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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.1 Braga  2012

 

Júlio Ribeiro, leitor de Schleicher: linguística e positivismo no Brasil do final do século XIX

Maurício Silva*

*Universidade Nove de Julho, São Paulo, Brasil

maurisil@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo analisa alguns conceitos gramaticais de Júlio Ribeiro, destacando sua filiação à corrente positivista dos estudos linguísticos, sob a perspectiva teórica da Historiografia Linguística. Além disso, o presente artigo procura relacionar sua produção gramaticográfica com a obra do linguista August Schleicher

Palavras-chave: Júlio Ribeiro, Gramática, Português, Historiografia Linguística, Positivismo.

 

ABSTRACT

The present article analyzes Julio Ribeiro concepts of grammar, and point out some aspects of his grammatical practice. Furthermore, it analyzes Ribeiro´s adoption of positivism concept of language, on Linguistic Historiography perspective.

Keywords: Julio Ribeiro, Grammar, Portuguese, Linguistic Historiography, Positivism.

 

Introdução

Tendo publicado sua célebre Grammatica Portuguesa em 1881, Júlio Ribeiro desde cedo envolveu-se em diversos debates acerca de fatos linguístico-gramaticais e literários, destacando-se como um dos mais inspirados e sarcásticos polemistas da virada do século. É certo que resolver pendências ideológicas por meio de polêmicas não era exatamente uma novidade em sua época, já que, pelo menos desde meados do século XIX, as contendas em torno de manifestações idiomáticas, por mínima que fossem, parecem ter sido mais regra do que exceção, envolvendo as personalidades mais díspares, como um José de Alencar (em combate com Pinheiro Chagas, em 1870), um Carlos de Laet (em disputa com Camilo Castelo Branco, em 1879), um Rui Barbosa (em célebre embate com Ernesto Carneiro Ribeiro, entre 1902 e 1907) e muitos outros. (LEITE, 1996; PFEIFFER, 2001)

Contudo, a figura de Júlio Ribeiro se destaca, nesse cenário contornado por imprecações de todo tipo, primeiro, por se manter, ao longo de suas mais acirradas polêmicas, rigorosamente dentro dos limites impostos pelos temas discutidos, lançando mão, ao mesmo tempo, de um vasto cabedal de conhecimento científico acerca do assunto tratado e de um impiedoso e ferino discurso contra seus opositores; segundo, por fazer de seus conhecimentos linguístico-gramaticais uma arma poderosa contra seus antagonistas, como aliás lembrou José Leonardo do Nascimento, que vira nesses mesmos conhecimentos “instrumentos de luta, que aplicou, sem piedade ou medida, contra adversários, demonstrando que eles tinham parcos conhecimentos vernaculares”. (NASCIMENTO, 2007) Bem antes da publicação de suas principais obras, o ainda desconhecido intelectual mineiro já se envolvera em polêmicas diversas, seja em torno de temas da comunidade em que vivia, como ocorre no jornal O Sorocabano (1870-1872), seja em rusgas de natureza gramatical, como ocorre no jornal Ypanema (1873), em que um redator anônimo o condenava... pelo uso de um plural inadequado! (CAVALHEIRO, 2001)

Mas nem só de polêmicas viveu o ilustre filólogo: embora tenha exercitado sua verve ferina em textos que se tornaram célebres na imprensa da época, posteriormente recolhidos em suas Cartas Sertanejas (1885) (RIBEIRO, s.d.a) e nas contundentes Procellarias (1887), (RIBEIRO, s.d.b) Júlio Ribeiro se dedicou com igual tenacidade à produção de reconhecida obra científica, particularmente no âmbito do conhecimento linguístico e gramatical, a qual, escrita sob a égide da filosofia positivista – que tomou conta, na passagem do século XIX para o XX, do cenário intelectual brasileiro – tornou-se referência nos estudos da língua portuguesa até os dias atuais.

Adotando o Positivismo como base filosófica por excelência de sua conduta teórica e prática, a inteligentsia republicana brasileira tinha nos conceitos de modernização e cientificismo os dois pilares da concepção tropicalizada de nacionalismo, por meio da qual se pretendia tornar o país uma nação mais civilizada e cosmopolita. (OLIVEIRA, 1990; VENTURA, 1991) Semelhante concepção da realidade brasileira redundaria, no plano político, na instauração de um regime – a República – que tinha nas propostas regeneradoras e utópicas do Positivismo sua principal fonte de inspiração, resultando numa ditadura em tudo caudatária do imaginário comteano. (CARVALHO, 1989; CARVALHO, 1990; BRESCIANI, 1993)

Esteticamente, o cenário não era diferente: a literatura produzida na época, a que se convencionou chamar de Realista-Naturalista, apresentava como fundamento ideológico uma série de teorias que, tendo surgido na segunda metade do século XIX, baseavam-se fundamentalmente nas ideias colhidas do Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), de Auguste Comte, bem como de outros sistemas filosófico-ideológicos que com elas dialogavam, como o Determinismo Ambiental de Taine (Filosofia da Arte, 1865-1869), o Determinismo Biológico de Darwin (As Origens das Espécies, 1859), o Experimentalismo Científico de Bernard (Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, 1865) ou o Determinismo Social de Spencer (Princípios de Sociologia, 1877-1886). Todas essas teorias acabaram influenciando diretamente o modo de produção literária dos realistas-naturalistas de fins do século XIX no Brasil, que, ao incorporarem em suas obras semelhantes ideários, estabeleceram, involuntariamente, um vínculo entre Arte e Ciência. (BROCA, 1991; SODRÉ, 1965) Como afirmou Émile Zola, num dos principais tratados teóricos sobre o Naturalismo – ao explicitar os objetivos do que, muito sugestivamente, chamou de romance experimental –, a literatura deve

“possuir o mecanismo dos fenômenos do homem, mostrar a engrenagem das manifestações intelectuais e sensuais, tal qual a Fisiologia no-las explicará, sob as influências da hereditariedade e das circunstâncias-ambiente, e depois mostrar o homem vivendo no meio social que ele mesmo produziu, que modifica todos os dias, e no seio do qual experimenta por sua vez uma transformação contínua”. (ZOLA, 1982, p. 43).

Tratava-se, em resumo, dos princípios do positivismo comtiano e do determinismo darwiniano aplicados à política e à estética, da mesma maneira que foram aplicados ao campo dos estudos linguísticos. Com efeito, como demonstra a historiografia da linguística, o século XIX foi marcado por tendências cada vez mais vinculadas ao método histórico-comparatista – com os estudos de Franz Boop, August Schleicher, Max Müller, Wilhelm Von Humboldt, Whitney e outros –, inspirado no ideário positivista-determinista (LEROY, 1982)

No Brasil não seria diferente: dos últimos anos do século XIX até a terceira década do século XX, os estudos linguísticos brasileiros foram marcados por ideias que acusavam um vasto lastro positivista, com a proliferação de um saber metalinguístico de indiscutível inspiração determinista, bem de acordo com o ideário linguístico da época. (LIGHTFOOT, 2000; ORLANDI, 2002). Assim, não é difícil percebermos a incidência do evolucionismo linguístico na gramaticografia brasileira de fins do século XIX até pelo menos, como aludimos antes, a década de 1930, como se constata destas palavras de Renato Mendonça, publicadas em 1936: “o evolucionismo foi o princípio filosófico invasor das ciências no século XIX [...] A linguística não se poude furtar. E o evolucionismo nela ainda predomina absoluto como um senhor feudal”. (MENDONÇA, 1936, p. 46)

O positivismo na linguística e a herança de August Schleicher

Ideário prevalente na Europa a partir da segunda metade do século XIX, o Positivismo tornou-se fundamento filosófico e metodológico hegemônico da racionalidade epistemológica em todo mundo ocidental. Para seu principal idealizador, Auguste Comte, os princípios positivistas se relacionavam diretamente a um método racional e orgânico de aplicação das leis da natureza (inclusive as que regiam a dinâmica social), substituindo os métodos teológicos e metafísicos, fundamentalmente irracionais, motivo pelo qual, segundo suas próprias palavras, “la prédominance relative de la méthode positive ser les méthodes théologique e métaphysique est aujourd’hui un fait que personne ne peut contester ni ne conteste”. (COMTE, 1924, p. 7)

Nos estudos linguísticos, contudo, destacou-se o nome do filólogo alemão August Schleicher (1821-1867), que, inspirado nas ciências naturais, considerou as línguas organismos vivos, aos quais se poderiam, inclusive, aplicar as teorias evolucionistas de Darwin, presentes em sua célebre A origem das espécies (1859). Pesquisador rigoroso, que se notabilizou ainda pelos estudos acerca da origem das línguas e de sua divisão em famílias linguísticas (LEROY, 1982;WEEDWOOD, 2002), Schleicher afirmou-se, contudo, na história da linguística, como o nome de maior prestígio na abordagem do que se convencionou chamar de língua organismo, tese segundo a qual, no dizer de Georges Munin, “la langue n´est pas un fait social, c´est une oeuvre de la nature, un organisme naturel” (MOUNIN, 1967, p. 195).

Com efeito, apoiando-se ora na pesquisas de zoologia, realizadas Peter Simon Pallas, ora nas de botânica, por Antoine-Nicolas Duchesne, o célebre filólogo levou ao limite a noção de evolucionismo, conceito que, na sua opinião, determina o próprio percurso da linguagem humana. Com obras como Zur vergleichenden Sprachengeschichte (1848), Die Sprachen Europas in systematischer Übersicht (1850), Die Formenlehre der Kirchenslawischen Sprache (1852), Die Deutsche Sprache (1860), Compendium der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen (1861) e Die Darwinsche Theorie und die Sprachwissenschaft: Offenes Sendschreiben an Herrn Dr. Ernst Haeckel (1863), Schleicher tornou-se “the first to enunciate the principles that language operates by strict rules, that the best forms for comparison in any language are the oldest which can be traced in it, and that cross-linguistic comparison must be systematic calculation and not adventitious groping” (COLLINGE, 1995, p. 196).

Tais ideias – algumas delas, como o princípio científico que rege as normas de funcionamento das línguas, bem de acordo com o ideário positivista incansavelmente professado por Comte – fundamentam praticamente toda a produção linguística de Schleicher, fazendo dele o principal representante dessa tendência nos estudos da linguagem. Nesse sentido, não deve causar estranhamento o fato de Schleicher afirmar, já na Introdução de seu célebre Compendium der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen, que “th[e] science [of language] is itself a part of the natural history of Man” (SCHLEICHER, 1874, p. 01). No Prefácio da edição italiana dessa obra, publicada apenas oito anos após sua edição original, Domenico Pezzi afirma ser essa obra uma “sintesi, breve e ad um tempo completa nel suo genere, dei resultati puì certi importanti delle recenti comparazioni, esposti com metodo rigorosamente positivo” (PEZZI, 1869, p. 05). Portanto, já em 1852 – e, curiosamente, oito anos antes da publicação da célebre obra sobre a origem das espécies de Darwin – Schleicher defendia o princípio da evolução natural para a linguagem, conceito que, a seu ver, incidia de modo particular na constituição dos idiomas (WEEDWOOD, 2002).

De fato, em uma de suas mais conhecidas obras (Die Sprachen Europas in systematischer Übersicht), o célebre linguista alemão lembra que a ciência que tem por objetivo o estudo da linguagem em geral se separou em dois ramos distintos: a filologia, que pertence à história; e a linguística, que pertence à fisiologia humana. Assim, enquanto a primeira se liga à livre vontade da ação humana, a segunda encontra-se vinculada à necessidade natural, devendo, portanto, adotar o método de outras ciências naturais. Desse modo, pode-se dizer – segundo Schleicher – que tudo o que pertence ao âmbito da vontade individual e do pensamento diz respeito à filologia, enquanto que tudo o que pertence ao campo natural, isto é, proveniente da essência natural do Homem refere-se à linguística:

“le linguiste est comme le zoologiste, le botaniste, le minéralogiste ou tout autre savant qui, en étudiant les sciences naturelles, doivent avoir um coup d´oeil général sur le règne entier des animaux, des végétaux, des minéraux même, s´ils ne s´occupent spécialement que d´une seule série, d´une seule famille des êtres naturels; le linguiste, en n´étudiant profondément qu´une seule langue, est obligé à bien connaître le règne tout entier des langues” (SCHLEICHER, 1852, p. 04).

Considerando, portanto, que do ponto de vista apresentado o linguista deve se preocupar com o conhecimento geral das línguas, Schleicher lembra que a língua está para o Espírito do Homem como a natureza está para o Espírito em geral, enfatizando que as três classes de línguas (monossilábicas, aglutinantes e flexionais) são análogas às três classes de organismos naturais (minerais, vegetais e animais). Por isso, completa, é necessário não apenas estudar as línguas, mas compará-las entre si, desvendando-lhes os mistérios. Desse modo, pode-se proceder – como faz o autor na continuação de seu trabalho, em outras obras – à comparação entre os idiomas, pesquisa que levará o linguista às categorias, em tudo semelhante aos estudos de outras organizações naturais, de gênero, espécie, sub-espécie etc. (SCHLEICHER, 1852).

Estabelecendo, segundo KOERNER (1989), as bases nas quais se assentaram as teorias inovadoras dos linguistas posteriores, apesar do papel fundamental dos neogramáticos; e apesar de que, segundo SWIGGERS (1997), algumas de suas ideias já estivessem presentes, in germine, nos métodos de análise do século XVI, Schleicher apresenta uma perspectiva ampla dos estudos histórico-comparativos, consolidando assim os fundamentos positivistas e deterministas da pesquisa linguística, na medida em que busca a vinculação necessária entre os estudos linguísticos e as ciências naturais, levando, finalmente – com o que na época foi chamado de glotologia – à formulação de teorias em que se procuravam aproximar, de modo quase espontâneo, as normas gramaticais e as leis da evolução biológica, tal como – verificar-se-á adiante – ocorre com a produção linguistica de Júlio Ribeiro.

Com efeito, Júlio Ribeiro teria sido, segundo Maria Helena Mateus, o primeiro teórico a se utilizar, no Brasil, do vocábulo linguística, em livro que, pioneiramente, revela sua dívida para com as teorias positivistas da linguagem, inspiradas no “evolucionismo” schleicheriano (MATEUS, 2002).

São duas, portanto, as obras em que Júlio Ribeiro defende princípios teóricos assentados no determinismo de inspiração positiva, muitos deles extraídos do ideário linguístico de Schleicher: seus Traços Geraes de Linguística (1880) e sua Grammatica Portuguesa (1881).

Júlio Ribeiro e a adoção do positivismo na linguística brasileira

Publicado um ano antes da gramática que o tornaria célebre, seu livro Traços Geraes de Linguística (1880) foi editado pela Livraria Popular, na coleção “Biblioteca Útil”, organizada por Abilio A. S. Marques, de São Paulo. A intenção dessa coleção era, como se constata num dos livros editados, “popularisar, por meio de edições baratas, as artes e as sciencias que formam o patrimonio do saber, emfim tods as ideias modernas e direcções novas que apparecem no mundo civilisado” (CELSO JÚNIOR, 1880, p. II). Entre outros trabalhos, a referida coleção publicou títulos particularmente voltados para o Positivismo, como Do Espirito Positivo (de Auguste Comte), Soluções Positivas da Politica Brazileira (de Luiz Pereira Barreto) e Darwinismo (de Antonio Caetano de Campos). No mesmo ano de sua publicação, A Província de São Paulo tece, em nota, elogios ao livro, afirmando tratar-se de “obra completamente nova entre nós”, por meio da qual Júlio Ribeiro teria aberto “rumo novo no estudo da linguística”, já que se servira do “método experimental [...] deixando de lado muita coisa inútil das velhas grammaticas que seguiam processos hoje condenados cientificamente” (apud SILVEIRA, 2008, p. 133). Tal perspectiva, aliás, é confirmada por Ivan Lins, em seu célebre e abrangente estudo sobre a história do positivismo no Brasilque, ao comentar justamente a coleção organizada por Abílio Marques e, em especial, os Traços Geraes de Linguística, de Júlio Ribeiro, conclui: “era, como se vê, puro Comte” (LINS, 1967, p. 146)

De fato, já em sua “Nota ao Leitor”, Júlio Ribeiro afirma que, apesar de ter dado uma contribuição pessoal às ideias desse seu livrinho, parte dos conceitos ali elencados provém de mestres em cuja fonte buscou vários ensinamentos: Comte, Spencer, Darwin, Max Müller, Whitney, Schleicher, Grimm, Tylor, Haeckel, Bopp, Renan, Diez, Bréal, Teóphilo Braga, Adolpho Coelho e outros. Salta aos olhos o elenco de nomes registrados pelo eminente filólogo, praticamente todos caudatários do ideário positivista em várias de suas modalidades de manifestação. Não sem razão, Júlio Ribeiro afirmaria, ainda na “Introdução” de seu trabalho – seguindo de perto a lição colhida seja na Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, 1865, de Claude Bernard, seja no já citado O Romance Experimental, 1880, de Émile Zola –, que “os processos de investigação e verificação de que usa o homem consistem na observação e na experiência cuja reunião constitue o methodo experimental” (RIBEIRO, 1880, p. 14).

Assim, após fazer considerações muito genéricas sobre o cérebro humano, onde se localizaria a sede da linguagem articulada; e após tecer comentários gerais acerca do aparelho fonador e seus sons elementares, Júlio Ribeiro parte diretamente para as descobertas de Haeckel – determinista de primeira hora –, ressaltando, entre outras coisas, a necessidade de se fundamentar a investigação linguística em “dados positivos” (RIBEIRO, 1880, p. 32), lembrando ainda que a utilização do aparelho fônico para fins de comunicação linguística é uma faculdade que teria sido “transmitid[a] de geração em geração pela hereditariedade” (RIBEIRO, 1880, p. 33). Esse curioso processo de aprimoramento linguístico é descrito por Júlio Ribeiro em sete fases distintas: período interjetivo (em que o antropoide se manifesta por meio de interjeições); período demonstrativo (em que o antropoide, já em fase de evolução para a condição humana, se manifesta pelo uso de pronomes demonstrativos); período atributivo (em que o homem passa a se referir ao mundo pelo emprego de adjetivos atribuídos aos objetos à sua volta); período monossilabico (em que as palavras interjetivas, demonstrativas e atributivas se convertem em formas fixas verbais); período aglutinativo (em que aparecem as conjunções entre radicais – formas do período anterior – e os afixos, correspondendo ao que hoje conhecemos como derivação); período amalgamante (em que surgem as flexões); e o período contrativo (fase atual da linguagem, em que desaparecem sílabas breves nas palavras flexionais, em que surgem as preposições etc.). Dessa forma, compreendendo a linguagem verbal como uma entidade em constante progresso, bem ao estilo dos teóricos do positivismo, Júlio Ribeiro denomina os três primeiros períodos de pré-históricos e os quatro últimos de históricos.

Tomado por esse ideário, Júlio Ribeiro dedica-se especialmente – ao longo de todo seus Traços Geraes de Linguística – à evolução linguística: após uma rápida explanação da teoria darwiniana da evolução – no terceiro capítulo, em que trata das leis que fundamentam a referida teoria, das causas e consequências da seleção natural, da filosofia zoológica, da classificação genealógica etc. –, afirma taxativamente que “bem como as especies organicas que povoam o mundo, as linguas, verdadeiros organismos sociologicos, estão sujeitas á grande lei da luta pela vida, á lei da selecção” (RIBEIRO, 1880, p. 42). Esse raciocínio, que estará presente também nas páginas de sua Grammatica, determinaria a multiplicidade de idiomas que, como as espécies vivas, saem de um mesmo tronco para se multiplicarem infinitamente: “as especies têm suas variedades; as linguas têm seus dialetos (...) As relações commerciais, industriais, politicas e litterarias que os povos têm entre si são uma causa de variação e de selecção” (RIBEIRO, 1880, p. 43/44). Daí adviria o fato de que, como os seres vivos, as línguas também morrem, sem que possam jamais reviver, além do que, segundo o autor, “pela força de variações continuas e de uma selecção sempre activa não ha uma única lingua viva que não tenha soffrido perdas irreparaveis” (RIBEIRO, 1880, p. 47). Disso decorreria, finalmente, uma sensível melhora das línguas que, como as espécies, passam não apenas por um processo de evolução, mas também de seleção, já que, como ocorre com as demais espécies vivas, “nas linguas a communidade de origem é attestada pela constancia de estructura” (RIBEIRO, 1880, p. 50), o que comprovaria, definitivamente, que “as linguas modernas, bem como as especies zoologicas têm sua origem revelada por orgams rudimentares e atrophiados, e possuem fosseis de maior ou menor vetustez” (p. 54).

O processo de adotar termos da natureza, do mundo fisiológico e orgânico, como metáfora para a explanação dos processos linguísticos não era novidade na época de Júlio Ribeiro, denotando, nele, um incoercível apego às teorias deterministas, inspiradas pelo positivismo comteano. Estudando as abordagens da linguística na Europa do século XIX, Mária Tsiapera lembra que esse caminho fora, antes, trilhado por William Jones (responsável pelos estudos acerca das famílias linguísticas) e, na mesma época, retomados por figuras como as de Alexander Hamilton, August Schlegel, Humboldt, Franz Bopp, Jacob Grimm e outros. Teria sido, assim, nesse período – em que as pesquisas sobre a linguagem humana quase sempre se baseavam nos princípios adotados pela natural history – que o termo orgânico passa a ser sistematicamente empregado nos estudos linguísticos, significando, entre outras coisas, que as línguas operam a partir de leis próprias, que seu crescimento é sempre espontâneo e que há uma completa integração entre as partes e o todo (TSIAPERA, 1990). Essa informação é confirmada por Konrad Koerner, que lembra que grande parte dos termos utilizados nos estudos linguísticos hoje (assimilação, dissimilação, raiz, estrutura, tipo, família etc.) provém das ciências naturais, embora alguns destes vocábulos (raiz, estrutura etc.) já aparecessem nos estudos gramaticais clássicos, como em De Língua Latina, de Varrão. Não obstante, completa o autor, tais expressões atingiram seu ápice durante o século XIX, quando a linguística torna-se um campo de investigação autônomo, baseando seu discurso nos pressupostos das chamadas natural sciences: no centro dessa concepção da linguística, destaca-se, sem dúvida, a ideia da linguagem como um organismo, em especial um organismo vivo, ponto de partida das explicações de o porquê as línguas se transformarem (nascimento, desenvolvimento e morte), mas também modelo geral para os estudos realizados por Schleicher, principal divulgador da tendência de se inserir a ideia de morfologia nos estudos linguísticos, além de, antes mesmo da divulgação das teorias de Darwin acerca da evolução da espécie humana, se utilizar dos estudos botânicos como modelo de análise da linguagem humana, definindo a própria linguística como uma Naturwissenschaft. (KOERNER, s.d.).

É precisamente a partir dessa disposição histórica que Julio Ribeiro expõe, ainda nos seus Traços Geraes de Linguística, em dois quadros comparativos, como se dão a seleção e a classificação genealógica tanto nas espécies quanto nas línguas, a exemplo do que faria, mais tarde, em sua célebre Grammatica. Nessa longa explanação, que vai do capítulo V ao VIII, o autor se estende em considerações mais minuciosas acerca dos períodos históricos em que se subdivide o processo de desenvolvimento linguístico (monossilábico, aglutinativo, amalgamento e contrativo), reafirmando sua crença no “principio biologico” (p. 91) que teria regido a formação das atuais línguas indo-europeias.

Embora apresentando algumas inovações na concepção e na abordagem que faz da linguagem – sobretudo se considerarmos o contexto dos estudos linguísticos no Brasil, na época em que seu livro fora publicado –, o que mais chama a atenção nessa obra de Júlio Ribeiro é, antes, o que ele apresenta não como novidade e superação, mas como conservação e permanência, principalmente no verdadeiro tributo que ele faz às ideologias determinista de Haeckel e evolucionista de Darwin, certamente por via da influência de Schleicher e outros (o próprio Júlio Ribeiro cita, nessa sua obra, os nomes de William Jones, Friedrich Schlegel, Franz Bopp, Grimm e Bréal), tudo isso compondo uma taxativa visão positivista da ciência.

Não sem razão, um de seus poucos biógrafos afirmaria, sem hesitação, tratarem-se, esses seus Traços Gerais de Linguística, de um livro “estruturado na doutrina racionalista da linguagem criada pelos modernos tratadistas alemães” (FILHO, 1945, p. 32).

Em nota apensa ao final do capítulo VIII de seus Traços Geraes de Linguística, Júlio Ribeiro, numa curiosa e preciosa observação, afirma pretender tratar minuciosamente da questão da evolução das línguas contractas em sua gramática, a ser publicada em breve: “está prompta para entrar para o prelo a Grammatica Analytica da Língua Portugueza, feita pelo auctor deste volume, segundo o methodo comparativo” (RIBEIRO, 1880, p. 96). Com efeito, um ano depois, vinha a lume sua famosa Grammatica Portugueza (1881), que perde o adjetivo analytica do título, mas mantém o princípio comparativo do método.[1]

Mas o que mais chama a atenção na leitura de sua gramática é a manutenção deliberada dos pressupostos deterministas e positivistas que, de certo modo, regeram toda sua produção escrita, seja ela científica, seja ela ficcional.

Aliás, antes mesmo de passarmos às considerações acerca de dívida de Júlio Ribeiro para com as teses positivistas de Schleicher na construção de sua produção gramaticográfica, convém lembrar que a filosofia determinista em que se assentam os princípios linguísticos do filólogo mineiro já estavam presentes – antes da publicação de seus Traços Geraes de Linguística ­– na célebre polêmica que Júlio Ribeiro travou com Augusto Freire da Silva, entre 1879 e 1880, posteriormente transcrita em seu livro Questão Grammatical (1887), o que, no mínimo, denota uma absoluta coerência de sua parte.

Com efeito, é nessa sua Questão Grammatical, que Júlio Ribeiro tem a oportunidade de, pela primeira vez, expor, ainda que de modo pouco sistematizado – dado o formato da exposição[2] – suas ideias acerca da linguagem, lembrando terem sido pensadores como Jones, Bopp, Schleicher, Grimm, Whitney, Bréal e outros os responsáveis pelo estabelecimento das bases científicas do estudo da linguagem, possibilitando, em consequência, a consideração da gramática como uma sciencia; desse fato adviria, portanto, a necessidade de se classificarem os fatos linguísticos scientificamente, formando assim “um corpo de doutrina positiva” (RIBEIRO, 1887, p. 13). Embora apresentando posicionamentos visivelmente equivocados – e, apesar de nada justificáveis, compreensivamente discriminatórios –, como a possibilidade de aperfeiçoamento biológico das raças por meio da metodização da língua, essa polêmica antecipa a clara tendência de Júlio Ribeiro em vincular a linguagem aos princípios vitais da fisiologia humana, o que só confirma a força do espólio determinista de Darwin e, principalmente, a hegemonia de uma epistemologia positivista adotada como modelo de sua escrita gramaticográfica.

Aliás, alguns anos após Júlio Ribeiro publicar sua gramática, duas outras obras similares vêm completar o quadro da gramaticografia finissecular: a Gramatica Analítica (1877), de Maximino Maciel; e a Gramática da Língua Portuguesa (1877), de Pacheco Silva e Lameira Andrade. A primeira delas considera a gramática uma “systematização lógica dos factos e normas de uma língua qualquer” (MACIEL, 1918, p. 01), subdividindo-a em descritiva, histórica e comparativa. Para o autor, que posteriormente editaria sua obra sob o sugestivo nome de Gramática Descritiva (1894), o primeiro dos três tipos refere-se justamente ao que se convencionou chamar de gramática expositiva, caracterizando-se pela “systematização orgânica dos factos e normas próprios de uma língua, isoladamente considerada” (MACIEL, 1918, p. 01). Incorporando, pela primeira vez numa gramática, a noção de semiologia, Maximino Maciel promove, de certo modo, uma inflexão nos estudos gramaticais da época, fazendo de sua obra uma referência para a gramaticografia da última quinzena do século XIX. (BASTOS, BRITO & HANNA, 2006) Igualmente inovadora é a obra de Pacheco Silva e Lameira Andrade, para quem a gramática pode se subdividir em geral, histórica, comparativa e histórico-comparativa, sendo esta última, a melhor de todas, por ser a única que “ensina a dissecação scientifica dos vocábulos” (SILVA JÚNIOR & ANDRADE, 1913, p. 66). Como Maximino Maciel, a gramática de Pacheco Silva e Lameira Andrade também se destaca por trazer, de forma inaugural em nossa gramaticografia, os estudos voltados para a semântica da língua portuguesa; e, mais do que isso, apresenta-nos a linguagem como parte da história natural, considerada, portanto, como um conjuncto orgânico pertencente às ciências biológicas. (GUIMARÃES, 2004)

Como se vê, essa relação direta entre os estudos linguístico-gramaticais e a ciência, sobretudo as ciências naturais, ganha mais consistência, no Brasil, a partir da confecção, por Júlio Ribeiro, de sua célebre gramática, fato que, no final das contas, perpassou direta ou indiretamente todo o estudos da linguagem na era moderna (VAN DER VELDE, 1980), permanecendo, no que compete à gramaticografia brasileira, nos gramáticos posteriores a Júlio Ribeiro, como é o caso ainda – além dos gramáticos acima citados – da célebre gramática de João Ribeiro, também publicada em 1887. (CÂMARA JÚNIOR, 1975; SILVA, 2006) Mas, sem dúvida nenhuma, é com a Grammatica Portuguesa de Júlio Ribeiro que, a partir de uma assumida herança positivista, consolida-se no Brasil uma concepção da linguagem como conjunto de regras científicas e positivas, que devem ser seguidas como normas prescritivas invariáveis.

Essa é a conclusão que se pode tirar de uma análise mais minuciosa da referida gramática, que passamos a fazer na sequência, presente em inúmeros comentadores de sua produção gramaticográfica, como – entre tantas outras – a do prefácio que Amador Bueno do Amaral escreveu para a desconhecida e póstuma Nova Grammatica da Lingua Latina (1895), de Júlio Ribeiro (RIBEIRO, 1895), ao lembrar que o famoso filólogo, com sua Grammatica Portuguesa, “rompeu com a rotina pedagogica que havia até então em Portugal e no Brasil”, ao colocar a língua portuguesa em “perfeita e completa obediencia ao que a sciencia tem de positivo em suas conquistas”, constituindo-se, sua gramática, num “corpo de doutrina methodico e scientifico sobre o falar portuguez” (AMARAL, 1895, p. I).

Embora Schleicher seja ainda, a nosso ver, a referência principal na constituição de sua Grammatica Portuguesa, Júlio Ribeiro reconhece, deliberadamente e de bom grado, a inestimável contribuição de alguns dos continuadores do filólogo alemão, como Hovelacque, Whitney, Holmes, Adolpho Coelho e outros. Com efeito, em seu “Prefacio” à segunda edição da Grammatica, escrito em 1884,[3] afirma que se inspirara tanto em Whitney, Becker (para a sintaxe), Bain (para a distribuição da matéria), Holmes e outros nomes da “grammaticographia saxonia”, quando em alguns “grammaticographos portuguezes”, como Paulino de Sousa, Theophilo Braga, Adolpho Coelho e outros (RIBEIRO, 1885, p. II). A informação é enfatizada por alguns de seus mais próximos biógrafos, para quem, de fato, a Grammatica de Júlio Ribeiro representaria, ao apoiar-se em Whitney, “a primeira bomba lançada nos arraiais da gramaticografia” (IRMÃO, s.d., p. 195).

Hovelacque, por exemplo, aparece em referências esparsas ao longo da referida gramática, uma vez que se revela tributário direto da perspectiva positivista da linguística, em particular no âmbito do determinismo biológico de inspiração schleicheriana. Como ocorre com Schleicher, por exemplo, para Hovelacque “la linguistique est une science naturelle, la philologie une science historique” (HOVELACQUE, 1877, p. 01), além de afirmar peremptoriamente que “les langues en effet naissent, croissent, dépérissent et meurent comme toutes les êtres vivants” (HOVELACQUE, 1877, p. 09). Dauzat, posteriormente, em obra sintomaticamente intitulada La vie du langage, afirma: “les phénomènes de la parole, comme tous les phénomènes de la vie, sont soumis à une évolution incessante, qui varie suivant les conditions du millieu, mais n´obéit pas moins, dans chaque cas particulier, à des lois très precises” (DAUZAT, 1929, p. 05); complementando, adiante: “l´existence des mots se resume, comme celle des espèces animales, em une formule empruntée à la biologie: la lutte pour la vie” (DAUZAT, 1929, p. 110).

Apoiando-se, portanto, principalmente em três fundamentos filosófico-ideológicos, os quais conspiram em favor de uma concepção científica da gramática – o positivismo de Comte, o determinismo de Haeckel e o evolucionismo de Darwin –, Júlio Ribeiro divide e subdvide sua gramática, classificando o que chama de partes e dando-lhe um feitio orgânico. As partes da gramática seriam, portanto, principalmente duas: a lexeologia, que se subdividiria em fonética, taxeonomia, kampenomia, etimologia etc.; e a sintaxe, subdividida em sintaxe léxica e sintaxe lógica, cada uma das quais novamente subdivididas em tantas outras partes.

Assim, se na explicação da fonética, chega a chamar o processo de emissão sonora pelo aparelho fonador – cientificamente – de “mechanismo da palavra” (RIBEIRO, 1885, p. 05), ao explicar, no capítulo sobre a taxeonomia (classificação das palavras), a divisão entre palavras variáveis, isto é, não sujeitas à flexão (substantivo, artigo, adjetivo, pronome, verbo) e as invariáveis (advérbio, preposição e conjunção), o autor faz uma sintomática observação:

“as palavras hoje invariáveis já gosaram de vida, já tiveram fórmas móveis nas linguas matrizes: são, si é permittido o simile, organismos inferiores, cujas juntas se ankylosaram, cujas partes fluidas se solidificaram por uma como crystallização linguistica” (RIBEIRO, 1885, p. 57).

Semelhante afirmação, em tudo coerente com o princípio evolucionista propagado por Darwin e, do ponto de vista dos estudos da linguagem, obsedantemente presente em Schleicher, repete-se em sua Grammatica ao tratar dos verbos irregulares:

“o methodo racional, que vê na lingua um organismo e não o producto do capricho ou do acaso, não poderia admittir como anomalias as mais usadas fórmas verbaes; aquellas fórmas que constituem, por assim dizer, a propria essencia do discurso” (RIBEIRO, 1885, p. 135).

E, ainda uma vez, em seus Aditamentos, destinados à sintaxe e à ordem das palavras nas sentenças, Júlio Ribeiro, discordando da posição defendida por Sotero dos Reis em suas célebres Postillas, vê na influência do francês sobre o português um “producto inevitável, necessario, fatal, da evolução linguistica” (RIBEIRO, 1885, p. 325),

Mas é ao tratar da etimologia – assunto que, por sua própria natureza, favorece considerações de caráter evolucionista – que o autor leva ao paroxismo a relação que estabelece, em sua Grammatica, entre a linguagem e os organismos vivos. Assim, ao tratar da etimologia (que, a seu ver, seria mais bem designada pelo termo lexeogenia, já assinalando sua dívida para com a terminologia darwinista), Júlio Ribeiro expõe uma opinião que praticamente serve como profissão de fé da ideologia que fundamentou, em grande parte, o determinismo do período: “bem como as espécies orgânicas que povoam o mundo, as línguas, verdadeiros organismos sociológicos, estão sujeitas á grande lei da lucta pela existência, á lei da selecção” (RIBEIRO, 1885, p. 153). Baseando-se na obra de divulgação do darwinismo na França, escrita por Émile Ferrière (Le Darwinisme, 1872), o autor propõe, portanto, a seguinte comparação, acerca da seleção ocorrida nas espécies e nas línguas:

 

Espécies

Línguas

a) dotadas de variedades, resultado do meio ou de causas fisiológicas

a) dotadas de dialetos, resultado do meio ou costumes

b) as vivas descendem geralmente das mortas de um mesmo país

b) as vivas descendem geralmente das mortas de um mesmo país

c) em um país isolado, uma espécie passa por menos variações

c) em um país isolado, uma língua passa por menos variações

d) há variações produzidas pelo cruzamento com outras espécies

d) há variações produzidas por relações exteriores

e) a seleção é causada pela superioridade de alguns indivíduos

e) a seleção é causada pelo gênio literário e pela instrução pública centralizada

f) a seleção pode ser causada, por exemplo, pela beleza da plumagem ou melodia do canto

f) a seleção pode ser causada, por exemplo, pela brevidade ou pela eufonia

g) há numerosas lacunas nas espécies extintas

g) há numerosas lacunas nas línguas extintas

h) há probabilidades de duração de uma espécie nos indivíduos que a compõem

h) há probabilidades de duração de uma língua nos indivíduos que a falam

i) as espécies extintas não reaparecem mais

i) as línguas extintas não reaparecem mais

j) há progresso nas espécies em razão da divisão do trabalho fisiológico

j) há progresso nas línguas em razão da divisão do trabalho intelectual

 

Esse curioso e sugestivo quadro é completado por outro semelhante, mas que agora diz respeito à classificação genealógica nas espécies e nas línguas:

 

Espécies

Línguas

a) constância de estrutura, órgãos de alta importância fisiológica, órgãos de importância variada

a) constância de estrutura, radicais de alta importância, flexões de importância variada

b) vestígios de estrutura primordial, órgãos rudimentares ou atrofiados, estrutura embrionária

b) vestígios de estrutura primordial, letras rudimentares ou atrofiadas, fase embrionária

c) uniformidade de um conjunto de caracteres

c) uniformidade de um conjunto de caracteres

d) cadeia de afinidades nas espécies vivas ou extintas

d) cadeia de afinidades nas línguas vivas ou extintas

 

Ambos os quadros acima revelam a dívida da Grammatica de Júlio Ribeiro com as teorias evolucionistas, em particular; e, de modo geral, com a filosofia positivista que, no final das contas, forneceu as condições necessárias para que não apenas o evolucionismo de Darwin, mas também o determinismo de Spencer e de Taine, o experimentalismo de Bernard e outras teorias afins pudessem se desenvolver e se disseminar pelo Ocidente. Nesse sentido, ele foi um tributário consciente das ideias linguísticas de Schleicher, que, como já tínhamos salientado antes, afirmou-se na historiografia linguística como um dos nomes que, na segunda metade do século XIX, mais teve êxito na aproximação de categorias linguísticas e idiomáticas aos princípios da biologia evolucionista, até mesmo antes do reconhecimento geral das teorias de Darwin:

“it was under the influence of (pré-Darwinian) evolutionary biology that Schleicher conceived of language as developing in stages from mineral to vegetal and, finally, to animal states which he found paralleled by monosyllabic, agglutinative, and inflectional stages of language evolution” (KOERNER , s.d., p. 62).

Assim, não resta dúvida de que, seguindo de perto os passos de Schleicher, seja por intermédio de consultas diretas à fonte, seja por meio dos inúmeros divulgadores do filólogo alemão, Júlio Ribeiro logrou êxito, como poucos gramáticos de sua época, no propósito de incorporar na gramaticografia nacional as principais diretrizes estabelecidas pelo método histórico-comparatista, em especial nos vínculos que ele estabelecia com as teorias deterministas da época, associando de modo indelével o mecanismo de funcionamento da língua aos processos de geração, desenvolvimento e extinção da vida biológica.

Conclusão

Um dos principais divulgadores do ideário positivista nos estudos linguísticos, filológicos e gramaticais no Brasil – senão o principal –, Júlio Ribeiro não teve reconhecimento unânime em sua empreitada. Maximino Maciel, por exemplo, autor de uma já citada gramática, publicada alguns anos depois do filólogo mineiro (Gramática Descritiva, 1887), critica-o pela excessiva subserviência, segundo seu entendimento, aos filólogos e gramáticos alemães, ingleses e franceses, crítica, contudo, contestada por um dos estudiosos e biógrafos de Júlio Ribeiro: para Mário Casassanta, ao contrário, Júlio Ribeiro teria agido correta e perspicazmente ao adaptar à realidade nacional conceitos retirados de preciosas fontes estrangeiras, além do mérito de ter introduzido no país a técnica de análise histórico-comparativa, por meio da qual teria difundido entre nós os métodos positivos em matéria de gramática, afastando-se, portanto, dos “abusos da metafísica” (CASASSANTA, 1946, p. 19), numa defesa muito semelhante a que lhe faz, no mesmo ano, outro de seus biógrafos (GIFFONI, 1946). Não há como não se lembrar das palavras do próprio Comte, já acima citadas, ao se referir à predominância do método positivista sobre o metafísico...

Num de seus mais famosos escritos (Compendium der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen), já aqui aludido, Schleicher – numa exposição que, em tudo, denuncia-o como fonte de inspiração de Ribeiro – afirma que a gramática, parte da história natural do homem, deve ser compreendida como um aspecto do sistema natural, constituindo-se num claro exemplo de ciência da vida da linguagem. (SCHLEICHER, 1874). Em outra obra igualmente célebre e não menos polêmica (RICHARDS, 2007), Darwinsche Theorie und die Sprachwissenschaft, Schleicher reitera essa perspectiva, ao enfatizar os vínculos necessários entre linguagem e ciência natural, afirmando taxativamente:

“somewhat analogous is, probably, the origin of the vegetable and animal organisms; the simple cell is, no doubt, the common primitive form of those, as the simple root is that of the languages. The simplest forms of the later animal and vegetable life, the cell, we may likewise suppose to have originated in a multitude at a certain period of the life of our earth, just as the simplest words in the world of speech. These incipient forms of organic life, that could neither be called animals or plants, afterwards developed themselves in various directions. Just so the radical elements of the languages”. (SCHLEICHER, 1983, p. 55)

Leitor de Schleicher, como sugerimos no título deste trabalho, Júlio Ribeiro optou por ir além de uma leitura passiva e descompromissada do filólogo alemão, preferindo incorporar suas teses mais recorrentes e, num processo deliberado de aclimatação, adaptá-las à realidade da gramática da língua portuguesa no Brasil.

 

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Notas

[1] Na verdade, método histórico-comparativo, como se convencionou chamá-lo depois.

[2] Tratou-se de uma polêmica, veiculada intermitentemente, pelas páginas do Diário de Campinas (Júlio Ribeiro) e de A Província de São Paulo (Augusto Freire da Silva).

[3] Entre a primeira (1881) e a segunda (1885) edições de sua Grammatica, Júlio Ribeiro realizou uma série de mudanças aqui não abordadas, mas que merecem análise mais acurada em trabalho posterior.