: "A nossa escusa, para abordar o problema, é que não teremos em vista encerrar a fantasia cómica numa definição. Vemos nela, acima de tudo, algo de vivo. Por mais ligeira que ela seja, tratá-la-emos com o respeito que se deve à vida. Limitar-nos-emos a vê-la crescer e a desabrochar. De forma em forma, por gradações insensíveis diante de nossos olhos, ela realizará singulares metamorfoses. Não desprezaremos nada do que virmos. Talvez, aliás, com esse contacto assíduo, ganhemos alguma coisa mais flexível que uma definição teórica: um conhecimento prático e íntimo, como o que nasce de longa camaradagem"[14]. Se é verdade que se trata de um fenómeno fisiológico através de movimentos do corpo, a sua origem está ligada ao espírito: "O cómico exige, enfim, para produzir todo o seu efeito, algo como uma anestesia momentânea do coração. Ele dirige-se à pura inteligência"[15]. Na sua génese está uma interpretação a propósito de uma certa situação, sejamos nela partícipes ou apenas espectadores.

Não admira que o rir e a alegria sejam centrais também no pensamento de Nietzsche, e nisso será seguido por Bergson. Por exemplo, o próprio título do livro A Gaia Ciência [“Le Gai Savoir”, O Alegre Saber] expressa essa dimensão. Em Para Além do Bem e do Mal, chega a reivindicar que se faça uma hierarquia dos filósofos a partir da qualidade e intensidade de suas risadas: "Não obstante aquele filósofo que, como bom inglês, procurou criar, em todas as cabeças pensantes, uma má reputação do riso – “O riso é um defeito da natureza humana, que qualquer cabeça pensante se deverá esforçar por superar” (Hobbes) –, gostaria de me permitir estabelecer uma classificação dos filósofos, de acordo com o nível do seu riso (…)"[16]. A verdade é que o rir apenas ocorre entre os humanos e é sempre sinal de uma certa jovialidade interiormente desfrutada.

O riso enaltecido por Nietzsche, sobretudo n’A Gaia Ciência e em Assim falava Zaratustra, ao lado da sua vertente crítica, possui igualmente um profundo carácter afirmativo e criador, que não estará presente na teoria bergsoniana. No entanto, em consonância com Bergson, Nietzsche enfatiza no aforisma 327 d’A Gaia Ciência, que o que poderia despertar o riso é a patética situação do homem que se tornou peça de um esquema maquinal pré-existente e desprovido de vitalidade, a que ele simplesmente se adequou de modo passivo e irreflectido. Mostra-o logo na epígrafe que criou para figurar na primeira página d’A Gaia Ciência: "Moro naminha própria casa,/Nunca imitei nada em alguém./E rio-me de todosos mestres,/Quenunca se riramde si também. (Inscriçãopor cimada minha porta)"[17].

Morar na sua própria casa é reconhecer-se como singular, não imitar a outrem, não reproduzir gestos mecânicos e viciosos (como Bergson mostrará no capítulo III do seu livro). Ou seja, é manter-se atento às demandas e mudar de acordo com as exigências vitais e não pura e simplesmente acatar e adequar-se comodamente à rigidez de esquemas pré-estabelecidos. O mestre que nunca ri de si é um mestre preconceituoso, portanto inconscientemente risível devido à cristalização de suas ideias que não são revistas, repensadas, por terem assumido contornos absolutos com pretensões de perenidade. Já o "mestre que ri de si" não se vincula à falsa segurança de algum pensamento pretensamente inquestionável; ao invés, mantém-se atento ao devir da vida e às potenciais perspectivas por explorar.

Assim falava Zaratustra é dos escritos em que Nietzsche pôs em prática o compromisso assumido n’A Gaia Ciência. Certamente é contra estes “mestres que não riem de si”, expressões do “espírito de gravidade” – Sartre dirá mais tarde, o “espírito de sério” – por impedirem a vivência da graciosidade, a que Zaratustra destina uma das principais máximas de seu sétimo discurso: "Não é com a cólera, mas com o riso que se mata. Vamos, matemos o espírito de gravidade!"[18]. O rir é, pois, profundamente crítico, mas nada impõe: é tão mais libertador quanto desperta de situações de subjugação. Neste sentido, o rir é também um exercício da liberdade no modo como é vivido, o que responsabiliza tanto o que recorre ao humor como o que nele participa.

e) “A filosofia é uma atitude no mundo, não uma abstenção”

Nesta sequência, importa observar que a filosofia não é um exercício mental exterior e abstracto, completamente alheio a quem o realiza, indiferente à paixão existencial que está na sua própria origem. A filosofia é um exercício espiritual e uma certa maneira de viver[19]. Outras disciplinas do pensamento podem ser desenvolvidas nas costas da vida ou nela pouco influir: um cientista pode comportar-se de acordo com umas normas enquanto exerce a sua profissão e com outras quando vive; este dualismo é perfeitamente conjugável. Em filosofia, não; um filósofo não é só um pensador, é também um homem real; o seu modo de pensar é inseparável do seu modo de ser[20]. A atitude filosófica, se decorre do quotidiano, não é a ele redutível; pressupõe sempre que a quotidianidade seja inquirida reflexivamente quer à partida quer à chegada.

Conforme Merleau-Ponty escreve a Sartre, "a filosofia é uma atitude no mundo, não uma abstenção; ela não está reservada ao filósofo de profissão, e ele manifesta-a fora dos seus livros"[21]. Que sentido tem hoje este apelo, quando as filosofias se concebem mais para serem pensadas, muitas vezes atreitas somente à dialéctica (legítima) das objecções e das refutações, quando os pensadores, muito embora relevem a prática, esta não é vista como uma possível arte de viver? Neste ponto, e no quadro da filosofia contemporânea, não podemos deixar de recorrer a Michel Foucault e à sua peculiar análise do “cuidado de si”, que ele mesmo perscrutou na filosofia antiga[22], e que o levou a desenvolver a ideia de uma estética da existência ligada a um certo “estilo de vida”. A este propósito, observou: "a questão do estilo é central na experiência antiga: estilização da relação a si-mesmo, estilo de conduta, estilização da relação aos outros. A Antiguidade não cessou de pôr a questão de saber se era possível definir um estilo comum a esses diferentes domínios de conduta"[23]. É que a ética assim concebida tem muito a ver com o modo da sua comunicação pública, com a forma da sua mensagem, aliada a uma certa manifestação de liberdade.

De facto, Foucault procurou extrair de obras de pensadores da filosofia, grega e romana, ou de arquivos organizacionais (v.g., sistemas de clínica, do asilo e prisional), antologias de existência que se tornaram visíveis no choque com o poder estabelecido: o sujeito ético apenas pode transformar a sua vida em obra, ou mesmo para aí tender, numa luta permanente contra as forças sociais que aí se opõem ou daí derivam; portanto, a sua análise de sistemas não recai numa retirada para uma vida afastada das lutas públicas, ou para uma ética individualizada: "a liberdade é a condição ontológica da ética, mas a ética é a forma reflectida que toma a liberdade"[24]. Ademais, na relação a si e aos outros, o sujeito ético pode transmitir, com a sua existência, uma elaboração do bem mediante as categorias e formas do belo.

A acção do “intelectual específico”, de que Foucault se reclama, desvia-se de qualquer ligação com o universal; neste aspecto, rompe "com a ambição totalizante daquilo que chamava o “intelectual universal” – qual mestre absoluto da verdade: "o que desejo fazer – afirma na sua última entrevista – é um uso da filosofia que permita limitar os domínios de saber"[25]; ela resulta de um domínio de verdade “local” e dum saber “especializado”, que recusa as pretensões universais do pensamento. Na verdade, o autor preferiu envolver-se em movimentos de resistência descentralizados, não unificados e muito menos disciplinados: "Se, no século XIX, o socialismo científico emergiu das utopias, no século XX a socialização real emergirá talvez das experiências"[26]. O “intelectual específico” põe em acção uma ética que, para ser de resistência pontual, não é menos socialmente exposta[27]; por contraposição com Sartre – o “intelectual universal” –, Foucault teve uma vida consagrada ao estudo de sistemas específicos da sociedade ocidental e quis-se inserido em lutas específicas com vista a actos de liberação.

A estética da existência, escreve Foucault, é "(…) a arte reflectida de uma liberdade percebida como jogo de poder"[28]; se liberdade e poder estão intimamente ligados, importa advertir o elo estreito entre resistência e poder; não há poder sem resistência e resistência sem poder: se a resistência pode representar um obstáculo, o poder pode utilizar as resistências para desenvolver novas estratégias[29]. É impossível desligar a resistência dos jogos de poder, sabendo-se como estes são utilizados para constituir um certo tipo de relação com a verdade, e em que as sociedades constituem e sujeitam as nossas identidades.

f) Os homens como fins, isto é, as pessoas, são denominados “fins objectivos”

Das muitas definições que se têm dado a esta antiga arte de filosofar, “a filosofia como vulnerabilidade” é uma das mais peculiares. Eis alguns traços próprios dessa vulnerabilidade: ser-se consciente que é mais interessante o que nos surpreende que aquilo que nos dá razão; demorar as respostas e evitar sobretudo a precipitação; desconfiar da segurança ostentosa; não se sentir incomodado perante perguntas a que não se sabe responder mas que também não pode rejeitar; fugir do enquistamento nas suas diversas formas – intelectual, moral ou política; estar à vontade na inquietação; deixar-se invadir por uma incorrigível curiosidade. Não é que o filósofo seja um personagem incómodo (há-os até acomodatícios em extremo), mas é a incomodidade que é uma atitude filosófica[30]. De facto, as “morais recebidas” – estáticas, exteriores – variam certamente mas não mudam: por princípio, elas exibem respostas acabadas a questões ainda não postas. Os que se servem dessas respostas tornam-se rígidos como reflexos da imposição de uma lei; não são mais que pré-juízos – juízos recebidos de fora –, que se nos impõem espontaneamente sem a mediação reflexiva. O problema das ideias recebidas – no caso, pouco importa que sejam boas – é que nos impulsionam a agir como autómatos: “para tal questão, tal resposta”; elas induzem um comportamento sem reflexão, sem o fundamento em que se baseia o homem “consciente de si”: este funda o seu juízo mais na reflexão e não na moral já acabada. Já isso, segundo Bergson, constituía uma base da ironia e fonte do rir.

Pela filosofia podemos considerar a diferença entre o que é e o que deve ser, pois também ela nos manifesta as exigências da liberdade e da dignidade da pessoa humana, como referências incondicionais. Foi Kant quem o enunciou de modo magistral, como o único fim especificamente moral ou “fim independente” com que contamos, isto é, ser humano revestido de “valor absoluto”, que requer um imperativo categórico. Enquanto os fins relativos apenas constituiriam “fins subjectivos”, como são os que qualquer um de nós se propõe realizar, os homens como fins, isto é, as pessoas, são denominadas por Kant “fins objectivos”, como expressa a famosa passagem da Fundamentação da Metafísica dos Costumes: "Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser usado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objecto de respeito). Estes não são portanto meros fins subjectivos cuja existência tenha para nós um valor como efeito da nossa acção, mas sim fins objectivos, quer dizer coisas cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que não se pode pôr nenhum outro no seu lugar em relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse valor absoluto; mas se todo o valor fosse condicional, e, por conseguinte, contingente, em parte alguma se poderia encontrar um princípio prático supremo para a razão"[31]. Por isso, acrescenta Kant, noutra passagem não menos famosa da mesma obra, o homem não tem preço, mas dignidade: "aquilo que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor intrínseco, isto é, dignidade"[32]. Nisto, Kant perscrutou uma das dimensões incontornáveis da “Filosofia para além da Academia”: a filosofia é inconformismo, e mesmo rebeldia, quando não se resigna a ser apenas expressão do seu tempo, quando prefere ser evocação a ser reflexo.

Desde o julgamento de Sócrates que sabemos que a filosofia mantém uma relação tensa com o status quo[33]. Ontem, Sócrates queria tornar os homens melhores e mais justos; hoje, as suas interrogações sobre a virtude e o bem são também as nossas, embora as nossas respostas sejam necessariamente diversas; se então a tarefa estava facilitada com a filosofia debatida na praça pública, hoje, com as novas tecnologias, quando o pensamento é instigado a tornar-se espectáculo – a simplesmente fazer audiência –, pode não ser mais que um outro retorno a uma nova sofística, que Sócrates pertinazmente combateu.

g) “A coruja de Minerva levanta voo só ao entardecer…”

É verdade que a leitura do jornal da manhã era, para Hegel, “a oração do homem moderno”. Schopenhauer não hesitava em ilustrar os seus raciocínios com uma citação do Times londrino, ao lado de um dito de Platão ou de Aristóteles. O “espírito filósofo” não será desprezar a actualidade jornalística, mas não será também confinar a esta a realidade; deveria ser tentar compreender as coisas que se passam a partir das que não se passam, explicar as coisas que se contam pelas que se silenciam e recordar que o real não é intermitente ainda que algumas informações sobre ele tantas vezes o sejam[34]. Hoje, como no passado, importa a busca de um novo socratismo: recorde-se que já Sócrates preconizava para o filosofar um método em dois tempos – a ironia e a maiêutica, recusando o “pronto a pensar”.

Essa proposição hegeliana, “a coruja de Minerva levanta voo só ao entardecer…,[35] torna-a símbolo da filosofia, pois o olhar penetrante e observador da ave estrigiforme, a sua argúcia e hipersensibilidade, a sua potente capacidade de visão e audição que enxerga e ouve tudo em redor, faz dela o símbolo da filosofia. Por outro lado, Minerva é uma deusa romana, cuja equivalente grega é Athena. Deste modo, se o discurso democrático e a defesa do pluralismo existem na actualidade, tal remonta à Grécia antiga, em que a reflexão filosófica transcendeu os pré-juízos da época, como noutros períodos posteriores. O sentido de superação de cada tempo histórico foi sempre uma das características da atitude filosófica: ela é capaz de pensar e manifestar-se discursivamente para além do discurso da moda, da influência dos media ou do interesse imediatista. A frase de Hegel enfatiza sem dúvida que a filosofia procura ver claro e desvendar, nas sombras da obscuridade, as leis da vida, os segredos da natureza, o sentido da história.

A filosofia deve levar a pensar, ao inquirir o suporte das nossas opiniões, dos nossos conhecimentos, das nossas crenças, das razões do que aceitamos e fazemos, do valor das nossas ideias e ideais, isso na esperança que as nossas convicções profundas, sejam elas mudadas ou não, sejam ao menos esclarecidas racionalmente; tal atitude pode servir aos outros de quadro para a sua própria concepção do mundo e das tarefas humanas. Apesar de dispormos de muitas informações e opiniões sobre a natureza e sobre nós mesmos, não temos o hábito de nos interrogarmos sobre a validade dos nossos pensamentos e das nossas escolhas. Importa examinar tudo isso, porque ilusionamo-nos mais facilmente do que julgamos e porque a verdade e a coerência carecem de ser indagadas[36]. Neste sentido, um filósofo não deve estar dominado pelas circunstâncias, mas avaliá-las num horizonte mais amplo; então, a filosofia será também um modo de apreciar a vida.

Para melhor ressaltar o sentido da reflexão filosófica como superação de cada tempo histórico, servimo-nos destas profundas interrogações de T. S. Eliot: "Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?"[37] Por outras palavras, convirá discernir os modos de saber, inquirindo os níveis da informação, do conhecimento e da sabedoria.

h) Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?

O que a informação nos apresenta são factos e dados primários do que ocorre; ela faculta-nos dados, bits, diz-nos o que é: pode ser digitalizada, arquivada e transmitida; hoje, encontramo-la em redes: com rapidez se consulta a internet – um gigantesco depósito de informação[38]. Com efeito, um dos traços característicos das sociedades hodiernas é sem dúvida configurado pela revolução informacional, que parece originar uma espécie de unificação – aparente – do mundo. Sem dúvida, somos hoje testemunhas privilegiadas do trânsito a uma aldeia global, pela qual se verifica alguma continuidade de um século (XX) a outro (XXI); na aldeia global, a Humanidade viu-se reduzida à informação momentânea, que não apenas transmite factos reais mas pode tornar real o ficcional. Já não existem barreiras naturais, oceanos ou continentes, montanhas ou vales, que criem fortalezas ou tracem fronteiras; hoje circula o poder de estar em todas as partes pela imagem e pela palavra.

Com a globalização, o mais pequeno acontecimento torna-se visível e, aparentemente, mais compreensível; no entanto, não há relação directa entre a amplitude de informação e a compreensão do mundo. Este é o novo dado do século que se iniciou: a informação não gera necessariamente comunicação. A própria expressão “sociedade de informação” – também se usa “sociedade de comunicação” –, pode ser equívoca; em rigor, toda a sociedade, pelo facto de o ser, é de informação e de comunicação; o que varia é, por um lado, a natureza e a dimensão da informação e da comunicação e, por outro, as mudanças que, em cada época e sociedade, afectaram e afectam as formas de se relacionar, de aprender, de trabalhar, em suma, de viver.

Este é um dos nós górdios de hoje: a ruptura entre informação e comunicação, ou a dificuldade em passar de uma a outra. Sabia-se que as culturas eram diferentes, mas pensava-se que a mesma informação podia ser mais ou menos aceite por todos; apercebemo-nos do contrário: há um fosso que se escava entre informação e comunicação. Descobrimos esta verdade empírica, por vezes dolorosamente, ao nível dos Estados-nações; encontramo-la de forma mais intensa a nível das grandes regiões – como a União Europeia – e mais difusa à escala mundial. É um determinado modelo universalista da informação e da relação entre informação e comunicação que está em crise.

Por sua vez, o conhecimento, aferindo informação recebida, hierarquiza a sua importância significativa, indagando princípios gerais susceptíveis de a ordenar; assim, se, por um lado, é verdade que o conhecimento carece da informação, o importante hoje é que, com o acesso facilitado à informação, esta vale cada vez menos; o importante não é já ter informação: quem quiser tê-la, tem-na. O que importa sobremaneira é discriminar informação relevante daquela que não é, quer dizer, separar informação do lixo.

Sem dúvida, o conhecimento é bem diverso: é um saber que, a partir de muitos dados, mediante indução, dedução, ou analogia, diz-nos não o que é, mas o que pode fazer-se. Gaston Bachelard, n'A Formação do Espírito Científico, afirma que "é necessário reflectir para medir e não medir para reflectir"[39]; aí sustém que "conhecemos contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal feitos, superando o que, no próprio espírito, faz obstáculo à espiritualização". Para o espírito científico, "todo o conhecimento é resposta a uma questão" e pressupõe um intenso labor; afirma o mesmo autor: "uma verdade científica é, por essência, uma verdade que tem um futuro"[40].

Então, o progresso do conhecimento revela-se como um “erro decrescente”. Em Conjecturas e Refutações, Karl Popper afirma que o “racionalismo crítico” – orientação que perfilha – "deve ser considerado como um convite para um acordo ou uma convenção", clarificando como as normas da crítica racional e da verdade objectiva ensinam o homem a aplicar o “método de ensaio e erro” em todos os campos, especialmente no da ciência, e "a descobrir quão pouco se sabe e quanto é o que não se sabe"; ajuda-o outrossim a "tomar consciência de que deve o seu enriquecimento às críticas de outras pessoas e de que o homem razoável está disposto a ouvir as críticas"[41]. Então, à medida que vamos aprendendo com os erros (refutações), o nosso conhecimento aumenta, pelo que a ciência é um outro depósito, mas desta vez, não de informação, mas de teorias e modelos, que nos permite dizer como fazer isto ou aquilo.

i)“Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento?”

No entanto, o conhecimento científico tem também os seus limites: a ciência é um saber instrumental que nos mostra o que se pode fazer, mas de modo nenhum o que se deve fazer. Ora, pouco podemos dizer dos valores a partir do conhecimento; com o neopositivismo, a ciência, de certo modo, pretendeu erigir-se como guia, eliminando os valores. Todavia, do que devemos fazer ou não, acerca do “viver bem” (Aristóteles), isto é, de uma vida realizada, do sentido último da existência, sobre o amar e o odiar, sobre o belo, disso tudo a ciência pouco sabe; disso, certamente, se encarrega a sabedoria: esta é uma forma de saber, que, superior à ciência, portanto também à informação, ensina a viver, e revela, de entre o muito que se pode fazer, o que merece ser feito.

Todavia, as coisas não são ainda assim tão claras; claramente que não, pois os ritmos de desenvolvimento destas três formas de saber são muito distintas: é imenso o volume de páginas web, que se expande cada vez mais e a um ritmo frenético (duplicando em cada trimestre). Já o ritmo do desenvolvimento do conhecimento é mais complexo; o portefólio de ciência válida tem-se vindo a duplicar aproximadamente cada quinze anos (que é também o ritmo de revistas científicas especializadas e de ramificação de especialidades científicas). E ninguém duvidará que o horizonte de novos conhecimentos é um daqueles onde pulsa verdadeiramente o que pode designar-se como progresso. Poderíamos, então, arriscar a afirmação: ambos – informação e conhecimento – crescem em progressão geométrica, mas a informação fá-lo tendencialmente cada trimestre, o conhecimento cada quinze anos[42].

É efectivamentea sabedoria que liga o conhecimento às opções vitais ou aos valores que podemos escolher, com vista a estabelecer como “viver melhor”. Atente-se que a sabedoria de que dispomos não é muito maior da que tinham Confúcio, Buda, Sócrates ou Jesus, e não parece ter melhorado muito nos últimos três mil anos; e, o que é pior, não sabemos bem como produzi-la. Tão pouco diria que retrocedeu, mas sim que é quase uma constante que variou pouco ou nada nos últimos séculos. Essa a razão pela qual obras como Ética a Nicómaco (Aristóteles), Sermão da Montanha (Jesus de Nazaré), Da constância do sábio (Séneca), os Sermões do Padre António Vieira, e tantas outras, têm hoje o mesmo valor que no tempo da respectiva publicação, enquanto – como dizia Whitehead – a ciência progride com os seus clássicos, mas ninguém que deseje saber óptica lê hoje Newton. Ora, se tivéssemos progredido em sabedoria como o fazemos em conhecimento, esses velhíssimos textos morais careceriam de valor, como já não tem a mesma valia que outrora o Tratado Elementar de Química, de Lavoisier. Neste sentido, julgo que a ciência se movimenta entre o nível dainformação e do conhecimento, enquanto a filosofia actua entre o da ciência e o dasabedoria, de maneira que não existe informação propriamente filosófica[43], mas pode sim haver conhecimento filosófico que alcança o seu acme na sabedoria.

j) “As demandas de justiça são condições (não necessárias) da felicidade

Com efeito, é nos clássicos que nos damos conta das mais lídimas e percucientes verdades, que parecem terem sido escritas hoje. Atente-se ao diálogo ente o sofista Trasímaco e Sócrates, para ilustrar isso mesmo: "(…) Aqui tens meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados – o que convém aos poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força. Donde resulta, para quem pensar correctamente, que a justiça é a mesma em toda a parte: a conveniência do mais forte (…)"[44]. Parece, pois, que a Humanidade pouco evoluiu no terreno dos valores.

Como já analisámos, a sociedade contemporânea oferece possibilidades enormes de transmissão de informação que nenhum visionário de épocas passadas teria podido imaginar. Não obstante, é a sociedade da solidão; uma sociedade de frustrações, da depressão, da multiplicidade de transtornos psíquicos. Poderíamos chamá-la a sociedade da abundância de meios e carência de fins. Esta situação já foi lapidarmente definida de um modo gráfico: inverteram-se os extremos do mito platónico da caverna (em lugar das Ideias, as sombras).

E no que concerne aos excessos de individualismo exacerbado e da onda de corrupção que grassa na nossa sociedade, veja-se a advertência de Cícero: "Há duas maneiras de cometer injustiça, pela força ou pela astúcia: a astúcia parece de algum modo ser a maneira da raposa, a força, a do leão; as duas são coisas completamente indignas do homem, mas a astúcia é ainda mais execrável. E de tudo o que leva o nome de injustiça, nenhuma é mais criminosa que a injustiça daqueles que, no próprio momento em que mais enganam, o fazem de tal modo que parecem gente de bem"[45]. Em suma: em relação aos antigos, a diferença espiritual e intelectiva não é tão grande como parece: o homem é sempre o mesmo; infelizmente, os humanos não perdem os defeitos que tinham, por vezes não conservam as virtudes[46].

As demandas de justiça são condições da felicidade; e, acrescente-se, são condições necessárias da felicidade. Isso não diminui a responsabilidade de cada um; ao invés, reforça-a, já que somos responsáveis por nós mesmos, titulares de direitos, sujeitos de justiça. Embora felicidade e justiça apontem para distintos sujeitos responsáveis (a felicidade para cada um de nós como pessoas, a justiça para cada um de nós como cidadãos), são interconexas: a justiça é condição da felicidade, torna-a possível, dela carecemos para a tornar possível, mas não é condição suficiente de felicidade (para ser feliz, não basta viver numa sociedade justa). Que a justiça seja condição de felicidade como parte do seu conteúdo, desde logo amplia o significado da ideia de felicidade porque alarga o que é relevante para a realizar; amplifica o nosso mundo moral enquanto pessoas e enquanto cidadãos, mas também o tornam mais frágil e difícil, como projecto submetido a condições que não são apenas nossas mas sociais; o que, por outro lado, torna mais patente a nossa responsabilidade, pois o que somos como sujeitos aparecerá no que fazemos, e também no plexo das crenças, valores, princípios e fins explícitos perante os outros e nós mesmos; o valor do que somos não poderá estar fora do que fazemos: o sentido e o valor da nossa vida é o que fazemos nela e com ela[47]. A nossa responsabilidade é o que nos liga, como sujeitos, às acções que realizamos em relação com os outros – o único espaço por onde irradia a racionalidade.

Isto porque não se lobriga fundamento ético nas nossas condutas quando estas se fundam nas perspectivas em que cada um se enclausura. É esta uma das consequências extremas do individualismo contemporâneo, posto que ao desaparecer toda a exigência de fundamentação, o arbítrio descansa sobre si mesmo [a exigência de fundamentação é o melhor antídoto contra o fundamentalismo]. Trata-se de um individualismo hedonista, onde não existe imperativo categórico, dada a flexibilidade em que a própria vida se move. Este viver sem ideal traz consigo um descompromisso cívico cujas repercussões sociais se manifestam com clareza na actual crise, uma das maiores do pós-guerra.

l) “Não se pode pensar filosoficamente por outra pessoa”

Insistamos ainda na relação entre filosofia e ciência. A relação entre a hipótese e a experiência é o aspecto mais decisivo da ciência: "Quando reflectimos um pouco, apercebemo-nos do lugar ocupado pela hipótese; verificamos que o matemático não poderá prescindir dela, o mesmo se passando com o experimentador. Então, perguntamo-nos se todas estas construções eram suficientemente sólidas e admitiu-se que um simples sopro as poderia derrubar. Ser céptico a tal ponto é ainda ser superficial. Duvidar de tudo ou acreditar em tudo, são duas soluções igualmente cómodas, pois uma e outra dispensam-nos de reflectir"[48]. Uma hipótese surge de questões, de observações prévias e das consequências de teorias científicas, como proposta explicativa de um fenómeno ou da correlação possível entre múltiplos fenómenos; a hipótese intervém, pois, activamente e de modo criativo no progresso científico.

Tal elemento distintivo, não põe em questão o que as aproxima: nas suas origens estiveram unidas, e só, ao longo dos séculos, a física, a química, a astronomia ou a psicologia se foram autonomizando da sua matriz filosófica comum; ambas procuram responder a perguntas suscitadas pelo real, a que as ciências correspondem com soluções (para resolver a questão) e a filosofia com respostas (para explicar a questão). Hoje em dia, as ciências pretendem explicar como é que as coisas funcionam, enquanto a filosofia se preocupa mais com o que elas significam para nós; quando a ciência versa um qualquer assunto (mesmo quando estuda as próprias pessoas) deve adoptar o ponto de vista impessoal, enquanto na filosofia é-se sempre consciente que o conhecimento tem necessariamente um sujeito. A ciência aspira a conhecer o que há e o que acontece; a filosofia reflecte acerca do que representa para nós o que sabemos que acontece e que existe. A ciência multiplica as áreas de conhecimento e as perspectivas, isto é, fragmenta e especializa o saber; a filosofia preocupa-se em relacionar os saberes, tentando inscrevê-los num panorama que abranja a diversidade dessa aventura unitária que é pensar. A ciência desmonta as aparências do real em elementos teóricos invisíveis, ondulatórios ou corpusculares, matematizáveis, mas a filosofia recupera a realidade humanamente vital onde decorrem as peripécias da nossa existência concreta. Não se olvide, porém, que os mais importantes problemas filosóficos, ao longo da história da filosofia, foram motivados por preocupações ligadas à ciência (incluindo-se a matemática, a física, a biologia).

Historicamente aconteceu que algumas perguntas começaram por ser da competência da filosofia – a natureza, o movimento dos astros, por exemplo – e depois tiveram solução científica; noutros casos, questões aparentemente resolvidas cientificamente foram depois tratadas a partir de dúvidas filosóficas (por exemplo, a passagem da geometria euclidiana às geometrias não euclidianas). É provável que certas perguntas a que hoje a filosofia tenta responder recebam amanhã solução científica, e de certeza que futuras soluções científicas contribuirão decisivamente para respostas filosóficas vindouras, assim como não seria a enésima vez que o trabalho dos filósofos orientaria ou daria inspiração a alguns cientistas. Só podemos estar certos de que nunca nem a ciência nem a filosofia terão falta de perguntas às quais tentar responder. Todavia, existe uma diferença importante entre ciência e filosofia que não se refere aos resultados de ambas, mas ao modo de chegar até eles: "pode-se investigar cientificamente por outra pessoa, mas não se pode pensar filosoficamente por outra pessoa"[49], embora os grandes filósofos tanto nos tenham ajudado a pensar. Talvez pudéssemos acrescentar que as descobertas da ciência tornam mais fácil a tarefa dos cientistas posteriores, enquanto os contributos dos filósofos tornam cada vez mais complexo (e mais profundo) o empenho de quem continua a pensar.

m)“Criar conceitos sempre novos é o objectivo da filosofia”

Numa acepção mais comum, "a principal ocupação da filosofia é questionar e esclarecer algumas ideias muito comuns que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar-se que aconteceu num determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará, “O que é o tempo?” Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará, “O que é um número?” Um físico perguntará de que são feitos os átomos ou o que é que explica a gravidade, mas um filósofo perguntará como podemos saber que existe algo fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como é que as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará, “O que faz uma palavra significar alguma coisa?” Qualquer pessoa pode perguntar se está mal introduzir-se no cinema sem pagar, mas um filósofo perguntará, “O que torna uma acção boa ou má?”"[50] Todavia, por muitas respostas filosóficas dadas à pergunta sobre que é o tempo, mais complexa será ainda a indagação sobre o que é a justiça; e, como as interrogações sobre o tempo ou a justiça nunca cessarão, jamais estarão definitivamente clarificadas as respostas já dadas a essas questões.

Já, para Merleau-Ponty, importa que a filosofia "esteja perto da experiência e, todavia, que ela não se limite ao empírico, que restitua em cada experiência a cifra ontológica de que está interiormente marcada; nestas condições, por difícil que seja imaginar o futuro da filosofia, duas coisas parecem seguras: por um lado, ela não terá jamais a convicção de deter, com os seus conceitos, as chaves da natureza ou da história, por outro, não renunciará ao seu radicalismo, a essa busca dos pressupostos e fundamentos que produziram as grandes filosofias"[51]. Daí que a tarefa filosófica seja também criar novos conceitos que correspondam às instâncias da vida e do real.

Neste sentido, e "mais rigorosamente, a filosofia é a disciplina que consiste em criar conceitos. (…) É porque o conceito deve ser criado que ele remete para o filósofo como àquele que o tem em potência, ou que dele tem a potência e competência. Não se pode objectar que a criação se diz sobretudo do sensível e das artes, já que a arte faz existir entidades espirituais, e já que os conceitos filosóficos são também “sensibilia”. A falar verdade, as ciências, as artes, as filosofias, são igualmente criadoras, embora só à filosofia caiba criar conceitos em sentido restrito. (…). Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “Os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente os limpar e os fazer reluzir, mas é necessário que comecem os por fabricar, criar, afirmar e persuadir os homens a utilizá-los. Em suma, até ao presente cada um confiava nos seus conceitos, como num dote milagroso vindo de um algum mundo igualmente milagroso”, mas importa substituir a confiança pela desconfiança, e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais, enquanto ele mesmo não os tiver criado (Platão sabia isso bem, embora tenha ensinado o contrário...)[52]. Platão dizia que era necessário contemplar as Ideias, mas primeiro teve de criar o conceito de Ideia. Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: não criou nenhum conceito, não criou os seus conceitos?"[53]. O intuito é, pois, tratar o pensamento como criação, experimentação e viagem.

Deleuze e Guattari quiseram romper o nó que liga classicamente o ser à representação, inserindo-se na senda de Nietzsche, e já antes de Espinosa e Leibniz; de certo modo, uma concepção quase pragmática do conceito, na medida em que o seu sentido se confunde com a variedade das suas funções teóricas, dos casos práticos envolvidos, das várias aplicações[54]. "O conceito filosófico não se refere ao vivido por compensação, mas consiste, por sua própria criação, em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, não menos que qualquer estado de coisas. Cada conceito talha o acontecimento, retalha-o à sua maneira. A grandeza de uma filosofia avalia-se pela natureza dos acontecimentos a que os seus conceitos nos convocam, ou que ela nos torna capazes de depurar em conceitos. É necessário por isso experimentar nos seus mínimos detalhes o vínculo único, exclusivo, dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora. O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence"[55]. Neste sentido, um conceito nunca está só: "cada conceito remete para outros conceitos, não somente na sua história, mas no seu devir ou nas suas conexões presentes"[56]; quer dizer, um conceito não só pode vir de outros conceitos, mas tem um devir, é uma multiplicidade. Note-se ainda que tratar o pensamento como criação é uma forma de conceber a vida como uma “obra de arte” – nisto, Deleuze converge com Foucault –, ligada à produção de singularidades e diferenças.

Em contraposição com a filosofia, "a ciência não tem por objecto os conceitos, mas funções que se apresentam como proposições em sistemas discursivos. (…) Uma noção científica é determinada não por conceitos mas por funções ou proposições"[57]. Assim, a função científica renuncia à tentativa que o conceito perfaz em dar consistência ao infinito e ao virtual, pois ela abranda o movimento infinito, criando assim uma reflexividade coextensiva ao movimento; neste aspecto, a ciência é ideográfica, mais animada por uma tensão espiritual que por uma intuição espacial: ao invés do conceito que se absolutiza no sobrevoo do real, a função científica estabelece-se no fluxo do real. Ora, o conceito não se confunde com uma proposição, pois ele não tem um valor de verdade, não se refere a estados de coisas, como é o caso das proposições da ciência. Como criação singular, o conceito reporta-se a um acontecimento, ele próprio é um acontecimento. Assim, “com os conceitos, a filosofia faz surgir acontecimentos”, ao passo que “a arte, com as sensações, erige monumentos”, enquanto “a ciência, com suas funções, constrói estados de coisas”.

n) “Não se pode aprender a filosofia, mas a filosofar”

Georges Canguilhem afirmou, numa bela expressão: "A filosofia é uma reflexão para quem toda a matéria estranha é boa, e diríamos, de bom grado, para quem toda a boa matéria é estranha"[58]. Com efeito, sem a filosofia, sem essa inquirição racional com que o espírito prossegue a compreensão da realidade, poderemos de facto vir a ter indivíduos muito adaptados à “vida prática”, como tão insistentemente hoje reclamam os fautores duma sociedade tecnocrática (afinal, como queria, no seu tempo, a jovem escrava trácia); no entanto, poderão ser hábeis fabricadores de estátuas, mas nunca se terão interrogado acerca do belo; serão excelentes construtores de obras de betão, mas desconhecem as vias próprias do conhecimento humano; serão distintos gestores do dinheiro alheio, mas sem se terem interrogado sobre o sentido da vida, sobre o bem e o mal. Deste modo, a filosofia não pode ter por objecto formar nestes ou naqueles valores, nalguns ideários, mas capacitar intelectualmente o sujeito para os reflectir todos, incluindo aqueles que pessoalmente possa subestimar.

Em suma, o que é filosofia? Valha a seguinte definição, proposta por André Comte-Sponville[59]: a filosofia é uma prática discursiva (faz-se, como dizia Epicuro, “por discursos e raciocínios”) que tem a vida por objecto, a razão por meio e a felicidade por fim. Esta tem ao menos o mérito de indicar uma direcção, bem claramente assinalada desde os gregos, que é a da sabedoria. Que posso conhecer? Que devo fazer? O que me é permitido esperar? Essas três questões convergem para uma quarta, que não é tanto "O que é o homem?", como queria Kant[60], mas "Como viver?".

Afinal, trata-se de pensar melhor para viver melhor. Isso não exime de escolha. Quem poderia, a essa questão, responder em meu lugar? Mas que valeria a minha resposta se foi apenas a minha? Julgo que Foucault responde a esta incontornável questão: "Chamemos “Filosofia”, se quiserem, esta forma de pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso (…). Chamemos “filosofia” a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, a forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade. Pois bem, se chamarmos a isto “filosofia”, creio que poderíamos chamar de “espiritualidade” a pesquisa, a prática, a experiência pelas quais o sujeito opera sobre si-mesmo as transformações necessárias para ter acesso à verdade. Chamaremos então “espiritualidade” o conjunto das buscas, práticas e experiências, tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações da existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade"[61]. É mister que a vida esteja em consonância com a verdade, e que a verdade se reflicta em função do viver. Filosofia é, nessa perspectiva, simultânea e inseparavelmente, discurso e modo de vida, “escolha de vida” ou “maneira de comportar-se”.

Na verdade, a filosofia situa-se na encruzilhada entre o universal (da razão) e o singular (de uma existência): por isso ela se aproxima das ciências (a razão, em ambos os casos, é a mesma), por isso ela se aproxima das artes (a subjectividade, em ambos os casos é a mesma), sem contudo confundir-se nem com estas (as artes), que não têm a ver com o raciocinar, nem com aquelas (as ciências), que não têm a ver com o viver. Então, a filosofia não é apenas nem uma ciência nem uma arte, mas como que a perpétua tensão entre esses dois pólos: é como que uma ciência improvável, à força de ser subjectiva, e como uma arte improvável, à força de ser racional. Se Descartes tivesse tido êxito, seríamos todos cartesianos. Se Kant tivesse tido êxito, seríamos todos kantianos. Se Husserl tivesse tido êxito, seríamos todos fenomenólogos. E a filosofia seria tão objectiva, tão impessoal, tão indiferente, quanto a física ou a matemática. Se Descartes tivesse tido êxito, se Kant tivesse êxito, se Husserl tivesse tido êxito, a filosofia não teria mais interesse: ela teria entrado no “caminho seguro de uma ciência”, como dizia Kant, e seria o fim da filosofia.

Aonde quero, pois, chegar? Simplesmente, a isto: a filosofia só vive pelo impossível que traz em si, que é um sujeito racional. Como se poderia parar de filosofar! Seria preciso conhecer tudo, o que não se pode, ou renunciar a pensar, o que não se deve. Esta, a força motriz d’A Filosofia para além da Academia, condensada na proposição kantiana, "não se pode aprender a filosofia, mas a filosofar"[62]. Com efeito, a filosofia só vive pelo impossível que traz em si, que é uma razão subjectiva, que é um sujeito racional: como se poderia parar de filosofar! Seria preciso conhecer tudo, o que não se pode, ou renunciar a pensar, o que não se deve[63]. Não se trata de aprender um saber já concluído por outros que qualquer pessoa pode ficar a saber.

Trata-se, sim, de um método, isto é, um caminho para o pensar, uma forma de olhar e de argumentar. Como Kant enuncia mais longamente: "Entre todas as ciências racionais (a priori), só é possível aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente); no que respeita à razão, o máximo que se pode é aprender a filosofar. (…) Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus princípios gerais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo nas suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os"[64]. Só filosofando se podem perscrutar os enigmas da vida, apreender os segredos da natureza, auscultar o sentido da história, examinando-se a si mesmo enquanto sujeito pensante e criador de cultura.

Meus caros, filosofar é sobretudo pensar mais longe que aquilo que se sabe, inquirir mais profundamente a razão de ser das coisas, buscar mais profundamente as exigências do “bem viver”, isto é, de uma vida realizada.

 

Notas

[1] São estes os Simpósios Luso-Galaicos de Filosofia, realizados até ao momento, ora em Braga, ora em Santiago de Compostela, com as respectivas actas publicadas (em livros ou revistas): I - Pensar a Europa, 10 de Dezembro de 1999, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, Braga; II - Europa: Mito e Razão, 26-27 de Outubro de 2000, Campus Sul, Universidade de Santiago de Compostela; III - Justiça, Poder e Cidadania, 30 de Novembro de 2001, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, Braga; IV - Galiza-Portugal: Miradas Cruzadas, 28-29 de Novembro de 2002, Campus Sul, Universidade de Santiago de Compostela; V - Europa, Cidadania e Multiculturalismo, 7-8 de Maio de 2004, Casa Museu de Monção da Universidade do Minho; VI - Desafios do Século XXI, 11-12 de Novembro de 2005, Galeria Sargadelos, Santiago de Compostela; VII - O Papel dos Intelectuais, 27-28 de Abril de 2007, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, Braga; VIII - Razão Ecológica, 11-12 de Junho de 2009, Faculdade de Filosofia, Praza de Mazarelos, Santiago de Compostela; IX - A Filosofia na Academia, 28-29 de Outubro de 2011, Campus de Gualtar, Universidade do Minho, Braga.

[2] Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico (1921), 4.112, trad. M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 62.         [ Links ]

[3] Epicure, Lettre à Ménécée. Paris, Éditions Fernand Nathan, 1982, p. 76.         [ Links ]

[4] Cf. Aristote, Protreptique, frag. 6 Düring.         [ Links ]

[5] Aristóteles, Metafísica, Livro I, 2, trad. V. Cocco, intr. e notas de J. Carvalho, Coimbra, Atlântida, 1969, p. 11.

[6] Platão, Teeteto, 174ª, trad. A. M. Nogueira e M. Boeri, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, pp. 247-248.         [ Links ] Cf. também Daniel Innerarity, A Filosofia como uma das Belas-Artes, Lisboa, Editorial Teorema, 1996, p. 125 ss.         [ Links ]

[7] Aristóteles, Política [edição bilingue], 1259a 9-18, trad. A. C. Amaral e e C. C. Gomes, Lisboa, Veja, 1998, pp. 88-89.         [ Links ]

[8] D. Innerarity, op. cit., pp. 125-128.

[9] Emmanuel Kant, Qu’est-ce que les Lumières (1784), trad. J.-F. Poirier, Paris, Garnier-Flamarion, 1991, p. 43.         [ Links ]

[10] Henri Bergson, ?Le rire: essai sur la signification du comique” (1900), Œuvres, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 388.         [ Links ] Cf. também D. Innerarity, op. cit., p. 140.

[11] Aristote, Parties des Animaux, III, 10, 673 a 8

[12] H. Bergson, ?Le rire: essai sur la signification du comique”, op. cit., p. 388.         [ Links ]

[13] Ib., pp. 388-389.

[14] Ib., p. 387.

[15] Ib., p. 389.

[16] Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal (1886), § 294, trad. e notas de C. Morujão, Círculo de Leitores, 1996, p. 254.         [ Links ]

[17] Friedrich Nietzsche, Le Gai Savoir (1882), ed. G. Colli et M. Montinari, Paris, Gallimard, 1967, p. 67.         [ Links ]

[18] Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (1883), I Parte, “Do Ler e do Escrever” [Sétimo Discurso de Zaratustra], trad. Paulo O. Castro, Círculo de Leitores, 1996, p. 47.         [ Links ]

[19] Pierre Hadot, La Philosophie comme Manière de Vivre, Paris, Paris, Éditions Albin Michel, 2001, p. 66.         [ Links ]

[20] D. Innerarity, op. cit., p. 10.

[21] Maurice Merleau-Ponty, “Lettre de M. Merleau-Ponty à J.-P. Sartre” (8 juillet 1953), in ID., Parcours Deux, Paris, Verdier, 2000, p. 150.         [ Links ]

[22] Michel Foucault, Le Souci de Soi, Paris, Gallimard, 1984.         [ Links ]

[23] Michel Foucault, “Le retour de la morale” (1984), in ID., Dits et Écrits, vol. IV, Paris, Gallimard, 1994, p. 698.

[24] Michel Foucault, “L'éthique du souci de soi comme pratique de liberté” (1984), in ID., Dits et Écrits, vol. IV, op. cit., p. 712.         [ Links ]

[25] Michel Foucault, “Le retour de la morale” (1984), op. cit., p. 707.         [ Links ]

[26] Cf. Michel Foucault, “Par-delà le bien et le mal” (1971), in ID., Dits et Écrits, vol. II, Paris, Éditions Gallinard, 1994, p. 234.         [ Links ]

[27] Esta ética tomou, na obra como na vida do autor, formas concretas cuja coerência deve ser sublinhada: oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, da psiquiatria sobre os doentes mentais, da medicina sobre a população, da administração sobre a vida das populações (Cf. Michel Foucault, “Pourquoi étudier le pouvoir: la question du sujet” [Entretien], in Hubert Dreyfus / Paul Rabinow, Michel Foucault: un parcours philosophique, Paris, Gallimard, 1984, p. 301.         [ Links ]

[28] Michel Foucault, Histoire de la Sexualité, t. 2, L'usage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984, p. 277.         [ Links ]

[29] Michel Foucault, Histoire de la sexualité, t. 1, La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, p. 125-127.         [ Links ]

Cf. também Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, “‘Genealogia’, Poder e Subjectividade: perspectivas e aporias em Foucault”, Diacrítica, nº 9, 1994, pp. 5-36.         [ Links ]

[30] Cf. Fernando Savater / José Luis Pardo, Palavras Cruzadas: um convite à filosofia [1998], trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Fim de Século, 2008, p. 39.         [ Links ]

[31] Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), trad. P. Quintela, Coimbra, Atlântida, 1960, pp. 66-67.         [ Links ]

[32] Ib., pp. 76-77.

[33] D. Innerarity, op. cit., p. 102 ss.

[34] Cf. Fernando Savater / José Luis Pardo, op. cit., pp. 42-43.

[35] G. W. F. Hegel, Principes de la Philosophie du Droit, traduit et annoté par J.-F. Kervégan, Paris, P.U.F., 1998, p. 88.         [ Links ]

[36] R. H. Popkin / A. Stroll / G. W. Felker, Philosophie Efficace, Paris, Zelos, 1980, pp. 20, 23.         [ Links ]

[37] T. S. Eliot, The Rock, 1932.         [ Links ]

[38] Emilio Lamo de Espinosa, El País, 22 Janeiro 2004, p. 13.         [ Links ]

[39] Gaston Bachelard, La Formation de l’Esprit Scientifique, Paris, Vrin, 1938, p. 213.         [ Links ]

[40] Gaston Bachelard, L’Activité Rationaliste de la Physique Contemporaine, Paris, P.U.F., 1951, p. 28.         [ Links ]

[41] Karl R. Popper, Conjectures and Refutations: the Growth of Scientific Knowledge [1962], London/New York, Routledge, 2002, p. 516.         [ Links ]

[42] Seguimos aqui de perto as reflexões de Lamo de Espinosa, op.cit.

[43] Fernando Savater, As Perguntas da Vida, trad. M. A. Pedrosa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 18.         [ Links ]

[44] Platão, República, Livro I, 339a, trad. M. H. Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 24.         [ Links ]

[45] Cicéron, Les Devoirs [De Officiis, 44 a.C.], XIII, 41 [texte établi et traduit par Maurice Testard, Paris, Les Belles Lettres, 1970, p. 125].

[46] “Entrevista com Maria Helena da Rocha Pereira”, Público, 6 Setembro 2001, p. 46.

[47] Cf. Carlos Thiebaut, Invitación a la Filosofía, Madrid, Acento Editorial, 2003, pp. 250-251, 303.         [ Links ]

[48] Henri Poincaré, La Science et l’Hypothèse, Paris, Flammarion, 1968, pp. 23-24.         [ Links ] Cf. Fernando Savater, As Perguntas da Vida, op. cit., pp. 20-23 (que seguimos de perto).         [ Links ]

[49] Cf. F. Savater, op. cit., pp. 23-24.

[50] Thomas Nagel, What does it all mean? Oxford University Press, 1987, p. 5.         [ Links ]

[51] Maurice Merleau-Ponty, "Partout et nulle part", in ID., Éloge de la philosophie et autres essais. Paris, Gallimard, 1953, p. 238.         [ Links ]

[52] Friedrich Nietzsche, "Posthumes" (1884-1885), Œuvres philosophiques, XI, Paris, Gallimard, pp. 215-216 [sobre “a arte da desconfianç         [ Links ]a”].

[53] Gilles Deleuze / Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Les Éditions de Minuit, 1991, pp. 10-11.         [ Links ]

[54] "O conceito de um pássaro não está no seu género ou na sua espécie, mas na composição de suas posturas, de suas cores e de seus cantos: qualquer coisa de indiscernível que é menos uma sinestesia que uma sineidesia". Ib., 25-26.

[55] Ib., p. 37.

[56] Ib., p. 24.

[57] Ib., p. 111.

[58] "La philosophie est une réflexion pour qui toute matière étrangère est bonne, et nous dirions volontiers pour qui toute bonne matière est étrangère". Georges Canguilhem, Le Normal et le Pathologique, Paris, P.U.F., 1966, 2ª ed., p. 7        [ Links ]

[59] André Comte-Sponville / Luc Ferry, La Sagesse des Modernes, Paris, Robert Laffont, 1998, p. 508.         [ Links ]

[60] Immanuel Kant, Logique (1800), trad. J. Tissot, Paris, Chez Ladrange, 1840, p. 27.         [ Links ]

[61] Michel Foucault, L’Herméneutique du Sujet (Cours au Collège de France: 1981–1982), Paris, Seuil/Gallimard, 2001, pp. 16-17        [ Links ]

[62] I. Kant, Logique, op. cit., p. 28.         [ Links ]

[63] Cf. André Comte-Sponville / Luc Ferry, op. cit., pp. 508-509.

[64] ID., (1781), Crítica da Razão Pura, trad. Manuela P. Santos e Alexandre F. Morujão, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 660-661.         [ Links ]